PRÁXIS, ALIENAÇÃO E CONSCIÊNCIA
Nildo Viana
A teoria marxista da consciência se apresenta como uma
crítica de todas as “teorias” do conhecimento e se caracteriza por possuir três
teses básicas que lhe dão sustentação, a saber: o ser e a consciência são
inseparáveis, a vida determina a consciência e, por fim, a consciência é ativa.
No presente artigo, buscaremos analisar este terceiro e enigmático aspecto da
teoria marxista da consciência e deixaremos de lado os outros dois aspectos,
analisados amplamente pela literatura marxista, retomando-os somente quando
eles tiverem importância para esclarecer o terceiro aspecto.
O ponto de partida para compreender esta
característica da consciência humana se encontra na percepção de que o ser
humano se distingue dos outros animais e por qual razão existe esta distinção.
O conceito fundamental aqui é o de trabalho. É aí que poderemos compreender a distinção
entre ser humano e os demais animais. O que é o trabalho? Em sentido amplo, trabalho é toda e qualquer
atividade. E o que é uma atividade? É todo e qualquer movimento imanente no
tempo ou no espaço. Isto quer dizer que
toda atividade é movimento mas nem todo movimento é atividade. Um movimento
para ser atividade precisa ser imanente, ou seja, precisa ter como fonte o
próprio ser que se movimenta. Neste sentido, os movimentos dos astros não são
atividades, pois somente os seres vivos possuem movimento imanente. Desta
forma, percebemos que a categoria trabalho utilizada pela física é distinta do
conceito marxista de trabalho, já que este só se aplica aos seres vivos.
Até aqui não conseguimos distinguir o ser humano do
animal, pois ambos trabalham, isto é, possuem um movimento imanente e, assim,
realizam atividades. A distinção só
aparece quando se descobre a real diferença entre o trabalho humano e o
trabalho animal. Esta diferença reside, tal como demonstrou Marx, no fato de
que o ser humano elabora na sua consciência a finalidade de seu trabalho antes
de executá-lo. É por isso que se diz que o ser humano é um animal teleológico.
O fato do ser humano imaginar o resultado de seu
trabalho antes de executá-lo tem uma importância fundamental, pois é na
consciência que se realiza tal processo. Por conseguinte, o que caracteriza o
trabalho humano é seu caráter teleológico consciente. O animal age mediante o
confronto de duas forças, as forças internas, que são suas necessidades vitais,
e as forças externas, o meio ambiente. A sua não-consciência de si lhe deixa em
desvantagem em sua relação com o meio ambiente. É por isso que ele deve se
adaptar ao meio ambiente. O ser humano também se adapta ao meio ambiente mas
consegue fazer com que o meio ambiente se adapte a ele. O animal apenas
reproduz o mundo enquanto que o ser humano o reproduz humanamente.
Assim, observamos o que caracteriza o trabalho humano.
Esse é o conceito marxista do trabalho, apesar de muitos insistirem em
deformá-lo. Ocorre, porém, que esta definição ainda é demasiadamente abstrata,
pois falta aqui reconhecer que o ser humano só consegue desenvolver sua consciência
e suas atividades no interior de uma associação com outros seres humanos. Isto
é verdade e se observa isto desde a pré-história, quando os seres humanos
viviam em bandos, até as sociedades complexas que existem atualmente.
No interior desta associação, surge uma distinção
entre trabalho socialmente necessário, voltado para a sobrevivência coletiva, e
o conjunto das demais atividades (lúdicas, artísticas, etc.). Em ambas as
formas de trabalho se vê a sua característica de trabalho humano. Entretanto,
com o surgimento das classes sociais, ocorre uma nova divisão, desta vez no
interior do trabalho socialmente necessário, entre trabalho produtivo e
trabalho improdutivo. O primeiro se caracteriza pela produção de bens
necessários (meios de produção e meios de consumo) para a reprodução da
coletividade e o segundo para a reprodução destas relações de trabalho e das
demais relações sociais. É no trabalho produtivo que se constitui as duas
classes fundamentais de um determinado modo de produção e onde se produz um
excedente (já que a produção de bens necessários ultrapassa o quantum suficiente para a reprodução da
força de trabalho) que possibilita a exploração de uma por outra. É nestas
relações de trabalho que uma classe social realiza a produção e a outra a
dirige e, desta forma, se apropria dos bens produzidos.
É neste momento histórico que surge a distinção entre
trabalho alienado e trabalho autônomo. No primeiro caso, o trabalho perde
parcialmente seu caráter humano (consciente e teleológico), pois passa a ser
controlado por outro que não o trabalhador. A finalidade do trabalho deixa de
ser atribuída pelo trabalhador e passa a ser atributo do não-trabalhador.
Assim, o trabalho se manifesta como alienação.
A alienação do trabalho produtivo, por sua vez, se
expande para todas as outras formas de trabalho e o trabalho autônomo
praticamente deixa de existir. Esta última forma de trabalho, o trabalho como
objetivação, ou simplesmente práxis, é ofuscada.
A partir destas observações, podemos ver que o
conceito marxista de trabalho coloca a existência do trabalho humano como
objetivação, como práxis, que, nas sociedades de classes, é substituído pela
alienação. A práxis é abolida na sociedade de classes? Não, mas se torna um
fenômeno marginal num mundo onde reina a alienação.
Na práxis, existe uma unidade entre trabalho manual e
trabalho intelectual. O ser humano desenvolve ativamente suas potencialidades
intelectuais e manuais e através da sua produção manifesta o projeto que o
motivou a trabalhar. Neste sentido, podemos dizer que é assim que o ser humano
se realiza.
Na alienação, ao contrário, existe uma separação entre
trabalho manual e trabalho intelectual. Alguns se especializam em trabalho
manual e outros em trabalho intelectual. É claro que é impossível existir uma
separação total entre trabalho manual e intelectual, pois por mais que um
trabalho seja manual é sempre necessário a atividade intelectual e vice-versa,
mas cria-se uma redução na utilização das capacidades físicas e mentais
respectivamente.
Entretanto, a análise do trabalho alienado sempre
tomou como “modelo” o trabalho manual e nunca o trabalho intelectual. A visão
de que o trabalho intelectual pode se manifestar como alienação ou como práxis
é fundamental para a teoria marxista da consciência e para compreender os
processos ideológicos contemporâneos.
Em primeiro lugar, devemos reconhecer que consciência
é atividade. Tal como Marx colocou, “o principal defeito de todo materialismo
até aqui (incluído o de Feuerbach) consiste em que o objeto, a realidade, a
sensibilidade, só é apreendido sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível, como práxis,
não subjetivamente. Eis porque, em oposição ao materialismo, o aspecto ativo foi desenvolvido de maneira
abstrata pelo idealismo, que, naturalmente, desconhece a atividade real,
sensível, como tal”[1].
Onde se revela o caráter ativo da consciência? Se
revela, inicialmente, no querer, o que implica numa finalidade. Essa
finalidade, assim como no trabalho manual, é objetivação, ou seja, é
manifestação da natureza humana, onde o ser humano se realiza e produz um mundo
humanizado, transformando o que lhe é “exterior”, dando-lhe uma forma
“interior”. Sendo assim, não existe nenhuma separação entre consciência e
sensibilidade. A consciência age sobre o mundo e esta ação tem como ponto de
partida o interesse do ser consciente sobre ele. Existem várias fontes para
esse interesse, desde as necessidades vitais às necessidades socialmente
produzidas (autênticas ou inautênticas), e isto inclui a mentalidade, o
inconsciente, etc.
O caráter ativo da consciência também se manifesta
através de sua capacidade de criar um conjunto de processos intelectuais que
permitem analisar a realidade social e natural, o que podemos chamar de razão.
Além disso, a consciência se demonstra ativa através de sua capacidade de
imaginar o novo, ou seja, negar o existente e conceber um novo existente. Estes
elementos podem não esgotar o caráter ativo da consciência mas apresentam seus
principais aspectos.
A partir da união destes processos, a consciência
trabalha os dados da realidade e os assimila. Desta forma, nenhum fato ou
nenhum aspecto da realidade é apenas “percebido” pela consciência, mas é,
principalmente, trabalhado por ela. A consciência não é uma máquina fotográfica
que apenas retrata o que está na sua frente e sim uma atividade que a partir de
seus processos internos assimila tal fato ou aspecto, que, por assim dizer,
lhes são “externos”. Tais processos internos, porém, são produzidos a partir da
relação do ser humano com o mundo, ou seja, estão impregnados de relações
sociais. A forma como a consciência trabalha sobre a realidade pode ser assim
exemplificada: a construção de um objeto exige a matéria-prima, as ferramentas,
a cooperação entre os produtores e o projeto. A consciência possui,
internamente, o projeto (a finalidade), que pode ter tido uma origem externa
mas que se tornou interno, as ferramentas (a razão) e, em parte, a cooperação
(pois a consciência possui um caráter social). O mundo é a “matéria-prima” sob
o qual a consciência irá trabalhar. A transformação do mundo pela consciência
significa que ela re-elabora esta matéria-prima de acordo com aquilo que ela
possui. Por isso se pode dizer que se trata de uma apropriação do mundo. Isto
significa que a consciência não “retrata” o mundo tal como ele é e sim a
relação que o ser consciente mantém com ele. Daí seu caráter ativo.
Este processo mental é diferente do que ocorre quando
o trabalho intelectual deixa de ser objetivação para se tornar alienação. A
fonte desta transformação se encontra, como foi dito anteriormente, no trabalho
produtivo submetido ao processo de alienação. O surgimento da sociedade de
classes produz a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual e, ao
submeter o primeiro ao processo de alienação, acaba por fazer o mesmo com o
segundo. Por conseguinte, o trabalho intelectual como objetivação também é
marginalizado na sociedade de classes.
A compreensão do desenvolvimento da consciência em um
indivíduo reflete o processo de formação do trabalho intelectual alienado.
Neste sentido, as reflexões de Jean Piaget e de Sigmund Freud são extremamente
importantes. A grande contribuição de Piaget está presente no seu estudo sobre
o desenvolvimento intelectual da criança.
Segundo Piaget, a criança desenvolve sua inteligência
em diversos estágios que apresentam,
cada um, características próprias. O que nos interessa aqui é alguns dos termos
que ele utiliza para expressar os estágios principais que ele encontra no
desenvolvimento intelectual da criança. Tais termos são a assimilação e a
acomodação.
Para Piaget, a assimilação significa a integração de
novos elementos em “esquemas de ação”, o que significa, ao mesmo tempo,
operação e transformação da realidade de acordo com tais esquemas. A
acomodação, por sua vez, significa uma modificação nos “esquemas de ação”,
devido a influência de elementos exteriores. Os “esquemas de ação” expressam um
tipo de ação que pode ser transposta, generalizada e diferenciada para outra
ação.
Em certas situações existe um equilíbrio entre
assimilação e acomodação, embora exista o predomínio de um processo sobre o
outro dependendo da idade da criança. Isto começa a ocorrer quando a criança
alcança um desenvolvimento intelectual onde passa a utilizar o pensamento
formal. A partir dos 7 anos o desenvolvimento intelectual da criança começa a
ocorrer neste sentido e ele se concretiza
quando ela alcança 11-12 anos.
Segundo Piaget, “chamaremos acomodação, essa diferenciação em resposta à ação dos objetos sobre
os esquemas, sincronizando com a assimilação dos objetos aos esquemas, pode
então haver um equilíbrio entre a assimilação e a acomodação, tal sendo o
resultado de um ato de inteligência. Mas pode também ocorrer uma primazia da
acomodação, e, nesse caso, a ação se modela sobre o objeto mesmo, por exemplo
porque esse objeto se torna mais interessante que a utilização assimiladora que
o sujeito poderia tirar dele”[2].
Esse desenvolvimento intelectual possui um
desenvolvimento paralelo no que diz respeito ao julgamento moral da criança,
que a partir dos 8 anos transforma este de heterônomo em autônomo[3].
A obra de Piaget é, sem dúvida, comandada por um
positivismo nefasto. A sua separação entre o desenvolvimento intelectual e o
desenvolvimento afetivo da criança é o seu primeiro grande equívoco. A partir
desta separação ele pode dizer que a assimilação é feita pela integração de
novos elementos ao que ele chama de “esquemas de ação”. Assim, ele apaga da
análise o interesse, o querer, a finalidade, ou seja, uma das características
fundamentais da consciência e que comanda o processo de assimilação.
Desta forma, Piaget reproduz a separação positivista
entre razão e sentimentos, que tem, como uma de suas conseqüências a
possibilidade de se postular uma fictícia “neutralidade” e “objetividade” do
saber. É desta forma que ele pode também, apesar de ter consciência da obra de
Freud, considerar que o julgamento moral da criança a partir dos 12 anos é
autônomo e considerar que o processo de acomodação significa um desenvolvimento
da inteligência da criança.
Segundo Freud, não existe apenas a consciência mas
também o inconsciente, que é povoado pelos desejos reprimidos. A consciência é
o agente responsável por esta repressão. Neste sentido, numa sociedade de
classes, que é uma sociedade repressiva, o desenvolvimento da consciência é
equivalente ao desenvolvimento da auto-repressão, ou seja, da introjeção da
repressão. Isto é idêntico ao que Piaget chama de “desenvolvimento da
inteligência” e do “julgamento moral autônomo”. Este último significa apenas
que a moral externa e repressora é internalizada pela criança[4].
Em outras palavras, a criança nasce numa sociedade repressiva que, por
conseguinte, lhe impõe uma moral repressiva, que faz sanções, realiza coerções,
etc., com o objetivo de controlar o seu comportamento e a sua mente. Até certa
idade, isto deve ser imposto de fora para dentro, mas a partir de um certo
tempo, a criança introjeta tal moral e passa a reproduzi-la por conta própria.
Daí se pode confundir este “por conta própria” com autonomia. Na verdade, o que
ocorre é que a heteronomia anterior deixa de ser uma imposição exterior para se
tornar interior. Não se trata, portanto, de uma autonomia autêntica. O
julgamento moral autônomo da criança não é outra coisa senão o julgamento moral
da sociedade que a criança introjetou.
A concepção piagetiana do desenvolvimento intelectual
da criança parte do pressuposto de que, quanto maior se for “objetivo” e se
desenvolve o pensamento formal, mais desenvolvido é o seu estágio intelectual.
A “acomodação”, a palavra em si mesma já é sugestiva, significa um processo da
adaptação da mente humana ao mundo “objetivo”, o que significa que o querer, a
finalidade, é substituído pela adaptação. A consciência perde seu atributo
humano que é o seu caráter ativo e teleológico e torna-se contemplativo,
reprodutivo. Isto foi possibilitado pela separação entre o afetivo e o
intelectual realizada por Piaget. As conseqüências disto para o lado
“intelectual” é bastante evidente: os processos mentais elaborados para
analisar a realidade tornam-se esquemas de adaptação e ela, buscando
reproduzi-la como uma fotografia. Outra conseqüência reside na dificuldade de
que esta forma de pensamento encontra para pensar o novo. Por fim, o querer é
abolido e em seu lugar surge a “neutralidade” e a “objetividade” e assim
aparece a identificação entre “inteligência” e o desinteresse, a adaptação, a
passividade, enfim, com a acomodação. Aliás, a “epistemologia genética” de
Piaget executa os mesmos procedimentos de todas as epistemologias positivistas
que focalizam o desenvolvimento da ciência e não o da criança. Piaget, ao
aplicar o esquema positivista em outra esfera da realidade, acaba
“confirmando-o” nesta esfera. Desta forma, o positivismo clássico é confirmado
pela “epistemologia genética” e esta, por sua vez, é confirmada pelo
positivismo clássico. Assim, uma forma de positivismo confirma a outra.
Desde Marx, em sua clássica análise do fetichismo da
mercadoria, sabemos que os produtos do trabalho humano (incluindo o trabalho
mental) podem, quando o ser humano perde o seu controle, se tornar autônomos e
independentes dos seres humanos, mas isto não na realidade e sim na consciência
coisificada (fetichista) dos produtores. Essa consciência coisificada é
exatamente a acomodação descoberta por Piaget. Acomodação, contemplação,
coisificação. Tais são os resultados a que chega o trabalho intelectual
alienado.
Os termos piagetianos de assimilação e acomodação são
equivalentes aos termos objetivação e alienação (Marx). A objetivação é um
processo de assimilação do mundo não por um pobre e restrito “esquema de ação”
e sim pelos interesses, atividades e processos mentais de um indivíduo. A
concepção de Piaget reflete a concepção burguesa (coisificada) de ciência e
inteligência. A acomodação realmente existe, mas como trabalho intelectual
alienado e não como objetivação, como práxis.
Esta concepção, aliás, também penetrou nas concepções
“ditas” marxistas, tal como se vê nas obras de Lênin, Stálin, Mao Tsé-Tung,
entre outros. O que é a ideologia leninista do reflexo senão um elogio da
acomodação? O que é a concepção de Mao Tsé-Tung segundo a qual o caráter ativo
do pensamento se revela apenas em duas oportunidades: a da passagem do
“conhecimento sensível” ao “conhecimento racional” e a aplicação deste à
prática revolucionária?
A partir destas considerações, podemos dizer que
Piaget descreveu o processo de desenvolvimento intelectual da criança mas não o compreendeu. Realmente, há uma
passagem do processo de assimilação para o processo de acomodação enquanto
forma predominante de processo mental. Mas, ao contrário do que ele pensava,
isto não significa um desenvolvimento das capacidades mentais da criança e sim
um emperramento de tal
desenvolvimento. É claro que a acomodação (mesmo porque não é acomodação
“pura”, pois o processo de assimilação, mesmo subordinado, continua existindo)
não significa um emperramento total do desenvolvimento das capacidades mentais
do indivíduo mas um emperramento parcial. É evidente que ele permite o desenvolvimento
de algumas capacidades mentais, principalmente aquelas que colaboram com o
desenvolvimento de um saber funcional[5].
Talvez fosse interessante tomar alguns exemplos para
deixar mais claro a real distinção entre o processo de assimilação e o processo
de acomodação. O processo de assimilação ocorre tendo como ponto de partida um
indivíduo que possui um determinado processo histórico de vida, um conjunto de
valores e interesses, um modo de refletir
e pensar o mundo, uma visão de mundo. Este indivíduo, portando este
conjunto de características que dão forma a sua consciência, geralmente se
encontra com idéias, concepções, experiências, etc., opostas à dele. A
tendência deste indivíduo é rejeitar o que é oposto ou integrar elementos
parciais transformando-os no sentido de lhes adaptar e fornecer-lhes coerência na sua consciência.
Dito de outro modo, um anarquista pode muito bem
rejeitar a totalidade da obra de Lênin, mas outro anarquista pode assimilá-lo.
Como seria isto? Ora, um anarquista pode se manter muito bem no interior de sua
doutrina e aproveitar elementos parciais da ideologia leninista. Por exemplo, a
concepção leninista do imperialismo pode ser aceita por um anarquista e que, no
entanto, poderá rejeitar todos os demais aspectos da ideologia leninista.
Entretanto, ao acatar a concepção leninista de imperialismo, o referido
anarquista realiza, simultaneamente, sua transformação, pois ela passa a ter
como núcleo uma determinada doutrina anarquista e isso lhe provoca alterações.
Só desta forma se manteria a coerência no interior da doutrina a partir da
absorção deste elemento da obra de Lênin. Quais alterações ocorreriam? Talvez o
referido anarquista acrescenta-se um papel mais importante para o estado para
explicar o imperialismo e conclui-se, a partir disto, que não basta destruir a
produção capitalista e os monopólios internacionais mas também o estado para se
superar o imperialismo. Outras alterações podem ocorrer através de alguns
termos e expressões, que são abandonados, acrescentados ou substituídos. Desta
forma, ocorre um processo de assimilação, pois o núcleo central do pensamento
anarquista permanece e elementos parciais de outro tipo de pensamento são
integrados nesta concepção central.
O processo de acomodação ocorre quando um determinado
indivíduo não possui uma concepção de mundo articulada, onde os valores,
interesses, etc., não possuem um núcleo articulado que lhe forneça uma direção.
Daí sua eterna flutuação, que pode provocar o ecletismo, o relativismo, o
acompanhamento a-crítico dos modismos. Portanto, no processo de acomodação o
que ocorre é que dificilmente existe uma concepção de mundo que seja o ponto de
partida para o diálogo com as demais ideologias, teorias ou concepções de
mundo. Quando isto ocorre, pode tanto haver a rejeição das outras ideologias
como sua aceitação parcial. Mas tal aceitação, ao contrário do que ocorre com o
processo de assimilação, não provoca nenhuma alteração. Isto tem como
conseqüência a incoerência instalada no discurso, que, obviamente, se apresenta
como coerente e o é aparentemente.
Tal processo pode ser exemplificado no caso de um
economista que quer analisar a “economia capitalista” e utiliza conceitos
marxistas mesclados com termos do tipo setor primário, secundário e terciário
da “economia” (que, como sabemos, foram criados pelo economista não-marxista
Colin Clark) sem lhe produzir nenhuma alteração, criando uma espécie de
justaposição incoerente de termos. O ecletismo é outro exemplo deste tipo de
trabalho intelectual.
Uma coisa que está muito presente neste tipo de
consciência é o culto à autoridade e, concomitantemente, a falta de
criatividade, que produz sempre uma colcha de retalhos ao invés de uma visão
crítica da realidade. O culto à autoridade retira das pessoas o senso crítico e
a criatividade, produz insegurança, faz com que o pensamento produzido não
tenha como centro o próprio produtor dele e sim algo que lhe é exterior, o
“conhecimento objetivo” produzido pelas autoridades, ou seja, os especialistas,
os escritores de renome, etc., e desta forma o indivíduo se adapta a cultura
existente ao invés de a trabalhar em sua mente. A falta de criatividade[6]
tem outras raízes mas está mais presente quando há o culto à autoridade e se
manifesta com mais freqüência no mundo acadêmico, onde as exigências de
objetividade, cientificidade, etc., entre outros fatores, reforça a mera
reprodução do “saber” institucionalizado.
Qual é o fundamento do processo de acomodação? É, sem
dúvida, a consciência coisificada. O trabalho intelectual como objetivação,
como práxis, é a assimilação e o
trabalho intelectual como alienação, é acomodação, coisificação. Isto vale para
os que se especializam tanto no trabalho manual quanto no trabalho intelectual.
Se a assimilação significa objetivação, então ela
expressa a forma de consciência ideal. Ocorre, porém, que a assimilação pode
ser feita pelos mais diversos pontos de vista, tal como o de uma religião,
doutrina política, concepção filosófica, etc., embora o processo de assimilação
ocorra com mais facilidade no interior de uma consciência correta da realidade,
ela também pode ocorrer no interior de uma ideologia burguesa. Aliás, os
melhores representantes ideológicos da burguesia utilizam o processo de
assimilação, embora mesclado como o processo de acomodação, que geralmente tem
o predomínio.
Disto decorre também a necessidade de esclarecer que o
processo de assimilação e o processo e acomodação podem se mesclar, provocando
o equilíbrio ou o predomínio de um dos dois. Mas, dependendo do indivíduo, é
possível a manifestação de apenas um destes dois processos, o que no caso da
acomodação significaria uma consciência totalmente coisificada e, no segundo
caso, de uma consciência produtiva, que, caso seja, expressão do proletariado,
significaria, ao mesmo tempo, a expressão da realidade.
Neste sentido, podemos dizer que o trabalho manual e o
trabalho intelectual quando não são alienados, quando se expressam como
objetivação, são o que chamamos práxis.
Quando esta práxis mantém uma unidade com os interesses de classe do proletariado,
ela é uma práxis revolucionária. Ela
significa, em outras palavras, a autogestão da lutas e atividades pelos
próprios indivíduos revolucionários.
Portanto, entre a assimilação e a acomodação
existe mais do que uma simples disputa entre processos mentais, pois também se
revela aí uma oposição entre concepções de mundo que expressam interesses de
classe opostos e irreconciliáveis, onde, dependendo de qual processo se usa, se
torna mais ou menos eficaz em seu resultado. Compreende-se, então, que, para a classe
dominante, o processo de acomodação é o mais adequado para as classes
exploradas, pois assim elas se tornam menos perigosas e o processo de
assimilação deve ser utilizado apenas por seus grandes ideólogos. Do outro lado
da barricada, o processo de assimilação é necessário para todos, pois somente
assim se poderá manifestar uma verdadeira práxis revolucionária.
VIANA, Nildo. Práxis, Alienação e Consciência. In: A Filosofia e Sua Sombra. Goiânia,
Edições Germinal, 2000. Pp. 161-172
[1]Marx, K. Teses Sobre Feuerbach. In: Marx, Karl e Engels,
Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 8a edição, SP,
Hucitec, 1991, p. 11.
[2]Piaget, Jean. Problemas de Psicologia Genética. In: Col. Os Pensadores. SP, Abril
Cultural, 1978, p. 251.
[4]Cf. Freud, S. O Futuro de
Uma Ilusão. In: Col. Os Pensadores, SP, Abril Cultural, 1978.
[5]Saber funcional é o tipo de saber
que possui uma funcionalidade em relação à sociedade no qual ele é produzido. O
saber acadêmico, por exemplo, é um saber funcional. O mesmo se pode dizer do
saber burocrático. Estes tipos de saber são funcionais em relação à sociedade
na qual são produzidos, ou seja, possuem uma utilidade neste contexto e
possibilita a quem o adquiriu se movimentar com eficácia no lugar onde se
encontra. Tal saber funcional, porém, não possui valor para além destas
relações, a não ser em caso de sua funcionalidade permanecer válida em outra
sociedade.
[6]Existe, no interior do mundo
acadêmico, uma variante do academicismo que busca valorizar a “originalidade”
(que não significa a mesma coisa que criatividade). Esta variante do
academicismo geralmente demonstra um excesso de preocupação com o chamado
“estilo” e recomenda a leitura de textos literários para que cada um crie o seu
próprio “estilo”. Isto expressa apenas uma preocupação formal derivada da
necessidade de dizer coisas já ditas de forma “disfarçada”, ou seja, somente a
linguagem é “original” (na verdade, nem esta, que é mera transposição de um
tipo de escrita para outro). Isto é produto de uma consciência coisificada que
se acomoda ao que existe e se julga “original” por utilizar palavras diferentes
para dizer o já dito. Na nossa opinião, “o estilo é o homem” e o conteúdo
determina a forma e, por isso, o conteúdo é que é o fundamental. Alguns
acadêmicos buscam criar “idéias originais” para conseguir reconhecimento
institucional, embora no Brasil isto seja muito raro, pois o “conhecimento
objetivo”, segundo as cabeças colonizadas daqui, é produzido na Europa
Ocidental ou nos EUA. Mas aqui não se trata disso. A criatividade do qual
falamos se refere ao ato de criar, trabalhar, realizar uma apropriação do que
existe. Do ponto de vista marxista, não há o menor sentido em se fazer o elogio
da originalidade (a não ser em obras artísticas), pois o importante não é ter
“idéias originais” e sim desenvolver uma consciência correta da realidade, que
caso já exista sobre algum aspecto da realidade, não há mais nada a fazer do
que reproduzi-la. Ocorre, porém, que tal consciência correta da realidade não é
produto da visão objetiva e sim de suas condições de possibilidade, que são
determinadas pelo contexto histórico e pelos interesses daqueles que se
debruçam sobre a realidade buscando dar-lhe expressão intelectual.
Bom dia Nildo.
ResponderExcluirFazer a transposição ou interfaces entre o pensamento de Marx e Piaget/Freud faz com que você incorra no problema do ecletismo. Adotar os pressupostos de Vigotski de Pensento e Linguagem e outros escritos permitiriam coerência maior de fundamentos.
Prezado Luiz, penso que não leu o texto com a devida atenção. O que eu fiz foi uma assimilação do pensamento de Freud e outros autores, e distingui isso de ecletismo, como está no próprio texto. Um outro problema, oposto ao ecletismo, é o dogmatismo. O marxismo é um pensamento crítico-revolucionário aberto e quando busca analisar a mente humana, o que Marx abordou apenas no aspectos sociohistórico e consciente, a psicanálise traz contribuições fundamentais. Quanto ao conteúdo da sua observação, eu já estudei Vigostky e fiz uma comparação entre o pensamento dele e o de Marx, sendo que são bem distintos tanto teórica como metodologicamente. Vigostky é um pseudomarxista e sua fonte básica é Engels e não Marx. A sua abordagem é muito mais positivista que marxista. Por conseguinte, eu lhe diria que para ter mais coerência no marxismo é necessário a crítica do pensamento de Vigostky e a assimilação da psicanálise. Claro que isso não significa dizer que nada do que Vigostky disse não tenha valor (ou Piaget, outro pensador problemático e que foi criticado no texto, caso não tenha reparado).Agradeço sua observação, mas considero-a equivocada. Para entender melhor o que eu disse sugiro a leitura de textos mais completos meus, como Universo Psíquico e Reprodução do Capital (São Paulo: Escuta, 2008); "Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico" (Goiânia: Edições Germinal, 2002). abs.
ExcluirBoa Noite Nildo.
ResponderExcluirNa leitura do texto percebi o uso da palavra "coisificação", e gostaria de perguntar se o seu uso e significado pode convergir totalmente ou em parte com o conceito de reificação do Lukásc? Já que coisificação é pra Lukásc sinônimo de reificação.
Obrigado
Boa Noite Nildo.
ResponderExcluirNa leitura do texto percebi o uso da palavra "coisificação", e gostaria de perguntar se o seu uso e significado pode convergir totalmente ou em parte com o conceito de reificação do Lukásc? Já que coisificação é pra Lukásc sinônimo de reificação.
Obrigado
Bruno, como vai? Sim, considero que coisificação, fetichismo e reificação são a mesma coisa. Até mais!
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