Reflexões Sobre Ética
Nildo Viana
Para nós, o homem se caracteriza antes de todo pela superação de uma situação, pelo que ele chega a fazer daquilo que se fez dele (...); a conduta mais rudimentar dever ser determinada ao mesmo tempo em relação aos fatores reais e presentes que o condicionam em relação a certo objeto a vir que ele tenta fazer nascer. É o que denominamos projeto.
Jean-Paul Sartre
A palavra ética recebe os mais variados
sentidos. Por isso, seu significado varia dependendo de quem a pronuncia.
Ética, no sentido comum da palavra, são as “boas” normas de conduta ou o “bom”
comportamento moral. Para alguns filósofos, a ética ganha um sentido mais
relativo e é entendida como “norma de conduta” (ou seja, uma forma sem conteúdo
definido). Para outros, se tais normas são boas ou más, isto não vem ao caso e
nasce, assim, o relativismo ético. Para outros filósofos, a ética é também
compreendida como uma norma de conduta e que não é nem única nem absoluta, mas
há uma ética “boa” e uma (ou “várias”) que é (são) má (s). Há também aqueles que
sustentam a existência de apenas uma ética, ou seja, apenas uma norma de
conduta de acordo com o bem, com o dever ou com a natureza humana. Por fim, há
aqueles que distinguem ética e moral e definem a primeira como uma “ciência” ou
como um “ramo da filosofia” que se dedica ao estudo dos problemas morais.
Existem outras definições de ética, mas no presente texto trataremos de apenas
algumas concepções de ética, que são aquelas que consideramos mais influentes
ou que servem de “modelo exemplar” para definições semelhantes. Após refutarmos
algumas concepções de ética, iremos apresentar um conceito de ética (formal) e
depois iremos discutir o conteúdo da ética.
A Ética Como Ciência
O filósofo mexicano Adolfo Sanchez
Vázquez distingue “problemas éticos” e “problemas prático-morais cotidianos”[1].
Devo ou não mentir para X? Os soldados do exército nazista devem ser condenados
por terem cumprido as ordens de seus superiores? Devo denunciar um crime
cometido por um amigo meu? Estes são exemplos de problemas prático-morais
cotidianos. Eles se referem não apenas ao indivíduo da ação mas também àqueles
que serão atingidos por ela (outros indivíduos, um grupo social, uma
comunidade, uma nação). Segundo Vázquez,
“À diferença dos problemas
prático-morais, os éticos são caracterizados pela sua generalidade. Se na vida
real um indivíduo concreto enfrenta uma determinada situação, deverá resolver
por si mesmo, com a ajuda de uma norma que reconhece e aceita intimamente, o
problema de como agir de maneira a que sua ação possa ser boa, isto é,
moralmente valiosa. Será inútil recorrer à ética com a esperança de encontrar
nela uma norma de ação para cada situação concreta. A ética poderá dizer-lhe,
em geral, o que é um comportamento pautado por normas, ou em que consiste o fim
– o bom – visado pelo comportamento moral, do qual faz parte o procedimento do
indivíduo concreto ou de todos. O problema do que fazer em cada situação
concreta é um problema prático-moral e não teórico-ético. Ao contrário, definir
o que é bom não é um problema moral cuja solução caiba ao indivíduo em cada
situação particular, mas um problema geral de caráter teórico, de competência
do investigador da moral, ou seja, do ético” [2].
Desta forma, os problemas éticos
possuem um caráter de generalidade em contraposição aos problemas morais que se
manifestam em situações concretas. Mas a ética pode, mesmo assim, contribuir
para justificar e/ou justificar um comportamento moral, desde que não seja
absolutista, apriorística, ou puramente especulativa. A ética ao revelar a
relação entre comportamento moral e certas necessidades e interesses sociais de
determinado grupo social poderá situar seu caráter e, em determinados casos,
defini-lo como um comportamento não-moral, pois atenderia, nesse caso, apenas
aos interesses egoístas de grupos que buscam, para justificar seu
comportamento, apresentar sua moral como uma “norma universal”.
Algumas éticas tradicionais consideram
que é missão do teórico dizer o que os homens devem fazer, tornando-se, assim,
num “legislador do comportamento moral”. Para Vázquez, não é este o papel da
moral. A Ética é a teoria e possui a mesma função de toda teoria, ou seja, tem
como função explicar, esclarecer ou investigar certo aspecto da realidade, que
no caso, é o comportamento moral em reação às éticas tradicionais, de caráter
normativo, buscou-se reduzir o domínio da ética à questões teóricas a respeito
da moral e dos problemas morais.
O que é a ética? Vázquez define: “a
ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou
seja, é ciência de uma forma específica de comportamento humano” [3]. Neste sentido, a ética é uma ciência e isto traz
diversas implicações, entre as quais a ideia de que, tal como é toda a ciência,
a ética não é normativa, ela não diz o que devemos fazer e nem julga o
comportamento alheio. Como toda ciência, a ética possui um objeto de estudo: a
moral. Por conseguinte, ética e moral são coisas distintas. O objetivo da ética
é explicar a moral efetiva e por isso pode influir sobre ela.
Se a ética é uma ciência, então ela ao
pode ser considerada um “ramo da filosofia”, pois ciência e filosofia são
coisas distintas. Vázquez busca justificar a sua definição de ética como
ciência da moral e refutar a concepção da ética como ramo da filosofia da
seguinte forma:
“Na negação de qualquer relação entre a
ética e a ciência se quer basear a atribuição exclusiva da primeira à
filosofia. A ética é então apresentada como uma parte da filosofia
especulativa, isto é, construída sem levar em conta a ciência e a vida real.
Esta ética filosófica preocupa-se mais em buscar a concordância como princípios
filosóficos universais do que com a realidade moral no seu desenvolvimento
histórico e real, donde resulta também o caráter absoluto e apriorístico de
suas afirmações sobre o bom, o dever, os valores morais, etc. certamente,
embora a história do pensamento filosófico esteja repleta deste tipo de éticas,
numa época em que a história, a antropologia, a psicologia e as ciências
sociais nos proporciona materiais valiosíssimos para o estudo do fato moral,
não se justifica mais a existência de uma ética puramente filosófica,
especulativa ou dedutiva, divorciada da ciência e da própria realidade humana
moral”[4].
Esta concepção de ética é aceitável ou
não? Sem dúvida, esta concepção entra em contradição com todas as outras
definições de ética. A idéia de considerar a ética como uma ciência é um tanto
quanto exótica. Mas, além do exotismo, esta definição possui outras
deficiências mais graves. Em primeiro lugar, ela é cientificista e
reducionista. Ela é assim por reduzir a ética à uma ciência e como todos
sabemos uma das principais características da ciência (principalmente no campo
das ciências humanas, onde se incluiria ética) é a separação entre julgamentos
de fato e julgamentos de valor, sendo que só os julgamentos de fato é que podem
estar presentes na ciência, e assim a ética se torna subordinada à ciência. Sem
dúvida, Vázquez tenta resolver este problema afirmando que a ética pode, após
explicar a moral, contribuir para a formação de julgamentos de valor mas de
qualquer forma está presente a concepção de que a razão detém a primazia sobre
os valores e, além disso, que a razão detém a primazia sobre os valores e, além
disso, que a razão deve preceder os valores e que razão e valores são
separáveis e separados. Esta concepção é, portanto, positivista
[5].
A ideia de separação entre razão e
valores já foi amplamente criticada por filósofos, cientistas e críticos da
ciência e/ou da filosofia. Aliás, a própria ideia de que a razão deve servir de
guia para a formação de valores é, em si, uma concepção valorativa. Na verdade,
razão e valores são inseparáveis. A razão não pode ser autonomizada, pois ela
não pode ser um objeto em si mesma. A razão deve estar ligada e deve ser
justificada por valores, pois, caso contrário, esta separação – mesmo que
parcial, á que é impossível uma separação total – poderá criar inúmeras
monstruosidades. O problema da relação entre ética e razão, e também a relação
entre ética e ciência, já foi amplamente discutido, desde a colocação de
problemas como a questão da bomba atômica até a questão da exploração e da
destruição ambiental, e isto deixa entrever que não pode haver tal autonomização.
A ideia de que a ética, enquanto ciência, após cumprir sua função de explicar
pode contribuir com a formação de julgamentos de valor, também é positivista e
está presente nas teses de vários positivistas.
Em segundo lugar, se a ética é uma
ciência, ela deve possuir, como toda ciência, um objeto de estudo próprio e
também um método próprio. O objeto de estudo da ética é a moral as qual é o seu
método? Quando Durkheim queria fundar a sociologia como ciência escreveu As
Regras do Método Sociológico, onde não definia apenas o objeto desta
ciência (os fatos sociais) como também o seu método. Malinowski quando buscou
desenvolver a antropologia como ciência da cultura não apenas lhe atribuiu a
cultura como objeto de estudo como também, em Argonautas do Pacífico Ocidental,
lançou as bases do método funcionalista. A ética, esta “nova ciência”, corre o
risco de ser uma meia-ciência, tal como ciência política e a pedagogia, pois
ambas possuem um objeto de estudo que também são analisados por outras ciências
(em especial a sociologia) e retiram destas o seu “método”.
Em terceiro lugar, tal concepção não
deixa de ter uma certa característica elitista, pois cabe ao ético definir o
que é bom ou não e assim Vázquez repete os erros que ele diz encontrar nas
éticas tradicionais. A elite composta pelos intelectuais especialistas em
ética, é que podem definir o que é bom ou não. Por fim, podemos dizer que estas
são as principais limitações desta concepção. Se dúvida, a ética ou a moral
podem ser analisados (ser, segundo linguagem positivista, “objeto de estudo”)
mas isto não deve servir de pretexto para uma consciência coisificada tomar
conta dos assuntos. A ética é um problema anterior ao problema da ciência e por
isso não pode ser resolvido por esta.
Sendo assim, esta definição de ética é
mais um problema do que uma solução. Mas podemos encontrar diversas outras
definições de ética. Existem aqueles que definem a ética como um ramo da
filosofia. É desta concepção que iremos tratar aqui.
A Ética Como Ramo da Filosofia
Para alguns filósofos, “a ética é o
ramo mais prático da filosofia”
[6] Os problemas
éticos são geralmente trabalhados pela tradição filosófica sem a
problematização do próprio conceito de ética. Desde Aristóteles, se tornou
costume entre os filósofos apresentar uma visão da qual deve ser o objetivo do
ser humano e como ele dever agir, bem como discutir o que se deve fazer, os
valores, o certo e o errado, o bem e o mal, sem ates de tudo definir e discutir
o conceito de ética, salvo raras exceções.
Na história da filosofia só
recentemente a ética passou a ser definida como um “ramo” dela mesma. Quando e
como isto ocorreu? Ocorreu com a formação da moderna sociedade capitalista e
com a transformação que esta sociedade produziu nas ideologias e na filosofia
em especial. Na sociedade capitalista, todo saber precisa de uma aplicação
prática e por isso o saber especulativo é abandonado. A ciência assume o posto
de forma dominante de ideologia dominante outrora pertencente à teologia
(feudalismo) e à filosofia (escravismo). Na idade média, sob o modo de produção
feudal, a filosofia subsistiu, mas de forma subordinada à teologia e hoje ela
sobrevive de forma subordinada à ciência.
A ciência reproduz internamente a
divisão social do trabalho existente na sociedade capitalista. A primeira
grande divisão ocorreu entre as ciências naturais e as ciências humanas e
posteriormente no interior de cada uma delas. É justamente isto que
possibilitou hoje a tentativa de transformar a ética numa ciência (Vázquez). A
filosofia antiga era não-institucional ou era veiculada nas instituições
criadas pelos próprios filósofos (academia, liceu). Na sociedade moderna,
principalmente a partir de sua consolidação cultural ocorrida no século 20, a
filosofia tornou-se institucional. Hoje, para ser filósofo, é preciso ter o
diploma de graduação ou pós-graduação em alguma universidade reconhecida
legalmente. Antes, bastava pensar o mundo e elaborar um conjunto de ideias para
ser considerado um filósofo. Hoje, se estuda a história da filosofia e se
reproduz o que os grandes filósofos do passado disseram. A autonomia da razão
pregada pela filosofia iluminista se extinguiu devido sua institucionalização e
ao predomínio do culto à autoridade, à razão instrumental, ao discurso técnico,
segundo o qual somente os especialistas com seu conhecimento técnico podem
tratar de um assunto que é de sua especialidade.
Além disso, o desenvolvimento da
filosofia passou a ser subordinado ao da ciência e é por isso que ela
reproduziu internamente a divisão do trabalho intelectual existente naquela.
Isto, inclusive, via contra a pretensão de globalidade da filosofia que muitos
filósofos ainda atribuem à ela. Surge, assim, a filosofia da história, a
filosofia da arte, a filosofia da educação, a filosofia da ciência, a filosofia
da linguagem, a ética, etc. desta foram, a ética como conceito filosofia passa
a ter dois significados: um ramo da filosofia, ou seja, uma parte da filosofia
geral, uma “filosofia particular” que se preocupa com um determinado conteúdo
(a ética) e ao mesmo tempo este conteúdo, também chamado ética.
A ética como ramo da filosofia discute
a questão do dever, da determinação e da liberdade, etc., ou seja, questões
genéricas e não questões concretas. Alguns filósofos, influenciados pela
concepção marxista, chegam a afirmar que ela “ocupa-se imediatamente das ações
dos homens, e como estas estão em grande parte dirigidas para a obtenção dos
meios de vida e para assegurar a continuação da vida humana, a ética está
intimamente associada à base econômica da sociedade”
[7]. Mas aí se encontra
uma exceção. Na maioria das vezes, contemporaneamente, se coloca a ética como
algo que deve ser explicado e não se problematiza a questão de como deve ser
vivida.
A filosofia contemporânea, que é uma
filosofia acadêmica, geralmente não problematiza o conceito de ética e se
limita a sintetizar ou reproduzir a história da filosofia e suas especulações
sobre ética. Sem dúvida, a história da filosofia apresentou diversas
contribuições para a compreensão da questão da ética. Ocorre, porém, que a
ética não é apenas um problema filosófico ou do filósofo, pois a própria
filosofia deve prestar contas à ética. Neste sentido, a ética está além da
ciência e da filosofia e é desta forma que iremos tratar da questão ética.
Isso, de certa forma, está de acordo com o procedimento de diversos filósofos
clássicos que conceberam a ética não como uma forma de analisar os problemas
morais (seja como ciência seja como ramo da filosofia) e sim como uma questão
mais profunda, como a posição do ser humano diante do mundo.
A Ética Como Norma de Conduta
Na tradição filosófica clássica a
questão do conceito de ética não foi problematizada tal como deveria
necessariamente ocorrer. Mas a ética sempre foi vista como aquilo que deve
dirigir a conduta humana. Não haveria, neste sentido, grandes distinções entre
ética e moral. A grande questão era, então, definir o critério que deve dirigir
a ação humana. Qual é o objetivo fundamental do ser humano e que, portanto, lhe
deve dirigir a ação? Para Aristóteles é a felicidade, para Kant é a boa
vontade, para os hedonistas é o prazer e assim por diante. O que se percebe é
que a ética possui uma fundamentação antropológica, ou seja, na natureza humana
ou pelo menos numa determinada concepção do que ela seja. Entretanto, entre
estes filósofos não existe apenas uma concepção de natureza humana e sim
várias, e, por conseguinte, se criou várias concepções também de ética. Daí a
discussão sobre o relativismo ético, tal como colocaremos ais adiante.
Como resolver esta questão? A solução
para este problema só pode ocorrer reconhecendo-se que, se existem várias
concepções de natureza humana, isto não contradiz a verdade de que só existe
uma natureza humana. Isto não justificaria a existência de uma ética absoluta?
Portanto, a discussão passa a girar entre o relativismo ético e a ética
absoluta. O filósofo Wilhelm Dilthey já adiantava algumas conclusões das
ciências humanas: “não se pode responder a priori à seguinte pergunta: o que é
ética? A resposta, tampouco, pode ser deduzida de um par de processos éticos.
Devemos interrogar a própria evolução da moral, e em diferentes épocas, sendo
que esta dará respostas substancialmente distintas”
[8].
Este tipo de concepção pode justificar
o relativismo ético. Mas resta saber o que é pior: o relativismo ético ou uma
ética absoluta? A resolução deste problema, a nosso ver, só pode ocorrer
através da distinção entre ética e moral (mas não só como apresentada nas
definições cientificistas ou “racionalistas” da ética como “ciência da moral”
ou como “ramo da filosofia”) e do reconhecimento da existência de uma ética
universal e de diversas éticas particulares.
Ética e Moral
O que distingue ética e moral? Podemos
dizer que a moral é uma conduta prática que ocorre em situações concretas. Mas
não se trata de uma conduta qualquer e sim de uma conduta que é dirigida por
considerações sobre o dever, as obrigações, o certo e o errado, o bem e o mal,
os valores. Neste sentido, tanto Vázquez quando Ash estão corretos. A distinção
entre ética e moral encontra um sólido apoio no fato de que a ética nos remete
aos princípios gerais que devem moer as ações humanas e a moral nos remete a
uma preocupação com a questão do certo e do errado, da obrigação, etc., em uma
situação concreta, ou seja, levanta este tipo de questão: é certo ou errado
mentir para um amigo para evitar o seu sofrimento?[9].
Disto deriva a questão de como cada
indivíduo elabora sua ética. Qual é o critério para se elaborar uma ética? Além
disso, posso dizer que a ética é um problema exclusivamente individual? Aqui
podemos dizer que a ética deve ter uma fundamentação na natureza humana[10],
(antropológica, segundo linguagem filosófica) e, ao mesmo tempo, deve estar
intimamente ligada ao projeto de vida do indivíduo. E, sem dúvida, todas éticas
existentes são frutos de uma concepção de natureza humana. O que isso
significa? Significa que a ética elaborada por um indivíduo deve ter como base
uma concepção de natureza humana e um projeto de vida. Estes são os fundamentos
para se elaborar os princípios e valores fundamentais que irão determinar a
ação humana. Entretanto, em certas situações concretas pode ser impossível
executar uma tal ação e, neste caso, então se deve elaborar uma ética visando
remover este obstáculo para assim garantir sua concretização futura.
A ética é um problema apenas
individual? A nosso ver, não, pois um indivíduo elabora sua ética não apenas em
relação a si mesmo. O indivíduo, como é um ser social e só pode existir no
interior de uma associação com os outros seres humanos, isto é, no interior de
uma sociedade, elabora sua ética para conduzir suas relações sociais. O indivíduo
só existe no interior de um conjunto de relações sociais e por isso ele deve
elaborar sua ética para atuar neste contexto. Acrescente-se a isso as
necessidades afetivas e existenciais do indivíduo que são concretizadas apenas
nas relações sociais e veremos que a ética é um problema de cada indivíduo, mas
não é um problema individual.
Além disso, o indivíduo não elabora
arbitrariamente sua ética, pois ele é um ser social e sua mentalidade (e, por
conseguinte, sua concepção de natureza humana), seus interesses e seu projeto
são produzidos nas suas relações sociais e são determinados por tais relações.
Para uns, o indivíduo é totalmente determinado e para outros é completamente
livre. Do nosso ponto de vista, estas concepções são equivocadas. O indivíduo é
determinado pela sociedade, mas possui uma autonomia relativa (que varia, de
acordo com a sociedade e com o momento histórico) e por isso ele é responsável
pelos seus atos, embora parcialmente. A sua ética, portanto, não é elaborada arbitrariamente,
mas ele possui a possibilidade de repensá-la e alterá-la, embora em certas
situações isto seja pouco provável. Portanto, é preciso distinguir entre
possibilidades e probabilidade, sendo que a primeira apenas coloca que é possível,
mas é a segunda eu pondera as tendências e contratendências e quais delas são
mais fortes ou fracas. Somente assim podemos compreender a margem de liberdade
do indivíduo e, consequentemente, seu grau de responsabilidade em suas ações.
Portanto, a ética deve ser compreendida
como um verdadeiro ethos, tal como colocou Max Weber[11]. Entretanto, este
“ethos” ou “modo de ser” deve ser diferenciado de outras formas de unidade
entre discurso e ação. A ética – ou modo de ser – de um
indivíduo é um tipo de comportamento que corresponde a valores fundamentais, ou
seja, onde há uma unidade entre discurso e ação, sendo que o discurso, nesse
caso, significa a verbalização dos valores fundamentais de um indivíduo. É o
caso da ética protestante analisada por Weber, no qual se encontra um conjunto
de valores e práticas que não se contradizem.
A moral, por sua vez, não pensada e
desenvolvida por um indivíduo. Ela é imposta pela sociedade ao indivíduo, tal
como colocou Freud[12] e posteriormente Reich, no que diz respeito à
moral sexual cristã[13]. É por isso que a moral pode ser aceita e
reproduzida pelo indivíduo no discurso mas não ao nível da prática. Um exemplo
fornecido por Sartre pode facilitar a compreensão disto:
“Em uma pesquisa feita em um liceu para
moças, à primeira pergunta ‘você mente’, 50% responderam: muitas vezes; 20%:
frequentemente e 20%: algumas vezes; 10%: nunca. À segunda pergunta ‘deve-se
condenar a mentira?, 95% responderam: sim; 5%: não”[14].
O contrário também pode acontecer, ou
seja, um indivíduo pode reproduzir na prática a moral imposta pela sociedade e
ao mesmo tempo refutá-la ao nível do discurso. Isto pode ser ilustrado pelo
exemplo oferecido por diversos militantes de partidos comunistas que criticam a
moral dominante, denominada “moral burguesa” e a reproduz na sua vida
cotidiana. É justamente devido a esta dicotomia entre discurso e ação que se
pôde cunhar o termo de “falso moralista”. Além disso, outro problema da moral
se encontra no caso de indivíduos que mantém um comportamento moral em certas
situações (na família, por exemplo) e um comportamento amoral em outras
situações (nas relações de trabalho, por exemplo).
Existe a possibilidade de encontro
entre moral e ética? Sim, e casos de indivíduos que não só aceitam mas
concordam com a moral socialmente instituída, devido em parte à sua própria
situação social. No entanto, a moral instituída socialmente dificilmente é
praticada em sua totalidade ou recebe concordância global por parte do
indivíduo. Outra situação é a de uma sociedade na qual não haja divisão social
e por isso a contradição entre os indivíduos e suas concepções éticas foram
abolidas e a “moral” neste caso é a ética coletiva, que, no entanto, não é mais
coercitiva. No primeiro caso, temos um indivíduo adaptado à sociedade e ao
discurso dominante e, no segundo, um conjunto de indivíduos livres e associados
que compartilham a mesma concepção ética.
Um exemplo poderá esclarecer melhor
esta questão. Machado de Assis, em um de seus contos, intitulado Conto de
Escola, narra a história de um menino que não gostava de ir à escola. Este
menino ficou em dúvida:
“Morro ou campo? Tal era o problema. De
repente disse comigo que o melhor era a escola. A guiei para a escola. Aqui vai
a razão. (...). Na semana anterior tinha feito duos suetos, e, descoberto o
caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara e
marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado
do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande exposição
comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e
contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham
começado no balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela
manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes. Começou a lição escrita.
Custa-me dizer que eu era um dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também
que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de
excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção”.
Após isto, ele revela que recebeu do
filho do mestre e colega, chamado Raimundo, a proposta de ensinar-lhe a lição
em troca de uma moeda e sua reação:
“Tive uma sensação esquisita. Não é que
eu possuísse da virtude uma ideia antes própria de homem; não é também que não
fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar
o mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca da lição e
dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da
sensação”.
Um outro colega chamado Curvelo
observava tudo, e tinha um olhar ameaçador. O negócio foi feito com todo o
cuidado para que o mestre e o colega curioso não descobrissem. Mas Curvelo
descobriu e revelou ao mestre. Este chamou o menino e depois de lhe tomar a
moeda e jogá-la fora lhe, “uma porção de coisas duras, que tanto o filho como
eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para
emenda e exemplo íamos ser castigados”. Depois da palmatória, “pregou-nos outro
sermão” e os qualificou de sem-vergonhas, desaforados, sem brios. À noite, o
menino sonhou com a moeda: “sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte,
dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo e sem escrúpulos...”. Na manhã
seguinte, a idéia de ir procurar a moeda “fez-me vestir depressa” e acabou não
indo à escola, pois encontrou no meio da rua uma companhia de batalhão de
fuzileiros. Por fim, “voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha
no bolso e ressentimento da alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles,
Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção,
outro da delação; mas o diabo do tambor...”.
O que este conto de Machado de Assis
nos revela? Revela que o menino que é personagem central da história possui uma
visão do que é certo e errado, que não é certo deixar de ir à aula, que não é
certo se dizer o mais inteligente, que cometeu uma ação feia e assim por
diante. Entretanto, continuava a fazer tudo que era considerado “errado”. Isto
significa que ele reconhece o que é considerado moralmente correto e
incorreto, que concorda com isso – pois ele mesmo se diz sem virtudes, o que significa
reconhecer como válida tal concepção moral – mas não executa uma prática
correspondente ao ideal moral que ele conhece e concorda. Isto se deve ao
motivo eu esta moral lhe foi imposta, que lhe é externa isto pode ser
representado simbolicamente pelo personagem Curvelo, que é o vigia moral da
história, juntamente com o mestre, que é aquele que pune. Em termos freudianos,
Curvelo representa a moral repressiva da sociedade, vigilante, e que é
introjetada pelo indivíduo em sua mente. O menino reconhece determinada
concepção de virtude como válida mas não a pratica.
Portanto, a moral, devido ao seu
caráter externo e coercitivo, é contraditória, pois até os indivíduos que
concordam com ela não a praticam, com raras exceções. A ética, por sua vez,
está intimamente ligada aos valores do indivíduo e portanto é coerente.
Entretanto, existem situações nas quais os indivíduos contradizem seus próprios
valores ou então quando os seus valores não estabelecem uma ordem de prioridade
que o fizesse escolher entre duas opções semelhantes – geralmente em situações
concretas – ou inseridas dentro de um mesmo universo ético.
Alguns exemplos poderão facilitar a
compreensão disto. Um indivíduo que possui uma ética cristã pode ter como um de
seus valores fundamentais o amor à vida e fazer do mandamento “não matarás” a
sua máxima predileta, bem como em toda a sua existência não ter retirado a vida
de ninguém. Mas, em uma determinada situação, por exemplo, num assalto, no qual
um assaltante lhe aponta o revólver e torna uma ameaça concreta de retirar a
sua vida ou de alguém próximo que esteja sendo assaltado, este indivíduo pode
atingir o assaltante com uma barra de ferro e retirar-lhe a vida. Segundo a
doutrina do direito, isto chama-se “legítima defesa”. Outro exemplo é o do caso
deste mesmo indivíduo que prega o amor à vida e se vê no dilema de ter que
escolher entre ir para a guerra e retirar muitas vidas ou ficar em casa e ser
passivo diante do extermínio de milhões de vidas inocentes pelo exército
nazista.
Sem dúvida, o indivíduo será obrigado a
tomar uma decisão e em qualquer decisão que seja tomada se pode dizer que ele
traiu, pelo menos no segundo caso, os seus valores fundamentais, o que quer
dizer que ele não foi ético, ou seja, não manteve a coerência necessária entre
discurso e ação que caracteriza a ética. Mas se este valor fundamental for
refutado pelas próprias condições da realidade isto pode ser atribuído a uma
falha do indivíduo? Aí entra a questão dos obstáculos à concretização da ética.
Trataremos disto mais adiante.
Por fim, cabe encerrar a discussão
sobre a relação entre moral e ética. Elas não se relacionam de forma nenhuma?
Sem dúvida, a ética se caracteriza, segundo nossa definição, por apresentar os
valores fundamentais do indivíduo e não por apresentar receitas de
comportamento pra situações concretas. Entretanto, ela também se caracteriza
pela unidade entre discurso e ação, o que significa que tais valores devem ser
praticados em todas as situações concretas e, portanto, serve de guia para se
decidir o certo e o errado, o dever, etc. qual a diferença entre ambas, então?
Como foi dito anteriormente: a) a ética mantém necessariamente uma unidade
entre discurso (e/ou projeto) e ação enquanto que a moral não possui,
necessariamente, esta unidade; b) a ética nasce dos valores fundamentais do
indivíduo (aceitos ou desenvolvidos por ele mesmo) enquanto que a moral é
imposta ao indivíduo pela sociedade. Por conseguinte, para se estudar a ética é
necessário observar a coerência entre discurso (que revelam valores fundamentais)
e ação enquanto que para estudar a moral pode-se observar a prática concreta ou
o discurso ou ambos em suas contradições.
A Ética Como Práxis
A ética deve ser, portanto,
compreendida como práxis. O que é práxis? É uma atividade na
qual o indivíduo coloca uma finalidade antes de executá-la, ou seja, é uma ação
teleológica consciente. Marx afirma que o trabalho humano se distingue do
trabalho manual justamente por isto, tal como se vê no exemplo que ele fornece
da diferença do trabalho de uma abelha e de um arquiteto:
“Uma aranha executa operações
semelhantes a do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com
a construção dos valos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o
pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu no favo em sua cabeça,
antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um
resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e
portanto idealmente”[15].
Portanto, na práxis há uma unidade
entre projeto e ação, entre querer e fazer. Este querer, este projeto,
entretanto, não é produzido arbitrariamente pelo indivíduo – tal como na
filosofia existencialista de Sartre em seu primeiro período – e sim de acordo
com suas necessidades vitais e sociais. Onde está a especificidade da ética
enquanto práxis? Esta especificidade reside no fato da ética ser dirigida por
valores fundamentais para um indivíduo que os elabora conscientemente. Em que o
indivíduo se baseia para elaborar estes valores fundamentais? Sem dúvida, ele
os elabora conscientemente mas não arbitrariamente. O contexto histórico, a
classe social, as ideologias existentes, a moral dominante, as contradições
sociais, a família, etc., condicionam a elaboração destes princípios e valores
por parte do indivíduo. É por isso que surgem diversas éticas, pois existem uma
divisão social e esta se reflete na concepção de mundo dos indivíduos.
Mas tal reconhecimento não levaria ao
relativismo ético? Não, pois o reconhecimento da existência de diversas éticas
não significa dizer que todas sejam válidas, aceitáveis ou “boas”. Existe, sem
dúvida, um conflito de éticas e o critério para se julgar este conflito só pode
encontrar-se em uma dessas éticas. Isto não resolve totalmente o problema do
relativismo ético, pois para resolvê-lo é preciso eleger uma dessas éticas como
superior ou elaborar uma nova concepção de ética. Isto será abordado mais à
frente.
Esta ética deveria estar acima das
determinações sociais anteriormente colocadas? Isto é possível? Devemos
reconhecer que nem todas as determinações sociais são prejudiciais e que isto,
na verdade, é impossível. Então de onde vem a exigência de estar acima das
determinações? Pelo simples motivo de que, para estar acima das éticas
particulares, é preciso superar o particularismo (de uma determinada concepção
de mundo ligada a uma classe social, partido, político, igreja etc.) e possuir
um caráter universal, condizente com a natureza humana. Mas para superar este
particularismo não é preciso ultrapassar todas as determinações sociais, pois
algumas delas estão ou podem estar em concordância com a natureza humana e,
neste sentido, o que é necessário superar são certas determinações sociais que
produzem certas éticas. Desta forma, reconhecemos a possibilidade de existência
de uma ética universal, pois esta corresponderia à natureza humana.
Qual é esta ética universal? O critério
para definir qual ética pode ser considerada universal reside na compreensão da
sociedade e de nosso posicionamento no seu interior, bem como o interesse em
humanizar a sociedade ao invés do interesse egoísta que não se preocupa com o
processo social marcado pela degradação humana. No entanto, a decisão do
indivíduo vai depender não apenas de sua compreensão da sociedade mas também de
sua posição social e valores preestabelecidos, ou seja, depende do processo
histórico de vida do indivíduo e de como, devido a este processo, ele articula
estas três instancias, sendo que em cada caso particular um aspecto pode se
tornar mais importante do que os outros - tal como no caso de um
indivíduo que possui uma posição social que lhe dificulta adotar o critério
mais adequado mas que devido a sua compreensão aprofundada da sociedade pode,
junto com valores que lhe permitem tal compreensão, superar esta dificuldade.
A definição de ética aqui apresentada é
a que julgamos mais adequada. Mas uma vez definido o conceito de ética, resta
abordar a questão do conteúdo da ética, ou seja, é a ética universal e quais
são as éticas particulares.
O Conteúdo da Ética:
Éticas Particularistas e Ética
Humanista
Partindo do reconhecimento de que, de
acordo com a definição de ética como práxis (ação teleológica consciente)
fundamentada nos valores fundamentais de um indivíduo, existem diversas éticas,
como resolver o dilema do relativismo ético. Tendo em vista que há uma
diversidade de valores fundamentais que os indivíduos concretamente possuem,
então se pode dizer, por conseguinte, que há uma diversidade de éticas. Isto
não significa cair no relativismo ético? Não necessariamente, pois reconhecer
que a existência de diversas éticas não significa considerar que todas possuem
o mesmo valor, ou que todas sejam válidas. Daí distinguirmos entre éticas
particularistas e ética universal.
A ética universal é aquela que
corresponde à natureza humana. Se a ética deve ter uma fundamentação
antropológica, então ela é universal. As éticas particularistas são aquelas que
são constituídas em desacordo com a natureza humana, que representam
determinados interesses sociais (de classe, grupos, etc., em determinados
momentos históricos).
As éticas particularistas representam
interesses particulares enquanto que a ética humanista representam interesses
gerais. Pode parecer, então, que a ética humanista realiza um encontro com as
representações cotidianas de ética, como norma de conduta que tem como diretriz
o bem. Mas há algumas diferenças entre as representações cotidianas de ética e
a ética humanista. Na primeira concepção, há “normas de conduta”, enquanto que
na ética humanista ela é práxis, ou seja, não é um princípio imposto
externamente e sim algo desenvolvido internamente pelo indivíduo. Além disso, a
ética humanista diverge das representações cotidianas de ética no que se refere
ao seu conteúdo, que no caso desta última, na maioria das vezes, é apenas uma
expressão da moral dominante, apropriada em seus aspectos mais interessante por
quem faz tal apropriação. A ética humanista, ao contrário, tem uma
fundamentação não na moral e sim na natureza humana.
Mas o que é a natureza humana? Ela é o
conjunto das necessidades e potencialidades humanas, destacando-se a
criatividade e a sociabilidade que, ao lado das necessidades primárias,
constituem sua essência[16]. Por isso, a ética humanista é aquela que se fundamenta
neste reconhecimento:
“Na ética humanista o bem é a afirmação
da vida, o desenvolvimento das capacidades do homem. A virtude consiste em
assumir-se a responsabilidade por sua própria existência. O mal constitui a
mutilação das capacidades do homem; o vício reside na irresponsabilidade
perante si mesmo”[17].
Assim, resolvemos o dilema do
relativismo ético. Sem dúvida, existem muitas éticas, mas somente uma é
verdadeira, válida, e esta é a ética humanista, que é uma ética universal. As
éticas particularistas são produtos históricos e sociais transitórios que não
correspondem à natureza humana. O reconhecimento da existência das éticas
particularistas não significa que elas sejam válidas, mas tão-somente que, do
ponto de vista formal, são éticas. Também se fundamentam numa concepção de
natureza humana mas expressam interesses particulares, de determinadas classes
ou grupos sociais. A ética humanista, ao contrário, expressa não o particular e
sim o universal. É a única ética válida, porque universal.
O relativismo ético é, no fundo, uma
impostura. Considerar que todas as éticas sejam válidas significa aceitar todas
as práticas e não colocar nenhum valor como superior a outros. O valor de
lucrar acima de tudo é tão válido quanto o amor ao próximo? O valor de vencer a
qualquer custo é tão válido quanto o valor da cooperação? Obviamente, isto é
inaceitável. Mas, além disto, afirmar que todos os valores são válidos é, em
si, uma afirmação de valor e, por conseguinte, o relativismo ético é mais um
discurso que nunca se realiza na prática e serve tão-somente para esconder uma
opção ética que é anti-humanista e que está a serviço da dominação.
Da Ética Humanista à Ética
revolucionária
Mas a ética humanista consegue ser
concretizada? Aqui entramos numa problemática que já havíamos colocado
anteriormente. Trata-se dos obstáculos para a concretização da ética humanista.
Numa sociedade fundamentada na exploração, na alienação, na opressão, é
possível se concretizar uma ética humanista? Uma solução para isto foi apresentada
por Dussel, que é a ética da libertação. Discutiremos ela mais à frente.
Antes vamos problematizar a
possibilidade da ética humanista em uma sociedade fundamentada na degradação
humana. A vida é um valor fundamental para todos os seres humanos e para a
ética humanista. No entanto, em uma situação concreta, é possível se ver diante
da situação de ter que se desrespeitar o próprio valor que nos é de suma
importância. Um indivíduo na França vê seu país ser invadido pelas tropas
nazistas e assassinar milhares de pessoas e ele, se for fiel ao valor em
relação à vida, não irá agir contra tais tropas. Ora, então ele enfrenta um
dilema ético, pois não agir significa deixar milhares de vidas serem
exterminadas e agir implica em, ele próprio, retirar vidas. Tomemos outro
exemplo: um indivíduo no Brasil também tem a vida como valor fundamental e está
de acordo com a ética humanista, mas se observarmos que ele vive numa sociedade
capitalista que é responsável pela fome e miséria de milhões de pessoas, que
morrem diariamente, bem como é uma sociedade que produz formas extremas de
violência que levam também à morte milhares de pessoas e, também que ele “vive
normalmente” e, portanto, não busca interferir nesta sociedade para
transformá-la, então ele não está de acordo com a ética humanista. Um terceiro
indivíduo vive e não consegue realizar suas potencialidades. Por exemplo,
“amizades” e outros elementos exigidos pela sociedade (e pouco éticos... do
ponto de vista da ética humanista) para concretizar tal desejo autêntico de
realização pessoal. Ele possui os valores fundamentais da ética humanista mas
não os realiza na prática devido às condições sociais extremas.
Para resolver esta questão temos que
reconhecer que a ética humanista só se concretiza efetivamente numa sociedade
humanizada, e não pode se concretizar numa sociedade desumana, fundamentada na
alienação. Mas retomemos os exemplos e tentemos uma solução. O indivíduo que se
encontra no dilema ético de ser omisso e não intervir no processo de extermínio
de milhares de vidas pelo exército nazista, sendo que a vida é um valor
fundamental, ou agir e ele mesmo retirar vidas, que também é contra seus
valores, como deve agir? Tendo em vista que é impossível a realização, em
qualquer um dos casos, da ética humanista, como se deve proceder? Deve elaborar
uma ética que se fundamenta num saber[18] sobre a
situação concreta e que aponte para uma forma de superação deste obstáculo para
a concretização da ética humanista. Esta só pode ser uma ética revolucionária.
A partir da compreensão da sociedade contemporânea, ela mesma o maior obstáculo
para a concretização da ética humanista, então o valor prioritário deve ser a
constituição de uma nova sociedade, na qual seja superado os obstáculos para a
efetivação da ética humanista. O valor fundamental é a emancipação humana, a
libertação humana em geral, via condições concretas, via revolução proletária.
Eis a concepção marxista confirmada pela ética humanista.
O segundo exemplo, o do indivíduo
omisso, também é resolvido com a ética revolucionária. Já que o valor
fundamental que é a vida é impedido de se realizar, então é preciso remover o
obstáculo para que se torne possível. E por isso, a ética revolucionária aponta
para a necessidade de transformação social e o indivíduo deve atuar neste
sentido. É claro que esta decisão depende do nível de consciência do indivíduo.
Tal como colocou Ash:
“A exploração do homem pelo homem
existiu, de uma forma ou de outra, desde que a sociedade humana se dividiu,
pela primeira vez, em classes; e, em proporções maiores ou menores, a troca de
mercadorias tem sido uma parte da atividade econômica, num ou noutro lugar, há
muitos séculos. Restava ao capitalismo desenvolver a produção mercantil ao
ponto em que ela se transformou num disfarce para a mais grosseira forma de
exploração, ao mesmo tempo que aqueles que conheciam o disfarce sugeriam a possibilidade
de uma que nada tivesse a disfarçar, por ter suprimido a exploração de uma
classe por outra. É a impessoalidade mesa da opressão econômica sob o
capitalismo que não só permite os abusos excessivos como parece colocá-los
acima da crítica moral poucas pessoas, educadas pela sociedade, são
completamente destituídas de sentimentos humanos; mas se o sofrimento de
milhões de pessoas puder ser mostrado como resultado do movimento de forças
imprevistas, então ninguém, nem mesmo o mais rico, precisa sentir-se
responsável. Metade da população do mundo capitalista passa fome? Bem, em
termos de comércio, agimos contra os produtores primários, eis tudo. São os
países subdesenvolvidos constantemente obstados em seus esforços para elevar o
padrão de vida? Bem, isso simplesmente prova que as condições econômicas para o
‘arranco’, quando a industrialização adquire impulso suficiente para ser
automantenedora, são mais complicados do que pensamos, e talvez se deve
escrever outro livro[19] sobre o assunto”[20].
A falta de consciência das relações
sociais reais, do processo de alienação e exploração, pode obstaculizar a
passagem do dilema ético de alguns indivíduos[21] para a ética
revolucionária. O mesmo ocorre no primeiro exemplo, pois se o indivíduo não
conhece as raízes do nazismo e o terceiro as fontes do seu fracasso pessoal,
então não se realiza o encontro com a ética revolucionária. Mas o terceiro
exemplo serve para discutirmos tanto a afirmação acima de Ash quanto a chamada
ética da libertação de Dussel. O problema dessas duas concepções de ética está
no fato de serem “éticas da piedade”, ou, para usar expressão de Schopenhauer,
da “compaixão”.
Em primeiro lugar, demonstra uma
compreensão não muito clara da sociedade capitalista contemporânea, pois o
“pobre” é visto como aquele que tem sua humanidade destruída, mas isto ocorre
não são só com eles, embora neles isto se manifeste da forma mais cruel e
crua. A sociedade capitalista generaliza a alienação e a infelicidade
e, por conseguinte, não se trata de um problema somente dos outros, do “pobre”,
mas nosso, de todos os indivíduos que vivem na sociedade capitalista. Além
disso, não se trata de pensar numa expressão tão imprecisa quanto os “pobres” e
sim a de classes exploradas e oprimidas em geral. Em segundo lugar, a piedade
pelos outros não significa somente incompreensão da realidade social moderna,
mas também da idéia de que o outro precisa de piedade e que nós, os não-pobres,
somos “superiores”. Daí a necessidade de piedade. Ora, isto lembra o socialismo
utópico, que Marx observou justamente, que só vê na miséria a miséria. Segundo
ele, os socialistas utópicos,
“Na elaboração de seus planos, têm a
convicção de defender antes de tudo os interesses da classe operária, porque é
a classe mais sofredora. A classe operária só existe para eles sob esse aspecto
de classe mais sofredora”[22].
Assim, nada mais natural do que ter
piedade dos outros. O outro é um ser digno de pena... Penso no outro, sim,
porque tenho pena dele... Ora, em primeiro lugar, o sujeito do processo de
transformação social é justamente o proletariado e demais grupos oprimidos e,
em segundo lugar, o conjunto de indivíduos explorados e oprimidos são seres
humanos que vivem sob condições sociais desfavoráveis mas trazem em si o que
existe de mais autêntico na natureza humana, inclusive a capacidade de luta e
por isso não precisam da piedade de ninguém. Precisam, isto sim, de
companheiros de luta. Vemos em Dussel resquícios da moral cristã, mas
consideramos que a libertação segue outros rumos. Por isso, parafraseando Nietzsche,
precisamos de companheiros de luta (que é uma luta de todos, minha, sua,
deles...) e vivos, “não de companheiros mortos ou cadáveres”.
A ética revolucionária vai além da
ética da libertação por considerar interesse de todos os indivíduos da
sociedade a luta pela libertação humana, pois todos estão submetidos à
alienação (em graus diferentes) e, portanto, é um interesse nosso e dos
explorados e oprimidos em geral. Além disso, via o proletariado, se realiza a
emancipação humana em geral, o que significa, novamente, nosso interesse comum
e pessoal em tal processo. Isto, no entanto, não retira o valor da contribuição
de Dussel[23], pois ele rompeu com diversas ideologias e avançou
no sentido da compreensão que não basta uma ética humanista descontextualizada,
abstrata. É preciso uma ética humanista concreta, histórica e ao mesmo tempo
universal. Ele abre caminho para se pensar a ética revolucionária, embora esta
já existisse de forma não sistemática antes dele.
Desta forma, para a ética
revolucionária, o valor fundamental, que dever valer como um imperativo
categórico, é a transformação social. Mas não se trata aqui de qualquer
transformação, mas sim da abolição efetiva da sociedade de classes e
instauração de uma sociedade verdadeiramente humana. Isto significa que a ética
revolucionária descarta as concepções que apontam para falsas transformações ou
mudanças que levam à implantação de novas formas de dominação (veja o caso do
capitalismo de estado da Rússia, Leste Europeu, China, Cuba, etc., que ao invés
de implantar o socialismo e abolir as classes sociais, realizou a reprodução do
capitalismo sob outra forma). Uma ética revolucionária não pode compartilhar
com ideologias autoritárias e vanguardistas e por isso o que está em questão é
uma busca radical de libertação humana e no qual os fins determinam os meios e,
portanto, dever ser correspondentes. Os partidos políticos ditos
revolucionários não fizeram nada mais do que reproduzir a moral, os valores
burgueses e relações sociais baseadas na hierarquia, no culto à autoridade, na
alienação. Os partidos reformistas, por sua vez, nunca concretizaram a
transformação social mas apenas legitimam e reproduzem a sociedade capitalista,
realizando o mesmo processo de reprodução da moral dominante. A ética
revolucionária deve tomar essa luta pela transformação radical da sociedade
como um imperativo categórico (Kant), como um projeto (Sartre).
Portanto, o imperativo categórico (ou projeto) da ética
revolucionária é a transformação do capitalismo em sociedade igualitária e
libertária, em autogestão social.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Filosofia e sua Sombra.
Goiânia: Edições Germinal, 2000.
[1] VÁZQUEZ,
Adolfo S. Ética. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989.
[2] VÁZQUEZ,
A. S. Ob. cit., p. 7-8.
[3] VÁZQUEZ,
A. S. ob. cit., p. 12.
[4] VÁZQUEZ,
A. S. ob. cit.; p. 15-16.
[5] Existem várias definições de positivismo.
Aqui consideramos o positivismo como toda a concepção que defende o postulado
da neutralidade.
[6] ASH,
William. Marxismo e Moral. Rio de Janeiro, Zahar, 1965.
[7] ASH,
W. ob. cit., p. 17.
[8] DILTHEY,
Wilhelm. Sistema da Ética. São Paulo, Ícone, 1994, p. 128.
[9] Veja também a posição da filósofa Agnes
Heller: “o código moral e a ética podem ser inversamente proporcionais um ao
outro. Se as escolhas e as ações são guiadas por um código fixo, a opção é
relativamente segura e o seu conteúdo moral nunca é problemático. Além disso, a
opção nunca apresenta o caráter de opção individual, só se apoia minimamente
num risco pessoal, nunca é dinâmica (no sentido de poder levar em conta o
‘elemento novo’). Quando, numa situação concreta, uma escolha se impõe, a ética
não? Para trazer uma certeza maior, ela pode até, ao contrário, diminuir o grau
de certeza. Ela não facilita a escolha: leva ao reconhecimento de diversos
aspectos da situação e do caráter relativo da opção, leva à tomada de
consciência de seus riscos e possíveis consequências. Quando o indivíduo se
coloca a pergunta referente ao conteúdo moral e aos possíveis abertos à sua
ação, a ética pode proporcionar uma resposta a esta pergunta, mas nunca lhe
oferecerá conselhos certos” (HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. 2ª
edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, p. 112).
[10] Esta é a posição de muitos filósofos. Entre
eles se destaca Spinoza, segundo qual o esforço em conservar-se em seu ser –
sua natureza – é a primeira e única origem da virtude. Agir pelas leis de sua
própria natureza é agir por virtude, ou seja, é ser ético” (SPINOZA,
Baruch. Ética. Rio de Janeiro, Tecnoprint.).
[11] WEBER,
Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 5ª
edição, São Paulo, Pioneira, 1987.
[12] FREUD,
Sigmud. O Futuro de Uma Ilusão. Col. Os Pensadores. São Paulo,
Abril Cultural, 1978.
[13] REICH,
Wilhelm. A Revolução Sexual. 8ª edição, Rio de Janeiro,
Guanabara, 1988.
[14] SARTRE, Jean-Paul. Determinação e
Liberdade. In: DELLA VOLPE, Galvano & outros. Moral e
Sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 34.
[15] MARX,
Karl. O Capital. Vol. 1. 3ª edição, São Paulo, Nova Cultura,
1988, p. 142-143.
[16] Claro que qualquer um pode dizer que esta é
uma concepção de natureza humana e que, portanto, não serve de critério
universal. Porém, isto seria cair no relativismo (cognitivo e, por conseguinte,
ético). Sem dúvida, existem várias concepções de natureza humana mas elas são
produtos sociais que representam interesses sociais históricos e socialmente
determinados, mas isso não quer dizer que sejam equivalentes ou relativas. Por
conseguinte, aqui se apresenta uma concepção que, do nosso ponto de vista, é a
verdadeira e, portanto, é a base da ética humanista, universal.
[17] FROMM,
Erich. Análise do Homem. 2ª edição, Rio de Janeiro, Zahar,
1961, p. 28.
[18] Este saber, sem dúvida, pode ser mais ou
menos complexo. Mas cabe aqui destacar a relação entre ética e saber: a ética
revolucionária é condição de possibilidade de uma consciência correta da
realidade e, portanto, é seu pressuposto. No entanto, um indivíduo pode
desenvolver uma ética não libertária mesmo possuindo valores humanistas, mas
que devido sua consciência limitada derivada de suas “relações sociais
limitadas” não consegue ultrapassar uma ética humanista abstrata. Desta foram,
a ética revolucionária é desenvolvida quando o indivíduo possui um certo grau
de desenvolvimento de sua consciência e também “valores humanistas” e assim
observamos que os limites da consciência individual são obstáculos para a ética
revolucionária, assim como o inverso é verdadeiro. Porém, no primeiro caso, a
superação é possível, mas no segundo, quando os valores são o obstáculo, isto
se torna impossível.
[19] Alusão irônica ao livro de ROSTOW, W.
W. Etapas do Desenvolvimento Econômico. Um Manifesto Não-Comunista. 5ª
edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1974.
[20] ASH,
William. Ob. Cit., p. 152-153.
[21] É claro que isto só é válido para indivíduos
com valores humanistas, pois os que possuem valores egoístas, particularistas,
etc., utilizam, quando possuem consciência da real determinação da miséria
generalizada da sociedade capitalista, o processo que Freud denominou racionalização para
evitar o seu conflito psíquico interno.
[22] MARX,
Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 7ª
edição, São Paulo, Global, 1988, p., 105.
[23] DUSSEL,
Enrique. Ética Comunitária. Petrópolis, Vozes, 1986.
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