O Governo Lula ou as ilusões perdidas
Nildo Viana (*)
La Insignia. Brasil, janeiro de 2005.
La Insignia. Brasil, janeiro de 2005.
O Governo Lula foi gestado desde a fundação do PT (Partido dos Trabalhadores). O projeto petista nasceu social-democrata mas foi se tornando cada vez mais conservador. O Governo Lula é a culminação do processo de constituição do Partido dos Trabalhadores. O presente artigo visa, de forma breve, mostrar justamente o desenrolar deste processo.O PT nasce no período das lutas populares contra o regime militar, com forte participação do chamado "novo sindicalismo", de onde sairá, por exemplo, Luiz Inácio Lula da Silva; de setores da Igreja Católica, da intelectualidade, da juventude, de movimentos populares e grupos políticos (trotskistas, principalmente). O PT em seu nascimento já era social-democrata. Basta ver os discursos de Lula quando era líder sindical e um dos fundadores deste partido para se comprovar isto. A hegemonia no partido era das tendências mais moderadas, social-democratas. Haviam grupos e intelectuais com posições mais radicais e à esquerda mas não eram hegemônicos.
A evolução do PT é marcada por um conservadorismo crescente. A social-democracia petista, mesmo tendo alguns setores mais à esquerda no seu interior, que foram saindo ou sendo expulsas, começa como "social-democracia de esquerda" e já no início dos anos 90 passa a ser uma "social-democracia de direita". As vitórias eleitorais a partir do final dos anos 80 comandam esta tendência.
O crescimento partidário e eleitoral é a fonte deste processo de mutação política dos partidos. A social-democracia petista assume posições cada vez mais moderadas e as vitórias eleitorais - que expressam o crescimento partidário - vão reforçar o seu conservadorismo. O PT dos anos 90 já não pode ser mais considerado radical mas tão-somente um agrupamento que faz um novo discurso, não mais priorizando as reformas sociais e muito menos o socialismo e sim a ética, a competência, e outros elementos que se encaixariam em qualquer discurso direitista.
A mutação petista apenas reflete o que o sociólogo Robert Michels já havia colocado em 1914 em seu livro Sociologia dos Partidos Políticos: "a lei férrea da oligarquia". Segundo a tese deste autor, o crescimento partidário/eleitoral promove a tendência de burocratização e criação de novas pequeno-burguesas no partido (1). Estas, uma vez criadas, passam a ter interesses próprios e a dirigir o partido para satisfazer tais interesses e não mais por lutar pelo "socialismo" ou coisas do gênero. Se alguns ainda fazem o discurso sobre o "socialismo" é apenas para conseguir os votos dos eleitores mais radicais ou apoio dos grupos e partidos mais à esquerda.
A evolução petista é marcada por abandonos e expulsão das tendências mais à esquerda, o que ocorre quando elas começam a incomodar ou atrapalhar o partido no processo eleitoral. Geralmente, as tendências são mantidas para conservar a legitimidade do partido (que se pode dizer "democrático", "pluralista") e para conseguir retorno junto aos segmentos mais radicais da população. As tendências organizadas em torno de um projeto político tendem, ao ver o isolamento e o caráter irreformável do partido, a abandoná-lo, enquanto que as que giram em torno de lideranças e interesses e cumprem apenas o papel de força para negociação, vão mantendo um discurso à esquerda mas continuam acatando as diretrizes partidárias.
O PT vai tendo um desenvolvimento progressivo na década de 80 e no início da década de 90 já está numa posição extremamente moderada e com a saída e expulsão de algumas tendências, que irão formar - juntamente com outras forças fora do partido - o PSTU (Partido Socialista Unificado dos Trabalhadores, hegemonicamente trotskista), assume a posição de uma social-democracia pura. As derrotas nas eleições presidenciais, sendo que o seu candidato - Lula - sempre chegando no segundo turno (1989/1994/1998), juntamente com as vitórias eleitorais em outros níveis (elegendo governadores, prefeitos, aumentando sua bancada no parlamento em nível municipal, estadual e federal), mostrou a possibilidade de vitória e chegada ao governo executivo federal. A composição social do partido vai se alterando, tal como é a tendência de todo o partido político da esquerda institucional que consegue vitórias eleitorais (2), bem como seu discurso e posição política.
No início do século 21 temos um PT mais adaptado ao processo eleitoral, isto é, mais preparado para conseguir a vitória nas eleições presidenciais, pois as derrotas em eleições anteriores serviram para chegar à fórmula vitoriosa. Em 2002, tal fórmula foi aplicada com maestria: aliança com os direitistas assumidos para retirar desconfianças e resistências ao partido. A coligação com o PL - Partido Liberal - foi a face mais visível deste processo. Mas o apoio no Congresso ao empréstimo para a Rede Globo foi a jogada mais espetacular, a aliança fundamental para a vitória eleitoral. O PT do século 21 não é mais nem social-democrata, perdeu qualquer projeto político de transformação social ou alternativo ao neoliberalismo, já que seu discurso nem sequer aponta para reformas sociais - a não ser retoricamente, como no caso da reforma agrária - assumindo a posição de "esquerda neoliberal", sendo que seu "esquerdismo" é mais retórico e fundado em pequenos programas paliativos que dificilmente saem do papel.
Após ganhar as eleições, o PT fez o que qualquer analista frio já tinha previsto: um governo neoliberal com discurso "quase" social-democrata. A estratégia governista foi a mesma que a eleitoral, pois "em time que está ganhando não se mexe": fez alianças com os setores dominantes a nível internacional (FMI, Banco Mundial), acalmou o mercado financeiro, seguiu as receitas neoliberais. Ironicamente, fez o que FHC queria fazer mas não teve capacidade de fazê-lo - em parte, devido à própria oposição petista e seu braço sindical, a CUT, que agora estão do outro lado... O governo petista negou o projeto de reformas sociais e assumiu com firmeza o projeto de reformas neoliberais. Isto é expressão do novo regime de acumulação que vem se desenvolvendo a partir dos anos 80, o regime de acumulação integral, e o papel do Estado enquanto um dos pilares deste novo contexto histórico (3). O Governo Lula segue a dinâmica política institucional mundial e executa a política neoliberal sem grandes resistências internas, pois os mais radicais foram expulsos e formaram mais um partido político (o PSOL - Partido do Socialismo e Liberdade) e os ditos "marxistas" e "socialistas" que permanecem são apenas expressões de uma esquerda retórica que ajuda a legitimar o partido junto a setores mais radicais da população.
O PT revela a lógica de evolução da social-democracia: crescimento eleitoral e partidário aliado com um posicionamento cada vez mais conservador. A novidade reside justamente no fato de que, no novo regime de acumulação, a social-democracia foi engolida e se torna apenas sigla ou nome, sem nenhuma consistência política diferente do neoliberalismo hegemônico.
O curioso de todo este processo e que ajudou na vitória eleitoral de Lula foi a ilusão de parte da população que ainda, apesar das evidências, sonhava com uma social-democracia tupiniquim, com reforma agrária, etc. Após alguns meses de governo, muitos se sentem "traídos", mas outros perdem as ilusões. Chegamos agora ao momento das ilusões perdidas serem reconhecidas como tal.
Notas
(*) Professor da UEG - Universidade Estadual de Goiás e Doutor em Sociologia/UnB.
(1) MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Brasília, UnB, 1981.
(2) VIANA, Nildo. O Que São Partidos Políticos. Goiânia, Edições Germinal, 2003.
(3) VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
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Publicado originalmente em:
http://www.lainsignia.org/2005/enero/ibe_076.htm
A evolução do PT é marcada por um conservadorismo crescente. A social-democracia petista, mesmo tendo alguns setores mais à esquerda no seu interior, que foram saindo ou sendo expulsas, começa como "social-democracia de esquerda" e já no início dos anos 90 passa a ser uma "social-democracia de direita". As vitórias eleitorais a partir do final dos anos 80 comandam esta tendência.
O crescimento partidário e eleitoral é a fonte deste processo de mutação política dos partidos. A social-democracia petista assume posições cada vez mais moderadas e as vitórias eleitorais - que expressam o crescimento partidário - vão reforçar o seu conservadorismo. O PT dos anos 90 já não pode ser mais considerado radical mas tão-somente um agrupamento que faz um novo discurso, não mais priorizando as reformas sociais e muito menos o socialismo e sim a ética, a competência, e outros elementos que se encaixariam em qualquer discurso direitista.
A mutação petista apenas reflete o que o sociólogo Robert Michels já havia colocado em 1914 em seu livro Sociologia dos Partidos Políticos: "a lei férrea da oligarquia". Segundo a tese deste autor, o crescimento partidário/eleitoral promove a tendência de burocratização e criação de novas pequeno-burguesas no partido (1). Estas, uma vez criadas, passam a ter interesses próprios e a dirigir o partido para satisfazer tais interesses e não mais por lutar pelo "socialismo" ou coisas do gênero. Se alguns ainda fazem o discurso sobre o "socialismo" é apenas para conseguir os votos dos eleitores mais radicais ou apoio dos grupos e partidos mais à esquerda.
A evolução petista é marcada por abandonos e expulsão das tendências mais à esquerda, o que ocorre quando elas começam a incomodar ou atrapalhar o partido no processo eleitoral. Geralmente, as tendências são mantidas para conservar a legitimidade do partido (que se pode dizer "democrático", "pluralista") e para conseguir retorno junto aos segmentos mais radicais da população. As tendências organizadas em torno de um projeto político tendem, ao ver o isolamento e o caráter irreformável do partido, a abandoná-lo, enquanto que as que giram em torno de lideranças e interesses e cumprem apenas o papel de força para negociação, vão mantendo um discurso à esquerda mas continuam acatando as diretrizes partidárias.
O PT vai tendo um desenvolvimento progressivo na década de 80 e no início da década de 90 já está numa posição extremamente moderada e com a saída e expulsão de algumas tendências, que irão formar - juntamente com outras forças fora do partido - o PSTU (Partido Socialista Unificado dos Trabalhadores, hegemonicamente trotskista), assume a posição de uma social-democracia pura. As derrotas nas eleições presidenciais, sendo que o seu candidato - Lula - sempre chegando no segundo turno (1989/1994/1998), juntamente com as vitórias eleitorais em outros níveis (elegendo governadores, prefeitos, aumentando sua bancada no parlamento em nível municipal, estadual e federal), mostrou a possibilidade de vitória e chegada ao governo executivo federal. A composição social do partido vai se alterando, tal como é a tendência de todo o partido político da esquerda institucional que consegue vitórias eleitorais (2), bem como seu discurso e posição política.
No início do século 21 temos um PT mais adaptado ao processo eleitoral, isto é, mais preparado para conseguir a vitória nas eleições presidenciais, pois as derrotas em eleições anteriores serviram para chegar à fórmula vitoriosa. Em 2002, tal fórmula foi aplicada com maestria: aliança com os direitistas assumidos para retirar desconfianças e resistências ao partido. A coligação com o PL - Partido Liberal - foi a face mais visível deste processo. Mas o apoio no Congresso ao empréstimo para a Rede Globo foi a jogada mais espetacular, a aliança fundamental para a vitória eleitoral. O PT do século 21 não é mais nem social-democrata, perdeu qualquer projeto político de transformação social ou alternativo ao neoliberalismo, já que seu discurso nem sequer aponta para reformas sociais - a não ser retoricamente, como no caso da reforma agrária - assumindo a posição de "esquerda neoliberal", sendo que seu "esquerdismo" é mais retórico e fundado em pequenos programas paliativos que dificilmente saem do papel.
Após ganhar as eleições, o PT fez o que qualquer analista frio já tinha previsto: um governo neoliberal com discurso "quase" social-democrata. A estratégia governista foi a mesma que a eleitoral, pois "em time que está ganhando não se mexe": fez alianças com os setores dominantes a nível internacional (FMI, Banco Mundial), acalmou o mercado financeiro, seguiu as receitas neoliberais. Ironicamente, fez o que FHC queria fazer mas não teve capacidade de fazê-lo - em parte, devido à própria oposição petista e seu braço sindical, a CUT, que agora estão do outro lado... O governo petista negou o projeto de reformas sociais e assumiu com firmeza o projeto de reformas neoliberais. Isto é expressão do novo regime de acumulação que vem se desenvolvendo a partir dos anos 80, o regime de acumulação integral, e o papel do Estado enquanto um dos pilares deste novo contexto histórico (3). O Governo Lula segue a dinâmica política institucional mundial e executa a política neoliberal sem grandes resistências internas, pois os mais radicais foram expulsos e formaram mais um partido político (o PSOL - Partido do Socialismo e Liberdade) e os ditos "marxistas" e "socialistas" que permanecem são apenas expressões de uma esquerda retórica que ajuda a legitimar o partido junto a setores mais radicais da população.
O PT revela a lógica de evolução da social-democracia: crescimento eleitoral e partidário aliado com um posicionamento cada vez mais conservador. A novidade reside justamente no fato de que, no novo regime de acumulação, a social-democracia foi engolida e se torna apenas sigla ou nome, sem nenhuma consistência política diferente do neoliberalismo hegemônico.
O curioso de todo este processo e que ajudou na vitória eleitoral de Lula foi a ilusão de parte da população que ainda, apesar das evidências, sonhava com uma social-democracia tupiniquim, com reforma agrária, etc. Após alguns meses de governo, muitos se sentem "traídos", mas outros perdem as ilusões. Chegamos agora ao momento das ilusões perdidas serem reconhecidas como tal.
Notas
(*) Professor da UEG - Universidade Estadual de Goiás e Doutor em Sociologia/UnB.
(1) MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Brasília, UnB, 1981.
(2) VIANA, Nildo. O Que São Partidos Políticos. Goiânia, Edições Germinal, 2003.
(3) VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
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Publicado originalmente em:
http://www.lainsignia.org/2005/enero/ibe_076.htm
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