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terça-feira, 11 de agosto de 2015

ESPONTANEIDADE E LIBERDADE


ESPONTANEIDADE E LIBERDADE
Nildo Viana

Na atual fase do capitalismo, comandado pelo regime de acumulação integral, emerge a supremacia valorativa do hedonismo acompanhado por um neoindividualismo que acabam confundindo espontaneidade com liberdade. Nesse contexto, adquire importância distinguir estes dois termos numa perspectiva humanista revolucionária, mesmo porque tais concepções acabam invadindo as tendências esquerdistas, pois elas são, em grande parte, produto da época.

O ponto fundamental é entender a diferença entre espontaneidade e liberdade. A compreensão disso é mais fácil a partir da análise do indivíduo. Um indivíduo espontâneo não é, necessariamente, um indivíduo livre. Os exemplos mais extremos deixam isso mais claro: um psicopata é extremamente espontâneo ao cometer um assassinato, bem como um fanático religioso ao pregar o evangelho nas ruas do centro da cidade. Mas qualquer analista crítico percebe que tais práticas são realizadas espontaneamente, mas não livremente, pois eles estão presos em seu universo psíquico desequilibrado.

A espontaneidade é uma ação cuja iniciativa é realizada pelo próprio indivíduo (ou grupo). Uma criança nascida em família religiosa e que é ensinada a rezar diariamente e constrangida a fazê-lo, a partir de certa idade o fará por conta própria. Freud (1974) e a psicanálise já explicaram esse fenômeno e o nomearam: introjeção[1]. A socialização e a ressocialização dos indivíduos, bem como manifestações concretas nesse processo (traumas, atos de violência, etc.) e o conjunto das relações sociais (incluindo a cultura) geram hábitos, manias, vícios, desejos (sexuais, afetivos, de consumo, etc.), ações que aparentemente brotam do indivíduo em sua autenticidade, mas no fundo é produto social e psíquico.

Essa espontaneidade que é manifestação de introjeção ou desequilíbrio psíquico, nada tem a ver com liberdade. Confundir espontaneidade com liberdade é algo extremamente útil para quem detém o poder, pois pode ceder cada vez mais espaço para a realização da espontaneidade em detrimento da liberdade.

O que é a liberdade? Segundo Hegel (1995), é a consciência da necessidade[2]. Essa é uma concepção ainda restrita, mas traz dois conceitos fundamentais para entender a liberdade: consciência e necessidade. A liberdade pressupõe consciência, razão, reflexão. Obviamente que isso não significa defender a ideia de que o ser humano se define por ser um “animal racional”, pois isto seria unilateral. Ele é um ser práxico, ou seja, que coloca uma finalidade consciente, um projeto, em suas atividades. No entanto, ele não faz isso individualmente e sim socialmente. Por isso ele é também um ser social.

Nesse contexto, é possível perceber que o ser humano ainda é um “animal”, por mais que queira se afastar da natureza, pois ele tem um corpo e este tem necessidades[3]. As necessidades orgânicas estão na base da constituição das necessidades especificamente humanas: a socialidade e a práxis (VIANA, 2007; MARX e ENGELS, 1991), elementos complementares e inseparáveis.

Assim, poderíamos dizer que a liberdade é a concretização das necessidades humanas, que são as necessidades básicas (orgânicas), a socialidade e a práxis. A sua emergência significa um processo de humanização e este transforma as necessidades orgânicas que também são humanizadas. A liberdade é autotélica, ou seja, é práxis fundada na associação que visa sua realização e das necessidades orgânicas.

Não precisamos aqui recordar que este é um processo histórico tendencial que foi relativamente interrompido pela emergência da sociedade de classes e da alienação, tal como Marx (1983) demonstrou, o que gerou a degradação do trabalho e da socialidade e, por conseguinte, da vida em sua totalidade, incluindo as necessidades básicas (algumas atingindo certos indivíduos, por seu pertencimento de classe, tal como a fome, outras a todos sob forma de satisfação desumanizada).

Voltemos, no entanto, ao nosso foco de análise. A liberdade é a manifestação da natureza humana, sua realização, ou seja, é expressão da socialidade e da práxis, ou para utilizar um neologismo, da “praxidade”. Logo, a liberdade não é “consciência da necessidade”, como em Hegel, e sim sua concretização, no sentido de materialização (satisfação) das necessidades humanas, da praxidade, que expressa a liberdade (práxis) coletiva (socialidade)[4] da humanidade. Isto pressupõe a satisfação das necessidades orgânicas, agora sob forma humanizada e verdadeiramente livre.

A espontaneidade é a manifestação irrefletida dos desejos e necessidades (autênticas ou não)[5] dos indivíduos. A espontaneidade, apesar de ser irrefletida, pode a posteriori, ser justificada e legitimada por representações cotidianas, doutrinas, ideologias, etc. Se um indivíduo pratica espontaneamente a zoofilia, manifesta espontaneidade. A motivação pode ser desequilíbrio psíquico ou impossibilidade de satisfação de necessidades autênticas de forma humanizada. No entanto, se posteriormente ele escreve um tratado sobre zoofilia realizando sua naturalização, ele manifesta a produção intelectual de justificativa e legitimação de sua espontaneidade, o que significa que ela se tornará “refletida”, mas será ilusória. Esse processo ocorre cotidianamente, mas sob forma pouco refletida, e a psicanálise nomeou tal fenômeno como racionalização. Nesse caso há a produção de uma espontaneidade coisificada[6]. Por conseguinte, o elogio da espontaneidade no capitalismo reforça o processo de coisificação ao invés de humanização.

Isso também se manifesta no plano político da luta de classes e dos grupos sociais. A espontaneidade das classes trabalhadoras se expressa através de ações e reivindicações imediatas e pouco refletidas e são fundamentais para a autonomização e passagem para posteriores lutas revolucionárias. No entanto, é necessário reconhecer que tal espontaneidade é uma reação à determinada situação que não significa práxis, tendo, pois, que ser superada. A espontaneidade coletiva é diferente da individual, pois no primeiro caso temos ações coletivas geradas por uma situação social determinada e no segundo caso atos individuais gerados pela história de vida dos indivíduos (e sua cristalização no universo psíquico dos mesmos).

Se no indivíduo ocorre a passagem da espontaneidade para autonomia, isso também ocorre no nível das classes e grupos. A autonomia é um passo adiante em relação à espontaneidade (autêntica)[7], pois significa não apenas “iniciativa própria”[8], mas também recusa de submissão às outras instâncias (no caso individual: violência cultural, etc.; no caso de classe: recusa de partidos e sindicatos, etc.). O espontâneo é algo que surge do próprio indivíduo ou grupo (que pode ser, e geralmente é, gerado por elementos externos) e o autônomo é algo que surge do próprio indivíduo ou grupo com a vantagem de recusar as instituições burocráticas e pressões sociais (aqui apenas o desequilíbrio psíquico e elementos introjetados podem permanecer). A espontaneidade é geralmente uma iniciativa própria em determinado contexto marcado por uma história de vida e formação psíquica dos indivíduos e/ou por determinada situação social (pertencimento de classe, condições de vida, conjuntura política, etc.).

A autonomia, portanto, é um avanço e abre espaço para a práxis, o que significa que a espontaneidade deve ser superada, seja para gerar autonomização ou diretamente práxis. A autonomia, portanto, está entre a espontaneidade e a práxis, a liberdade. Mas, por não ser ainda práxis, é outro momento que deve ser superado. A conquista da autodeterminação, da práxis, se faz superando a espontaneidade e a autonomia.

Determinadas manifestações espontâneas são meras formas de manifestar a reprodução ou consequências da sociedade existente[9]. No caso individual isso é quase que absoluto. Isso também ocorre com determinados grupos e classes. Nos casos em que a espontaneidade é recusa não coisificada, então ela é limitada, mas ponto de partida para a passagem para a autonomia ou práxis. A liberdade, por outro lado, se manifesta marginalmente, como práxis individual, e que deve se generalizar para se concretizar, tornando-se liberdade coletiva e individual, sendo a primeira condição da segunda.

Desta forma, a espontaneidade está muito longe da liberdade. Até mesmo no sentido mais restrito de liberdade, tal como apontado por Bloch e Fromm, a “liberdade de”, que significa “estar livre de algo”, é algo mais amplo do que espontaneidade. Um outro elemento que não pode ser esquecido é que a liberdade individual não pode se concretizar plenamente sem a liberdade coletiva. Em uma sociedade de classes, fundada na exploração e na dominação, não é possível um indivíduo, por mais rico, inteligente, poderoso que seja, ser plenamente livre. Nas sociedades de classes a socialidade é degradada, bem como o trabalho, que é alienado. No capitalismo, a socialidade é perpassada por conflitos (de classes), competição (e tudo que é derivado disso: inveja, ciúme, possessividade, egoísmo, utilitarismo, individualismo, etc.) e o trabalho e conjunto das atividades humanas são ao invés de realização das potencialidades humanas (criatividade, desenvolvimento das energias físicas e mentais) tornam-se ações controladas por outros visando garantir a exploração e a dominação, sendo negação delas, mortificação e desumanização.

A transformação social, na qual a socialidade supere os conflitos e a competição, substituídos pela solidariedade, bem como a superação do trabalho alienado e alienação generalizada e sua substituição pela práxis, significa a liberdade coletiva, o que permite a liberdade individual, do indivíduo livremente associado com os demais indivíduos e generalizando a práxis. Essa é a utopia que precisa ser concretizada, é uma necessidade humana, e somente pode existir numa sociedade autogerida. Qualquer coisa que se oponha a esse processo de libertação humana, mesmo que falando em seu nome, é um obstáculo a ser superado. Todas as ideologias e concepções hedonistas e neoindividualistas atuais têm como fundamento o culto da espontaneidade coisificada e por isso este culto necessita ser superado, pois é um dos obstáculos para a emancipação humana.

Referências

ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. 3ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e a análise do ego. In:Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 18, Rio de Janeiro: Imago, 1974.

PIAGET, Jean. Psicologia da Criança. 11a edição, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1990.

HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo, Hucitec, 1991.

MARX, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. In: FROMM, E. O Conceito Marxista do Homem. 8ª Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

MORAES FILHO, Evaristo (org.). Simmel. São Paulo: Ática, 1983.

VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

VIANA, Nildo. Práxis, Alienação e Consciência. In: A Filosofia e sua Sombra. Goiânia: Edições Germinal, 2000.

VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.






[1] Alguns ideólogos, como Jean Piaget, buscam encontrar aí, na época em que a criança passa a reproduzir por contra própria o que ela introjetou da sociedade, como “autonomia” (VIANA, 2000; PIAGET, 1990). Trata-se, evidentemente, de uma ideologia que inverte a realidade e que entra em visível contradição com as descobertas psicanalíticas.

[2] A concepção hegeliana de liberdade é complexa e aponta para a relação entre consciência e liberdade, mas vai além do liberalismo e coloca sua concretização no Estado enquanto ético-universal.“Foi Hegel o primeiro que soube expor de um modo exato as relações entre a liberdade e a necessidade. Para ele, a liberdade não é outra coisa senão a convicção da necessidade” (ENGELS, 1990, p. 95). Marx supera Hegel mostrando que somente a “indivíduos livremente associados”, com a abolição do Estado, é que se pode realizar a liberdade.

[3]O cristianismo é a forma religiosa que manifesta isso mais claramente ao pensar a “vida após a morte”, que é a ruptura completa com o mundo animal, o “espírito puro”, que não come, não tem sexo, etc.

[4] Aqui não usamos sociabilidade por que este conceito ganha um significado mais restrito ao expressar outro fenômeno social (VIANA, 2008) e “associação”, por este ser mais amplo. O termo “socialidade”, usado por Simmel (1983) com outro significado e na tradução portuguesa (que poderia ter utilizado outro termo e os tradutores colocam isso explicitamente), nos parece mais adequado para expressar o significado que queremos repassar, o caráter social do ser humano, sendo que ele só existe no interior das relações sociais e necessita delas tanto para a sobrevivência quando por razões psíquicas e somente assim é um ser humano e se humaniza. O ser humano é um ser social, ou seja, integrado na sociedade, partilhando isso como necessidade e realidade, seja sob a forma humanizada ou desumanizada. A socialidade é o vínculo do ser humano com os demais, o que, inexistindo, gera a loucura, o suicídio ou a infelicidade. Por é isso é uma necessidade psíquica (alguns diriam “existencial”) do ser humano.

[5]É preciso recordar que além das necessidades primárias (orgânicas) e secundárias (especificamente humanas, a socialidade e a práxis), historicamente se produz novas necessidades, que podemos chamar terciárias, que podem estar coerentes com as necessidades radicais (primárias e secundárias) ou não. No primeiro caso, elas são autênticas e expressam uma continuidade do processo de humanização e no segundo caso são inautênticas e expressam uma negação da essência humana e humanização.

[6]Coisificada quer dizer transformada em “coisa”, algo autônomo, com vida própria e não sendo produto social e histórico. Nesse caso, espontaneidade coisificada significa a transformação da espontaneidade em algo dotado de vida própria e sem ter raízes sociais e históricas, gerando um isolamento fantástico que ganha autonomia e se realiza por conta própria. Sem dúvida, essa autonomização só ocorre no reino da ideologia e não na realidade concreta.

[7] No caso de uma espontaneidade inautêntica, ou seja, que não manifesta as necessidades radicais dos seres humanos, mas geradas por sua negação (alienação, repressão, recalcamento, etc.), então é uma autonomia que aprofunda esse processo de inautenticidade e desumanização.

[8] Iniciativa própria no sentido anteriormente definido, ou seja, por conta própria, mas que é determinado exteriormente.

[9]A sociedade capitalista, por exemplo, gera pessoas egoístas, competitivas, invejosas, etc., de acordo com a sociabilidade moderna e seu processo de reprodução (competição, burocratização e mercantilização), elementos de reprodução dessa sociedade (VIANA, 2008). A prostituição, por exemplo, é consequência dessa sociedade e sua existência pode gerar a espontaneidade inautêntica manifesta no suposto desejo de se submeter ao processo de mercantilização do corpo. Isso, obviamente, manifesta opressão sexual numa sociedade que mercantiliza tudo. Muitas prostitutas negam a prostituição e reconhecem seu caráter alienado, uma atividade que é meio para satisfação de outras necessidades, enquanto outras afirmam que isso é algo que realmente desejam espontaneamente. Isso manifesta uma espontaneidade coisificada (ou desequilíbrio psíquico, em determinados casos). Por isso, quando a ideologia liberal vem para defender a tese de que cada um faz o que quiser com seu corpo (é sua “propriedade privada”, sua “mercadoria”) apenas legitima, nesse caso, a opressão e mercantilização do corpo dessas mulheres.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Espontaneidade e Liberdade. Revista Posição. Ano 02, vol. 02, num. 06, jan./jun. 2015.

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