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sábado, 18 de julho de 2015

Os Efeitos do Contemporâneo


Os Efeitos do Contemporâneo


Nildo Viana*




O conceito de contemporaneidade é bastante utilizado, mas pouco definido. O seu uso geralmente é descritivo e cronológico, sem possuir uma fundamentação teórica. Tal uso é marcado por uma fraqueza, típica das classificações arbitrárias e periodizações superficiais, que só pode ser superada através de uma fundamentação teórica. Para superar isto que é necessário uma base teórica. O objetivo do presente texto é justamente contribuir com a constituição desta base teórica e a partir dela reconsiderar o conceito de contemporaneidade.

Antes disso, porém, é preciso esclarecer a diferença entre os conceitos de moderno e contemporâneo. A modernidade é um conceito amplo, que remete ao período histórico de vigência da sociedade moderna. Desta forma, sociedade moderna é a mesma coisa que sociedade capitalista e modernidade o mesmo que capitalismo. O termo contemporâneo, por sua vez, remete, no sentido comum da palavra, ao que é do mesmo tempo que se fala, expressando a época atual. Porém, o problema reside justamente em saber qual é a delimitação de “época atual”.  A partir dessa discussão é possível apontar para algumas das determinações e características da contemporaneidade, inclusive os efeitos do contemporâneo, especialmente o presentismo, uma percepção da realidade que acaba sendo uma jaula mental dos indivíduos que possuem dificuldade de perceber a historicidade de sua época e das concepções hegemônicas nesse momento histórico.

O problema da periodização

Na historiografia escolar, ainda se usa a periodização marcada pelas “idades”: Antiga, Média, Moderna e Contemporânea. Essa periodização, além da linguagem pobre e pré-teórica, não esclarece muito, além de homogeneizar as diferenças sociais e espaciais tomando como critério uma delimitação temporal pouco fundamentada e tomando o caso da Europa Ocidental[1]. Outras periodizações também não ultrapassam a superficialidade e o aparecer social, tal como naquelas que se fundamentam na história da política institucional para periodizar a história de um país[2].

Porém, a periodização da historiografia merece uma discussão, que nem todos que se preocuparam com as questões teórico-metodológicas desta disciplina se ocuparam ou deram a devida importância. Quando Van Der Pot afirmou que “a divisão da história em períodos constitui a quintessência de toda a concepção da história” (apud. DUJOVNE, 1959, p. 271), estava exagerando, mas, ao mesmo tempo, alertando para uma discussão necessária e pouco realizada entre os historiadores, justamente aqueles que se dedicam ao estudo da história da humanidade. Não nos ocuparemos da periodização pré-científica, pré-historiográfica, pré-marxista, tal como as denominadas por Besselar (1979) como “mitológica” e “bíblica”. Também não poderemos, por questão de espaço, analisar detalhadamente várias outras periodizações, mas tão-somente refutar a mais usual, a periodização quatripartite das idades. A quase inexistente discussão sobre a questão da periodização da história da humanidade na contemporaneidade é algo curioso e mostra como a historiografia se encontra num momento de letargia intelectual[3].

A distinção realizada por Van Der Pot, seguindo terminologia de Wildeband, entre periodização fundada em divisões nomotéticas e ideográficas, serve para uma observação geral. A periodização ideográfica não se fundamenta em uma lei da história, que é justamente o que caracteriza a periodização nomotética (DUJOVNE, 1959). As primeiras são a base das periodizações arbitrárias e empiricistas, enquanto que as segundas são a base das periodizações positivistas clássicas. Precisamos acrescentar uma terceira forma de periodização que rompe com a ideologia do conhecimento fundada na separação entre sujeito e objeto, separação metafísica (VIANA, 2007). Na ideologia, realmente a realidade e a consciência[4] realmente estão separados, mas trata-se de uma separação devido ao fato de ela expressa determinados valores e interesses de classes que se contenta em reproduzir o aparecer social. A dominação se reforça com a ilusão. Neste sentido, a unidade entre realidade e consciência é possível partindo-se da perspectiva do proletariado, tal como o faz o marxismo, o que significa que a partir de uma teoria da história é possível se fundar uma base concreta para uma periodização da história da humanidade. Desta forma, a teoria marxista da história serve de base para uma periodização que rompe, simultaneamente, com o empiricismo e com o racionalismo, ou, segundo os construtos da ideologia dominante, com o subjetivismo e com o objetivismo.

Pagès realizou uma análise da questão da periodização inspirado no marxismo. A periodização da história da humanidade em quatro idades é considerada por Pagès como absurda e ele coloca dois motivos para isso: em primeiro lugar, é uma arbitrariedade cronológica, os anos de início e fim de uma idade não são significativos para o desenvolvimento da história universal; em segundo lugar, tal periodização se limita ao caso europeu (PAGÈS, 1983). Além dos defeitos intrínsecos da divisão por idades, há também o problema adicional e não explicado da chamada “Idade Contemporânea”, que não possui nenhuma justificativa. Idade Contemporânea é uma expressão, como já dizia Spengler, “ridícula e desesperada” (apud. RAMA, 1968).

Assim, vemos que a divisão da história da humanidade em “idades” é limitada, problemática e sem fundamentação teórica. Este esquema, que inicialmente foi tripartite (Idades Antiga, Média e Moderna) se tornou quadripartite (Idades Antiga, Média, Moderna e Contemporânea). O acréscimo do contemporâneo é tão arbitrário e sem sentido quando a divisão como um todo.

Esta concepção simplista e meramente classificatória foi superada teoricamente pela teoria marxista da história, que através de uma teoria da realidade não-metafísica passou a periodizar a história da humanidade a partir da sucessão dos modos de produção. Esta periodização, cujo esboço foi produzido por Marx (MARX e ENGELS, 2002; MARX, 1983), e desenvolvida por alguns de seus seguidores (PAGÈS, 1983; DHOQUOIS, 1975), e deformada por outros, apresenta como base uma teoria da história e a história real e concreta, tal como os seres humanos a produziram historicamente. Assim, temos, no caso europeu, as sociedades simples, a sociedade escravista, a sociedade feudal e a sociedade capitalista[5]. Esta caracteriza o que se costuma denominar modernidade. Como o capitalismo ainda não acabou, então não há nada depois do moderno, a não ser no mundo nebuloso e fictício da ideologia pós-estruturalista, chamada ideologicamente de “pós-moderna”. Sendo assim, qual é o sentido da expressão contemporâneo?

O que é a contemporaneidade?

Podemos dizer que, em sentido amplo, contemporâneo é sinônimo de moderno, capitalista. Assim, sociedade moderna e sociedade contemporânea seriam a mesma coisa. Porém, em sentido estrito, podemos colocar o contemporâneo como um estágio do moderno, a época atual da modernidade, do capitalismo. Neste sentido, o contemporâneo é a atual fase do capitalismo. Aqui entramos novamente para a questão da periodização. A periodização da história da humanidade é um ponto problemático e cuja solução se encontra na teoria marxista da história. A história do capitalismo, por sua vez, possui também um caráter problemático. É preciso, para evitar periodizações arbitrárias e limitadas com as que existem no que se refere à história da humanidade, uma base teórica que permita uma periodização adequada.

A base teórica para realizar uma periodização do capitalismo é a teoria dos regimes de acumulação. Esta teoria parte da teoria do capitalismo de Marx, que demonstrou a dinâmica da acumulação capitalista e permitiu desdobramentos posteriores em outros pesquisadores. Não iremos aqui fazer uma análise e descrição de determinadas periodizações de caráter ideológico do capitalismo, tal como a de Rostow (1965), ou outras que carregam em si o problema da falta de uma fundamentação teórica. Também não iremos colocar a gênese do conceito de regime de acumulação e nem as obras de Benakouche (1980) e da escola da regulação que serão os primeiros a usar mais sistematicamente esta noção e apresentar sua definição[6].

A recusa de uma ou outra definição aponta para a necessidade de uma alternativa. Neste sentido, definimos um regime de acumulação por uma determinada articulação entre organização do trabalho, forma estatal e relações internacionais (VIANA, 2003; VIANA, 2009), ou seja, determinada cristalização das relações de força entre as classes sociais manifestas nesses processos sociais, garantidor de determinada forma de acumulação de capital. A organização do trabalho, no capitalismo, significa uma forma estabelecida, hegemônica, de imposição da classe capitalista sobre a classe proletária de determinadas formas de relações de trabalho marcados pela exploração e luta no processo de produção. As formas estatais expressam a organização estatal, forma de dominação capitalista, assume em determinada momento histórico para permitir a reprodução do capitalismo, sendo, portanto, expressão da luta de classes a nível geral da sociedade. As relações internacionais, por sua vez, significa como a burguesia nacional faz valer seus interesses diante de outros modos de produção ou burguesias nacionais, o que se manifesta através principalmente da exploração de classes em determinados locais.

A cada etapa do desenvolvimento capitalista, um novo regime de acumulação substitui o antigo, o que significa uma alteração nestes três elementos, formando um novo regime de acumulação. A mudança no regime de acumulação, por sua vez, gera mudanças nas demais relações sociais, tal como nas ideologias, nas instituições, nas representações, na cultura em geral. A sociedade capitalista, após o período da acumulação primitiva de capital, passou, nos países capitalistas imperialistas, pelos seguintes regimes de acumulação: extensivo (século 18 até o final do século 19), intensivo (do final do século 19 até a Segunda Guerra Mundial), intensivo-extensivo ou conjugado (do Pós-Segunda Guerra até o final do século 20) e o integral (do final do século 20 até a atualidade).

A partir desta teoria, definimos contemporaneidade o atual estágio do capitalismo, marcado pela instauração do regime de acumulação integral[7]. Este é instaurado a partir dos anos 80 e caracterizado pela reestruturação produtiva, neoliberalismo e neoimperialismo, que provoca mudanças culturais, ideológicas e políticas e faz emergir um movimento de resistência que conta com uma diversidade de tendências políticas e organizações, e que o chamado “movimento antiglobalização” foi a expressão mais conhecida e as novas manifestações e revoltas apontam para a continuidade da luta e oposição ao mundo concentracionário existente.

Os Efeitos do Contemporâneo

Assim, as mudanças sociais geram mudanças discursivas e estas reforçam aquelas. A reestruturação produtiva e a expansão do toyotismo como forma de organização do trabalho, o neoliberalismo e o neoimperialismo marcam a formação de novas ideologias e construtos, tal como “flexibilidade”, “flexibilização”, “Estado Mínimo”, “tolerância zero”; “globalização”, “multiculturalismo”, “identidade”, “gênero”, etc. Uma novilíngua é constituída e passa a circular e se reproduzir, sendo que por detrás da nova linguagem, principalmente quando ela consegue se generalizar (o que geralmente ocorre graças a apoio de governos, fundações, etc.), acabam impondo uma certa forma de conceber a realidade.

Novas ideologias surgem, tal como a ideologia da globalização, do trabalho imaterial, do fim da história, do fim do Estado-Nação, do pós-estruturalismo. Estas ideologias assumem perspectivas diferentes, por representarem países, setores, classes, frações de classes, grupos sociais, diferentes, bem como múltiplas formas. A ideologia política dominante é o neoliberalismo e ideólogos antigos ressuscitados como J. Rawls, F. Hayek, entre outros, convivem com os recém convertidos, como Norberto Bobbio e outros.

A ideologia pós-estruturalista virou moda acadêmica e se divide em diversas correntes, algumas ditas de “esquerda”, outras mais conservadoras, e aglutina pensadores como Foucault, Derrida, Baudrillard, Deleuze, Guatari, Negri, Lyotard e inúmeros outros. Tal ideologia acaba tendo ressonância no mundo acadêmico e promove diversas modas e modismos que se tornam hegemônicos, inclusive criando nichos de mercado consumidor acadêmico ligado a outros nichos de mercado. Este é o caso da ideologia do gênero, derivada da ideologia pós-estruturalista (VIANA, 2006), que está ligada a setores de consumo ligados ao movimento feminista e ao mundo acadêmico, tal como o consumo cultural e muitos outros exemplos poderiam ser citados.

Este processo cria os efeitos do contemporâneo, isto é, a pressão de ideologias e concepções que se tornam hegemônicas e dominantes nesta época, tal como a ideologia da globalização e o pós-estruturalismo. Assim, o indivíduo fica preso na contemporaneidade, as crianças que nascem ou os mais jovens que se envolvem com o mundo escolar passam a estar submetidos a este mundo cultural e asfixiante. Da mesma forma como o indivíduo na sociedade moderna não percebe a historicidade das relações sociais sob as quais vive, julgando-as normais, naturais, universais e eternas, o indivíduo no capitalismo contemporâneo julga que esta é a última etapa do desenvolvimento capitalista, que de agora em diante apenas evoluções e progressos ocorrerão.

A linguagem e as ideias passam a ser contemporâneas. As relações sociais parecem confirmar as ideologias e representações ilusórias criadas nesta época e assim há um reforço mútuo entre relações sociais vistas em sua aparência e ideologias e representações ilusórias. Novas representações cotidianas, ou novo “senso comum”, emergem (o do politicamente correto, o relativismo, culturalismo, etc.) e novas ideologias a partir delas são sistematizadas, transformando-as em ciência, filosofia, teologia. O movimento de retorno também ocorre, pois as ideologias produzidas acabam influenciando as representações cotidianas. O principal efeito do contemporâneo é aprisionar o indivíduo em uma época e cegá-lo para sua historicidade e para a fragilidade de ideologias e representações ilusórias que se transformam em uma cultura asfixiante.

Em consequência disto, a crítica e a utopia são marginalizadas ou assimiladas. A crítica da sociedade capitalista em geral e sua manifestação contemporânea fica dificultada, pois muitos abandonam a perspectiva crítica para se aliar aos modismos, seja por oportunismo ou interesse pessoal[8], seja por dificuldade de perceber o movimento histórico e o caráter ideológico e ilusório dos novos modismos. A marginalização da crítica, por sua vez, facilita a marginalização da utopia, isto é, da crítica radical acompanhada de um projeto de transformação social. Desde as ideologias do fim (da história, do socialismo, etc.), que são as mais diretas, até as pseudocríticas que dizem que o capitalismo já foi superado e agora é necessário apenas reformas ou adequações, tal como na ideologia negrista (LAZZARATO e NEGRI, 2001), a ideia-chave é que a utopia deve ser abandonada.

Também há uma deformação da crítica, na qual se produz isolamento de questões sociais e de grupos e interesses e se faz um verdadeiro cavalo de batalha em torno disso, sem questionar as suas raízes, o seu conjunto, e sem ter um projeto alternativo, sendo apenas manifestação de oportunismo e grupo de interesses que supostamente se colocam como oprimidos e assumem práticas autoritárias e de conquista de vantagens competitivas no capitalismo.

Mas existe um outro efeito do contemporâneo. Trata-se do efeito gerado pela dificuldade de percepção da especificidade e historicidade da época em que se vive. A percepção das características, das ideologias, das representações cotidianas ilusórias e seu caráter, etc., fica facilitada depois dos acontecimentos ocorridos. Porém, o acontecimento contemporâneo é sempre de mais difícil percepção do que o acontecimento da época anterior. Desta forma, compreender as representações ilusórias da sociedade feudal, principalmente o caráter ilusório das suas representações, é facilitado na época histórica posterior, mas dificultado para seus contemporâneos. Entender o capitalismo na época do regime de acumulação conjugado e todas as ideologias, representações, etc. (socialdemocracia, keynesianismo, etc.), que lhe acompanha é relativamente fácil na época atual, mas não durante a vigência daquele período. Isso cria o presentismo, tanto nas representações cotidianas quanto nas produções culturais elaboradas (ideologias e acaba influenciando até mesmo as concepções revolucionárias).

Esta percepção, no caso dos pesquisadores, seja a posteriori ou contemporaneamente, também pode ser facilitada ou dificultada dependendo de qual perspectiva de classe e base teórico-metodológica se parte para analisá-la. Assim, partindo das autoilusões da época, dificilmente se pode perceber seu significado, suas características, suas tendências. Na contemporaneidade, seria, por exemplo, tentar entender o capitalismo contemporâneo através da ideologia da globalização ou do “pós-modernismo”, duas autoilusões (VIANA, 2009) que nada explicam e ofuscam a compreensão da realidade atual e delas mesmas enquanto expressões ideológicas deste momento histórico do capitalismo. Ou então das ideologias pós-estruturalistas, que isolam fenômenos, opressões, processos sociais, lutas. Isto é perceptível até por quem não parte de uma perspectiva marxista:
Uma das consequências mais inquietantes e menos destacadas do particularismo que invade a vida pública na Espanha – e em outros lugares também – é que ele se revela contagioso. Significa um extraordinário estreitamento de visão, a redução a espaços confinados, a parcelas artificiais de realidade, às vezes de extraordinária pequenez, isolados de seu contexto efetivo. Isso leva a uma miopia perigosa, a uma percepção estreita, que em casos extremos pode limitar-se ao próprio umbigo. Esse tipo de visão não tem futuro e exclui todo o projeto; concentra-se em questões de pequeno alcance, que podem ser insignificantes, sobre as quais se discute de modo interminável. Seria interessante avaliar o lugar que ocupam nos meios de comunicação questões minúsculas que poderiam ser resolvidas em algumas linhas ou alguns minutos de rádio e televisão (MARÍAS, 2003, p. 58)[9].
Porém, a cada regime de acumulação que substitui o outro, as dificuldades de acumulação se tornam maiores[10]. Neste contexto, os conflitos sociais também se tornam mais fortes, mesmo que esporádicos, assim como há o fortalecimento da resistência e da reação direitista. O renascimento do fascismo, o neonazismo, o misticismo aliado do direitismo e do racismo, se fortalecem, aumentando a possibilidade, no momento de crise do atual regime de acumulação, do retorno da barbárie. Inclusive até mesmo algumas manifestações de resistência (como setores do feminismo e outros movimentos sociais) acabam reproduzindo aspectos semifascistas. Isto é reforçado pelo surgimento e militantismo de um novo tipo de intelectual direitista, o semifascista, que defende o capitalismo em todas as oportunidades e com toda truculência possível. Ao lado disso, porém, também se abrem brechas para o ressurgimento da crítica e da utopia, tal como se vê nas revoltas populares na Argentina, México, França e em novos agrupamentos, movimentos, tendências (movimento antiglobalização, anarquismo, marxismo libertário, etc.) e nas revoltas e manifestações mais recentes em diversos países do mundo.

A reemergência do anarquismo e a retomada de pensadores marginalizados tal como os representantes da Internacional Situacionista (apesar de seus limites), do comunismo de conselhos (Anton Pannekoek, Otto Rühle, Paul Mattick, Karl Korsch, entre outros), demonstram que as necessidades históricas fazem recuperar os pensadores que realmente estiveram do lado da verdade, isto é, da crítica e da utopia, o que ajuda a evitar erros do passado. No entanto, a influência do pós-estruturalismo é forte e acaba produzindo uma deformação desse pensamento libertário, bem como a transformação dessas concepções, expressões de lutas passadas em contextos específicos, em dogmas acabam sendo um elemento de cisão e dificuldade de avanço das lutas.

Assim, o ecletismo, por um lado, e o dogmatismo, por outro, são as formas de invasão da consciência revolucionária por concepções pseudorrevolucionárias que acabam gerando diversos conflitos e polêmicas desnecessários e que ajudam a dividir o bloco revolucionário ao invés de contribuir com sua unificação. Isso também acaba tendo fortes efeitos nos movimentos sociais e no movimento operário, pois além da influência direta das ideologias e concepções burguesas e burocráticas, ainda há, no interior do próprio movimento revolucionário, ambiguidades que acabam prejudicando o avanço da luta proletária e revolucionária em geral e facilitando a reprodução de tal influência ideológica.

A raiz do ecletismo se encontra na influência social das ideologias e representações cotidianas ilusórias, criadas pelo capital e seu poderio mundial e nacional (capital comunicacional, capital editorial, universidades, fundações internacionais, etc.) e reproduzidas pelas classes auxiliares da burguesia (especialmente a burocracia e a intelectualidade), bem como a pseudestesia de “novidade”, “juventude”, “modernidade” ou “contemporaneidade” de tais concepções, reforçadas pela criticada, mas ainda hegemônica, concepção evolucionista do saber, segundo a qual a última ideia, por ser a última, seria “verdadeira” ou melhor que as demais[11]. Isso enfraquece a força da teoria revolucionária e da cultura contestadora existente. Interesses de ascensão social e carreira acadêmica também são fortes nesse processo, pois o ecletismo permite se dizer revolucionário e ao mesmo tempo agradar os pares acadêmicos conservadores, ou seja, buscam agradar a gregos e troianos.

A raiz do dogmatismo é mais variada e vai desde uma reação ao ecletismo, passando por pessoas com desequilíbrio psíquico (o que não está ausente no caso anterior e em todos os casos, mas aqui é uma certa rigidez e necessidade de apego a uma crença que gera a posição dogmática e sua origem tem a ver com o universo psíquico de determinados indivíduos), pouca pesquisa-leitura-reflexão[12], até o processo de identificação com pensadores de forma rígida (e geralmente assumindo mais rigidez do que os próprios autores), bem como sentimento de pertencimento a determinadas tradições de pensamento tidas como puras e acima da crítica[13]. Isso gera um “situacionismo”, “conselhismo” e anarquismo dogmáticos.

O presentismo é tão forte que acaba se impondo não somente para as classes privilegiadas e conservadores em geral, mas se espalha por toda a sociedade e influencia até mesmo a cultura contestadora, que, obviamente convive com exceções, mas que não são quantitativamente significativas, embora a radicalização e ascensão das lutas permita um avanço nesse sentido. Daí ser importante entender que o capitalismo contemporâneo gera um mundo de ideologias e representações cotidianas ilusórias que busca descrever, explicar, e até contestar as relações sociais contemporâneas, mas, no fundo, é um conjunto de formas ilusórias de percepção desse momento histórico e por isso cria uma camada obscurante entre os indivíduos e a realidade concreta.

Os indivíduos acabam ficando presos no contemporâneo, tanto pelas relações sociais concretas e interesses derivados delas, quanto pelo mundo cultural asfixiante gerado por ele. É preciso, pois, superar o presentismo, compreender que o presente não é o melhor, o correto, o fim da história, o progresso, etc., e, da mesma forma, que suas manifestações culturais não são a verdade, a palavra final, o correto, o justo. Os efeitos do contemporâneo são as marcas deste em nossas mentes e ações, sendo que ambas podem ser removidas. O presentismo revela “ventos de falsidade” (MARÍAS, 2003)[14] e é necessária sua superação, para que se torne mais provável a superação da sociedade que gera ilusões e desumanização.

Considerações finais

A superação do presentismo depende da luta de classes e, especialmente, da luta proletária. Contudo, nós estamos envolvidos nas lutas de classes em geral e na luta proletária em particular (sendo ou não proletários), pois cada decisão, posição e ação, bem como produção cultural, reforça uma ou outra tendência existente. Korsch (1973) foi perspicaz ao afirmar que a luta de classes ocorre em todos os lugares. O regime de acumulação integral significa a imposição do capital de determinadas relações sociais e as lutas ordinárias, cotidianas, se dão dentro desse processo, e as lutas extraordinárias apontam para o questionamento destas relações sociais. As lutas ordinárias só possuem sentido se articuladas e incentivadoras de lutas extraordinárias.

Por isso é importante entender a contemporaneidade, o regime de acumulação integral, e ao mesmo tempo ultrapassar as ideologias e representações cotidianas ilusórias ao seu respeito. A compreensão do regime de acumulação integral assume importância teórica, gerando uma ferramenta fundamental para compreender a sociedade contemporânea e fornecendo elementos para a superação do caráter abstrato e ideológico de outras concepções, bem como do descritivismo[15].

Sem dúvida, não é possível desconsiderar a importância história da periodização do capitalismo e da reflexão crítica sobre o contemporâneo, bem como o reconhecimento da dificuldade de superar a naturalização e das ilusões da época. A compreensão da história da humanidade e do capitalismo são elementos importantes para superar o presentismo, para pensar um projeto de sociedade futura. Nesse contexto, a compreensão da oposição como produto do mundo atual, com suas lutas espetaculares (DEBORD, 1997)[16], que se tornam, contemporaneamente, lutas mercantis.

É preciso ressaltar também que a não compreensão do capitalismo contemporâneo é um obstáculo para a compreensão da historicidade do capitalismo e da contemporaneidade com suas lutas e processos sociais. Isso reforça a importância do processo analítico do capitalismo para não desenvolver ações trágicas, ou seja, aquelas que visam um objetivo e acaba tendo resultado contrário, como na famosa tragédia grega de “Rei Édipo”. O caso de Édipo é exemplar do que significa uma consciência parcial da realidade. Ao saber, através de um oráculo, que seu destino seria matar seu pai e casar com sua mãe, Édipo foge de sua cidade e se afasta dos seus pais para evitar tal futuro. O oráculo não revelou toda a verdade, apenas parte dela, pois não informou Édipo que ele era adotado e que a profecia era em relação aos seus pais verdadeiros, que ele nem sequer conhecia. Essa consciência parcial, ou meia-verdade, provocou sua fuga e nela ele se depara com ser verdadeiro pai, sem saber disso, e acaba matando ele e depois ao chegar à outra cidade casa-se com sua mãe verdadeira. A sua ação era para evitar um acontecimento que, no fundo, se concretizou graças a ela. Se tivesse uma consciência mais ampla, não fugiria da cidade e não teria realizado a sua ação trágica. Isso é o que milhares realizam hoje, por possuírem uma consciência parcial da realidade, acabam pensando que estão lutando por uma nova sociedade e acabam é obstaculizando isso, entre outras possibilidades.

Em síntese, é necessária uma percepção histórica da realidade, aliada a uma crítica revolucionária, já apresentada por Marx e seus autênticos continuadores, e superação do presentismo e seus efeitos na produção intelectual. Isso serve para percebermos que a consciência histórica do capitalismo e a consciência histórica dos regimes de acumulação é um elemento importante para a luta do proletariado e pela transformação social. Em cada regime de acumulação, apesar da dificuldade de percebê-lo criticamente, os representantes teóricos da classe revolucionária avançam na compreensão da época, tal como ocorreu no regime de acumulação extensivo (Marx e, em menor grau e sem rigor teórico alguns outros); no regime de acumulação intensivo (Pannekoek, Korsch, etc.); no regime de acumulação conjugado (Guillerm e Bourdet, etc.). O mesmo é preciso fazer na contemporaneidade, o que significa que é necessário superar o dogmatismo e as reproduções mecânicas de pensadores do passado (pois além do contexto em que produziam e traziam elementos específicos que já não são mais os mesmos, há também a necessidade de percepção de seus limites e problemas, quando existentes, na sua produção intelectual). O que geralmente ocorre são avanços pontuais em aspectos do novo regime de acumulação (análise do estado, da cultura, etc.), pois a concepção de conjunto é mais difícil. Isso sem falar nos obstáculos representados pelo pseudomarxismo, como no exemplo da análise de Mandel (1978) sobre o “capitalismo tardio” para explicar o regime de acumulação conjugado.

É preciso ter em mente que a consciência histórica de um regime de acumulação é obliterada pela hegemonia das concepções dominantes e também por mesclas de concepções revolucionárias e ideologias dominantes (anarquismo e pós-estruturalismo, por exemplo, um exemplo do que anteriormente denominamos “ecletismo”). Isso atinge, sob formas diferentes, a todos os intelectuais. Até mesmo alguns ideólogos acabam percebendo e afirmando isso. Esse é o caso de Zygmunt Bauman, que revela isso ao explicar o motivo de ter adotado a expressão “pós-modernidade” e abandonado, produzindo a ideia de “modernidade líquida” para explicar a contemporaneidade: “a primeira aproximação de uma resposta a essa pergunta [referente às mudanças da realidade atual, da “modernidade” – NV] foi a ideia, bastante popular naquele momento, de ‘pós-modernidade’” (BAUMAN, 2010).

Assim, o autor mostra a fragilidade de sua construção ideológica, marcada por imprecisão e força da influência das ideias dominantes. E, seguindo a tendência pós-estruturalista, rompendo apenas com alguns termos usados por representantes desta, este autor passou e usar novos construtos, especialmente “modernidade líquida”, que apenas nomeia e classifica as relações sociais, fazendo, segundo ele, o que as ideologias pós-modernas não faziam – o que era uma de suas fraquezas – a negação do pós sem referência ao que é, o que se resolve apenas dando novos nomes e nada explicando, ou seja, trocando a imprecisão da pós-modernidade e seu descritivismo superficial por outra imprecisão descritivista e superficial chamada “modernidade líquida”. Mas o interessante é sua revelação de sua tentativa de entender sociologicamente as mudanças sociais em curso e a força das ideias vigentes em sua tentativa. O que o autor não percebe, ou pelo menos não afirma, é que sua construção ideológica também manifesta a mesma influência, inclusive a proliferação de ideologias fundadas um individualismo intelectual (bem como ocorre com os artistas) que significa o enfraquecimento das chamadas “escolas” (tal como o funcionalismo, Escola de Frankfurt, etc.) em favor das produções individuais[17].

Neste contexto, torna-se necessário atualizar e aprofundar as concepções revolucionárias. Porém, isso deve ser realizado de forma que não somente se perceba criticamente o que não é atual e os problemas existentes nas concepções passadas, devido sua época (e em alguns casos por seus limites próprios, como o situacionismo), mas também que se perceba criticamente as concepções atuais e seus vínculos problemáticos com a época atual e, simultaneamente, fazer um balanço compreendendo que nem tudo que hoje se critica nas concepções passadas são verdadeiras, pois a crítica pode ser, ela mesma, falsa[18].

Essa é a importância da presente discussão e o que justifica o presente texto. Esse processo revela uma contemporaneidade na qual o capitalismo encontra dificuldades crescentes de reprodução, no qual lança mão de tudo e mercantiliza tudo (a hipermercantilização é uma das características da nova fase do capitalismo)[19]. O regime de acumulação integral não é eterno (assim como não foram os outros regimes de acumulação e o próprio capitalismo) e cada vez mais, como todos os anteriores, tem suas forças exauridas, possibilitando a sua crise, em que pese use diversos elementos para evitar isso, desde as políticas de cooptação até as de “austeridade”. A crise abre uma brecha para a superação não apenas do regime de acumulação integral, mas também do próprio capitalismo, mas isso depende da luta de classes, da força do proletariado e classes aliadas, bem como da cultura revolucionária e sua transformação em “força material”, como já dizia o jovem Marx (1968).

Neste sentido, existe uma brecha e duas possibilidades principais[20] estão postas para a resolução de uma crise do regime de acumulação integral: o fascismo[21] ou a autogestão social, ou seja, uma situação semelhante a do início do século 20, no qual Rosa Luxemburgo colocou a palavra de ordem: Socialismo ou Barbárie. O resultado desta luta de classes pode ser a emancipação humana ou a catástrofe e o barbarismo, que, com a guerra e a destruição em massa de forças produtivas, pode dar novo fôlego ao capitalismo e seu processo destrutivo e degradante. A teoria não é neutra e seu objetivo é contribuir com a transformação social e por isso ela deve descortinar esse nevoeiro ideológico e ilusório e buscar ampliar a consciência da realidade e fornecer subsídios para o movimento a favor da libertação humana. Tal como já dizia Marx (1968), a teoria se torna uma força material quando se apodera das “massas” (do proletariado e seus aliados), quando é crítica radical e expressão da realidade, manifestação da negação da sociedade que realizou a negação da vida.








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* Professor da UEG – Universidade Estadual de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB. Autor de A Consciência da História (Rio de Janeiro, Achiamé, 2007) e Escritos Metodológicos de Marx (Goiânia, Alternativa, 2007), entre outros livros.

[1] Pagès coloca as dificuldades de uma periodização, que se amplia quanto maior é o período histórico ou a delimitação espacial realizada. Assim, existem diferentes ritmos históricos na Península Ibérica, ou seja, no seu interior. “Se nestes âmbitos regionais se observam dificuldades para usar pautas unificadoras da história, maiores serão as dificuldades quando se intenciona uniformizar em uma mesma periodização continentes tão diversos como Europa, Ásia, África e América” (PAGÈS, 1983, p. 257).

[2] “É preciso, pois, abandonar as periodizações que durante muitos anos ocuparam as primeiras páginas dos manuais e que unicamente tinham em conta critérios políticos. Foi usual – e em boa medida segue sendo – periodizar a história de um país ou de uma sociedade a partir da cronologia dos seus reinados” (PAGÈS, 1983, p. 257). A historiografia brasileira não escapa a essa regra ao dividir a história do Brasil em Colônia, Império e República.

[3] O reconhecimento da importância desta discussão foi feita, por exemplo, por Henri Beer e Lucien Febvre: “não há no campo da história um problema metodológico de maior importância que o da periodização. Não é meramente um problema exterior de ajuste e disposição por conveniência, mas um problema básico, capaz de receber as mais diversas soluções” (apud. RAMA, 1968, p. 147). Tal reconhecimento se manifestou sob outras formas: “a história da periodização é uma parte da história da ciência histórica mesma” (BAUER, 1957, p. 152); “A divisão da história em períodos constitui a quintessência de toda a concepção da história” (Van Der Pot. Apud. DUJOVNE, 1959, p. 271).

[4] Sem dúvida, alguns positivistas contemporâneos poderão defender a “inocência” e “neutralidade”’ das periodizações, ou, em sua versão pós-estruturalista, poderão defender o relativismo, afirmando que todos os pontos de vista são verdadeiros, que é apenas uma forma camuflada de defender o velho e desgastado princípio positivista da neutralidade. Sem dúvida, para os primeiros, temos que dizer que não existe neutralidade (VIANA, 2000). Bauer já havia, de certa forma, colocado isto: “um crente católico dificilmente se convencerá de que a História Universal iniciou com Lutero uma nova fase” (BAUER, 1957, p. 147). Quanto aos relativistas, podemos simplesmente dizer que realmente todo pensamento é valorativo e na base de todas as periodizações existem valores e interesses, porém, eles não são equivalentes e existem alguns valores (tais como os daqueles que são nazistas, para pegar um exemplo extremo) que são prejudiciais a um saber verdadeiro, mas outros são benéficos, e o problema não está em ficar no meio do caminho e reconhecer que a produção do saber é perpassada por valores, pois é preciso dar o passo seguinte e ver quais valores e interesses produzem determinadas produções intelectuais, inclusive as produções intelectuais relativistas num mundo marcado pela luta de classes, pela miséria, pela fome, pela exploração, pela dominação. A resposta é óbvia. O relativismo serve ao poder (VIANA, 2000).

[5] A base real e concreta dessa periodização são a sucessão de modos de produção dominantes neste região do planeta, gerando novas formas de sociedade.

[6] Limitamos-nos a remeter para a obra no qual desenvolvemos a análise tanto das propostas de periodização do capitalismo quanto da gênese do conceito de regime de acumulação (cf. VIANA, 2009).
[7] Obviamente que aqui tratamos de contemporaneidade em sentido restrito, ou seja, como a atual fase da sociedade capitalista (moderna). Em sentido amplo, contemporaneidade seria a sociedade na qual vivemos e, portanto, seria sinônimo de modernidade. Nesse sentido estrito, o termo é também relativo a uma época do capitalismo e também provisório, pois sendo superado por outra fase, caso isso ocorra, então deixa de ser contemporâneo e a nova fase que assume esse nome. O regime de acumulação conjugado (também chamado intensivo-extensivo ou “fordista”) foi o capitalismo contemporâneo na sua época de vigência, e naquela época falar em contemporaneidade significaria falar em capitalismo oligopolista transnacional, outra expressão que retrata esse período da sociedade moderna.

[8] O interesse é a mola mestra em todo esse processo, e desde que o Estado neoliberal passou a exercer toda uma política de cooptação de setores da sociedade, especialmente de grupos, movimentos sociais, etc. (inclusive criando “políticas públicas setoriais”, incentivo para pesquisas com grupos oprimidos – obviamente sob a ótica neoliberal e pós-estruturalista, desde que se queira financiamento com facilidade, etc.). E isso gera não só aqueles que criam ideologias e representações cotidianas ilusórias e os que são cooptados, mas também os omissos e “colaboradores”, o que foi chamado por um filósofo e sociólogo espanhol de “complacência”: “é muitíssimo frequente o espetáculo, para mim entristecedor, de pessoas estimáveis que aceitam sem resistência coisas, decisões, empreendimentos, propostas, colaborações, que lhes parecem indesejáveis, que talvez as repugnem, mas que, pela sua complacência, recebem uma injusta autorização, em certas ocasiões um aparente prestígio, com a influência e a eficácia que costuma acompanhá-las. Os exemplos podem se multiplicar; e vão do que parece – mas não é – inofensivo ao que provoca graves consequências. Aceitam-se as homenagens a pessoas ou instituições não tidas como merecedoras disso; por compromisso, por fraqueza, por alguma relação de amizade ou parentesco. Isso é capitalizado, parte-se daí para ações ulteriores que podem contradizer a verdadeira atitude que participou da homenagem” (MARÍAS, 2003, p. 42).

[9] Este autor acrescenta, justamente, que “o pior é que essa atitude ‘contagia’ os que não são particularistas por vocação ou interesse, os que pretendem superá-la e restabelecer uma visão mais ampla e justa. Nada mais perigoso do que aceitar as formulações alheias quando não são corretas, em especial se são decididamente falsas” (MARÍAS, 2003, p. 58-59).

[10] Isto, obviamente, vai abrir brecha também para a pesquisa e a percepção da atual fase do capitalismo por parte dos pesquisadores que se engajam no movimento de luta pela autogestão social, expressando a perspectiva do proletariado.

[11] E mais uma vez podemos ver diversos interesses por detrás disso, desde o do capital editorial (“leia o último livro”, ou seja, compre essa nova mercadoria...) até o de intelectuais medíocres que com preguiça de analisar profundamente a realidade e as formas mais estruturadas de interpretação da mesma, preferem a facilidade da reprodução dos modismos superficiais existentes.

[12] Tal como leitores de um livro só, ou apenas de um autor.

[13] Não é raro passar do pensador ou doutrina “pura” e “inquestionável” para a sua corporificação em indivíduos portadores deles. Se se considera o anarquismo é puro e inquestionável, então todos os anarquistas (pelo menos da corrente que se defende) também são puros e inquestionáveis. Ou seja, ao invés do ser humano real e concreto, com tudo que é derivado disso, temos o endeusamento de determinados indivíduos por serem adeptos de determinadas doutrinas ou concepções (que inclusive podem ser mal compreendidas).

[14] O que não quer dizer concordância com o conjunto das teses do autor e nem que entendamos esses “ventos da falsidade” da mesma forma. No entanto, apesar do autor não ser um revolucionário e compromissado com a luta pela autogestão social, consegue perceber, por sua singularidade psíquica, diversos problemas que muitos supostos “esquerdistas” nem sequer imaginam, por estarem submetidos ao “espírito da época” (o presentismo), ou, como diria Marías, dominados pela ideias vigentes ou pelos “ventos de falsidade”.

[15] Esse é o caso de David Harvey (1992), que apesar de contribuir com alguns elementos, peca pela abstração e falta de conexão e relação entre os processos culturais e sociais. Obviamente que existem coisas piores, como Jameson (2002), o pseudomarxista mais reconhecido nos Estados Unidos, apesar de seus equívocos (VIANA, 2009) e graças sua condescendência com o pós-estruturalismo (JACOBY, 1990). Entre os descritivistas se encontra Zigmut Bauman, com sua ideologia da “modernidade líquida” (2001), um mero descritivismo classificatório baseado em analogias que nada fundamentam, sendo apenas um exemplo entre milhares.

[16] O próprio Debord e o situacionismo não escapou disso, muito menos seus herdeiros contemporâneos, geralmente seguidores dogmáticos e “espetaculares” de uma produção intelectual datada e com seus limites (VIANA, 2011; DEBRITO, 1985).

[17] Na arte isso se manifesta através do pós-vanguardismo (ideologicamente chamado de “pós-modernismo”), que abole as “vanguardas” e “movimentos artísticos”, tal como foram o expressionismo, surrealismo, etc., substituído pelo individualismo bem de acordo com a ideologia neoliberal.

[18] Um bom índice para entender as determinações sociais da falsidade está em analisar os interesses de quem realiza tal crítica. E não apenas da crítica, mas de concepções, pois é necessário saber quem financia, com qual interesse, bem como quem afirma, em que posição e relação com a classe dominante, governos, etc. Obviamente que não se trata de derivação mecânica de pertencimento de classe (o que alguns ingenuamente fazem), pois nesse sentido todos os intelectuais e produções complexas seriam falsas. É preciso perceber que isso é uma tendência e algo dominante na classe intelectual, mas que existem divisões internas na mesma, além das singularidades psíquicas dos indivíduos concretos que são intelectuais. Os interesses são mais reveladores quando se estabelece o vínculo com a ligação de quem produz ideias com governos, instituições, financiadores, partidos, etc. Da mesma forma, é preciso distinguir aqueles que apenas reproduzem as ideologias e representações dominantes daqueles que as produzem e os que o fazem por ingenuidade ou força das ideias vigentes e aqueles por interesses pessoais. Aqueles que, devido ingenuidade e/ou força das ideias vigentes, são os que mais necessitam entender a questão dos interesses por detrás dos discursos e práticas e tais vínculos, sem cair no dogmatismo e mecanicismo, inclusive entendendo os casos concretos.

[19] Isso não deve servir de pretexto para cair nas ideologias supostamente “esquerdistas” que acabam caindo no fetichismo do mercado, do dinheiro e do próprio fetichismo (que se tornou uma “realidade”, para alguns ideólogos da suposta “esquerda radical”). Esse processo de hipermercantilização apenas em sua aparência poderia justificar o pseudomarxismo neosmithiano de um Kurz (1993), por exemplo, pois sua essência está no modo de produção capitalista e suas mutações. O mercado (e muito menos o dinheiro) não é uma “mão invisível” que domina tudo, pois ela apenas manifesta as relações de distribuição capitalistas, as ações dos capitais individuais e outros portadores de mercadorias no processo de troca, cuja determinação fundamental está na produção de mais-valor, na luta de classes na produção, com supremacia do capital, que impõe o toyotismo, o neoliberalismo, o neoimperialismo, bem como seus produtos ideológicos.

[20] Outras possibilidades são bastante remotas e apesar de alguns voluntaristas conservadores e reformistas sonharem com o retorno da socialdemocracia, tendo como exemplo o chamado “capitalismo nórdico”, o que revela mais uma vez a força das ideologias e dos interesses por detrás delas, bem como uma incompreensão da dinâmica das relações sociais e da especificidade de determinados países (trocada pela “vontade dos governantes”...), dificilmente poderão se efetivar.

[21] Que pode assumir várias formas, como o nazismo, o ecofascismo, etc. Inclusive sempre que o capitalismo perde sua estabilidade política e de acumulação, surgem tendências de extrema-direita, que em momentos de crise pode ser usado, assim como a socialdemocracia, para conter as lutas revolucionárias. Nesse processo há também a emergência de um semifascismo gestado por ideólogos e outros, que acabam sendo de certa forma reproduzido em uma versão supostamente de esquerda, na qual o autoritarismo, dogmatismo e criação de um inimigo imaginário, algo bastante comum no pensamento fascista, são elementos formais que apontam para a reprodução do oprimido assumindo as práticas dos opressores.
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