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domingo, 12 de julho de 2015

Kropotkin e o Darwinismo



KROPOTKIN E O DARWINISMO

Nildo Viana*

Resumo: O presente artigo discute a concepção de Kropotkin a respeito do darwinismo e da evolução das espécies. Ressalta a sua contribuição ao colocar a ajuda mútua como fator de evolução e sua crítica ao darwinismo social, mas aponta para suas limitações, especialmente a desvinculação entre Darwin e darwinismo. Assim, Kropotkin traria uma contribuição para pensar a evolução, desde que abstraindo sua interpretação benevolente de Darwin.

Palavras-Chave: Darwinismo, Evolução, Ajuda Mútua, Competição.

Abstract: This paper discusses the design of Kropotkin about Darwinism and the evolution of species. Highlights its contribution to placing mutual aid as a factor evolution and its critique of social Darwinism, but points to its limitations, especially the lack of connection between Darwin and Darwinism. Thus, Kropotkin would think a contribution to the evolution, since abstracting their benevolent interpretation of Darwin.

Keywords: Darwinism, evolution, Mutual Aid, Competition.

A obra de Darwin, A Origem das Espécies, publicada em 1859, completa 150 anos após sua publicação esse ano, o que serviu de pretexto para inúmeras coletâneas e textos dedicados a esta obra e seu autor. Porém, 43 anos após sua primeira edição, era publicado também o livro O Apoio Mútuo – Fator de Evolução Social, de Piotr Kropotkin, obra bem menos conhecida e que não recebeu o mesmo reconhecimento acadêmico e científico, por razões óbvias. A obra de Kropotkin é uma importante contribuição à crítica ao darwinismo e por isso merece ser reconsiderada. A sua análise da ajuda mútua como fator de evolução é uma contribuição importante para se repensar o processo evolutivo, bem como uma obra pioneira, seguindo a trilha de outros que também foram além do darwinismo, tal como Espinas, Kessler, entre outros, que o próprio Kropotkin cita. Por isso, destacaremos a relação entre Kropotkin e o darwinismo, mostrando os pontos interessantes da obra kropotkiniana em sua contraposição ao darwinismo e mostrando também seus pontos problemáticos.
Darwin ou Darwinismo?
O primeiro ponto da obra de Kropotkin se encontra na sua oposição aos darwinistas, muito mais do que em relação a Darwin. Este é um ponto importante para discutir as relações de Kropotkin com o darwinismo. Kropotkin admite que, num primeiro momento, chamou-lhe a atenção a “extraordinária dureza da luta pela existência”, que ocorria “periodicamente”, graças a “causas naturais”, razão de enorme pobreza em vastos territórios. Porém, Kropotkin também afirma que onde havia abundância ele não percebia a “cruel luta pela existência” que a maioria dos darwinistas apresentava como principal força ativa na evolução do mundo animal. Foi graças a isto, segundo ele, que passou a se dedicar ao problema das limitações naturais da multiplicação da população animal, em comparação com a luta pelos meios de sobrevivência. Para ele, esta última se manifesta entre as espécies e também no interior das mesmas, mas sem possuir a mesma importância que os obstáculos naturais já aludidos. Foi por isso que começou a duvidar da “terrível” luta pela sobrevivência no interior de uma mesma espécie, tal como sustentada pelos darwinistas, bem como de sua importância no surgimento de novas espécies.
Aqui temos a chave para entender a oposição de Kropotkin ao darwinismo e, ao mesmo tempo, sua condescendência com Darwin. A distinção entre as teses postuladas por Darwin e as postuladas pelos “darwinistas” é um elemento importante para entender a posição de Kropotkin sobre o darwinismo.
Em sua análise do darwinismo, Kropotkin demonstrará suas simpatias pelas teses de Espinas, um sociólogo francês durkheimiano, e pelo biólogo russo Karl Kessler. Ambos destacaram a solidariedade e a ajuda mútua como elementos importantes para explicar a evolução das espécies. Kessler apresentou uma conferência na Universidade de São Petersburgo, em 1880, intitulada “Sobre a Lei da Ajuda Mútua”, que Kropotkin tomou conhecimento e passou a defendê-la. Ele julgou que as teses de Kessler jogava nova luz sobre a questão da evolução das espécies. Kessler afirmava que além da lei da luta pela existência também existe a lei da ajuda mútua, desempenhando esta última um papel mais importante no processo evolutivo das espécies. Segundo Kropotkin:
Essa hipótese, que na verdade não passava de um desdobramento das ideias expressas pelo próprio Darwin em A origem do homem, pareceu-me tão correta e de uma importância tão grande que, desde que tomei conhecimento dela (em 1883), comecei a coletar material para desenvolver melhor essa ideia sobre a qual Kessler tocou muito superficialmente em sua palestra e não viveu para desenvolver, pois morreu em 1881. (KROPOTKIN, 2009, p.13).
Kropotkin parte da ideia de que a ajuda mútua estava incluída nas teses de Darwin e que foram os darwinistas que enfatizaram unilateralmente a “luta pela existência” e a “sobrevivência dos mais aptos”. Kropotkin afirma que, na época em que escrevia, passou-se a falar tanto da “a luta dura e cruel pela vida” que aparentemente realiza “cada animal contra todos os outros, cada selvagem contra todos os demais selvagens, e cada homem civilizado contra todos seus concidadãos semelhantes”, que tais “opiniões se converteram numa espécie de dogma, de religião da sociedade instruída” e isto tornou necessário apresentar uma grande série de fatos contrária a estas afirmações. Os textos de Kropotkin surgiram justamente em oposição ao artigo de Thomas Huxley, intitulado A Luta Pela Existência: Um Programa. Segundo Kropotkin,
Embora estivesse usando o termo em seu sentido estrito, principalmente tendo em vista seus objetivos específicos, ele alertou seus seguidores para que não cometessem o erro (que ele próprio parece ter cometido um dia) de superestimar esse sentido. Em A origem do homem, Darwin escreveu algumas páginas memoráveis para ilustrar seu sentido próprio, o sentido amplo. Observou que, em inúmeras sociedades animais, a luta entre indivíduos pelos meios de subsistência desaparece, que essa luta é substituída pela cooperação e que essa substituição resulta no desenvolvimento de faculdades intelectuais e morais que assegura à espécie as melhores condições de sobrevivência. Ele sugeriu que, nesses casos, os mais aptos não são os mais fortes fisicamente, nem os mais astuciosos, e sim aqueles que aprendem a se associar de modo a se apoiarem mutuamente, fossem fortes ou fracos, pelo bem-estar da comunidade. (KROPOTKIN, 2009, p. 20).
Aqui temos o problema da interpretação que Kropotkin realiza da obra de Darwin. Kropotkin separa Darwin dos darwinistas a partir de duas considerações básicas: a) Darwin usa a expressão “luta pela sobrevivência” (ou pela vida, pela existência) num sentido amplo e figurado e os darwinistas num sentido estrito; b) Darwin sustentaria o papel da ajuda mútua, cooperação, no processo evolutivo e os darwinistas não. Porém, esta interpretação é bastante problemática. Segundo Darwin:
Devo frisar que emprego o termo luta pela sobrevivência em sentido lato e metafórico, o que implica relações mútuas de dependência dos seres organizados, e, o que é mais importante, não somente a vida do indivíduo, como a sua aptidão e bom êxito em deixar descendentes. Afirma-se que dois animais carnívoros, em tempos de fome, lutam um contra o outro em busca de alimentos necessários para sua sobrevivência. Mas chegar-se-á a dizer que uma planta, à beira de um deserto, luta pela sobrevivência contra a falta de água, embora fosse mais correto dizer que a sua sobrevivência depende da umidade. Poder-se-ia dizer com mais exatidão que uma planta, que produz anualmente um milhão de sementes, das quais uma, em média, chega a desenvolver-se e a amadurecer por seu turno, luta com as plantas da mesma espécie, ou espécies diferentes, eu cobrem já o solo. O visco depende da macieira e de algumas outras árvores; ora, é somente no sentido figurado que se poderá dizer que luta contra estas árvores, porque se grande número de parasitas se estabelecem na mesma árvore, esta enfraquece e morre; porém, pode-se dizer que muitos viscos, vivendo em conjunto sobre o mesmo ramo e produzindo sementes, lutam uns contra os outros. Como são as aves que espalham as sementes do visco, a sua sobrevivência depende delas, e dir-se-á, em sentido figurado, que o visco luta com as outras plantas que tenham frutos, porque importa a cada planta levar os pássaros a comer os frutos que produz, para disseminar as sementes. Emprego, pois, para uma maior comodidade, o termo geral luta pela sobrevivência, nos diferentes sentidos que se confundem uns com os outros (DARWIN, 1979, p. 69).
O sentido lato e metafórico fornecido por Darwin é, como se pode observar pelo trecho acima, no sentido de que não se trata de luta direta entre dois animais, mas sim algo mais sutil, tal como se pode ver nas plantas. O sentido lato da “luta pela sobrevivência” em Darwin é bem compreendida pelo termo competição, que é um elemento característico da sociabilidade capitalista que Darwin transfere para o mundo animal e vegetal (MARCO, 1987; VIANA, 2001; VIANA, 2003; VIANA, 2009). Logo, o sentido fornecido por Darwin é o mesmo fornecido pelos darwinistas e, neste sentido, a interpretação de Kropotkin é equivocada.
O outro elemento responsável na condescendência de Kropotkin com Darwin é a ideia de que este teria reservado um papel para a ajuda mútua no processo evolutivo no seu livro A Origem do Homem, o que não é feito pelos darwinistas. Porém, Kropotkin novamente se equivoca, pois para Darwin a ajuda mútua é apenas uma forma assumida por determinados grupos para lutar pela sobrevivência, ou seja, é apenas um elemento subordinado a um princípio superior e determinante. São as vantagens da “vida em sociedade” que fazem os seres viverem juntos e desenvolver os sentimentos, incluindo a simpatia e o senso moral (DARWIN, 1974).
Na sociedade o sentimento de prazer constitui provavelmente uma extensão dos afetos para com os pais e os filhos, visto que o instinto social parece ter surgido em consequência da diuturna permanência dos jovens com os pais e esta extensão pode ser atribuída em parte ao hábito, mas principalmente à seleção natural. Para aqueles animais que foram superados pela vivência numa associação, os indivíduos que auferiram o maior prazer da vida em sociedade teriam sido mais felizardos em escapar dos vários perigos, enquanto que aqueles que menos cuidavam dos seus companheiros e viviam solitários teriam perecido em maior número (DARWIN, 1974, p. 130).
Essa ajuda mútua, no entanto, ocorre “quase exclusivamente em relação aos homens da mesma tribo” e a agressão não é crime em relação a outras tribos. Segundo Darwin:
Nenhuma tribo conseguiria manter-se unida se o assassínio, o latrocínio e a traição fossem comuns; consequentemente tais crimes nos limites de uma tribo estão sujeitos à eterna infâmia, mas não suscitam tal sentimento além destes limites. Um índio norte-americano se sente muito satisfeito consigo mesmo e honrado pelos outros, quando esfola um homem de outra tribo; um Dyak corta a testa de uma pessoa inofensiva e leva-a como troféu. A matança dos recém-nascidos esteve difundida em larguíssima escala no mundo sem encontrar reprovação; o infanticídio, especialmente das meninas, tem sido julgado útil para a tribo, ou ao menos não prejudicial (DARWIN, 1974, p. 142).
Assim, Darwin defende que a ajuda mútua existe realmente, mas jamais que teria a mesma importância que a competição, e o faz colocando como algo subordinado ao princípio utilitarista e restrito de grupos, envolvido pelo princípio mais geral da competição. Curiosamente, Kropotkin que irá refutar os argumentos sobre canibalismo e infanticídio para sustentar sua tese de que a ajuda mútua é fundamental para o processo evolutivo, não percebeu que o que os darwinistas falavam já estavam em Darwin. Kropotkin também não se atentou para as concepções racistas e sexistas apresentadas por Darwin, tal como se pode perceber no trecho seguinte:
Nos selvagens, as fraquezas do corpo e da mente são imediatamente eliminadas; aqueles que sobrevivem, apresentam normalmente um vigoroso estado de saúde. Nós, homens civilizados, por outro lado, envidamos todos os esforços para deter o processo de eliminação; construímos asilos para loucos, aleijados e doentes; instituímos leis para os pobres e os nossos médicos exercitam ao máximo sua habilidade para salvar a vida de quem quer que seja no último momento. Há motivo para se crer que a vacinação tenha salvo um grande número daqueles que, por sua débil constituição física, não teriam em tempo resistido à varíola. Desta maneira, os membros fracos das sociedades civilizadas propagam o seu gênero. Nenhum daqueles que se tem dedicado à criação de animais domésticos duvidará que isto pode ser altamente perigoso para a raça humana. É surpreendente ver com que rapidez a falta de cuidados, ou cuidados inapropriados, leva a degeneração de uma raça doméstica; mas, com exceção do homem, é raro que alguém seja tão ignorante a ponto de permitir que os próprios animais piores se reproduzam (DARWIN, 1974, p. 162).
Kropotkin diz que, nessa passagem, Darwin “abriu passo novamente ao fermento malthusiano” depois de escrever passagens que refutam a estreita tese malthusiana da luta pela sobrevivência, o que, no entanto, ele não demonstra e não se encontra em nenhuma afirmação nesta obra, a não ser a passagem sobre ajuda mútua, subordinada à luta pela sobrevivência.
Desta forma, Kropotkin foi condescendente com Darwin por não ter interpretado sua obra corretamente e não percebido seu caráter racista e sexista. Isto talvez tenha sido derivado de uma leitura projetiva muito mais que uma busca de compreender a lógica do pensamento do autor. Também a autoridade intelectual de Darwin, cuja hegemonia ideológica no âmbito das ciências naturais logo se tornou quase inquestionável, tenham reforçado este processo de suspensão de senso crítico. Os elementos já presentes em Darwin e depois desenvolvidos ou simplesmente reproduzidos pelos darwinistas são, assim, desconsiderados por Kropotkin que atribui isso apenas aos últimos.
Porém, estas observações não retiram os méritos da obra de Kropotkin, bem como toda sua argumentação a favor da ajuda mútua, da cooperação como elemento importante no processo evolutivo. Sem dúvida, basta estender sua crítica do darwinismo à obra de Darwin que tal problema é resolvido. Porém, isto também não anula alguns outros problemas na obra deste pensador, tal como colocaremos adiante.
Competição ou Ajuda Mútua?
As críticas que Kropotkin apresenta ao darwinismo são aplicáveis a Darwin. Porém, a argumentação de Kropotkin é bem mais voltada para apresentar uma alternativa ao pensamento darwinista do que apontar as falhas e problemas da teoria, embora estas coisas se confundam em determinado momento. Kropotkin rejeita a ideia de “luta pela existência” como princípio fundamental da evolução e coloca o papel relevante da cooperação neste processo. A maior parte da obra de Kropotkin é dedicada a mostrar o processo da ajuda mútua no mundo animal e humano.
Através de extenso número de observações próprias e de outros pesquisadores, Kropotkin busca comprovar o papel da ajuda mútua no processo evolutivo. Ele trabalha com inúmeras informações sobre aves, peixes, insetos e outras espécies animais. Kropotkin retoma K. Kessler, que contestou o uso abusivo do termo “luta pela existência”, perdendo de vista completamente “outra lei”, a da ajuda mútua, talvez mais importante do que a lei da “luta pela existência”. Kessler afirmou que a necessidade de deixar descendência une os animais inevitavelmente: “os animais de todas as classes, especialmente das superiores, prestam-se ajuda mútua”. Para comprovar tal tese, Kessler forneceu inúmeros exemplos retirados da vida dos escaravelhos, das aves e de alguns mamíferos.
Kropotkin também sustenta esta tese e afirma:
Exemplos de ajuda mútua entre as térmites, as formigas e as abelhas são tão conhecidos do leitor leigo, principalmente por meio das obras de Romanes, L. Büchner e John Lubbock, que posso limitar meus comentários a umas poucas alusões. Considerando um formigueiro, observamos não só que todo o trabalho realizado criação da prole, busca de alimento, construção, cuidados com os pulgões, etc. segue os princípios da ajuda mútua voluntária, como também devemos reconhecer, como Forel, que a característica básica da vida de muitas espécies de formigas é o fato e a obrigação de cada uma delas de compartilhar sua comida, já engolida e parcialmente digerida, com todos os membros da comunidade que a peçam. Duas formigas que pertencem a espécies diferentes ou a formigueiros hostis se evitam ao se encontrarem por acaso; mas, se elas pertencem ao mesmo formigueiro ou à mesma colônia, aproximam-se, comunicam-se trocando alguns movimentos de antenas e, “se uma delas está com fome ou sede, em particular se a outra estiver bem alimentada [...], imediatamente pede comida”. O indivíduo a quem a solicitação é feita nunca recusa; abre suas mandíbulas, adota uma posição apropriada e regurgita uma gota de fluido transparente, que é lambida pela formiga faminta (KROPOTKIN, 2009, p. 26).
Assim, Kropotkin dedica dois capítulos de seu livro para demonstrar a ajuda mútua entre os animais, se baseando nas observações de pesquisadores e as suas próprias observações, realizadas na Sibéria, de 1862 a 1866, inclusive vivendo entre os nativos desta região. Também dedica um capítulo para os “selvagens” e outro aos “bárbaros”, além de dois capítulos sobre a “cidade medieval” e dois sobre a “sociedade moderna”, demonstrando, em todos, o papel da ajuda mútua no seu desenvolvimento. O conjunto de informações que ele trabalha é extremamente extenso e por isso iremos apenas citar o caso de sua refutação de que o infanticídio entre os “selvagens” e sua relação com a lei da luta pela sobrevivência, tal como defendido pelos darwinistas (e por Darwin, embora Kropotkin não o reconheça):
Os povos primitivos não podem criar todos os seus filhos. No entanto, observou-se que, tão logo conseguem aumentar seus meios regulares de subsistência, eles abandonam imediatamente a prática do infanticídio. Em geral, os pais cumprem essa obrigação com relutância e, tão logo obtêm condições materiais, recorrem a todos os tipos de acordo para salvar a vida de seus recém-nascidos. (KROPOTKIN, 2009, p. 26).
A ajuda mútua entre os bárbaros e na cidade medieval também reforça a tese kropotkiniana do papel da ajuda mútua no processo evolutivo, embora, no último caso, sua abordagem seja muito idílica, tal como alguns comentaristas ressaltaram. Sem dúvida, a sociedade feudal era uma sociedade de classes, fundada na exploração e na dominação, e, portanto, não podia ter como princípio fundamental a ajuda mútua e sim a luta de classes. Obviamente que entre as classes exploradas, e isto não foi diferente com os servos, havia cooperação e isto faz parte da história. Kropotkin não desconhece o processo de exploração e coloca a oposição entre os senhores feudais e servos, mas busca demonstrar que os primeiros não conseguiram destruir a comuna aldeã, embora a tenha submetido ao regime feudal de exploração. Nestas comunas aldeãs permanecia a cooperação, bem como nas guildas e desdobramentos posteriores, que já não são mais “medievais”, como coloca Kropotkin, mas trazem em si elementos herdados da sociedade feudal.
Da mesma forma, Kropotkin apresenta inúmeras informações para sustentar a ideia da ajuda mútua na sociedade moderna. Ele cita desde sociedade beneficentes passando por clubes, associações, uniões, irmandades, até chegar a casos concretos, como os bairros pobres de Londres, mostrando que, apesar das condições desfavoráveis de vida e a ruptura que a sociedade moderna faz com as relações de vizinhança, as crianças mantém relações de ajuda mútua e também as mães. Ele cita relatos de mulheres grávidas que recebem o apoio das mulheres vizinhas e da relação das mães pobres com suas crianças, ao contrário das mulheres das classes ricas.

Para uma senhora das classes mais ricas ser capaz de passar por uma criança faminta e com frio na rua sem notá-la, é necessário algum treino se isso é bom ou mau, elas que decidam por si. Mas as mães das classes mais pobres não têm esse treino, pois não podem suportar a visão de uma criança faminta; elas têm de alimentá-la, e é o que fazem. (KROPOTKIN, 2009, 221).
Assim, apesar de ser possível discordar de algumas afirmações e interpretações de Kropotkin (algumas vezes com certa ingenuidade, ao considerar, por exemplo, que as comunidades científicas seriam expressão de “ajuda mútua”, ao invés de interesses de grupo que mantém uma competição interna, e muitas vezes desenfreada, pelo poder, recursos e status, que é apenas a projeção dos seus sentimentos, obliterando um pouco o que ocorre concretamente) ele resgata o processo de cooperação na sociedade moderna, o que se efetiva de forma mais comum no interior das classes exploradas.
Kropotkin, assim, desta que além da luta imediata das pessoas isoladas, existe a luta em comum, e reprova a Darwin por não ter levado em consideração em suas análises os “obstáculos naturais à multiplicação excessiva dos animais, tais como a seca, as inundações, os frios repentinos, as epidemias, etc.”, o que mostraria que outras determinações atuam sobre o processo evolutivo, tal como Marx já havia colocado em outra oportunidade (VIANA, 2009). Para Kropotkin, esta investigação destes fatores seria indispensável para determinar, em suas verdadeiras proporções, a importância da luta individual pela vida entre os seres pertencentes a uma mesma espécie de animais em comparação com a luta de todo o conjunto contra os obstáculos naturais e os inimigos de outras espécies.
Ele conclui dizendo que a lei da luta pela sobrevivência não é, de forma alguma, a “lei dominante da natureza”. A ajuda mútua é lei da natureza tanto quanto a guerra de todos contra todos, tal como se deduz da observação da vida de aves e mamíferos, entre outras espécies. Os homens possuem a inclinação à ajuda mútua que remonta o desenvolvimento antigo do passado da humanidade, que se desenvolveu mais facilmente em períodos de bem estar e paz, mas mesmo nas condições mais degradantes, tal como em épocas de guerras, misérias, opressão e calamidades, a mesma tendência continuou existindo nas aldeias e entre as classes mais pobres da população urbana. Kropotkin ainda diz que todas as novas doutrinas morais e novas religiões surgem da mesma fonte, de tal forma que o progresso moral da humanidade constitui uma extensão gradual dos princípios da ajuda mútua, desde o clã primitivo, passando pela nação, até chegar à união dos povos.
Considerações Finais
Essa breve síntese do pensamento de Kropotkin acerca da evolução e do darwinismo, mostra seu acerto no primeiro caso e seu erro no segundo. Assim, apesar da generalização de Kropotkin poder ser questionada (e outras determinações do processo evolutivo deveriam ser levadas em conta, bem como ao invés de uma “lei geral”, teorias mais específicas para casos específicos), ninguém pode desconsiderar seus méritos e ter resgatado a ideia de ajuda mútua como uma das determinações da evolução das espécies, principalmente no que se refere à espécie humana. A obra de Kropotkin foi uma grande contribuição ao processo de superação do darwinismo e foi expressão de outra mentalidade, em oposição à mentalidade burguesa, competitiva e darwinista, lançando luzes sobre a escuridão produzidas por ideologias que naturalizam as relações sociais e assim justificam e legitimam a exploração e a dominação. A leitura de Kropotkin hoje seria não somente um antídoto ao darwinismo como também fundamental para biólogos e outros cientistas naturais no sentido de ampliar sua percepção da realidade e pensar as implicações da mentalidade burguesa sobre suas interpretações sobre a vida e assim esboçar alternativas teóricas para compreender fenômenos como a evolução das espécies.
Infelizmente, a obra de Kropotkin sobre ajuda mútua, assim como suas outras obras importantes, tal como sua análise da revolução francesa (KROPOTKIN, 1955), a sua proposta de comunismo libertário (KROPOTKINE, 1975), o anarcocomunismo, até em sua obra mais problemática (KROPOTKINE, 1970), bem como outras, ainda não recebeu os estudos e reconhecimento necessário. O ponto de partida deste reconhecimento, porém, deve partir desta obra, O Apoio Mútuo, que tem suas ideias básicas retomadas em suas obras posteriores, e já esboçadas nas obras anteriores (KROPOTKIN, 1978). Isto explica o motivo pelo qual até hoje não foi produzida nenhuma obra de síntese sobre o pensamento de Kropotkin que lhe desse o devido valor. Este é um projeto a ser realizado e prova de que este pensador que ressaltou a ajuda mútua merece ser resgatado.

Referências

DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. São Paulo, Hemus, 1979.

DARWIN, Charles. A Origem do Homem e a Seleção Sexual. São Paulo, Hemus, 1974.

KROPOTKIN, Pedro. A Grande Revolução. Salvador, Progresso, 1955.

KROPOTKIN, Piotr. Ajuda Mútua: Um Fator de Evolução. São Sebastião: A Senhora Editora, 2009.

KROPOTKIN, Piotr. Campos, Fabricas y Talleres. Madrid, Ediciones Júcar, 1978.

KROPOTKINE, Pedro. A Conquista do Pão. 3ª edição, Lisboa, Guimarães, 1975.

KROPOTKINE, Pedro. Humanismo Libertário e a Ciência Moderna. Rio de Janeiro, Mundo Livre, 1970.

MARCO, Nélio. O Que é Darwinismo? São Paulo: Brasiliense, 1987.

VIANA, Nildo. Darwin e a Competição na Comunidade Científica. Fragmentos de Cultura (Goiânia), Goiânia, v. 13, n. 1, p. 77-98, 2003.

VIANA, Nildo. Darwin Nu. Revista Espaço Acadêmico. Ano VIII, num. 95. Abril de 2009.

VIANA, Nildo. Darwinismo e Ideologia. Pós Revista Brasiliense de Pós Graduação Em Ciências Sociais, Brasília, v. 5, p. 45-78, 2001.




* Professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB – Universidade de Brasília.

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