Marxismo Autogestionário e Anarquismo
Nildo Viana
Qual a diferença entre marxismo autogestionário (outros usam
outros nomes, mas aqui cabe destacar que usamos marxismo autogestionário como
sendo a forma/nome contemporânea do marxismo autêntico, que sempre foi
“autogestionário” sem usar tal palavra e tão-somente para distingui-lo do
pseudomarxismo, o leninismo e seus derivados e para expressar sua manifestação
contemporânea) e anarquismo? Ao ser questionado diversas vezes sobre isso,
então torna-se necessário explicitar de forma mais estruturada o que distingue
um do outro.
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que se trata do
marxismo autogestionário e não de qualquer suposto “marxismo”, pois o
pseudomarxismo leninista, trotskista, stalinista, maoísta, guevarista, entre
outros, são deformações do caráter autogestionário do marxismo e por isso são
muito mais distantes do anarquismo. O marxismo autogestionário tem proximidade
com alguns elementos do anarquismo, especialmente seus princípios fundamentais.
Estes princípios fundamentais seriam a tese da abolição imediata do aparato
estatal, recusa e crítica das autoridades e formas de dominação e hierarquias
sociais. O marxismo autogestionário também aponta para tais princípios, mas, no
entanto, não é “anarquista”, a não ser que se reduza o anarquismo a isso. Da
mesma forma, o marxismo autogestionário não se reduz a isso e tem outros
princípios fundamentais, alguns que se encontram em algumas correntes
específicas do anarquismo, outras não.
O marxismo autogestionário tem como princípios fundamentais
os seguintes: a história das sociedades classistas é a história da luta de
classes; o proletariado é a classe revolucionária de nossa época; a
autoemancipação proletária (revolução proletária realizada pela classe operária
e seus aliados) é a forma de realização da emancipação humana (humanismo
revolucionário, concreto); a autogestão é a essência da nova sociedade que
emerge após o capitalismo, não sendo “parte dela”, mas sua essência e se
generalizando pelo conjunto das relações sociais; a revolução proletária só
pode ser vitoriosa se abolir o Estado e o capital, sem a ideologia do “período
de transição”; as organizações revolucionárias devem ter uma estratégia
revolucionária e superar o reboquismo e o vanguardismo; a burocracia é uma
classe social contrarrevolucionária e por isso deve ser combatida, bem como
todas as organizações burocráticas (partidos, sindicatos, Estado, etc.); a luta
cultural é uma das ações fundamentais a ser efetivada pelos grupos revolucionários;
é necessário que a estratégia revolucionária unifique meios e fins e coloque
como fundamental o objetivo final (autogestão social) e este determina os
meios, bem como, derivado disso, é necessário evitar concessões
contrarrevolucionárias (participação em democracia burguesa, por exemplo).
Assim, o marxismo autogestionário tem proximidade com
determinadas tendências do anarquismo e afastamento de outras. O marxismo
autogestionário é oposto ao anarcoindividualismo e ao anarcossindicalismo. O
primeiro é devido ao seu caráter burguês (individualista) e o segundo ao seu
vínculo com os sindicatos, organizações burocráticas (com exceção do início do
capitalismo, seu período heroico antes da burocratização). Também é muito
distante do anarquismo dogmático, que simplifica e reduz o anarquismo a
determinadas ideias (ou pensamento de determinado pensador anarquista) que se
tornam dogmas e motivo para recusar, julgar, condenar, todos os que não se
encaixam nelas ou então tudo que não é “anarquismo” (na forma exata que o
dogmático definiu, ou seja, sua corrente e/ou interpretação).
Em relação ao que denominamos anarquismo revolucionário, no
qual o anarcocoletivismo e o anarcocomunismo se encaixam, as diferenças são bem
menores, desde que sejam suas manifestações não-dogmáticas. Além do acordo no
que se refere aos princípios fundamentais, há outros elementos em comum. Sem
dúvida, isso não quer dizer, também, que não há diferença, mas elas são menores
tanto na questão da quantidade quanto na profundidade.
Contudo, é preciso esclarecer que existem diferenças gerais
entre o marxismo autogestionário e o anarquismo em geral, ou seja, incluindo
todas as suas correntes. Isso ocorre devido ao fato de que o marxismo (de Marx,
comunismo de conselhos, marxismo autogestionário) é expressão teórico-política
do movimento revolucionário do proletariado, o que significa que é uma teoria
cuja finalidade é a revolução e a autogestão. Nesse sentido, o marxismo
autogestionário tem uma fundamentação teórica, desde a teoria da história de Marx,
passando por diversas outras teorias produzidas por ele (com mais
desenvolvimento a teoria do modo de produção capitalista) e seus continuadores,
tal como a teoria dos conselhos operários de Anton Pannekoek e dos comunistas
conselhistas, até as mais recentes e desenvolvimento e atualização posterior. O
anarquismo é uma doutrina política e não uma teoria. É isso que permite que o
anarquismo, mesmo em suas melhores expressões, acabe caindo no ecletismo,
usando como base (metodológica e/ou teórica) ideologias burguesas (positivismo
clássico, positivismo pós-estruturalista), bem como também desemboque com
relativa facilidade, devido seu voluntarismo, no dogmatismo, praticismo,
reboquismo, revolucionarismo.
Essa não é uma diferença pequena, pois quando o anarquismo
acaba assumindo posições burguesas como base teórica ou metodológica, se
compromete, pois isso acaba intervindo nas análises da realidade e, por
conseguinte, na prática política. Uma análise equivocada da realidade gera
tomada de decisões e realização de ações também equivocadas. As concepções
metodológicas e “teóricas” (ideológicas) burguesas, produzidas pelas mais
variadas ciências (especialmente as “humanas”) possuem toda uma base
valorativa, sentimental, racional e de interesses que são intimamente ligados à
sociedade capitalista e seu processo de reprodução. Não é preciso aqui resgatar
o caráter do positivismo clássico de Comte e outros, que teve ressonâncias nas
obras de Bakunin e outros anarquistas da época (Kropotkin, Reclus, etc.), e seu
vínculo com a reprodução do capitalismo e essência conservadora.
Da mesma forma, o caráter contrarrevolucionário do
pós-estruturalismo (“pós-modernismo”) é por demais evidente para que seja
preciso esclarecer que, partindo de suas concepções metodológicas e ideológicas
(supostamente “teóricas”) se poderia tomar decisões e executar ações
revolucionárias. Obviamente que no caso do anarquismo revolucionário isso é um
tanto minimizado, pois é unido com princípios revolucionários, mas que acaba se
autolimitando por causa de tal base. Uma base metodológica e ideológica
burguesa unida com uma doutrina revolucionária forma um ecletismo e dependendo
de qual lado da balança pesa mais, pode se tornar, na pior das hipóteses,
prejudicial para a luta pela libertação humana e, na melhor, algo limitado e
contraditório, gerando obstáculos para o seu desenvolvimento geral. Claro está
que isso ainda terá múltiplas nuances dependendo do contexto, conjuntura,
indivíduos, etc. Porém, a superação do ecletismo é fundamental para que o
anarquismo revolucionário assuma a posição que é coerente com seus princípios
fundamentais.
Poderíamos supor duas possibilidades para tal superação. A
primeira possibilidade seria adotar o marxismo como sua base
teórico-metodológica, o materialismo histórico-dialético (o que inclui não só o
método dialético, a teoria da história, como também a teoria do capitalismo). A
recusa tradicional do anarquismo de usar o materialismo histórico-dialético é um
forte obstáculo para a superação dessa problemática. Tal recusa tem como fonte
os conflitos entre Marx e anarquistas no passado, por um lado, e pseudomarxismo
e anarquismo posteriormente. Além disso, tem as posições distintas de Proudhon
e Bakunin, entre outros, devido influência do positivismo. No entanto, Bakunin
aceitou o materialismo histórico, apesar de não o ter compreendido
adequadamente, confundindo ele com o materialismo burguês e com a concepção
positivista, tal como se observa em sua discussão sobre materialismo e a
questão dos “fatos”. Esse é um obstáculo a mais, principalmente depois da
emergência do leninismo, expressão ideológica da burocracia, que deformou o
materialismo histórico-dialético, de acordo com os interesses da burocracia
partidária e capitalismo estatal russo e acabou se generalizando e tornando-se
a versão dominante do “marxismo”. Este é outro obstáculo para uma real
compreensão do materialismo histórico-dialético, o que traz a necessidade de
retomar a produção de Marx, bem como de seus melhores continuadores (Labriola,
Korsch, o jovem Lukács em alguns aspectos, Pannekoek, etc.).
A segunda possibilidade seria o anarquismo gerar, de forma
original, sua própria base teórico-metodológica. Essa solução, no entanto,
seria meramente formal, ou seja, uma mudança linguística, já que o materialismo
histórico-dialético já apontou para os elementos essenciais nesse processo e
seria apenas a mesma concepção sob outra forma, uma forma linguística nova para
uma concepção já existente. A única vantagem dessa solução seria apaziguar as
mentes dos anarquistas dogmáticos e não ter que se referir ao marxismo, algo
tão pueril e infantil que só tem sentido, da perspectiva do marxismo
autogestionário, por partir da ideia de que a luta e seu conteúdo é mais
importante e pode fazer esse tipo de concessão por não afetar o processo
revolucionário.
Nesse sentido, o marxismo autogestionário e o anarquismo
revolucionário possuem proximidades e distanciamentos, pontos em comuns e
pontos divergentes, sendo que em alguns casos a diferença é radical, expressa
distintas posições de classe, a perspectiva proletária do marxismo
autogestionário em confronto com a perspectiva burguesa ou de outra classe do
anarquismo dogmático, do individualismo ou anarcossindicalismo; noutros casos,
a diferença é reduzida, mas não abolida, pois devido a diversas outras
diferenças menores, ação política imediata, conjunturas, idiossincrasias, compreensão
da realidade, concepção de ação, diferenças terminológicas, etc., isso pode se
intensificar ou minimizar.
De qualquer forma, em relação às tendências anarquistas que não são aliadas do proletariado revolucionário[1], a
posição do marxismo autogestionário é de crítica e combate, bem como de esperança de avanço no
sentido de uma perspectiva revolucionária, sendo que na prática depende das
posições e ações concretas, qual tendência (emancipação humana via revolução
proletária ou vanguardismo-reboquismo que reforça a contrarrevolução) fortalece
nesse processo. No caso das tendências do anarquismo que se aliam ao proletariado
revolucionário, a posição do marxismo autogestionário é de aliança e luta
conjunta, desde que elas mantenham sua coerência nesse sentido.
Em síntese, marxismo autogestionário e anarquismo
revolucionário são próximos, mas diferentes e o que interessa em sua
aproximação é a contribuição com a emancipação humana, e o que os aproxima ou
distancia é a proximidade ou distanciamento em relação a este objetivo, a
revolução proletária autogestionária.
[1] Proletariado
revolucionário significa a classe proletária autodeterminada, ou seja, que
rompe com as relações de produção capitalistas, com o capital. Isso difere do
proletariado como classe determinada pelo capital, ou seja, que busca apenas
sobreviver ou melhorar sua situação no interior do capitalismo (realizando
apenas lutas reivindicativas), que é ponto de partida para a luta e avanço no
sentido de se tornar autodeterminado, mas que por isso mesmo é preciso travar
uma luta para que avance nesse sentido e os militantes e organizações
revolucionárias devem partir da perspectiva do proletariado como classe
autodeterminada. Ficar ao nível do proletariado como classe determinada (se
dizendo “anarquista”, “conselhista”, “situacionista”, etc.) é cair no
reboquismo, uma posição reformista mesmo não tendo vínculos com as instituições
burguesas. O voluntarismo, praticismo, anti-intelectualismo, entre outros
elementos, são bastante próximos a estes posicionamentos, muito comum no
anarquismo. Isso é produto de seu caráter doutrinário e não-teórico.
Os anarcosindicalistas em momento algum da história são aliados de organizações burocráticas, a partidos políticos ou mesmo ao Estado
ResponderExcluirmotivo pelo qual se define como uma vertente anarcosindicalista ou tatica de combate anarquista e se organiza em torno da Primeira Internacional AIT cujo possui envolvimento na luta econômica pela emancipação dos trabalhadores, a destruição do patronato e do capitalismo e consequente adminstração direta da economia pelos trabalhadores de forma democrática.
Prezados integrantes da FOB, o que está escrito no texto é: a oposição em relação ao segundo (anarcossindicalismo) é devido "ao seu vínculo com os sindicatos, organizações burocráticas (com exceção do início do capitalismo, seu período heroico antes da burocratização)". Aqui o que está dizendo é o vínculo com os sindicatos (as vírgulas explicam que eles, os sindicatos, são organizações burocráticas, com exceção do seu período heroico. Hoje são organizações burocráticas e o anarcossindicalismo mantém vínculo com eles no sentido de querer criar sindicatos (que por serem burocráticos não conseguem, a não ser o "sindivários", um pseudossindicato) e o discurso a favor deles abstraindo seu processo de burocratização e que se tornaram "órgãos do capital".
ResponderExcluirPara uma visão crítica do anarcossindicalismo na Guerra Civil Espanhola, indico:
ResponderExcluirhttp://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9026/5322
http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/18gikh2/124