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domingo, 15 de fevereiro de 2015

Marxismo Autogestionário e Anarquismo


Marxismo Autogestionário e Anarquismo
Nildo Viana

Qual a diferença entre marxismo autogestionário (outros usam outros nomes, mas aqui cabe destacar que usamos marxismo autogestionário como sendo a forma/nome contemporânea do marxismo autêntico, que sempre foi “autogestionário” sem usar tal palavra e tão-somente para distingui-lo do pseudomarxismo, o leninismo e seus derivados e para expressar sua manifestação contemporânea) e anarquismo? Ao ser questionado diversas vezes sobre isso, então torna-se necessário explicitar de forma mais estruturada o que distingue um do outro.

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que se trata do marxismo autogestionário e não de qualquer suposto “marxismo”, pois o pseudomarxismo leninista, trotskista, stalinista, maoísta, guevarista, entre outros, são deformações do caráter autogestionário do marxismo e por isso são muito mais distantes do anarquismo. O marxismo autogestionário tem proximidade com alguns elementos do anarquismo, especialmente seus princípios fundamentais. Estes princípios fundamentais seriam a tese da abolição imediata do aparato estatal, recusa e crítica das autoridades e formas de dominação e hierarquias sociais. O marxismo autogestionário também aponta para tais princípios, mas, no entanto, não é “anarquista”, a não ser que se reduza o anarquismo a isso. Da mesma forma, o marxismo autogestionário não se reduz a isso e tem outros princípios fundamentais, alguns que se encontram em algumas correntes específicas do anarquismo, outras não.

O marxismo autogestionário tem como princípios fundamentais os seguintes: a história das sociedades classistas é a história da luta de classes; o proletariado é a classe revolucionária de nossa época; a autoemancipação proletária (revolução proletária realizada pela classe operária e seus aliados) é a forma de realização da emancipação humana (humanismo revolucionário, concreto); a autogestão é a essência da nova sociedade que emerge após o capitalismo, não sendo “parte dela”, mas sua essência e se generalizando pelo conjunto das relações sociais; a revolução proletária só pode ser vitoriosa se abolir o Estado e o capital, sem a ideologia do “período de transição”; as organizações revolucionárias devem ter uma estratégia revolucionária e superar o reboquismo e o vanguardismo; a burocracia é uma classe social contrarrevolucionária e por isso deve ser combatida, bem como todas as organizações burocráticas (partidos, sindicatos, Estado, etc.); a luta cultural é uma das ações fundamentais a ser efetivada pelos grupos revolucionários; é necessário que a estratégia revolucionária unifique meios e fins e coloque como fundamental o objetivo final (autogestão social) e este determina os meios, bem como, derivado disso, é necessário evitar concessões contrarrevolucionárias (participação em democracia burguesa, por exemplo).

Assim, o marxismo autogestionário tem proximidade com determinadas tendências do anarquismo e afastamento de outras. O marxismo autogestionário é oposto ao anarcoindividualismo e ao anarcossindicalismo. O primeiro é devido ao seu caráter burguês (individualista) e o segundo ao seu vínculo com os sindicatos, organizações burocráticas (com exceção do início do capitalismo, seu período heroico antes da burocratização). Também é muito distante do anarquismo dogmático, que simplifica e reduz o anarquismo a determinadas ideias (ou pensamento de determinado pensador anarquista) que se tornam dogmas e motivo para recusar, julgar, condenar, todos os que não se encaixam nelas ou então tudo que não é “anarquismo” (na forma exata que o dogmático definiu, ou seja, sua corrente e/ou interpretação).

Em relação ao que denominamos anarquismo revolucionário, no qual o anarcocoletivismo e o anarcocomunismo se encaixam, as diferenças são bem menores, desde que sejam suas manifestações não-dogmáticas. Além do acordo no que se refere aos princípios fundamentais, há outros elementos em comum. Sem dúvida, isso não quer dizer, também, que não há diferença, mas elas são menores tanto na questão da quantidade quanto na profundidade.

Contudo, é preciso esclarecer que existem diferenças gerais entre o marxismo autogestionário e o anarquismo em geral, ou seja, incluindo todas as suas correntes. Isso ocorre devido ao fato de que o marxismo (de Marx, comunismo de conselhos, marxismo autogestionário) é expressão teórico-política do movimento revolucionário do proletariado, o que significa que é uma teoria cuja finalidade é a revolução e a autogestão. Nesse sentido, o marxismo autogestionário tem uma fundamentação teórica, desde a teoria da história de Marx, passando por diversas outras teorias produzidas por ele (com mais desenvolvimento a teoria do modo de produção capitalista) e seus continuadores, tal como a teoria dos conselhos operários de Anton Pannekoek e dos comunistas conselhistas, até as mais recentes e desenvolvimento e atualização posterior. O anarquismo é uma doutrina política e não uma teoria. É isso que permite que o anarquismo, mesmo em suas melhores expressões, acabe caindo no ecletismo, usando como base (metodológica e/ou teórica) ideologias burguesas (positivismo clássico, positivismo pós-estruturalista), bem como também desemboque com relativa facilidade, devido seu voluntarismo, no dogmatismo, praticismo, reboquismo, revolucionarismo.

Essa não é uma diferença pequena, pois quando o anarquismo acaba assumindo posições burguesas como base teórica ou metodológica, se compromete, pois isso acaba intervindo nas análises da realidade e, por conseguinte, na prática política. Uma análise equivocada da realidade gera tomada de decisões e realização de ações também equivocadas. As concepções metodológicas e “teóricas” (ideológicas) burguesas, produzidas pelas mais variadas ciências (especialmente as “humanas”) possuem toda uma base valorativa, sentimental, racional e de interesses que são intimamente ligados à sociedade capitalista e seu processo de reprodução. Não é preciso aqui resgatar o caráter do positivismo clássico de Comte e outros, que teve ressonâncias nas obras de Bakunin e outros anarquistas da época (Kropotkin, Reclus, etc.), e seu vínculo com a reprodução do capitalismo e essência conservadora.

Da mesma forma, o caráter contrarrevolucionário do pós-estruturalismo (“pós-modernismo”) é por demais evidente para que seja preciso esclarecer que, partindo de suas concepções metodológicas e ideológicas (supostamente “teóricas”) se poderia tomar decisões e executar ações revolucionárias. Obviamente que no caso do anarquismo revolucionário isso é um tanto minimizado, pois é unido com princípios revolucionários, mas que acaba se autolimitando por causa de tal base. Uma base metodológica e ideológica burguesa unida com uma doutrina revolucionária forma um ecletismo e dependendo de qual lado da balança pesa mais, pode se tornar, na pior das hipóteses, prejudicial para a luta pela libertação humana e, na melhor, algo limitado e contraditório, gerando obstáculos para o seu desenvolvimento geral. Claro está que isso ainda terá múltiplas nuances dependendo do contexto, conjuntura, indivíduos, etc. Porém, a superação do ecletismo é fundamental para que o anarquismo revolucionário assuma a posição que é coerente com seus princípios fundamentais.



Poderíamos supor duas possibilidades para tal superação. A primeira possibilidade seria adotar o marxismo como sua base teórico-metodológica, o materialismo histórico-dialético (o que inclui não só o método dialético, a teoria da história, como também a teoria do capitalismo). A recusa tradicional do anarquismo de usar o materialismo histórico-dialético é um forte obstáculo para a superação dessa problemática. Tal recusa tem como fonte os conflitos entre Marx e anarquistas no passado, por um lado, e pseudomarxismo e anarquismo posteriormente. Além disso, tem as posições distintas de Proudhon e Bakunin, entre outros, devido influência do positivismo. No entanto, Bakunin aceitou o materialismo histórico, apesar de não o ter compreendido adequadamente, confundindo ele com o materialismo burguês e com a concepção positivista, tal como se observa em sua discussão sobre materialismo e a questão dos “fatos”. Esse é um obstáculo a mais, principalmente depois da emergência do leninismo, expressão ideológica da burocracia, que deformou o materialismo histórico-dialético, de acordo com os interesses da burocracia partidária e capitalismo estatal russo e acabou se generalizando e tornando-se a versão dominante do “marxismo”. Este é outro obstáculo para uma real compreensão do materialismo histórico-dialético, o que traz a necessidade de retomar a produção de Marx, bem como de seus melhores continuadores (Labriola, Korsch, o jovem Lukács em alguns aspectos, Pannekoek, etc.).

A segunda possibilidade seria o anarquismo gerar, de forma original, sua própria base teórico-metodológica. Essa solução, no entanto, seria meramente formal, ou seja, uma mudança linguística, já que o materialismo histórico-dialético já apontou para os elementos essenciais nesse processo e seria apenas a mesma concepção sob outra forma, uma forma linguística nova para uma concepção já existente. A única vantagem dessa solução seria apaziguar as mentes dos anarquistas dogmáticos e não ter que se referir ao marxismo, algo tão pueril e infantil que só tem sentido, da perspectiva do marxismo autogestionário, por partir da ideia de que a luta e seu conteúdo é mais importante e pode fazer esse tipo de concessão por não afetar o processo revolucionário.

Nesse sentido, o marxismo autogestionário e o anarquismo revolucionário possuem proximidades e distanciamentos, pontos em comuns e pontos divergentes, sendo que em alguns casos a diferença é radical, expressa distintas posições de classe, a perspectiva proletária do marxismo autogestionário em confronto com a perspectiva burguesa ou de outra classe do anarquismo dogmático, do individualismo ou anarcossindicalismo; noutros casos, a diferença é reduzida, mas não abolida, pois devido a diversas outras diferenças menores, ação política imediata, conjunturas, idiossincrasias, compreensão da realidade, concepção de ação, diferenças terminológicas, etc., isso pode se intensificar ou minimizar.

De qualquer forma, em relação às tendências anarquistas que não são aliadas do proletariado revolucionário[1], a posição do marxismo autogestionário é de crítica e combate, bem como de esperança de avanço no sentido de uma perspectiva revolucionária, sendo que na prática depende das posições e ações concretas, qual tendência (emancipação humana via revolução proletária ou vanguardismo-reboquismo que reforça a contrarrevolução) fortalece nesse processo. No caso das tendências do anarquismo que se aliam ao proletariado revolucionário, a posição do marxismo autogestionário é de aliança e luta conjunta, desde que elas mantenham sua coerência nesse sentido.

Em síntese, marxismo autogestionário e anarquismo revolucionário são próximos, mas diferentes e o que interessa em sua aproximação é a contribuição com a emancipação humana, e o que os aproxima ou distancia é a proximidade ou distanciamento em relação a este objetivo, a revolução proletária autogestionária.




[1] Proletariado revolucionário significa a classe proletária autodeterminada, ou seja, que rompe com as relações de produção capitalistas, com o capital. Isso difere do proletariado como classe determinada pelo capital, ou seja, que busca apenas sobreviver ou melhorar sua situação no interior do capitalismo (realizando apenas lutas reivindicativas), que é ponto de partida para a luta e avanço no sentido de se tornar autodeterminado, mas que por isso mesmo é preciso travar uma luta para que avance nesse sentido e os militantes e organizações revolucionárias devem partir da perspectiva do proletariado como classe autodeterminada. Ficar ao nível do proletariado como classe determinada (se dizendo “anarquista”, “conselhista”, “situacionista”, etc.) é cair no reboquismo, uma posição reformista mesmo não tendo vínculos com as instituições burguesas. O voluntarismo, praticismo, anti-intelectualismo, entre outros elementos, são bastante próximos a estes posicionamentos, muito comum no anarquismo. Isso é produto de seu caráter doutrinário e não-teórico.

3 comentários:

  1. Os anarcosindicalistas em momento algum da história são aliados de organizações burocráticas, a partidos políticos ou mesmo ao Estado
    motivo pelo qual se define como uma vertente anarcosindicalista ou tatica de combate anarquista e se organiza em torno da Primeira Internacional AIT cujo possui envolvimento na luta econômica pela emancipação dos trabalhadores, a destruição do patronato e do capitalismo e consequente adminstração direta da economia pelos trabalhadores de forma democrática.

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  2. Prezados integrantes da FOB, o que está escrito no texto é: a oposição em relação ao segundo (anarcossindicalismo) é devido "ao seu vínculo com os sindicatos, organizações burocráticas (com exceção do início do capitalismo, seu período heroico antes da burocratização)". Aqui o que está dizendo é o vínculo com os sindicatos (as vírgulas explicam que eles, os sindicatos, são organizações burocráticas, com exceção do seu período heroico. Hoje são organizações burocráticas e o anarcossindicalismo mantém vínculo com eles no sentido de querer criar sindicatos (que por serem burocráticos não conseguem, a não ser o "sindivários", um pseudossindicato) e o discurso a favor deles abstraindo seu processo de burocratização e que se tornaram "órgãos do capital".

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  3. Para uma visão crítica do anarcossindicalismo na Guerra Civil Espanhola, indico:

    http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9026/5322

    http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/18gikh2/124

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