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sábado, 31 de janeiro de 2015

IMAGINÁRIO E IDEOLOGIA: As Ilusões nas Representações Cotidianas e no Pensamento Complexo

IMAGINÁRIO E IDEOLOGIA:
As Ilusões nas Representações Cotidianas e no Pensamento Complexo

Nildo Viana*

A história da consciência humana é marcada por um conjunto de mudanças que só podem ser compreendidas se inseridas no interior da história das sociedades humanas. A consciência pode ser entendida, tal como no pensamento de Marx, como “real” ou “ilusória”. O nosso foco aqui será aquilo que Marx denominou “representações ilusórias” da realidade, o que, obviamente, nos faz remeter às “representações reais”, pois a discussão de uma gera a necessidade, inevitavelmente, de abordar a outra. A discussão sobre as ilusões numa sociedade em que essas predominam na mente humana é algo fundamental e que remete à questão das suas raízes sociais, ou seja, ao processo de constituição social das ilusões. O objetivo aqui, no entanto, é apenas observar as relações entre duas formas fundamentais de ilusões, o imaginário e a ideologia, no sentido de perceber o processo de transformar de uma em outra e assim avançar na compreensão desse fenômeno onipresente na sociedade contemporânea.
A história da consciência humana é, no fundo, uma história de ilusões. As ilusões sempre existiram, mas sob formas e por razões distintas. A palavra ilusão tem vários sentidos, tal como “esperanças improváveis”, mas aqui utilizamos no sentido de distorção da realidade, uma consciência falsa, equivocada, da realidade. Assim, a consciência pode ser ilusória ou verdadeira, o que significa que pode expressar a realidade tal como ela é ou distorcer a mesma.
A história das ilusões começa com os mitos antigos e chega até os dias de hoje sob a forma de ciência, filosofia, etc. O mito enquanto forma de explicação do mundo se revela ilusório, assim como as explicações do mito também podem e na maioria das vezes são ilusórias (VIANA, 2011). Contudo, as raízes das ilusões em geral são variadas, embora a determinação fundamental, no caso da nossa sociedade, seja social. Nas sociedades simples, o que temos são relações dos seres humanos com o meio ambiente marcadas pela dependência e por uma cultura ainda demasiadamente marcada por formas de reflexão cuja movimento de retorno a si mesmo do ser pensante é realizado sob forma não consciente, sendo mais uma projeção irrefletida. Com a emergência da sociedades de classes e a separação entre trabalho manual e intelectual, os pensadores originários, os filósofos, avançaram no sentido de pensar este retorno a si mesmo de forma consciente. Quando Protágoras lança a máxima “o homem é a medida de todas as coisas” (PLATÃO, 1977), marca uma revolução no pensamento humano.
Na sociedade escravista, contudo, se há um avanço da consciência humana, ela sofre outras limitações antes inexistentes. A formação dos indivíduos especializados no trabalho intelectual, graças à exploração do trabalho escravo, permite ampliar as reflexões sobre o mundo e ampliar a consciência humana, inclusive devido ao maior domínio dos seres humanos sobre a natureza com o desenvolvimento das forças produtivas, mas cria um novo obstáculo: a divisão da sociedade em classes e as subdivisões derivadas ou subordinadas a ela gera modos de vida distintos, interesses, valores, sentimentos, também distintos. Se nas sociedades simples havia uma cultura única e homogênea, se todos acreditavam no mesmo mito, nas sociedades de classes a divisão social promove formas de consciência distintas.
As representações ilusórias passam a ter como principal determinação não mais a dependência em relação à natureza e sim a divisão social do trabalho que expressa a existência de diferentes e antagônicas classes sociais e tudo que deriva disso. Inclusive, a divisão entre trabalho manual e intelectual faz emergir a figura do ideólogo, ou seja, do especialista no trabalho intelectual que produz um sistema de pensamento ilusório, o que Marx denominou ideologia. Assim, passa a existir não somente as representações ilusórias produzidas espontaneamente pelos indivíduos das variadas classes a partir de sua posição na divisão social do trabalho, interesses, valores, sentimentos, etc., mas também um tipo novo de representações ilusórias, sistemáticas e cujo produtores são os trabalhadores intelectuais. É nesse contexto histórico que nasce a ideologia (MARX e ENGELS, 1992).
O processo de desenvolvimento da história da humanidade foi, desde esse momento, marcado pela produção e reprodução de ilusões, seja sob uma ou outra forma, a forma simples ou a forma complexa. A forma complexa é o reino da ideologia, dos especialistas no trabalho intelectual que geram verdadeiros sistemas de pensamento, sob a forma de filosofia, teologia, ciência, etc. e a forma simples é o que posteriormente esse pensamento complexo denominou “senso comum”, “cultura popular”, “saber popular”, “conhecimento cotidiano”, “representações sociais”, entre outros nomes. E sobre essas formas de consciência se produziu interpretações e explicações, na maioria das vezes, ilusórias. Nesse caso, trata-se de ilusões produzidas sobre outras ilusões. Um verdadeiro mundo ilusório passa a reinar absoluto nas sociedades de classes e na sociedade capitalista. Sem dúvida, assim como a filosofia nascente proporcionou certos avanços no plano da consciência humana, os desdobramentos posteriores também, em muitos casos, também possibilitou outros avanços, mas que, no entanto, ainda não conseguiram uma superação da primazia da ilusão no pensamento humano. E além da inversão da realidade realizada de forma sistemática pela ideologia e pelas representações cotidianas ilusórias, há também um mundo de ilusões que realiza uma mediação da interpretação dessas mesmas ilusões.
O Conceito de Ideologia
Após essa contextualização histórica, é importante esclarecer os conceitos de ideologia e representações cotidianas ilusórias, ou imaginário, para podermos avançar na discussão sobre a relação entre estas duas formas de consciência. A palavra ideologia tem vários significados, sendo polissêmica. Ela pode ser compreendida como “ciência das ideias”, tal como a definiu Destutt de Tracy (CHAUÍ, 1992); como “visão de mundo” (GRAMSCI, 1989); entre outros significados. Essas são concepções ideológicas de ideologia. E por ideologia se entenda o conceito elaborado por Marx e mal interpretado (e muitas vezes interpretado ideologicamente) pelos seus intérpretes.
A ideologia, na concepção de Marx, é uma falsa consciência sistematizada, um sistema de pensamento ilusório. O caráter sistemático da ideologia é seu traço distintivo do imaginário, ou seja, das representações cotidianas ilusórias. Marx identifica o nascimento da ideologia com a divisão entre trabalho manual e intelectual, com o surgimento da figura do ideólogo e com a autonomização do mundo das ideias por parte dos pensadores, dos especialistas na produção cultural. A crítica que Marx efetiva aos ideólogos é aquela aos filósofos idealistas neohegelianos, que produziam verdadeiros sistemas a partir da obra de Hegel e contra ele. Marx não abordava a ilusão dos escravos, dos servos, dos operários, dos guerreiros, burocratas, etc. O conceito de ideologia, por conseguinte, remete aos seus produtores, os ideólogos e estes são os trabalhadores intelectuais (cientistas, filósofos, teólogos).
Se a ideologia é um sistema de pensamento ilusório, ela não é a única forma de manifestação de ilusões. Devido à divisão social do trabalho e tudo que deriva disso, bem como do processo de exploração e dominação que constitui tal divisão, há um processo constante de produção de ilusões. Tanto os indivíduos das classes exploradas quanto os indivíduos das classes dominantes produzem ilusões, mas sob forma não sistemática. Cabe aos ideólogos, ou, tal como em casos raros, a alguns indivíduos destas classes que conseguem, apesar da sua posição na divisão social do trabalho, tempo para criar sistemas de pensamento, a produção de uma falsa consciência sistematizada. Em Marx, essa oposição existe desde a sua crítica das ideologias filosóficas em A Ideologia Alemã (MARX e ENGELS, 1992) até sua crítica das ideologias científicas, a economia política, em O Capital (MARX, 1988). Marx afirmou que as “concepções cotidianas” dos agentes do processo de produção eram sistematizadas e transformadas em ciência pelos economistas políticos. Vamos retornar a isso mais adiante.
O conceito de ideologia remete, portanto, a um sistema de pensamento ilusório. Nesse sentido, as obras de Aristóteles, Platão, Hegel, Durkheim, Weber, Locke, Baumann, Giddens, entre milhares de outras, são produtos ideológicos. A ideologia, no entanto, sendo um sistema de pensamento, não só tem um conteúdo ilusório, ou seja, inverte a realidade, mas também possui uma forma. Trata-se de um sistema de pensamento e o seu caráter sistemático lhe fornece suas características formais. As ideologias são uma totalidade, um conjunto de ideias que se estruturam sistematicamente, constituindo construtos, falsos conceitos (VIANA, 2007), que são interrelacionados com diversos outros, produzindo assim um sistema construtal (VIANA, 2012; VIANA, 2007). As ideologias produzem um conjunto de construtos organizados sistematicamente Não será possível apontar aqui as diversas características da ideologia, mas o fundamental é entender que se trata de uma forma de consciência ilusória da realidade e sua distinção em relação às outras formas de consciência ilusória é o seu caráter sistemático, formando um conjunto organizado de construtos.
Representações Cotidianas e Imaginário
A ideologia surge com as sociedades de classes. É nesse contexto que surge diversos sistemas de pensamento (que vão ganhando maior sistematicidade com o decorrer do processo histórico e da acumulação de ideologias, e o platonismo e aristotelismo são algumas de suas primeiras formas de manifestação, já com um certo grau elevado de sistematização, principalmente no caso de Aristóteles). O mito é uma concepção da realidade relativamente organizada e coerente, mas que não se constitui ainda como um sistema. A ideologia é produção dos ideólogos, dos especialistas no trabalho intelectual. E aqueles que não são ideólogos? Eles desenvolvem sua consciência da realidade e o fazem sob diversas formas, com diversos conteúdos. Se a ideologia assume a forma de ciência, filosofia, teologia, as demais formas de consciência são o que denominamos representações cotidianas, o que outros chamam de “senso comum”, “conhecimento cotidiano”, “representações sociais”, etc.
A ideia de senso comum é produto da ideologia, ou, mais especificamente, da ciência (VIANA, 2008). A constituição da nova forma dominante de ideologia, a ciência, a partir da ascensão da burguesia e sua conquista do aparato estatal com as revoluções burguesas, em confronto com as ideias disseminadas na sociedade sob a forma de socialismo utópico, anarquismo, marxismo, produz a necessidade de separar ambas as formas de pensamento e a desqualificação da cultura popular, influenciadas por tais concepções. A razão disso é muito simples: o que surge espontaneamente são as representações cotidianas (“senso comum”) e é somente quando emerge uma forma de pensamento complexo é que a distinção se torna possível. O antecessor mais antigo dessa oposição entre pensamento complexo e representações cotidianas se encontra em Platão (1974), que realizou a distinção entre doxa e logos, opinião e razão, ou, mais precisamente, o mundo das opiniões, daqueles que confundem as sombras da realidade com ela mesma, e aqueles que enxergam as luzes, os que saíram do mundo das sombras e chegaram ao mundo das luzes, os filósofos.
A oposição platônica entre doxa e logos e, posteriormente, entre ciência e senso comum, expressam a autoilusão dos ideólogos cujo elemento fundamental em sua distinção é opor o verdadeiro e o falso. A filosofia ou a ciência seriam o saber verdadeiro, a doxa ou o senso comum seriam o saber falso. Com a mudança histórica e social, as interpretações do senso comum se alteram, alguns ideólogos até o colocam como sendo um saber verdadeiro (VIANA, 2008). Contudo, o que nos interessa aqui é o fato de que as representações cotidianas antecedem o pensamento complexo, as representações complexas da realidade. Mas quando estas últimas surgem, elas buscam se distinguir das representações cotidianas. Sem dúvida, ambas as formas de representação existem, porém, o que diferencia uma da outra não é o caráter verdadeiro de uma e o caráter falso de outra. As ideologias são, por essência, falsas. As representações cotidianas, no entanto, podem ser falsas ou verdadeiras, ou como diz Marx, “reais ou ilusórias” (MARX e ENGELS, 1992). No entanto, afirmar que todas as ideologias são falsas não quer dizer que todas as representações complexas sejam falsas. A ideologia é um pensamento complexo, mas além da ideologia existe a teoria (VIANA, 2007; VIANA, 2012). A teoria, ao contrário da ideologia, é uma expressão da realidade, consciência correta da realidade, para usar expressão do jovem Lukács (1989). Essa concepção de teoria como expressão da realidade em contraposição à ideologia como falsa consciência tem suas origens em Hegel (GOMBIM, 1972) e se manifesta em Marx[1] e posteriormente em Korsch (1977), sem, no entanto, promover uma elaboração mais estruturada sobre isso.
Marx não elaborou nenhuma teoria das diversas formas de representações de modo aprofundado. Mas fica claro em A Ideologia Alemã e em O Capital, que ele concebia a existência de um pensamento complexo, a ideologia e a teoria, e formas de pensamento não complexas. O pensamento complexo pode ser verdadeiro (teoria ou outro termo para expressar isso, que varia em Marx) ou falso (ideologia), assim como as representações podem ser “reais” ou “ilusórias” (MARX e ENGELS, 1992). Em O Capital ele coloca que a ideologia dos economistas políticos significa, na verdade, a sistematização das representações cotidianas (ele usa a expressão “concepções cotidianas”) dos agentes do processo de produção (capitalistas, gerentes, proletários). No entanto, Marx dedicou análises mais aprofundadas às ideologias, contra a qual surge a teoria, ou seja, o marxismo, e à realidade concreta e não aprofundou suas reflexões sobre as representações cotidianas.
As representações cotidianas podem ser definidas como o conjunto das ideias ou concepções que as pessoas produzem na sua vida cotidiana, reproduzindo sua estrutura: a simplicidade, regularidade e naturalidade (VIANA, 2008). Aqui nos interessa o seu aspecto que lhe distingue do pensamento complexo: a simplicidade. As representações cotidianas são produzidas por todos aqueles que não são especialistas no trabalho intelectual e por estes também quando se trata de questões fora de sua formação especializada[2] ou no conjunto do seu pensamento antes de tornarem-se trabalhadores intelectuais especializados. Elas fornecem explicações simples da realidade. Não possuem a complexidade, a coerência e sistematização (ou articulação, no caso da teoria) do pensamento complexo. Seu conteúdo concreto, no entanto, ao contrário do que algumas concepções ideológicas afirmam, pode ser falso ou verdadeiro e não apenas falso ou apenas verdadeiro (VIANA, 2008). Obviamente que seu conteúdo verdadeiro possui limites, pois falta-lhe estruturação e aprofundamento. As representações cotidianas verdadeiras são mais raras, estão geralmente ligadas a ascensão das lutas das classes exploradas e muitas vezes se mesclam com outras formas de pensamento. Elas não conseguem possuir a estruturação, articulação, aprofundamento e complexidade da teoria.
Contudo, o nosso interesse fundamental não são as representações cotidianas em geral e sim o imaginário, as representações cotidianas falsas, ilusórias. Desta forma, o conceito de imaginário expressa as representações cotidianas ilusórias, ou seja, carrega em si todas as características das representações cotidianas e tem como elemento distintivo o seu caráter ilusório e por isso se aproxima da ideologia. O imaginário compartilha com a ideologia o seu conteúdo ilusório, embora se distinga dela por sua simplicidade em comparação com a complexidade do pensamento ideológico. O seu conteúdo falso é mais facilmente criticado e percebido do que no caso das ideologias. O imaginário e a ideologia são formas de consciência ilusória, naturalizam o que é histórico e social, invertem a realidade. No entanto, o que temos aqui são semelhanças e diferenças entre imaginário e ideologia. É importante analisar as relações concretas entre ambas as formas de consciência ilusória, pois na realidade concreta elas convivem e se influenciam reciprocamente. A partir de agora analisaremos tal relação, que pode ocorrer sob duas formas principais, a saber: a passagem do imaginário para a ideologia e o inverso, a passagem da ideologia para o imaginário. Vamos abordar as duas formas, mas focalizaremos o último caso, já que é este o menos tratado geralmente.
Do Simples ao Complexo: A Produção de Ideologia
A produção da ideologia tem como ponto de partida as relações sociais concretas e as representações cotidianas ilusórias produzidas na sociedade, bem como os valores, sentimentos, interesses, das classes sociais existentes. O imaginário, portanto, é uma das fontes das ideologias. Marx expressou isso muito bem ao dizer que os economistas sistematizam as concepções cotidianas dos agentes do processo de produção, dando-lhe o caráter científico, sistemático. A transformação do imaginário em ideologia pressupõe aqueles que irão realizar tal processo, os ideólogos, bem como o processo de sistematização das representações cotidianas.
Isso é mais compreensível ao recordamos um fenômeno determinado e suas interpretações. Se os indivíduos observam o aparecimento do sol e seu desaparecimento no horizonte, então pode criar a representação ilusória de que ele se move. Se isso é sistematizado, torna-se ideologia. Aristóteles foi o primeiro a dar esse passo e Cláudius Ptolomeu aprofundou e deu forma ideológica para essa concepção. Se já na Grécia antiga existiam aqueles que discordavam, como Aristarco de Samos, a concepção dominante era a que povoava o imaginário e, posteriormente, as ideologias dominantes, até chegar a Galileu e Bruno, quando foram refutadas de forma mais estruturada e abriu caminho para sua superação. Contudo, essas duas posições não surgiram apenas da passagem das representações cotidianas para o pensamento complexo, mas também dos interesses, valores, processos sociais existentes em sua época.
O processo de produção da ideologia, no entanto, emerge a partir de uma fonte de inspiração que lhe é anterior e, por conseguinte, o imaginário é uma de suas determinações. Sem dúvida, numa época dominada pelas ideologias, a constituição de novas ideologias se faz a partir do desenvolvimento, reformulação, mescla, das já existentes, mas para o caso do ideólogo como indivíduo, ele primeiro se formou no mundo das representações cotidianas, do imaginário que é dominante, para inclusive se adequar, convencer, escolher, determinada ideologia anterior para produzir a sua própria[3]. A produção de ideologias, portanto, é marcada por um processo progressivo de passagem do imaginário, as ilusões simplistas, para o pensamento complexo do mundo ideológico, as ilusões sistematizadas.
Do Complexo ao Simples: A Produção de Ideologemas
O processo de constituição do imaginário é distinto. Sem dúvida, as representações cotidianas, ilusórias ou verdadeiras, antecedem o pensamento complexo, tanto na história da humanidade quanto na história dos indivíduos. Ninguém nasce filósofo, cientista ou teólogo. Contudo, em certo momento da história da humanidade, emerge a ideologia e essa para a influenciar as representações cotidianas, de forma mais ou menos intensa, abarcando um número maior ou menor de pessoas, dependendo da época e sociedade. A questão é que, com a sociedade capitalista, esse processo adquire contornos específicos, por diversos motivos, tal como a emergência da ciência enquanto forma dominante de ideologia dominante (superando a supremacia da filosofia e da teologia, que sofrem um processo de marginalização ou subordinação à forma dominante) e sua expansão para domínios especializados e conjunto de atividades sociais, popularização, processo de racionalização e burocratização da sociedade como um todo. É neste contexto que vamos abordar a questão da passagem das ilusões complexificadas, da ideologia, para as ilusões simplistas.
Marx não abordou esse processo e poucos foram os que se atentaram para isso. Sem dúvida, isso vai ocorrer com maior incidência num certo momento histórico, que é em determinado nível de desenvolvimento da sociedade capitalista. Esse processo possui diversas determinações. Sem dúvida, a própria consolidação da ciência é uma precondição para isso. O seu domínio temático, ou seja, os temas e fenômenos que abarca também são fundamentais. Dentre as ciências, as que mais exercem influência na população são as humanas, especialmente a psicologia, que apresenta uma explicação dos comportamentos individuais numa sociedade individualista. Em menor grau, as demais ciências humanas, tal como a geografia, sociologia, ciência política, etc., influenciam as representações cotidianas na sociedade capitalista. Isso começa no século 19, especialmente com uma certa influência da psicologia, sociologia, e de outras formas de pensamento complexo, como o marxismo, a filosofia, etc. Entre as ciências naturais, a biologia, especialmente a ideologia darwinista, acaba tendo um maior impacto na sociedade, tanto por causa do domínio temático quanto por seu caráter político que se opunha ao pensamento religioso e, ainda, por sua influência nas ciências humanas nascentes.
Essa influência aumenta após a Segunda Guerra Mundial, especialmente com o crescimento do mercado editorial, das universidades, dos meios oligopolistas de comunicação em geral. É nesse contexto que ocorre a primeira reflexão mais sistematizada sobre tal fenômeno, com o estudo de Serge Moscovici (1977) sobre “as representações sociais da psicanálise”. A escolha da psicanálise não foi gratuita, pois a sua presença nos meios oligopolistas de comunicação e sua popularização era evidente. Contudo, a análise de Moscovici apresenta alguns elementos interessantes, mas em sua totalidade é insuficiente. De qualquer forma, foi um primeiro passo para a reflexão sobre a relação entre ideologia e imaginário no sentido da assimilação do pensamento complexo pelas representações cotidianas.
Uma característica desse processo é a simplificação que tal assimilação promove. Essa simplificação não significa apenas tornar simples, pois geralmente também deforma o pensamento complexo. Assim como a ideia de Darwin foi deformada no sentido de se acreditar que ele afirmou que o homem descende do macaco, também as ideias de Freud e dos psicanalistas (que inclusive não é diferenciado nas representações cotidianas, que, na maioria dos casos, desconhecem as diversas e às vezes antagônicas concepções psicanalíticas) são simplificadas e deformadas[4].
O processo de assimilação das ideologias pelo imaginário é realizado geralmente sob a forma de produção de ideologemas. A palavra “ideologema” já foi utilizada em sentidos diferentes por Bakhtin (1990) e Kristeva (1978), apesar de algumas semelhanças, e não é nosso interesse aqui discuti-los. Entendemos ideologema sob forma distinta, com um novo significado. Um ideologema é um fragmento de uma ideologia, seja um construto (falso conceito) isolado, seja uma parte mais ampla ou uma síntese simplificadora de uma determinada concepção ideológica ou, ainda, a redução de uma ideologia a um chavão ou uma ideia-chave.
Em outras palavras, um ideologema é uma mutação formal de uma ideologia no sentido de promover sua simplificação e redução, transformando um fragmento da mesma em mensagem ou elemento principal de um discurso, texto, mensagem, etc. Esse fragmento nunca é uma ideologia em sua totalidade, pois, se assim fosse, teria que reproduzir o conjunto de ideias que a constitui e seria complexo, o que não só pressupõe compreensão da mesma (e esse domínio é raro em não especialistas), como também espaço e condições para sua reprodução.
Dificilmente em uma história em quadrinhos, num filme, numa coluna de jornal, numa poesia, para citar alguns poucos exemplos, é possível reproduzir uma ideologia sem realizar essa processo de simplificação que gera o ideologema. Se até mesmo os “ideólogos passivos” (meros reprodutores) possuem dificuldades em resumir em obras de divulgação científica ou em aulas as ideologias sem provocar uma forte simplificação e em grande parte das vezes sua deformação, então isso é mais difícil e comum no caso daqueles que trabalham com as representações cotidianas.
Assim, em um filme se pode repassar a concepção elitista de arte, reproduzindo determinada ideologia, mas sob a forma de ideologema. A compreensão desse processo fica mais fácil com um exemplo concreto de manifestação ideologêmica no cinema, o nosso próximo passo.
"Teoria Mortal": O Ideologema que Mata

O filme "Teoria Mortal" (Kill Theory, Chris Moore, EUA, 2009) tem como ponto de partida um ideologema (ou uma "teoria", tal como é colocado no título do filme). A importância do ideologema no referido filme faz dele um excelente caso para analisar a reprodução fílmica de ideologemas, bem como para outros tipos de ficção. Geralmente, os ideologemas estão embutidos no universo ficcional e não são facilmente perceptíveis, assim como os valores, sentimentos, inconsciente, etc. Por isso o filme "Teoria Mortal" acaba assumindo grande importância ao tomar como ponto de partida e motivação do psicopata um ideologema. Obviamente, é apenas a motivação consciente do psicopata, pois são seus problemas psíquicos que estão na origem do ato, sendo o ideologema apenas uma racionalização, no sentido freudiano do termo, e autojustificativa.
Qual ideologema é exposto no filme? O filme inicia com a história do assassino. Ele, em suas conversas com o psicólogo, trava um debate sobre o que o levou à prisão. Ele escalava uma montanha com amigos e, em certa altura, teve que decidir entre salvar sua vida cortando a corda que o ligava aos demais, o que os faria cair e morrer, ou continuar e ser solidário, e provavelmente morrer junto com eles. Após realizar este ato e ser preso, ele afirma que todos fazem isso. Ao ser libertado, o psicólogo pergunta se ele ainda acredita nisso e a resposta é que não.
A cena muda radicalmente, passando para jovens que foram para uma casa de verão para comemorar o fato de terem terminado a graduação. Porém, logo aparece o assassino, que busca colocá-los na mesma situação que ele teve para comprovar sua tese (ideologema) de que todos os seres humanos lutam pela sobrevivência e, seguindo seus instintos, podem matar até os amigos. A casa é totalmente isolada e não havia comunicação e ele exige que eles matem uns aos outros e o sobrevivente que restar até as 06 horas da manhã, sairá vivo, mas, se nesse horário ainda estiver mais de um vivo, ele matará a todos. A trama do filme gira em torno disso, mostrando as tentativas de fuga, conflitos, etc.
O ideologema em questão é fragmento comum de várias ideologias que apontam para o determinismo biológico, mas tem como base a ideologia darwinista e sua tese da luta pela sobrevivência e a sobrevivência dos mais aptos[5]. A competição e a luta intraespécie é naturalizada e reforçada por essa ideologia e pela sua vulgarização e popularização, na qual determinados ideologemas podem ser identificados em frases, tal como "luta pela vida", "lei do mais forte", etc.
A princípio, o ideologema parece ser confirmado, pois os grandes amigos, que no início da noite festejavam e o filho do dono da casa afirmou que amava a todos, logo entram em conflito, e alguns buscam se salvar independentemente dos demais, até que, no final, começam a entrar no jogo do assassino e tentam matar os amigos para escapar da morte. Porém, o final do filme acaba sendo marcado por um ato de solidariedade, o que refuta o ideologema. Nesse sentido, o filme não é ideologêmico, pois realiza a refutação de ideologema. E ainda mostra que um ideologema, tal como as ideologias, é mobilizador, produz ação, interfere na realidade[6].
Considerações finais
A sociedade capitalista é pródiga em produzir ilusões. O capitalismo é a sociedade das ilusões. Claro que a racionalização e a pretensa crença nos avanços da ciência e da tecnologia, entre outros aspectos, produzem uma ilusão de superação das ilusões. A ilusão sobre as ilusões é a mais problemática das ilusões. Obviamente que o esforço intelectual, a pesquisa, a reflexão, são importantes para tal superação, mas insuficientes, se não partir de uma perspectiva que tenha como necessidade, valor, objetivo, a superação das ilusões e, principalmente, se as relações sociais que estão na base da sociedade das ilusões for superada. É por isso que Marx afirmou que “a exigência de superar as ilusões sobre sua condição é a exigência de superar uma condição que necessita de ilusões” (MARX, 1968). 
Abordamos as duas principais formas de ilusão na sociedade contemporânea, o imaginário e a ideologia, bem como a transformação de uma em outra. Em obra anterior já havíamos colocado uma discussão sobre essa questão (VIANA, 2008), mas sentimos a necessidade de voltar ao assunto para esclarecer alguns aspectos que não estavam desenvolvidos nem percebidos naquele momento, tal como a existência dos ideologemas e este foi o foco principal de nossa análise. Para esclarecer melhor o significado do conceito de ideologema, partimos de um exemplo de um filme que manifestou um determinado ideologema. No caso, escolhemos um filme que manifestava um ideologema sem, no entanto, afirmá-lo. Isso mostra uma das possibilidades de manifestação de ideologemas na produção artística, pois ela pode ser a posição expressa daqueles que produzem uma determinada obra artística ou pode ser apresentada para ser refutada. O mais comum, contudo, é que os ideologemas sejam o ponto de vista dos produtores de cultura e obras artísticas, pois está de acordo com as representações cotidianas dominantes, as ideias dominantes.
Enfim, o presente texto abre um espaço para uma discussão que deve ser aprofundada e que apenas lança uma reflexão inicial que deve ter aprofundamentos e desdobramentos, visando ampliar a compreensão do imaginário, das ideologias e dos ideologemas.
Referências


BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: A teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 1990.

CHAUÍ, Marilena. O Que é Ideologia. 32ª Edição, São Paulo: Brasiliense, 1992.

GOMBIM, Richard. As Origens do Esquerdismo. Porto: Dom Quixote, 1972.

GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. 7ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.

KRISTEVA, Júlia. Semiótica do Romance. 2ª edição, Lisboa: Arcádia, 1978.

LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. 2ª Edição, Rio de Janeiro, Elfos, 1989.

MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2a edição, São Paulo: Global, 1989.

MARX, Karl. O Capital. 5 Vols. 3ª Edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Hucitec, 1992.

MARX, Karl. Critica de la Filosofia del Derecho de Hegel. Notas Aclaratorias de Rodolfo Mondolfo. Buenos Aires: Ediciones Nuevas, 1968.

MOSCOVICI, Serge. A Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

PLATÃO. A República. São Paulo: Hemus, 1974.

PLATÃO. Protágoras. Porto Alegre: Globo, 1977.

VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios Sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

VIANA, Nildo. Cérebro e Ideologia. Uma Crítica ao Determinismo Cerebral. Jundiaí: Paco Editorial, 2010.

VIANA, Nildo. Darwin Nu. Revista Espaço Acadêmico. num. 95, Abril de 2009. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/095/95esp_viana.htm acessado em 30 de abril de 2009.

VIANA, Nildo. Mito e Ideologia. Cronos. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/UFRN, Vol. 12, num. 01, jan./jun. 2011. Disponível em: http://www.periodicos.ufrn.br/index.php/cronos/article/view/2122/pdf acessado em: 25 de abril de 2013.

VIANA, Nildo. O Que é Marxismo? Florianópolis: Bookess, 2012.

VIANA, Nildo. Senso Comum, Representações Sociais e Representações Cotidianas. Bauru: Edusc, 2008.

Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Imaginário e Ideologia. As Ilusões nas Representações Cotidianas e Pensamento Complexo. Revista Espaço Livre, Vol. 08, num. 15, jan./jun. de 2013.



*Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás e Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília.

[1] Marx, ao realizar a crítica das ideologias, produz um pensamento complexo sobre a realidade e a isto forneceu alguns nomes, como “socialismo científico” (utilizado poucas vezes e apenas para se contrapor ao socialismo utópico), “ciência” (usando a palavra no sentido hegeliano e não no sentido habitual e dominante, nem no que usamos aqui) e “teoria”. Em alguns momentos Marx explicita que a ciência é uma ideologia. Essa frase, por exemplo, deixa entrever o caráter ideológico da ciência e a oposição entre ela e a teoria: “assim como os economistas são os representantes científicos da classe burguesa, os socialistas e os comunistas são os teóricos da classe proletária (MARX, 1989, p. 118).”

[2] Uma análise mais profunda das representações cotidianas não podem ser aqui desenvolvida e podem ser vistas na obra Senso Comum, Representações Sociais e Representações Cotidianas (VIANA, 2008).

[3]Claro que aqui enfatizamos o que Marx denominou “ideólogos ativos”, os produtores de ideologias, e não os “ideólogos passivos”, consumidores e reprodutores (MARX e ENGELS, 1992), embora também se aplique a estes quando eles “escolhem” entre as ideologias existentes.

[4] Sem dúvida, esse processo também ocorre com o marxismo, ou seja, com a teoria. A apropriação do marxismo pelas representações cotidianas é um processo de simplificação e deformação, o que é reforçado pela produção ideológica que tem o interesse em fazer isso para assim refutá-lo mais facilmente. Contudo, esta relação será abordada em outro momento, dedicado ao tratamento da produção de teoremas e da deformação do marxismo por sua simplificação.

[5] Sobre darwinismo, confira Viana (2009).

[6] Em outra oportunidade apresentamos uma análise mais desenvolvida sobre caráter mobilizador da ideologia (VIANA, 2010), o que também vale para o ideologema e através dele ela se torna ainda mais mobilizadora.

MAO TSE-TUNG: DIALÉTICA OU ESTRATÉGIA DO PCC?

MAO TSE-TUNG: DIALÉTICA OU ESTRATÉGIA DO PCC?

Nildo Viana


O pensamento de Mao Tse-Tung, em especial seus textos Sobre a Contradição e Sobre a Prática, é saudado por muitos como “a mais importante contribuição teórica ao marxismo-leninismo até o momento. São duas obras fundamentais da História da Filosofia. E da História” (Moderno, 1979, p. 9). De onde surgiu este dogmatismo? Na verdade, a própria obra de Mao Tse-Tung reflete o doutrinarismo. O doutrinarismo de  Mao Tse-Tung se expressa, por exemplo, na sua linguagem. Ela possui algumas características tal como a) o argumento de autoridade; b) normativismo: c) utilização recorrente de adjetivos pejorativos; d) apelação para um dogma ao invés de exame e fundamentação das afirmações; e) afirmações categóricas a respeito da sua interpretação de uma concepção de mundo ou dos que dizem concordarem com ela; f) repetição; g) reificação.
Antes de analisar sua “dialética”, faremos uma análise de alguns aspectos do seu discurso de Mao Tse-Tung, no que diz respeito a esta questão, para fundamentar a afirmação acima colocada. O argumento de autoridade é utilizado por Mao Tse-Tung não só para confirmar idéias particulares, mas também justificar a totalidade do discurso. A citação de um autor não é realizada para se dizer que ele pensa desta ou daquela forma, seja para criticar ou para concordar, mas sim para avalizar o que foi ou será dito por Mao Tse-Tung, deixando entrever que se fulano disse, está dito, e é verdade. Vejamos alguns exemplos:
“Diz Lênin: ‘no sentido adequado, a dialética é o estudo da contradição na essência mesma das coisas” (p. 17)[1].
“Tratando a questão do emprego da dialética no estudo dos fenômenos objetivos, Marx e Engels, também Lênin e Stálin, sempre indicaram que é preciso se precaver de todo subjetivismo e de toda arbitrariedade...” (p. 40).
“A análise de Stálin é para nós um modelo do conhecimento do caráter específico e da universalidade da contradição, assim como de sua recíproca ligação” (p. 40).
Estas afirmações não são analisadas, aprofundadas ou fundamentadas. São tidas como algo “dado”, algo que não tem que ser posto em questão. É como se bastasse a afirmação de uma autoridade para se comprovar a veracidade da afirmação, ou seja, se Marx, Engels, Lênin e Stálin, os “quatro clássicos do marxismo”, disseram, então é verdade. Não se coloca em questão a comparação destas afirmações com a realidade concreta, pois tal se tornou desnecessário. Também não se coloca em evidência a diferença entre as autoridades citadas, pois a interpretação que a última autoridade deu é verdadeira e, portanto, corresponde ao que todos os outros disseram.
O normativismo pode ser demonstrado em algumas afirmações:
“Os comunistas chineses devem assimilar esse método...” (p. 03).
Devemos sempre nos lembrar das palavras de Lênin...” (p. 40).
Tal é a lei geral e imprescindível do universo” (p. 43).
Tal é o caminho já percorrido pela União Soviética, e que todos os outros países seguirão inevitavelmente” (p. 45).
Devemos reconhecer a ação de retorno do espiritual sobre o material” (p. 47).
Tal é o processo de conhecimento que todo homem segue dentro da realidade...” (p. 73).
“Se se quer conhecer a teoria e os métodos da revolução é preciso tomar parte da revolução” (p. 73).
“É inevitável que tais pessoas tropecem...” (p. 76).
“O marxismo-leninismo é uma ciência que todos os revolucionários devem estudar e artistas e escritores não são exceção à regra” (p. 95).
“Trabalhar para os líderes é exatamente trabalhar pelas massas, porque é somente por intermédio deles que se as pode educar e orientar” (p. 106).
Muitas outras citações poderiam se acrescentadas, mas seria improfícuo. O número excessivamente elevado de vezes que Mao repete as expressões “devemos”, “é preciso”, “tal é”, etc., demonstra o seu normativismo, bastante próximo ao de Stálin. Sem dúvida, quando se trata de uma análise direta das lutas sociais por parte de alguém engajado, o uso destas expressões é normal. Ocorre, porém, que em certos autores ela se torna exagerada, tal como no caso de Mao. Além disto, os textos citados de Mao não focalizavam as lutas sociais e sim a “contradição”, a “prática”, “a arte e a literatura”.
A utilização recorrente de adjetivos pejorativos é outra característica dos escritos de Mao Tse-Tung. Constantemente, ele se refere aos “dogmáticos”, aos “oportunistas de direita e de esquerda”, entre outros, sem nomeá-los concretamente (quem são estes dogmáticos?) para que o leitor possa conferir por si mesmo e ver se a posição que Mao diz ser deles o é realmente e como eles fundamentam suas posições. O método de rotulação, inaugurado por Lênin, significa dizer que alguém é dogmático, mas não fundamentar tal afirmação (ele é dogmático em que? Onde? Como?). Isto sem falar em expressões menos cavalheirescas, do tipo, “ridículo”, mas que, sem dúvida, possui uma eficácia política junto aos incautos. Tal procedimento é mais típico e usual em Lênin, mas Mao, às vezes, escorrega pelo caminho de seu mestre.
 A apelação para um dogma significa que existe um ponto de partida inquestionado e inquestionável, ou seja, um “absoluto” que nunca é posto em questão, e daí se deduz o resto. O dogma maoísta é a chamada “lei da contradição”, que mais à frente refutaremos. Tudo é contraditório, a lei da contradição está em tudo. Mao até tenta explicar o que é a contradição, mas nunca questiona porque ela existe e de onde ela vem. Da mesma forma, um deísta nunca diz por que deus existe e de onde ele veio. Neste sentido, as idéias de Mao Tse-Tung são dogmáticas e uma das características do maoísmo é o dogmatismo.
O doutrinarismo de Mao Tse-Tung também se revela nas suas afirmações categóricas de sua interpretação de uma concepção de mundo e dos que dizem representá-la. A sua concepção de mundo é isto e aquilo, assim como as demais concepções, e tais afirmações nem sempre são fundamentadas.
Outro elemento que comprova o doutrinarismo de Mao é a repetição excessiva. Na verdade, Mao busca repetidamente afirmar a mesma coisa do principio ao fim de seu texto. Parece mais uma lição de tabuada, onde o fundamental é decorar através do “eterno retorno do mesmo”, ou seja, da repetição.
Um último elemento que demonstra o doutrinarismo dogmático de Mao Tse-Tung se encontra na reificação da dialética. A dialética (ou sua “lei da contradição”) aparece como algo autônomo e independente do ser humano, o seu criador. A dialética está na natureza, no universo, em tudo. Ela possui leis e manifesta a essência do universo. Os seres humanos não a produziram, pois ela existe na natureza. Desta forma, a dialética deixa de ser um método para se tornar um deus que dirige a natureza, a sociedade, etc., ou, em outras palavras, um fetiche.
Mas a obra de Mao Tse-Tung não é doutrinária por qualquer razão. Existe um motivo para que Mao transforme a dialética num dogma. Qual é este motivo? Ao respondermos a esta questão, responderemos à questão da origem da concepção maoísta da dialética.
Para Mao Tse-Tung, “a lei da contradição inerente às coisas, aos fenômenos, ou a lei da unidade dos contrários, é a lei fundamental da dialética” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 17). Mao opõe esta concepção de mundo à concepção metafísica, que considera o mundo como algo imutável ou, quando reconhece a mudança, cai no “evolucionismo vulgar”, que considera a mudança como resultado de causas externas e se caracterizando por um mero aumento ou diminuição quantitativos. Mao Tse-Tung não cita nenhum pensador que defenda tal posição e assim observamos uma generalização abstrata e metafísica que precisa ser explicada. Voltaremos a isto mais adiante.
Na verdade, segundo Mao, as duas concepções de mundo possuem uma característica fundamental: a metafísica vê imutabilidade em tudo e a dialética vê contradição em tudo. Seria difícil descobrir uma contradição numa pedra ou a imutabilidade na natureza, ou seja, são duas concepções metafísicas, pois tanto uma quanto a outra se apresentam como universais e presentes em tudo, sem levar em consideração a especificidade de cada ser e de sua posição no universo.
A metafísica vê a mudança como resultado de causas externas e a dialética vê a mudança como resultado de suas contradições internas Mao Tse-Tung acrescenta:
“A dialética materialista exclui as causas externas? De forma alguma. Ela considera que as causas externas constituem a circunstância das mudanças, que as causas internas disso são a base, que as causas externas operam por intermédio das causas internas. O ovo que recebeu uma quantidade apropriada de calor se transforma em pinto, mas o calor não pode transformar uma pedra em pinto por que suas bases são diferentes” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 17).
O grande problema de Mao se encontra no fato de erigir as “contradições internas” em principio universal de mudança em todos os seres. O exemplo do ovo e da pedra não é muito convincente, pois, se trocarmos a causa externa de calor por frio, podemos dizer que o frio congela tanto o ovo quanto a pedra. Tal exemplo de Mao pode demonstrar apenas que uma mesma ação externa pode provocar efeitos diferentes em seres diferentes, mas não que a “causa interna” é a base da mudança e que isto se aplica a todos os seres.
A contradição está em tudo e acompanha o processo de desenvolvimento do início ao fim. Essa contradição é, segundo Mao, objetiva, está no mundo, nas coisas. Segundo ele,
“Convém considerar qualquer diferença em nossos conceitos como o reflexo de contradições objetivas. A reflexão das contradições objetivas no pensamento subjetivo forma o movimento contraditório dos conceitos, estimula o desenvolvimento das idéias e resolve ininterruptamente os problemas que se colocam ao pensamento humano” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 25).
Tal concepção, sem dúvida, é uma retomada da ideologia leninista do reflexo. Trata-se de uma consciência coisificada. O mundo passa a ser tomada como coisas objetivas, exteriores e independentes dos seres humanos. A consciência humana é, desta forma, mero reflexo da “realidade objetiva” e, se existe divergências entre os seres humanos na forma de conceber esta realidade, isto é fruto do caráter contraditório desta. A consciência não seria ativa e sim passiva.
Mao Tse-Tung afirma, contra Deborine e sua escola, que a contradição está presente no processo de desenvolvimento do início ao fim. Deborine diz que no início não existe contradição, mas apenas diferenças. Para Mao, isto é desconhecer a existência de contradições específicas em objetos específicos, pois cada tipo de formação social, cada forma de pensamento, possui suas contradições específicas e também uma essência específica.
Mao demonstra estar submetido à ideologia burguesa da divisão intelectual do trabalho: “a delimitação das diversas ciências fundamentam-se precisamente sobre as contradições específicas contidas nos respectivos objetos que estudam” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 28). De onde surge tal concordância entre Mao e a ideologia burguesa? Surge da ausência das categorias de totalidade e determinação fundamental, fundamentais para o método dialético (Viana, 2007a), pois com esta ausência torna-se possível “isolar” aspectos da realidade e, tal como “faz” aqueles que o próprio Mao criticou, os “metafísicos”, justificar a existência de diferentes ciências para analisar diferentes aspectos da realidade.
Para Mao Tse-Tung, o conhecimento humano parte do específico ao geral e do geral ao específico[2]. Segundo ele, é preciso estudar não só as contradições específicas de um fenômeno como também como elas se manifestam em cada etapa do seu desenvolvimento. Toda forma de movimento é “qualitativamente” diferente. Para Mao, as contradições qualitativamente diferentes só podem ser resolvidas por métodos qualitativamente diferentes. Mao Tse-Tung vai mais longe ainda:
“Dentro de um processo de complexo desenvolvimento de uma coisa ou de um fenômeno, existe toda uma série de contradições: uma delas é necessariamente a contradição fundamental, cuja existência e desenvolvimento determinam a existência e o desenvolvimento de outras contradições, ou agem sobre elas” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 43).
Assim, a contradição fundamental se transforma em secundária e vice-versa. Mas entre os contrários não existe apenas luta, pois também há unidade. Afinal de contas, segundo Mao, os aspectos contraditórios não podem existir um sem ou outro. Um é condição de existência de outro. Sem vida não há morte e vice-versa. Além disso, um aspecto tende a se tornar o seu contrário mudando sua posição. Isto é o que ocorre na relação burguesia/proletariado, onde o primeiro assume a posição de classe dominante e o segundo de classe dominada e após a revolução tal situação se inverte, pois o proletariado passa a ser classe dominante e a burguesia classe dominada[3]. Tal alteração de posição, no entanto, só ocorre sob determinadas condições. Desta forma, existe a guerra e a pedra e é só dentro dessas condições marcadas pela identidade que pode haver esta alteração.
Todo fenômeno possui, em seu movimento, dois estados: um de repouso relativo e outro de mudança evidente. No primeiro caso, há apenas mudanças quantitativas. No segundo caso, ao contrário, com o acúmulo das mudanças quantitativas oriundas do primeiro caso, realiza-se uma mudança qualitativa.
Esta idéia de que mudanças quantitativas se acumulam até provocar uma mudança qualitativa não tem a menor fundamentação. No plano social, isto não ocorre necessariamente. Além disso, seria necessário explicitar o que se entende por “qualidade”, “qualitativo”, “salto qualitativo”, etc.
O próximo passo de Mao Tse-Tung é apresentar a sua conhecida distinção entre contradição antagônica e contradição não-antagônica. Para Mao, o antagonismo não é a única forma de luta dos contrários. Geralmente, o antagonismo leva a uma transformação qualitativa, uma ruptura, uma revolução. Segundo as próprias palavras de Mao Tse-Tung:
“As contradições e a luta são universais, absolutas, mas os métodos para resolvê-las, vale dizer, as formas de luta, variam segundo o caráter destas contradições: certas contradições trazem o caráter de um antagonismo declarado, outras não. Seguindo o desenvolvimento concreto das coisas e dos fenômenos certas contradições originariamente não antagonistas evoluem para contradições antagonistas, ao passo que outras originariamente antagonistas evoluem para contradições não antagonistas” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 56). 
De onde vem o conhecimento humano? Segundo Mao, vem da prática. O conhecimento resulta da prática social. Para Mao, a atividade de produção dos homens é a própria base de sua atividade prática e ela determina todas as outras atividades. Esta engloba, além das atividades de produção, a luta de classes, a vida política, as atividades científicas e artísticas. Dentre estas outras atividades, a luta de classes realiza uma enorme influência sobre o processo de desenvolvimento do “conhecimento humano”. Foi somente com o surgimento do proletariado e da grande indústria é “que os homens puderam atingir uma completa compreensão histórica do desenvolvimento da sociedade e transforma esse conhecimento em uma ciência, a ciência marxista” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 67).
A prática social é o critério de verdade. Para os homens compreenderem o mundo, devem fazer com que suas idéias correspondam às “leis do mundo exterior objetivo”. Mao Tse-Tung coloca que a teoria “marxista” do conhecimento possui duas características particulares: o seu caráter de classe, serve ao proletariado, o seu caráter prático, pois a teoria depende da prática, se fundamenta nela e serve a ela.
O processo de conhecimento atravessa três etapas: a) a etapa da percepção sensível, onde se vê apenas os dados aparentes das coisas, os seus aspectos isolados e sua conexão externa, nesta etapa os homens não podem elaborar conceitos e nem podem tirar conclusões lógicas; b) a etapa do conhecimento racional, onde há uma mudança qualitativa, pois aí se atinge o conceito e as conclusões lógicas; e c) o conhecimento racional volta-se para a prática revolucionária para dirigi-la.
O conhecimento sensível e o conhecimento racional estão unidos sobre a base da prática. É preciso, para haver um conhecimento da sociedade capitalista, que tal sociedade exista, pois caso contrário tal conhecimento é impossível por não haver uma prática correspondente. Segundo Mao,
“Para conhecer diretamente tal fenômeno ou tal conjunto de fenômenos, é preciso participar pessoalmente na luta prática que visa a transformar a realidade, em transformar tal fenômeno ou tal conjunto de fenômenos, porque esse é o único meio de entrar em contato com eles enquanto aparências; da mesma maneira, esse é o único meio de descobrir a essência daquele fenômeno ou daquele conjunto de fenômenos e compreendê-los” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 71-72).
Os conhecimentos autênticos, segundo ele, surgem da experiência imediata. entretanto, a maior parte dos conhecimentos adquiridos pelos homens possui como fonte experiências indiretas, tal como no caso de países estrangeiros ou dos séculos passados. Mao afirma que
“Essa é a razão pela qual os conhecimentos de um homem compõe-se unicamente de duas partes: os dados da experiência direta e os dados da experiência indireta. E aquilo que para mim é experiência indireta continua a ser para outros experiência direta” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 73).
Esta experiência direta dos outros produz um conhecimento que, se respondeu a exigência de “abstração científica”, reflete cientificamente a realidade objetiva e por isto é equivalente, para nós, a experiência direta. Poderíamos abrir um parêntesis aqui para dizer que o difícil é saber quando os estrangeiros, os antepassados, ou seja, aqueles que tiveram esta “experiência direta”, fizeram “abstração científica” e Mao Tse-Tung nunca diz qual é o critério para se descobrir isto.
O mais importante, porém, não é apenas compreender o mundo objetivo e explicá-lo e sim transformá-lo. Mao diz que:
“O conhecimento começa com a prática. Quando se adquiriu conhecimento teórico pela prática, deve-se ainda retornar à prática. O papel ativo do conhecimento não se exprime somente no salto ativo do conhecimento sensível para o conhecimento racional, mas, além disso, o que é mais importante, deve exprimir-se no salto do conhecimento racional para a prática revolucionária” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 78).
Portanto, essas são as concepções de Mao Tse-Tung a respeito da dialética. Os principais elementos desta concepção podem ser resumidos nos seguintes pontos: a) a lei da contradição é universal e está em tudo; b) a contradição acompanha o processo de desenvolvimento do inicio ao fim; c) em cada objeto específico existe uma contradição específica; d) estas contradições se manifestam de forma diferente em cada etapa do movimento; e) existe uma contradição fundamental que determina a existência das demais contradições (secundárias); f) em determinada situação pode ocorrer uma inversão de posições entre os aspectos contraditórios existentes tanto na contradição principal quanto nas contradições secundárias, mudando, assim, o aspecto principal da contradição; g) existem duas formas de contradição: a antagônica e a não-antagônica; h) o conhecimento decorre da prática social; i) a compreensão do mundo pressupõe a correspondência entre as idéias e as “leis do mundo exterior objetivo”; j) o critério da verdade é a prática; l) o conhecimento atravessa três etapas: o conhecimento sensível, o conhecimento racional e o conhecimento aplicado; e m) o conhecimento possui um caráter de classe e um caráter prático, pois a teoria depende, se fundamenta e serve da prática.
Neste momento, estamos em condições de compreender por que Mao erige a dialética em um dogma, reificando-a. Qual o motivo em distinguir entre contradição antagônica e contradição não-antagônica ao invés de distinguir entre contradição e não-contradição? Por que sustentar a existência de contradição em tudo? De onde vem esta vontade de salvar o dogma? De vem esta metafísica pseudodialética? A resposta é a seguinte: vem da vontade de justificar a estratégia política do Partido Comunista Chinês. A estruturação da dialética por Mao Tse-Tung surge das necessidades práticas do PCC e por isso a dialética de Mao e a estratégia do PCC possuem estruturas homólogas. Uma vez criada à imagem da estratégia do PCC, a “dialética” maoísta passa a ser aplicável a tudo, inclusive a própria estratégia do PCC, que é reforçada por sua correspondência com a dialética.
Se a contradição está em tudo, então estará presente também no PCC. Entretanto, esta não é a “contradição principal” e nem sequer é uma “contradição antagônica”. Se existe contradição no PCC, isto se deve ao fato de que as idéias são reflexos da realidade objetiva contraditória e por isso também são contraditórias. A superação disto só pode acontecer com a correspondência das idéias com a realidade objetiva e isto só pode ocorrer apelando-se para a dialética, o conhecimento racional.
Assim, se justifica as contradições no interior do PCC e mantém-se a unidade do partido e, ainda, esta explicação apresentando-se como verdadeira tende a ser convincente e assim conquistar para o seu defensor a hegemonia no interior do partido. Desta forma, conclui-se que as contradições no interior do PCC não são contradições de classe ou derivadas delas, e sim contradições específicas. Compreendendo a lei da contradição se observa isto e ao aplicá-la a realidade, a revolução, passa-se a andar no caminho justo.
É o próprio Mao Tse-Tung que fala do exemplo das contradições do PCC e quase todos os seus exemplos para justificar e confirmar a dialética são retirados da estratégia do PCC. A dialética é verdadeira e é confirmada pela estratégia do PCC e esta, por sua vez, é justa e confirmada pela dialética... mas, sob o pretexto de confirmar a dialética, o que Mao confirma mesmo é a estratégia do PCC. Portanto, cria-se uma unidade entre a dialética e a estratégia do PCC e por isso ambos se confirmam reciprocamente e devem ser defendidos dogmaticamente. A motivação da transformação da dialética em dogma por Mao Tse-Tung vem da necessidade de justificar a estratégia do PCC.
Vamos ver agora cada elemento da concepção de dialética em Mao Tse-Tung e compará-la com sua utilidade para justificar a estratégia do PCC. Comecemos pela lei da contradição universal. Para Mao,
“Segundo o ponto de vista da dialética materialista, as mudanças da natureza são devidas, principalmente, ao desenvolvimento de suas contradições internas. Aquelas que ocorrem na sociedade originam-se sobretudo do desenvolvimento das contradições situadas no interior da sociedade, isto é, das contradições entre as forças produtivas e relações de produção, entre as classes, entre o novo e o antigo. O desenvolvimento dessas contradições faz avançar a sociedade, motiva a substituição da velha sociedade pela nova” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 21).
Tal concepção de que a contradição está em tudo e que provoca mudanças qualitativas vem para justificar a necessidade de revolução social. Isto era ainda mais necessário ao se observar que a china era um país de desenvolvimento histórico lento, proporcionado pelo modo de produção tributário, e que possuía toda uma tradição cultural que apresentava uma visão estática do mundo, tal como o confucionismo. O mesmo valor justificativo possui a idéia de que a contradição acompanha o processo de desenvolvimento do início ao fim. O motivo é bem simples: à visão estática do mundo deve-se contrapor uma visão dinâmica. É por isso que Mao Tse-Tung gasta páginas de seu livro contrapondo as duas concepções de mundo que segundo ele existem: a metafísica e a dialética.
A idéia de cada objeto específico possui uma contradição específica vem para justificar e amenizar as contradições que ocorrem no interior do partido[4] e das massas (entre campesinato e proletariado, por exemplo), o que é necessário para se manter a unidade e assim ser mais eficaz na luta contra quem detém o poder.  A tese de que estas contradições se manifestam de forma diferente vem para justificar alianças, e o mesmo vale para a idéia acima colocada, e rompimentos. Outra função desta tese é colocar em evidencia a possibilidade de uma contradição antagônica se tornar não-antagônica e vice-versa, haver alteração na contradição principal ou inversão em seu aspecto principal, etc., as quais possuem funções análogas. Por isso, afirma ele, as contradições qualitativamente diferentes devem ser resolvidas por “métodos qualitativamente diferentes”. Quais são estes métodos? No caso da contradição entre burguesia e proletariado é a revolução socialista, no caso da contradição entre massas populares e sistema feudal é a revolução democrática, no caso da contradição entre agressão imperialista e forcas nacionais é a união nacional entre as classes para combater as forças externas. Aqui se vê a justificativa das constantes alianças com o Kuomintang, força nacionalista burguesa, que o PCC fez em diferentes oportunidades[5].
A afirmação de que existe uma contradição principal e contradições secundárias vem para justificar, também, as alianças e rompimentos, e ainda, que é necessário se subordinar a contradição principal a alguma outra contradição secundária dependendo da conjuntura. Tal como Mao colocou: “quando o imperialismo lança uma guerra de agressão contra um tal país, as diversas classes desse país, com exceção de um pequeno número de traidores da nação, podem se unir temporariamente numa guerra nacional contra o imperialismo. A contradição entre o imperialismo e o país considerado torna-se então a contradição principal, e todas as contradições entre as diversas classes no interior do país (aí compreendida a contradição entre o sistema feudal e as massas populares, que era a principal), passam temporariamente para o segundo plano e para uma posição subordinada” e acrescenta “tal é o caso da China na Guerra do Ópio de 1840, a Guerra sino-japonesa de 1894, a Guerra dos Yihotouan em 1900, e a atual guerra sino-japonesa”, onde se viu a aliança entre o PCC  e o Kuomintang.
A tese de que é possível haver uma inversão de posições entre os aspectos contraditórios existentes vem para justificar a contra-revolução burocrática na Rússia e a ideologia leninista-stalinista, assim como sua repetição histórica para a China. O proletariado, no exemplo de Mao, se torna classe dominante e a burguesia passa a ser a classe dominada, e isto significa que a dominação permanece e o “proletariado” irá dominar a “classe burguesa” através do PCC, ou seja, como ocorreu de fato posteriormente pela burocracia partidária que se fundiu com a burocracia estatal e declarou sua ditadura como sendo a “ditadura do proletariado”, inclusive sobre o próprio proletariado. Tal justificativa era necessária, pois o auxílio russo em caso de interferência estrangeira era indispensável para a China, bem como o seu auxílio sócio-econômico. A aliança entre China e Rússia precisava ser reforçada pela aliança ideológica entre estes países. É por isto que Mao cita várias vezes os “quatro clássicos do marxismo”: Marx, Engels, Lênin e Stálin.
A distinção entre contradição antagônica e não-antagônica também vem para justificar a estratégia do PCC:
“Enquanto as classes existirem, as contradições, as idéias verdadeiras, e as idéias falsas serão o reflexo das contradições de classes. No início, ou em certas questões, essas contradições podem não se manifestar logo em seguida como antagonistas, mas com o desenvolvimento da luta de classes elas podem vir a ser antagonistas. A história do P. C. da URSS mostra-nos que as contradições entre as concepções verdadeiras de Lênin e Stálin, e as concepções falsas de Trotski, Boukharine e outros, não se manifestavam de início como antagonistas, mas, que em seguida, se tornaram antagonistas. Casos semelhantes apresentam-se na história do P. C. Chinês. As contradições entre as concepções verdadeiras de vários companheiros do P. C. e as concepções falsas de Tchen Tou-sieou, Tchan Kouo-tao e outros, também não se manifestaram no início sob uma forma antagonista, mas se tornaram mais tarde. Atualmente, as contradições entre as concepções verdadeiras e as falsas no seio do P. C. não tomaram uma forma antagonista, elas não chegaram ao antagonismo caso nossos companheiros saibam corrigir seus erros. Isso porque o Partido deve, por um lado, dirigir uma séria luta contra as concepções falsas, mas, por outro, dar toda a possibilidade aos que cometeram erros de tomar consciência deles. Nessas circunstancias uma luta levada às últimas conseqüências é inadequada. Entretanto, se aqueles que cometeram erros persistirem em sua posição e os agravarem, essas contradições podem se tornar antagonistas” (Grifos Meus) (Mao Tse-Tung, 1979, p. 57).
As demais concepções de Mao são produto da sua ideologia do conhecimento. Ela se caracteriza por subordinar totalmente a teoria à prática e por isso podemos tratar essas concepções em bloco. A subordinação da teoria à prática ocorre através do pretexto de criar uma “unidade” entre elas. Isto serve para combater o que Mao chama de “oportunismo de direita” e “oportunismo de esquerda”[6] e assim ofuscar a visão do oportunismo maoísta, exemplarmente demonstrado em seu malabarismo ideológico das contradições (principais, secundárias, de aspecto principal, de aspectos secundários, antagônicas, não-antagônicas, etc.).  
A idéia de que a ideologia serve a prática tem um valor explicativo: a ideologia maoísta serve a prática maoísta. Há uma unidade aí, mas isto apenas quer dizer que Mao Tse-Tung não vê nenhum papel ativo para a consciência, pois ela é reflexo da realidade objetiva. Ela só tem valor se servir a prática. Mao Tse-Tung nunca questiona a prática e se pergunta sobre o que ocorre com a ideologia se ela estiver correspondendo a uma prática equivocada, pois isto seria equivalente a perguntar sobre sua prática e sua ideologia. Ao tornar a ideologia mera serviçal da prática, torna-se possível, simultaneamente, reificar a ideologia correspondente a prática e, desta forma, cair no dogmatismo e no doutrinarismo. É isto que ocorre com Mao Tse-Tung, pois ele considera sua prática como revolucionária e assim julga que sua ideologia, que é correspondente a sua prática,  também é e assim ambas são justificadas e reificadas. Para Mao, o lado ativo da consciência, ao contrário de Marx, reside na sua aplicação prática. Mao Tse-Tung expressa, assim, uma consciência coisificada que é um elogio da própria consciência coisificada. De qualquer forma, isto é coerente, pois Mao, como líder do PCC, considera sua prática como a prática revolucionária. A ideologia correspondente a ela é, pois, a ideologia considerada por ele como “revolucionária”.
Por fim, observamos que a estruturação da dialética por Mao Tse-Tung corresponde à estratégia do PCC, que ela é uma ideologia que corresponde a uma determinada prática (a do PCC). Neste sentido, Mao Tse-Tung teve o mérito de deformar o método dialético e transformá-lo na verdade revelada e servir de ideologia da contra-revolução e do capitalismo de estado chinês.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Mao Tse-Tung, Sobre a Contradição. In: Moderno, J. R. C. (org.). O Pensamento de Mao Tse-Tung. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1979.
Mao Tse-Tung, Sobre a Prática. In: Moderno, J. R. C. (org.). O Pensamento de Mao Tse-Tung. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1979.
Moderno, J. R. C. Introdução. In: O Pensamento de Mao Tse-Tung. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1979.
Viana, Nildo. A Consciência da História. Ensaios Sobre o Materialismo Histórico-Dialético. Rio de Janeiro, Achiamé, 2007b.
Viana, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. Goiânia, Alternativa, 2007a.
Ensaio publicado originalmente em “O Fim do Marxismo e outros ensaios. São Paulo: Giz Editorial, 2007.







[1] Todas estas citações são retiradas dos textos de Mao Tse-Tung. Sobre a Contradição (p. 17-63), Sobre a Prática (p. 67-86) e Sobre Arte e Literatura (p. 89-124), presentes na coletânea organizada por Moderno (1979).
[2] Esta concepção parte de uma separação mecânica entre o específico e o geral e supõe que a consciência faz uma opção por partir de um ou outro no processo de conhecimento. A consciência não parte do específico ao geral e do geral ao específico e sim do concreto-dado (como lhe vem é dado imediatamente) e, por intermédio da análise, busca apreender suas determinações e assim chegar ao concreto-determinado, ou seja, pensado, tal como colocou Marx em seu texto sobre o método dialético (Viana, 2007b).
[3]Esta concepção já não tem mais nada a ver com a teoria marxista da revolução. A revolução significa a abolição das classes e, portanto nenhuma se torna “dominante” ou “dominada”.
[4] “A oposição e a luta entre concepções diferentes aparecem constantemente no seio do partido; é o reflexo, dentro do partido, das contradições de classes e das contradições entre o novo e o antigo existentes na sociedade. Se não houvesse dentro do partido contradições e lutas ideológicas para resolver as contradições, a vida do partido terminaria” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 25).
[5] “Resolver as contradições diferentes por diferentes métodos é um princípio que os marxistas-leninistas devem observar rigorosamente” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 30); “o Kuomintang, que representou um certo papel positivo em determinada etapa da história moderna da China, transformou-se a partir de 1927 em um partido da contra-revolução coerente com sua natureza de classe, e com as atraentes promessas do imperialismo (são algumas circunstancias), mas ele se viu pressionado a se pronunciar pela resistência ao Japão em razão do agravamento das contradições sino-japonesas, e da política do front unido aplicada pelo P. C. (são outras circunstâncias). Entre os contrários se transformando um no outro existe, uma determinada identidade” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 50).
[6] “Acontece freqüentemente, entretanto, que as idéias sejam mais lentas que a realidade, e isto porque o conhecimento humano se encontra limitado por um grande número de condições sociais. Lutamos em nossas fileiras revolucionárias contra os teimosos, cujas idéias não seguem o ritmo das modificações da situação objetiva, o que, em história, se manifestou sob a forma do oportunismo de direita. Essas pessoas não vêem que a luta dos contrários já fez avançar o processo objetivo, ainda em que seu conhecimento continue no estágio anterior. Essa particularidade é própria das idéias de todos os teimosos. Suas idéias são separadas da prática social, não sabem andar na frente do carro da sociedade para governá-la, somente arrasta atrás, queixando-se de que ele vai muito rápido e tentando reconduzi-lo para trás ou fazê-lo rodar no sentido contrário”; “somos igualmente contra os verborosos “de esquerda”. Suas idéias estão além de uma determinada etapa do desenvolvimento do processo objetivo: uns tomam suas fantasias por realidade, outros tentam realizar à força, no presente, ideais que somente são realizáveis no futuro. Suas idéias, separadas da prática atual da maioria da pessoas e da realidade atual, traduzem-se na ação pelo aventureirismo” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 81). Resta saber se estes últimos podem ser chamados de “oportunistas”. Como é difícil fazer isto, nesta parte do seu texto Mao não utiliza tal expressão, o que é expressivo do seu próprio oportunismo ideológico.
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PUBLICADO ORIGINALMENTE EM:
VIANA, Nildo. O Fim do Marxismo. São Paulo: Giz Editorial, 2008.