Prefácio:
Para uma sociologia das
histórias em quadrinhos
Jorge Larrosa afirmou certa vez que a experiência
etimologicamente refere-se a “algo que nos acontece”. A experiência não teria a
ver com o excesso de informação, opinião, trabalho e falta de tempo que
pincelam as características da sociedade contemporânea. Estes seriam os fatores
que nos impedem de termos experiências hoje. A experiência (derivado do latim experiri) é um encontro com algo que se
prova e que envolve travessia e perigo. Segundo Larrosa, a melhor alusão ao
sujeito da experiência seria o pirata: “O sujeito da experiência tem algo desse
ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso,
pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião”.[1]
A experiência teria a ver com exposição, com um acontecimento que nos sucede e
se apodera de nós, que nos “põe para fora”, nos interpela e nos
transforma. Os quadrinhos aconteceram na vida do Nildo como acontecem na vida
de muitos leitores aficionados mundo a fora. E como um pirata, Nildo pôs-se a
atravessar os fascínios dessa produção artístico-cultural, desbravando suas
narrativas e expondo-se aos perigos da sociologia e dos quadrinhos. E o
resultado dessa experiência é esse livro riquíssimo que delineia os aspectos
elementares de uma sociologia das histórias em quadrinhos a partir de uma
abordagem da crítica social nas histórias de Ferdinando.
As experiências de Nildo com as histórias em quadrinhos
compreendem longa data e sua preocupação com uma abordagem consistente e
crítica dos quadrinhos não é recente; ela delonga de um passado disperso pelo
tempo e por uma paixão de idas e vindas da banca de quadrinhos e de uma
tentativa de conciliar o saber acadêmico e seu interesse cotidiano. Inúmeras
publicações decorreram daí. E eu conheci o Nildo justamente por meio dessas publicações.
Elas o tornaram meu primeiro referencial teórico na academia para abordar os
quadrinhos enquanto objeto de estudo, inspirando-me em diferentes perspectivas:
em primeiro lugar, de que os quadrinhos são “coisa séria” e, em segundo, que as
mais diferentes análises das histórias em quadrinhos são possíveis de serem
realizadas. Seu estudo sobre o inconsciente coletivo e a axiologia nas
histórias em quadrinhos foi fundamental para que eu concluísse meu, então, trabalho
de conclusão de curso. Mais de uma década depois desse meu contato inicial com
as publicações do Nildo e após termos tido a oportunidade de nos conhecermos
pessoalmente há uns dois anos atrás, participando lado a lado em uma mesa
redonda sobre quadrinhos no Recife e lançando o livro Super-heróis, Cultura e Sociedade,[2]
organizado em conjunto, a publicação de Quadrinhos
e crítica social evidencia o quanto suas incursões lapidaram ainda mais suas
reflexões e o quanto tal abordagem é urgente na sociedade plural, multifacetada
e midiática em que vivemos.
Ao ler o livro, o leitor e a leitora terão a ciência de
que as histórias em quadrinhos são produções sociais e, enquanto tais, elas estão
sujeitas às artimanhas que envolvem toda e qualquer produção social artística
na sociedade ocidental contemporânea. “As histórias em quadrinhos são
produzidas socialmente e por isso só podem ser compreendidas adequadamente se
inseridas na sociedade”, afirma o autor em seu primeiro capítulo; isto é, as
histórias em quadrinhos são produções coletivas realizadas por um conjunto de
indivíduos sujeitos à dinâmica editorial que congrega sob a mesma gestão
interesses de mercado (o propósito dos quadrinhos é fazer tilintar os cofres
das editoras e, para isso, atrair um público consumidor que garanta o retorno
financeiro, com assinala o autor) valores, concepções e sentimentos dos
artistas (que, mesmo singulares, também são produzidos socialmente) e a disputa
do próprio nicho de mercado, entre outros. Perceber esses entrelaçamentos e
essas tensões internas torna-se imprescindível para uma análise sociológica das
histórias em quadrinhos.
Nos cinco capítulos que constituem Quadrinhos e crítica social, Nildo Viana divide o texto em dois
grandes blocos. Nos dois primeiros capítulos, o autor apresenta as referências
para uma análise sociológica possível das histórias em quadrinhos a partir da abordagem
crítica, sua base teórica e metodológica: a leitura das histórias em quadrinhos
enquanto produção social e o método dialético (muito próximo, diga-se de
passagem, do método histórico-crítico utilizado em exegeses bíblicas). Nildo
realiza uma verdadeira engenharia reversa
tanto das histórias em quadrinhos como produto cultural quanto como obra de
arte, esmiuçando todos os detalhes que compõem a narrativa a fim de que o
pesquisador e a pesquisadora possam, por meio de seus instrumentos, alcançar a
mensagem original da narrativa. Para tanto, ele se ocupa tanto com o contexto
histórico e social das narrativas, com a época em que elas foram produzidas,
quanto com o de seus autores. Esse movimento é realizado por Nildo, de forma
exemplar e pormenorizada, em sua análise dos quadrinhos de Ferdinando de Al
Capp nos três capítulos seguintes, sob a perspectiva da investigação da
apresentação do tema da crítica social, o elemento fundamental de Ferdinando e
da intencionalidade de Al Capp nas aventuras do personagem.
Sem dúvida, Quadrinhos
e crítica social estabelece um novo patamar de reflexões e estudos sobre as
histórias em quadrinhos no cenário nacional, quiçá, global, e dá abertura para
novas questões atinentes aos estudos em quadrinhos. Uma dessas questões estaria
atrelada ao fato de que, enquanto arte, as histórias em quadrinhos não são encerradas
em si mesmas e, por mais que tenha havido intencionalidade e mensagem
originais, elas dão abertura para outras leituras e perspectivas; isto é, não
existe uma única mensagem “verdadeira” nas histórias em quadrinhos justamente
por elas serem produções culturais. E como a cultura é uma teia de significados,
mesmo tecida socialmente, as perspectivas tornam-se polifônicas, o que não
significa cair num relativismo, mas na percepção da própria pluralidade que
permeia a vida humana. A hermenêutica também nos ensina que uma obra de arte,
um texto, uma imagem, um filme, uma vez produzidos, adquirem status no “mundo
real” e deixam de pertencer ao autor. E o que significa isso nas histórias em
quadrinhos?
Nessa direção, outra questão evocada pela proposta de
Nildo remete aos usos que o público faz de determinada obra ou das informações
que ela fornece ao público, como indicaria Michel de Certeau,[3]
usos, por vezes, bem distintos da intencionalidade do artista, o que também é
crucial na análise sociológica de um bem cultural. Há ainda outra questão que o
livro evoca, esta extraída ou inspirada diretamente do método histórico-crítico
da exegese: a atualização temática. O que aquela mensagem significa para o
contexto atual? Afinal, uma história em quadrinhos pode ser lida e relida
milhares de vezes e ser publicada e relançada no mercado em diferentes épocas.
Assim, além da mensagem original (ou uma de suas intencionalidades mais
próximas de seu autor ou contexto) torna-se interessante investigar a validade
e a relevância ou o significado e a interpretação no e para o novo contexto.
Enfim, não cabe aqui se ocupar com essas questões que a
obra de Nildo provoca, permite pensar e que exigem investigações futuras. Em
todo o caso, um dos grandes méritos de Quadrinhos
e crítica social é que provoca a pensar as histórias em quadrinhos em
geral, e as narrativas de Ferdinando em particular, como um dos palcos onde a
vida humana se dá e é apresentada e representada. A análise da obra de
Ferdinando é um exercício de genialidade analítica que explicita as imbricações
implícitas nas narrativas ambientadas na pitoresca cidade de Brejo Seco.
Não quero aqui adiantar as surpresas e as descobertas
contidas no texto e na análise das histórias de Ferdinando com as quais você,
leitor, leitora, se deparará ao percorrer as reflexões do autor, mas antes
instigar a leitura desse marco nacional inicial que delineia os parâmetros de uma
sociologia das histórias em quadrinhos. Enfim, é uma leitura obrigatória para qualquer pessoa que queira ir além de uma
abordagem descritiva das histórias em quadrinhos e esmiuçar os entrelaçamentos
que as constituem seja enquanto arte, mídia, seja enquanto produção social,
estilo narrativo. Boa Leitura!
Iuri Andréas Reblin
[1] LARROSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o
saber de experiência. Revista Brasileira
de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p. 20-28, jan.-abr. 2002. Disponível
em:
<http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf>.
Acesso em: 30 out. 2012.
[2] VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andréas (Orgs.). Super-heróis, cultura e sociedade:
aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida: Idéias
e Letras, 2011. 184p.
[3] CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 1. Artes de Fazer. 12. ed. Petrópolis:
Vozes, 1994. 351p.
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