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domingo, 30 de novembro de 2014

Prefácio ao livro "Quadrinhos e Crítica Social - O Universo Ficcional de Ferdinando"



Prefácio:
Para uma sociologia das histórias em quadrinhos

Jorge Larrosa afirmou certa vez que a experiência etimologicamente refere-se a “algo que nos acontece”. A experiência não teria a ver com o excesso de informação, opinião, trabalho e falta de tempo que pincelam as características da sociedade contemporânea. Estes seriam os fatores que nos impedem de termos experiências hoje. A experiência (derivado do latim experiri) é um encontro com algo que se prova e que envolve travessia e perigo. Segundo Larrosa, a melhor alusão ao sujeito da experiência seria o pirata: “O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião”.[1] A experiência teria a ver com exposição, com um acontecimento que nos sucede e se apodera de nós, que nos “põe para fora”, nos interpela e nos transforma. Os quadrinhos aconteceram na vida do Nildo como acontecem na vida de muitos leitores aficionados mundo a fora. E como um pirata, Nildo pôs-se a atravessar os fascínios dessa produção artístico-cultural, desbravando suas narrativas e expondo-se aos perigos da sociologia e dos quadrinhos. E o resultado dessa experiência é esse livro riquíssimo que delineia os aspectos elementares de uma sociologia das histórias em quadrinhos a partir de uma abordagem da crítica social nas histórias de Ferdinando.

As experiências de Nildo com as histórias em quadrinhos compreendem longa data e sua preocupação com uma abordagem consistente e crítica dos quadrinhos não é recente; ela delonga de um passado disperso pelo tempo e por uma paixão de idas e vindas da banca de quadrinhos e de uma tentativa de conciliar o saber acadêmico e seu interesse cotidiano. Inúmeras publicações decorreram daí. E eu conheci o Nildo justamente por meio dessas publicações. Elas o tornaram meu primeiro referencial teórico na academia para abordar os quadrinhos enquanto objeto de estudo, inspirando-me em diferentes perspectivas: em primeiro lugar, de que os quadrinhos são “coisa séria” e, em segundo, que as mais diferentes análises das histórias em quadrinhos são possíveis de serem realizadas. Seu estudo sobre o inconsciente coletivo e a axiologia nas histórias em quadrinhos foi fundamental para que eu concluísse meu, então, trabalho de conclusão de curso. Mais de uma década depois desse meu contato inicial com as publicações do Nildo e após termos tido a oportunidade de nos conhecermos pessoalmente há uns dois anos atrás, participando lado a lado em uma mesa redonda sobre quadrinhos no Recife e lançando o livro Super-heróis, Cultura e Sociedade,[2] organizado em conjunto, a publicação de Quadrinhos e crítica social evidencia o quanto suas incursões lapidaram ainda mais suas reflexões e o quanto tal abordagem é urgente na sociedade plural, multifacetada e midiática em que vivemos.

Ao ler o livro, o leitor e a leitora terão a ciência de que as histórias em quadrinhos são produções sociais e, enquanto tais, elas estão sujeitas às artimanhas que envolvem toda e qualquer produção social artística na sociedade ocidental contemporânea. “As histórias em quadrinhos são produzidas socialmente e por isso só podem ser compreendidas adequadamente se inseridas na sociedade”, afirma o autor em seu primeiro capítulo; isto é, as histórias em quadrinhos são produções coletivas realizadas por um conjunto de indivíduos sujeitos à dinâmica editorial que congrega sob a mesma gestão interesses de mercado (o propósito dos quadrinhos é fazer tilintar os cofres das editoras e, para isso, atrair um público consumidor que garanta o retorno financeiro, com assinala o autor) valores, concepções e sentimentos dos artistas (que, mesmo singulares, também são produzidos socialmente) e a disputa do próprio nicho de mercado, entre outros. Perceber esses entrelaçamentos e essas tensões internas torna-se imprescindível para uma análise sociológica das histórias em quadrinhos.

Nos cinco capítulos que constituem Quadrinhos e crítica social, Nildo Viana divide o texto em dois grandes blocos. Nos dois primeiros capítulos, o autor apresenta as referências para uma análise sociológica possível das histórias em quadrinhos a partir da abordagem crítica, sua base teórica e metodológica: a leitura das histórias em quadrinhos enquanto produção social e o método dialético (muito próximo, diga-se de passagem, do método histórico-crítico utilizado em exegeses bíblicas). Nildo realiza uma verdadeira engenharia reversa tanto das histórias em quadrinhos como produto cultural quanto como obra de arte, esmiuçando todos os detalhes que compõem a narrativa a fim de que o pesquisador e a pesquisadora possam, por meio de seus instrumentos, alcançar a mensagem original da narrativa. Para tanto, ele se ocupa tanto com o contexto histórico e social das narrativas, com a época em que elas foram produzidas, quanto com o de seus autores. Esse movimento é realizado por Nildo, de forma exemplar e pormenorizada, em sua análise dos quadrinhos de Ferdinando de Al Capp nos três capítulos seguintes, sob a perspectiva da investigação da apresentação do tema da crítica social, o elemento fundamental de Ferdinando e da intencionalidade de Al Capp nas aventuras do personagem.

Sem dúvida, Quadrinhos e crítica social estabelece um novo patamar de reflexões e estudos sobre as histórias em quadrinhos no cenário nacional, quiçá, global, e dá abertura para novas questões atinentes aos estudos em quadrinhos. Uma dessas questões estaria atrelada ao fato de que, enquanto arte, as histórias em quadrinhos não são encerradas em si mesmas e, por mais que tenha havido intencionalidade e mensagem originais, elas dão abertura para outras leituras e perspectivas; isto é, não existe uma única mensagem “verdadeira” nas histórias em quadrinhos justamente por elas serem produções culturais. E como a cultura é uma teia de significados, mesmo tecida socialmente, as perspectivas tornam-se polifônicas, o que não significa cair num relativismo, mas na percepção da própria pluralidade que permeia a vida humana. A hermenêutica também nos ensina que uma obra de arte, um texto, uma imagem, um filme, uma vez produzidos, adquirem status no “mundo real” e deixam de pertencer ao autor. E o que significa isso nas histórias em quadrinhos?

Nessa direção, outra questão evocada pela proposta de Nildo remete aos usos que o público faz de determinada obra ou das informações que ela fornece ao público, como indicaria Michel de Certeau,[3] usos, por vezes, bem distintos da intencionalidade do artista, o que também é crucial na análise sociológica de um bem cultural. Há ainda outra questão que o livro evoca, esta extraída ou inspirada diretamente do método histórico-crítico da exegese: a atualização temática. O que aquela mensagem significa para o contexto atual? Afinal, uma história em quadrinhos pode ser lida e relida milhares de vezes e ser publicada e relançada no mercado em diferentes épocas. Assim, além da mensagem original (ou uma de suas intencionalidades mais próximas de seu autor ou contexto) torna-se interessante investigar a validade e a relevância ou o significado e a interpretação no e para o novo contexto.

Enfim, não cabe aqui se ocupar com essas questões que a obra de Nildo provoca, permite pensar e que exigem investigações futuras. Em todo o caso, um dos grandes méritos de Quadrinhos e crítica social é que provoca a pensar as histórias em quadrinhos em geral, e as narrativas de Ferdinando em particular, como um dos palcos onde a vida humana se dá e é apresentada e representada. A análise da obra de Ferdinando é um exercício de genialidade analítica que explicita as imbricações implícitas nas narrativas ambientadas na pitoresca cidade de Brejo Seco.

Não quero aqui adiantar as surpresas e as descobertas contidas no texto e na análise das histórias de Ferdinando com as quais você, leitor, leitora, se deparará ao percorrer as reflexões do autor, mas antes instigar a leitura desse marco nacional inicial que delineia os parâmetros de uma sociologia das histórias em quadrinhos. Enfim, é uma leitura obrigatória para qualquer pessoa que queira ir além de uma abordagem descritiva das histórias em quadrinhos e esmiuçar os entrelaçamentos que as constituem seja enquanto arte, mídia, seja enquanto produção social, estilo narrativo. Boa Leitura!

Iuri Andréas Reblin






[1] LARROSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p. 20-28, jan.-abr. 2002. Disponível em: <http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf>. Acesso em: 30 out. 2012.
[2] VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andréas (Orgs.). Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida: Idéias e Letras, 2011. 184p.
[3] CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 1. Artes de Fazer. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. 351p.

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