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sábado, 4 de outubro de 2014

Eleições e autogestão social



Eleições, Voto Nulo e Autoemancipação

Nildo Viana

A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores. Esta é uma das frases mais célebres de Karl Marx e sua veracidade foi provada em diversos momentos históricos e em nossa vida cotidiana. Aí está contido a ideia da automancipação proletária, também defendida por Bakunin, Rosa Luxemburgo, Pannekoek e vários outros pensadores revolucionários. É justamente isso que distingue o pensamento revolucionário proletário das demais formas de pensamento.
A ideia-chave é a da automancipação proletária. A grande questão é como se realiza esta autoemancipação. Para Marx, Rosa Luxemburgo e outros, é através da própria luta da classe proletária que se constitui o processo de autoemancipação. Para se chegar a um determinado objetivo, é necessário utilizar os meios que possibilitam chegar a ele, ou seja, é fundamental a unidade entre meios e fins, tal como destacou Rosa Luxemburgo. Isso é o que se vê no diálogo entre o Mestre Gato e Alice, em Alice no País das Maravilhas. Alice, diante de três estradas, pergunta: “Qual caminho devo seguir?” O Mestre Gato responde: “Aonde você quer ir?” E a resposta é: “Para qualquer lugar”. O Mestre Gato diz: “Então escolha qualquer caminho”. Se não há objetivo, qualquer caminho serve, mas se alguém quer chegar a um lugar definido, então necessita escolher o caminho que possibilita chegar até lá.
É nesse contexto que se coloca a questão da autoemancipação e dos caminhos para se chegar a ela. Ao mesmo tempo, se coloca a questão do processo eleitoral e da participação da população no mesmo. Até que ponto as eleições podem promover uma contribuição para a emancipação humana ou para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores e demais classes exploradas e grupos oprimidos. Aqui temos um caminho e todo caminho leva a algum lugar. Sendo assim, a escolha do caminho significa a escolha do lugar aonde se quer chegar e, nesse sentido, é importante discutir ao lugar que leva o caminho eleitoral. Como o caminho eleitoral parece não levar a lugar algum, então é preciso iniciar por este para depois observar qual é o caminho necessário para se chegar ao lugar que queremos, a libertação humana.
Processo Eleitoral e Luta de Classes
O processo eleitoral não é algo simples, ou seja, não é apenas o ato de votar no dia da eleição. Em primeiro lugar, o processo eleitoral é marcado por um rígido controle estatal. O estado, através da legislação eleitoral, dos procedimentos burocráticos, da interferência de suas instâncias (jurídicas, políticas, etc.) produz um conjunto de regras para o jogo eleitoral. Entre essas regras, cabe destaque ao papel mediador do partido político (Viana, 1993a; Viana, 1993b). Os partidos políticos são os meios pelos quais os indivíduos devem se submeter para lançar sua candidatura. Somente através da participação num partido político é que o indivíduo pode se lançar candidato e isso também não é algo simples, ele precisa conseguir ser escolhido para ser candidato, e, quanto mais elevado é o cargo para o qual quer se candidatar, mas difícil é e mais poder é preciso ter no interior do partido para conseguir a indicação.
Este processo parece inocente, mas nada tem de inocente. O estado capitalista não é uma instituição neutra que visa representar ou expressar os desejos e interesses da população. Apenas nas ficções liberais isso tem sentido, mas não nas relações sociais concretas. O estado representa os interesses da classe dominante, ou seja, da classe capitalista. Também expressa, relativamente, os interesses das classes auxiliares da burguesia, especialmente da burocracia estatal, e, assim, executa o papel de reproduzir as relações de produção capitalistas.
Da mesma forma, os partidos políticos não são instituições neutras que representam o “povo” ou os trabalhadores e sim os interesses de determinadas classes sociais, fundamentalmente a classe dominante ou alguma de suas classes auxiliares, dependendo do partido (Viana, 1993a). As classes exploradas não possuem partidos políticos, pois mesmo aqueles que dizem representar os trabalhadores e/ou possuem um grande número de trabalhadores no seu interior, representam os interesses da classe que possui a direção e hegemonia no partido, geralmente a burocracia partidária e a intelectualidade.
Assim, o estado constitui e controla o processo eleitoral visando que ele sirva ao processo de reprodução das relações de produção capitalistas, e os partidos políticos fazem o mesmo, com a diferença que disputam para assumir o governo e fazer parte do bloco dominante. As lutas dos trabalhadores podem pressionar as ações estatais, mas não pode conquistá-lo e nem usá-lo como quiser, tal como afirmam alguns ideólogos, pois o Estado tem, como essência, a relação de dominação, é a parte dominante de uma relação social concreta e por isso serve à classe dominante. Através do estado, no máximo se trocaria os indivíduos no governo ou a classe que domina, mas jamais seria possível a emancipação humana ou a libertação dos trabalhadores, duas faces da mesma moeda.
Assim, tanto quem coordena o processo eleitoral como quem está na disputa, possuem o mesmo objetivo de realizar a reprodução das relações de produção capitalistas. O estado organiza o processo eleitoral através da disputa eleitoral e partidária e toda uma legislação vem para promover um processo de burocratização e manutenção dos partidos mais conservadores no poder. As exigências legais para a legalização de um partido, para que haja uma candidatura (além de ter que estar subordinada a um partido, existem critérios como idade para concorrer a determinados cargos, residência no local onde se candidata por um determinado período, etc.). Os partidos também realizam processos internos de controle e assim a burocracia partidária acaba tendo hegemonia nos partidos de esquerda e os grandes políticos profissionais ou burgueses dominam os partidos conservadores. A legislação também atinge os partidos e limita sua liberdade de ação.
Porém, o processo eleitoral ainda tem vários outros aspectos que fazem com que as eleições não levem a lugar algum. A própria eleição promove uma situação que é de reforçar as relações de produção capitalistas. Isso ocorre de uma forma que podemos colocar da seguinte forma: a organização estatal e partidária impede qualquer forma de oposição radical no processo eleitoral e, além disso, promove um processo de mistificação e de legitimação do capitalismo, por um lado, e, um processo de cooptação e corrupção, por outro. O processo de oposição radical no interior do processo eleitoral sempre foi difícil, devido ao processo de corrupção e burocratização dos partidos ligados ao movimento operário, mas com o passar do tempo, a democracia representativa se torna cada vez mais conservadora (Viana, 1993b) e cada vez mais a oposição se torna mais domesticada e sem a menor capacidade de apresentar um programa revolucionário, a não ser como mera propaganda mal feita.
O processo de mistificação ocorre com a ilusão eleitoral. A eleição é um processo no qual o eleitor escolhe no mercado eleitoral aqueles que irão governá-lo, ou seja, impor suas decisões, ao contrário do que prega a própria ideologia eleitoral, que é a falsa tese de que “o poder emana do povo”. O eleitor ao eleger um candidato, perde todo o poder, o seu suposto poder de decisão é apenas no momento do voto, no qual escolheria os candidatos. Parafraseando Marx, quanto mais o eleitor se fia no voto, menos tem de si mesmo. Porém, uma vez eleito, o candidato passa a ter autonomia e não se submete a nenhum controle dos eleitores. De pedinte de voto passa a ser o senhor do eleitor, que passa, tão logo acabe a eleição, de senhor a servo.
A ilusão de escolha e decisão e de que isso terá algum retorno para ele ou para a população pode persistir por algum tempo, mesmo porque o ato do voto cria um vínculo psíquico entre o eleitor e o eleito, caracterizado por um processo de esperança e orgulho próprio que faz com que o votante não queira ou demore muito para admitir que o candidato que ele elegeu não realizará suas promessas, não concretizará nada que se esperava dele. O vínculo psíquico entre eleitor e eleito pode durar muito tempo e racionalizações como as de que é preciso tempo para que consiga fazer algo são comuns e mostram a dificuldade do eleitor de se desvincular do eleito. Isso reforça o efeito ilusório do processo eleitoral, que, mesmo superado, ainda não é considerado com um erro momentâneo, apenas uma escolha errada e por isso ainda haverá o candidato ou partido que realizará a sua redenção ou pelo menos irá melhorar suas condições de vida.
Porém, esse vínculo psíquico não é apenas entre eleitor e candidato eleito, mas também pode se manifestar como vínculo entre grupos de eleitores, cuja crença e preferência comum criam uma comunidade ilusória e reforço recíproco, criando um círculo ilusório de crenças que muitas vezes são marcadas por uma extrema irracionalidade, assemelhando-se aos efeitos do futebol (Viana, 2010). As esperanças e crenças em determinados partidos ou candidatos podem promover uma vinculação muito forte entre setores da população e candidatos, gerando, no momento da vitória, uma pseudestesia (falsa sensação) coletiva de alegria[1], que perdura por algum tempo. Essa esperança e crença também tem uma duração mesmo depois do partido ou candidato chegar ao poder estatal ou ser eleito, quando as promessas e propostas não se concretizam e/ou se mostram insuficientes para resolver os problemas sociais mais urgentes da população. A sociabilidade capitalista e a competição promovem uma forte adesão a determinados candidatos e a vontade de sua vitória eleitoral, inclusive sendo a justificativa para a escolha do candidato, o que está na frente nas pesquisas eleitorais, o que é amplamente utilizado por várias siglas partidárias. Da mesma forma, a pseudestesia provocada pela vitória eleitoral do candidato, cria outro vínculo irracional e a fidelidade que se prolonga durante grande parte do mandato, reforçando e obliterando o senso crítico dos eleitores mais envolvidos com o processo eleitoral.
A legitimação se manifesta através das ideologias e representações ilusórias que dizem que os eleitos foram escolhidos pelo “povo” e assim não há nada a fazer, mesmo quando ocorre a decepção com os eleitos, pois somente no próximo “pleito eleitoral” é que isso poderá ser alterado. Isto ocorre desde a ideologia da “vontade geral” ou “vontade coletiva” até chegar às representações ilusórias do voto da maioria. As ações dos políticos profissionais empossados são legítimas porque foram escolhidos pelo voto popular, pela decisão da maioria. Claro que se abstrai todo o processo existente por detrás de tal “escolha”, inclusive que raramente é a maioria que escolhe, se se considerar apenas os eleitores, e nunca ocorre, se se considerar o conjunto da população, ou seja, se incluir os não-votantes (não-eleitores, abstenções, voto nulo e branco) e os que votam nos candidatos derrotados. O processo eleitoral ocorre dentro da legalidade e da vontade popular e, por isso, não pode ser questionado, o que se pode fazer é esperar a próxima eleição e os novos eleitos.
Os intelectuais cumprem um papel importante para reforçar essa legitimação através de várias ideologias e justificativas do processo eleitoral. Desde os discursos falaciosos da cidadania, da vontade popular, da democracia, até justificativas com uma percepção supostamente mais crítica da realidade, tal como aqueles que apelam para uma pretensa “ameaça fascista” para garantir a reprodução do processo eleitoral ou então o que dizem que a participação é necessária para fazer o parlamento de tribuna revolucionária, o que nunca se efetivou concretamente em nenhum lugar do mundo.
Por fim, temos o processo de cooptação e corrupção que sempre ocorre nos processos eleitorais. Além da prática cotidiana de cooptação e corrupção realizada por governos e partidos políticos, através de cargos, favores, etc., temos também a corrupção eleitoral, tanto financeira, quanto as promessas de cargos, favores e benefícios. Os alvos principais são os indivíduos que potencialmente podem angariar mais votos devido sua posição junto a setores da população. É isso que torna militantes estudantis, ativistas comunitários e de movimentos sociais, sindicalistas e membros de associação de bairros, entre outros, o alvo principal dos partidos e candidatos. Da mesma forma, os cooptados e corrompidos são futuros reprodutores do processo de cooptação e corrupção. O processo eleitoral é uma verdadeira escola de manipulação e corrupção e uma fábrica de políticos profissionais, quando o demônio compra sua alma com seu dinheiro sujo.
A mercantilização das relações sociais está presentes nas eleições e na corrupção eleitoral. A venda do voto pode ser considerada uma “corrupção do eleitor”. A corrupção é uma relação social no qual há o corruptor e o corrompido. O corruptor é o que corrompe, suborna, oferece dinheiro em troca de algo, que, no caso, é o voto. Do lado do corruptor, há o dinheiro e o desejo de consumo da mercadoria chamado voto e do lado do corrompido, há o desejo de algo em troca, que é uma mercadoria ou a possibilidade de aquisição de mercadorias. Só existe a venda do voto por existir a oferta e a procura e, no caso, a procura precede a oferta, pois só havendo procura poderá haver oferta.
Do lado do corruptor, isso ocorre devido sua ambição e ânsia pelo poder e tudo que está relacionado a isso. Do lado do corrompido, isso ocorre por vários motivos. O eleitor corrompido entende o ato eleitoral como sem sentido, como algo que não envolve sua vida cotidiana, que não produz mudanças. A percepção disso ocorre pela experiência cotidiana do votante, pois entra ano e sai ano, entra governo e sai governo e nada em sua vida muda. Assim, o não-significado do voto é razão para sua desvaloração cultural e que deve passar a ter alguma utilidade. Tendo em vista que vivemos numa sociedade que realiza a mercantilização das relações sociais em todos os níveis e tudo é transformado em mercadoria, o eleitor vê, na proposta de venda a efetiva oportunidade de venda, a possibilidade de ter algum retorno com o voto. Ele pode ser útil e qualquer coisa que se consiga por ele é “lucro”.
Um terceiro elemento que ajuda a explicar a venda do voto é o processo de corrupção existente na sociedade e política brasileira, desde o genérico “jeitinho brasileiro” até as diversas denúncias de corrupção tanto no poder executivo quanto no legislativo, a percepção dos políticos profissionais no Brasil é bastante negativa e muitas vezes eles são vistos como sinônimo de corruptos. Sendo a política um festival de corrupção, então vender o voto é algo dentro da normalidade política brasileira. A desilusão eleitoral é reforçada pela corrupção estatal existente.
Porém, como o voto é secreto, o que se vende, no fundo, não é o voto, mas a promessa do voto, que nem sempre se cumpre por ele ser secreto e por que alguns eleitores entendem que tal venda é um motivo para não se votar no candidato comprador de votos. Assim como o candidato corrupto promete e não cumpre, o eleitor corrompido também o faz. Porém, o elemento ativo nesse processo é o corruptor, aquele que quer comprar o voto, sem o qual a transação não ocorreria.
No entanto, o processo eleitoral não ocorre apenas através da relação entre eleitores e candidatos, ou seja, entre indivíduos, pois estes são seres humanos concretos, e por isso não é possível deixar de lado a luta de classes nesse contexto. Grande parte da população apresenta uma desilusão com as eleições e a democracia representativa, outra parte é cética, e isto é derivado, em parte, das experiências eleitorais passadas e das desilusões que lhes acompanham, e, em parte, do descontentamento oriundo de uma ampla insatisfação, inclusive de necessidades básicas, e da falta de atendimento destas necessidades, o que atinge mais o lumpemproletariado, o campesinato, o proletariado e algumas outras classes desprivilegiadas.
É por isso que o discurso eleitoral tem que produzir promessas irrealizáveis e oferecer migalhas atrativas para a parte mais descontente da população. Trata-se de uma estratégia da classe dominante ou de suas classes auxiliares para buscar atrair para seu partido a camada enorme de pessoas descontentes e desiludidas, o que é complementado com a busca de corrupção eleitoral, através de oferecimento de benefícios pessoais em troca do voto. Aqui, os elementos da sociabilidade capitalista, como a competição, mercantilização e burocratização das relações sociais (Viana, 2008), são elementos fundamentais para o sucesso da corrupção e cooptação eleitoral. A competição em torno do sucesso, status, poder, riqueza, numa sociedade mercantil, promove a facilidade no processo de corrupção e coloca o processo eleitoral como meio de ascensão social. Alguns indivíduos bem intencionados acabam, devido à predominância da mentalidade burocrática, aderindo aos partidos e muitos se corrompem nesse processo, outros realizam uma ruptura que pode desembocar no imobilismo ou no ativismo antipartidário. Outros são cooptados através do emprego como cabos eleitorais e promessas de emprego permanente após as eleições, caso seu candidato ganhe, além do sonho de alguns em se tornar candidatos.
Porém, os partidos expressam as classes sociais privilegiadas e disputam entre si os cargos e a posição de governo, querendo integrar o bloco dominante. Nesse contexto, o discurso eleitoral tem o objetivo de buscar, a qualquer custo, a vitória. E para isso é preciso atingir o maior número de pessoas e interesses. Os velhos discursos sobre saúde, educação, segurança, etc., apenas revelam essa tentativa de atingir uma grande parte da população, pois essas demandas são visíveis e acessíveis pelas pesquisas de opinião. Daí também o discurso policlassista, onde a classe ou grupos específicos com interesses específicos são substituídos pelo “povo”. Daí vem outra conseqüência, que é a necessidade de propaganda generalizada, atingindo o maior número de pessoas e sob variadas formas, desde a propaganda eleitoral gratuita nos meios oligopolistas de comunicação até a distribuição de panfletos, santinhos, bandeiras, adesivos, e diversas outras formas. Isso tudo produz um discurso despolitizado e despolitizador, que reforça a mistificação eleitoral.
Por isso tudo, o processo eleitoral contribui com a reprodução das relações de produção capitalistas.  Agora já podemos responder a pergunta inicial: para onde leva o processo eleitoral? A resposta é evidente: o caminho eleitoral leva para a reprodução das relações de produção capitalistas, a manutenção do capitalismo, o que significa a reprodução da alienação, da miséria e da desumanização.  Desta forma, é impossível se pensar um caminho para a liberdade através da escravidão. A libertação não pode ocorrer via escravidão, somente através da recusa da escravidão é que a libertação se torna uma possibilidade real. O processo eleitoral é um dos sustentáculos da escravidão moderna, da desumanização e da alienação. Por isso, é necessária a recusa do processo eleitoral, da democracia representativa, dos partidos, do estado e da mediação burocrática instituída por ele. A recusa do processo eleitoral pode se manifestar como abstencionismo ou como voto nulo[2]. É disto que trataremos a seguir.
As Formas do Voto Nulo
O voto nulo ou a abstenção é a opção que alguns indivíduos tomam durante o processo eleitoral. Porém, não se deve pensar que o voto nulo sempre significa a mesma coisa, pois expressa práticas e concepções diferentes. Assim, é fundamental perceber que o voto nulo assume várias formas. Assim, é preciso saber que muitos votam nulo não por vontade ou opção e sim por dificuldade em votar. Esse é o voto nulo involuntário. É o caso daqueles que, quando a eleição era com cédula de papel, tinham dificuldades em escrever o nome/número dos candidatos ou, na urna eletrônica, dificuldade em digitar, seja por falta de habilidade com a escrita ou digitação, seja por esquecer os dados dos candidatos. Porém, o número de votos nulos derivados da inabilidade do votante é relativamente pequeno e os candidatos e governo se esforçam para criar mecanismos de treinamento e sugestões para superar este processo (tal como urnas eletrônicas e simulações de votação e propaganda em TV).
Além dessa forma de voto nulo, que é involuntária, há o voto nulo espontâneo. Essa forma de voto é produto da desilusão e do ceticismo perante o processo eleitoral. O votante não acredita nas eleições, nos candidatos, nos partidos. Essa descrença o faz votar nulo. Assim, o voto nulo espontâneo é um ato fundado na descrença e por isso cumpre o papel de desvincular o votante do candidato e do processo eleitoral como um todo, manifestando-se como uma recusa legítima da farsa eleitoral. Essa recusa aponta para a deslegitimação e desvinculação psíquico dos eleitores com a democracia burguesa e isso é um ponto de partida para o voto nulo engajado numa perspectiva política mais ampla e alternativa. Porém, isso é uma potencialidade que, para se efetivar, é necessário ir além e isso pode ocorrer de forma também espontânea no caso de determinados indivíduos ou de setores da população, desde que haja ascensão das lutas sociais, ou então uma ampla luta cultural que consiga realizar uma crítica da democracia burguesa e permitir uma politização mais rápida no caso de alguns indivíduos ou grupos.
O voto nulo espontâneo, portanto, é revelação da crise de legitimidade do Estado capitalista e de uma politização inicial de setores da população, que traz em si uma grande potencialidade. Aqueles que votam nulo espontaneamente possuem uma potencialidade e tendência de avançar no sentido de uma concepção mais crítica da realidade, embora a descrença também possa ser, em alguns casos, generalizada, o que dificulta a aceitação de uma proposta alternativa, o que é reforçado pela mentalidade dominante (valores, sentimentos, concepções dominantes, que ficam nos marcos da sociedade capitalista, naturalizando-a). No entanto, mesmo nestes casos, uma ampla luta cultural voltada para aprofundar a crítica da democracia burguesa e do capitalismo, por um lado, e para mostrar a necessidade e possibilidades de formas alternativas de ação política com o objetivo de transformação social, pode transformar o voto nulo efetivado por estes indivíduos em voto politizado.
O voto nulo espontâneo pode ser substituído pelo voto nulo politizado. Porém, este último também assume formas diferenciadas, já que sendo politizado, pode ser feito a partir das mais variadas concepções políticas. Embora seja minoritário, é possível que a insatisfação se alie a concepções pouco elaboradas, reflexões superficiais, mescla de representações ilusórias e representações verdadeiras, mentalidade dominante e cultura contestadora, unindo voto nulo e moralismo ou nacionalismo, por exemplo. Porém, isto se deve em parte ao processo geral de despolitização da sociedade capitalista, o que é corroído com a ascensão das lutas dos trabalhadores e lutas sociais em geral. Dentro do voto nulo politizado há o voto nulo oportunista, no qual se une recusa temporária da democracia burguesa (por impossibilidade de participação por determinados pequenos partidos ou organizações aspirantes a partido) e tentativa de recrutar militantes. No entanto, o oportunismo está apenas em quem propõe o voto nulo e não em quem vota nulo a partir da propaganda, pois desconhece suas motivações, a não ser o vínculo com figuras ou pensadores políticos.
O voto nulo politizado é desenvolvido quando se encontra ligado a concepções políticas libertárias, embora haja muita falta de politização e equívocos também neste caso, o que é oriundo da formação cultural e política deficiente de muitos militantes ou de limites de algumas tendências que ainda se ligam a formas organizacionais ultrapassadas (anarcossindicalismo, por exemplo). Esta forma de voto nulo é a forma libertária e pode ser dividido entre semilibertário, devido suas limitações acima aludidas, e o libertário. Assim, o voto nulo libertário é a forma mais avançada de voto nulo quando ultrapassa os limites acima aludidos, pois não só mostra recusa e protesto contra a democracia e sociedade burguesas, como também apresenta um projeto concreto e alternativo de prática política e sociedade.
Há uma forma específica de voto nulo libertário que compartilha os princípios dele, mas que possui algumas especificidades. É o voto nulo autogestionário, que é uma forma de voto nulo libertário, mas que tem como diferencial determinadas propostas específicas. É justamente este voto que abordaremos a seguir.
O Voto Nulo Autogestionário
O voto nulo autogestionário é o que vincula voto nulo e autogestão social. Sem dúvida, muitas tendências anarquistas também fazem o mesmo. Porém, há algumas diferenças e isto será explicitado aqui. A ideia básica do voto nulo autogestionário é explicitada em sua própria denominação, que revela a necessidade de inseparabilidade entre meios e fins, pois autogestionário quer dizer que visa à autogestão social. Assim, se o voto é um meio para a reprodução da sociedade capitalista, então é necessário combatê-lo. Isto se deve ao fato de que não basta garantir a correspondência entre meios e fins, é necessário evitar e combater os meios inadequados de luta e que servem para outras finalidades. Assim, o voto obrigatório e o voto válido devem ser combatidos, assim como toda concepção política que aponte para o processo eleitoral como forma de luta revolucionária. Da mesma forma, algumas formas de voto nulo devem ser superadas por outras, o que significa que a luta pelo voto nulo deve não somente ser uma forma de recusa do voto e das concepções que lhes acompanha, mas também de aprofundamento e radicalização do voto nulo em suas formas não-libertárias.
Assim, a luta pelo voto nulo autogestionário é estratégica, ou seja, tem uma finalidade imediata articulada com o objetivo final que é a autogestão social. Ela busca atingir o conjunto das classes exploradas e grupos oprimidos, bem como a todos os possíveis aliados da luta pela emancipação humana, e, no interior destes, aqueles que possuem uma posição a favor do voto nulo sob formas incipientes, visando colaborar com a superação das suas contradições. Assim, a luta pelo voto nulo assume formas mais sintéticas e de propaganda generalizada, sendo, portanto, mais simples e acessível, e formas mais elaboradas, teóricas, buscando expressar a questão da negação do processo eleitoral com a totalidade das relações sociais, o que remete para a discussão sobre Estado capitalista, democracia burguesa, partidos políticos, políticos profissionais, capital eleitoral (“indústria eleitoral”), ideologia e ideologias políticas, exploração e luta de classes, etc. de forma mais aprofundada. Neste sentido, a luta pelo voto nulo numa perspectiva autogestionária aponta para a propaganda generalizada e para a elaboração teórica, sendo esta última a fonte inspiradora da primeira, que é sua versão mais simples, sintética, acessível.
Outro elemento do voto nulo autogestionário é que não só apresenta uma concepção crítica e totalizante do processo eleitoral como também do próprio voto nulo, de seus limites e formas, ou seja, é uma proposta e prática política fundada na reflexão e não no praticismo, defendido por determinados grupos e tendências. O próprio voto nulo deve ser analisado e ver seus limites como prática e concepção, suas formas de manifestação concreta. Assim, nem todo voto nulo é relevante para uma análise política, caso, por exemplo, ele seja voluntário em grande número de casos. Da mesma forma, o voto nulo despolitizado é um potencial que precisa de se desenvolver, e a luta cultural e pelo voto nulo autogestionário tem um papel fundamental nesse processo. Assim, é necessário refletir sobre as formas e limites do voto nulo e também sobre o próprio voto nulo autogestionário, buscando analisá-lo, compreendê-lo, aperfeiçoá-lo e contribuir, assim, para que ele supere seus possíveis limites e ganhe maior eficácia.
Um terceiro elemento é que além da concepção crítica e totalizante do processo eleitoral e do caráter reflexivo sobre o voto nulo, inclusive o de caráter autogestionário, é fundamental nunca perder de vista, tanto na propaganda generalizada como na elaboração teórica, o vínculo necessário entre voto nulo e autogestão social. Obviamente que, no primeiro caso, isso se dá de forma precária, principalmente dependendo do material (se é um adesivo, por exemplo, não é possível aprofundamento, apenas defesa do voto nulo e vínculo com autogestão social), porém, é necessário sempre utilizar as palavras “voto nulo” e “autogestão social” juntas, pois a negação ganha explicitamente a afirmação que lhe é complementar. O voto nulo não é um objetivo em si mesmo, nem a luta pelo voto nulo[3]. Esta última é parte de uma luta cultural e prática para deslegitimar, desmistificar, corroer o processo eleitoral no sentido de avançar a consciência revolucionária e colocar em evidência um projeto alternativo de sociedade, a autogestão social. Assim, não tem caráter apenas negativo, mas também propositivo. Não votar apenas por não votar, é algo que pode ocorrer concretamente, mas não como objetivo da luta autogestionária. Nesse caso, o vínculo entre voto nulo e autogestão social é fundamental e por isso é importante não só colocar a necessidade de práticas conjuntas ao voto nulo e alternativas (auto-organização, auto-formação), como o sentido e objetivo disso tudo, a revolução proletária, a instauração de uma sociedade radicalmente diferente, a emancipação humana. Um ato tão insignificante como o voto pode ter um significado político radical, ser um momento de colocar em discussão e reflexão a autogestão social, a emancipação humana.
Assim, o fundamental é deixar claro o vínculo entre a luta pelo voto nulo e o próprio voto nulo com a perspectiva do proletariado, a luta pela autogestão social, unindo os dois elementos com propostas práticas e reflexões críticas, pois assim a deslegitimação e desmistificação ganham maior profundidade indo além do próprio ato do voto nulo, bem como o negacionismo puro é superado por uma ação possível e projeto revolucionário.
Nesse sentido, quem opta pelo voto nulo autogestionário faz uma opção pela autoemancipação proletária e humana, ou seja, pela autogestão social. Quanto mais pessoas votarem nulo nessa perspectiva, mais pessoas conscientes estarão defendendo a autogestão social. O significado disso é o aumento de indivíduos e de ações a favor da autogestão, o que torna sua tendência de realização cada vez mais forte. É um passo no caminho da autogestão, embora seja no início da estrada, sem ele os passos seguintes dificilmente serão dados, pois a crença na democracia burguesa e no processo eleitoral é um obstáculo a ser superado. A classe proletária, em seu conjunto, assim como outros setores da população, pode dar um salto e pular etapas, mas isto depende das lutas sociais. Os indivíduos isolados, no entanto, somente através da luta cultural poderiam realizar tal salto. Porém, alguns vão a passos lentos, outros saltam, mas se for na estrada certa, chega-se ao lugar desejado, a autoemancipação humana.

Referências
Viana, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003b.
Viana, Nildo. Notas Sobre o Significado Político do Futebol. Maringá/PR, Revista Espaço Acadêmico, Ano 10, num. 111, Agosto de 2010.
Viana, Nildo. O Que São Partidos Políticos? Goiânia, Edições Germinal, 2003a.
Viana, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo, Escuta, 2008.
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VIANA, Nildo . Eleições, Voto Nulo e Autoemancipação. Revista Enfrentamento, v. 4, p. 17-26, 2010.
http://enfrentamento.net/Texto%20Nildo%20Viana.pdf 


[1] As raízes dessa pseudestesia se encontram na ânsia popular por mudanças, a necessidade de esperança, que todo ser humano carrega no seu íntimo e a vontade de sua materialização, se agarrando muitas vezes à ilusões e soluções fáceis, o que cria um vínculo irracional nas disputas políticas, provocando um envolvimento emocional forte que gera brigas e desentendimentos entre eleitores (tal como também ocorre com o futebol e religião, embora sob formas e razões diferenciadas). O fascismo, por exemplo, pode se beneficiar deste tipo de vínculo irracional. A sua irracionalidade está no aspecto emocional e sentimental da ligação sem qualquer coordenação mais efetiva da consciência, ou seja, de ordem racional. É por isso que é porta aberta para a violência, já que a comunicação e reflexão são interrompidas.
[2] O abstencionismo era a prática mais corrente dos setores politizados e à esquerda no início do século 20 até os anos 1960. Porém, no caso brasileiro, onde o voto é obrigatório e quem não vota é penalizado, o voto nulo é a forma de ação antiparlamentar existente. Alguns pregam o abstencionismo, pensando ser assim mais radical, porém, não existe nenhuma diferença fundamental entre as duas ações. Se o voto nulo pode parecer “legitimador” por se realizar o ato do voto, embora recusando-o, o abstencionismo tende a ser desmobilizador, já que não provoca nenhum ato, nem de recusa. O voto nulo faz perder tempo, mas se for uma luta cultural, provoca reflexões e ações. O abstencionismo também pode fazê-lo, mas não tem ao seu lado a obrigatoriedade de presença numa seção eleitoral. O abstencionismo promove um total afastamento da política burguesa, enquanto que o voto nulo ainda mantém um vínculo formal. No fundo, ambos tem vantagens e desvantagens e a opção por um ou por outro, ao invés de radicalismo abstrato e rebeldia irrefletida, é mais questão de contexto e estratégia. No presente texto, como são bastante semelhantes, quando falamos de voto nulo involuntário, espontâneo, voluntário e autogestionário, isso também se aplica ao processo de abstenção e ao abstencionismo.
[3] Luta e não “campanha”, que significa reproduzir a linguagem eleitoral.

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