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terça-feira, 26 de agosto de 2014

LANÇAMENTO DO LIVRO "A DINÂMICA DA VIOLÊNCIA JUVENIL"


LANÇAMENTO DO LIVRO "A DINÂMICA DA VIOLÊNCIA JUVENIL".
Sexta às 20:00
Biblioteca do SESC, Centro, Rua 15 (esquina com rua 19), térreo, Centro, Goiânia-Go (Próximo ao Colégio Liceu).

Nessa data também será lançado o livro de Veralúcia Pinheiro e Lúcia Freitas, "Violência de Gênero, Linguagem e Direito", entre outros.




terça-feira, 19 de agosto de 2014

Desenvolvimento Capitalista, Luta de Classes e Política Institucional



Desenvolvimento Capitalista, Luta de Classes e Política Institucional

 Nildo Viana

 * Capítulo do livro:VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.

A luta de classes é o motor das transformações da política institucional. As mudanças políticas-institucionais são provocadas pelo desenvolvimento capitalista, marcado pela luta entre as classes sociais. Esta é a tese que apresentaremos aqui e que já foi esboçada nos capítulos anteriores. Poderíamos ter iniciado com este capítulo, mas preferimos encerrar com ele, invertendo a ordem tradicional, pois agora, após uma análise histórica (embora incompleta, o que nos faz, aqui, completar parcialmente o que já havia sido esboçado nos capítulos anteriores) do desenvolvimento do estado capitalista, da democracia burguesa e da cidadania, ficará mais perceptível nossa tese.

As lutas de classes assumem duas formas fundamentais: luta de classes na produção e luta de classes na sociedade civil. Sem dúvida, estas duas formas estão intimamente ligadas e entrelaçadas, mas também possuem algumas especificidades, das quais trataremos brevemente aqui. A luta de classes na produção é aquela que se realiza no processo de trabalho capitalista, que é, simultaneamente, processo de valorização (Marx, 1988a). Trata-se de uma luta em torno do mais-valor, o que traz implicações para a organização do trabalho, o uso da tecnologia, a burocracia, etc. A classe operária, nesta luta, utiliza desde a resistência passiva (ações individuais, desinteresse, absenteísmo, etc.) passando por diversas ações até chegar ao processo de radicalização, expresso pelas greves, formação de conselhos de fábrica, ocupação de fábrica e autogestão das unidades de produção. Em síntese, a luta de classes na produção é aquela realizada no processo de produção, que, no capitalismo, é uma luta em torno do mais-valor, ocorrida no processo de valorização, manifestação do processo de trabalho nesta forma específica de sociedade.

A luta de classes em torno do mais-valor é, inicialmente, por parte do proletariado, uma luta pela diminuição da extração de mais-valor e, em momentos de acirramento das lutas de classes, uma luta pela abolição do mais-valor. Para a burguesia, trata-se, num primeiro momento, de uma luta pelo aumento de extração de mais-valor, e, num segundo, quando há o acirramento da luta operária, uma luta pela manutenção da extração de mais-valor. Isto ocorre, independentemente da consciência concreta destas classes, pois é a própria posição diante das relações de produção que provoca isto. A burguesia precisa, devido a competição capitalista, aumentar a extração de mais-valor e quanto o movimento operário ameaça a relação-capital, precisa se unir para garantir a reprodução desta relação. O proletariado luta contra o aumento e pela diminuição do mais-valor pelo motivo de que isto é um processo que marca sua vida cotidiana e lhe suga o sangue, sendo que o capital é como um vampiro para os indivíduos proletários. Esta luta é a recusa natural do trabalho alienado, da destruição psíquica do trabalhador, da opressão durante a jornada de trabalho. Nos momentos de ascensão da luta operária ocorre o questionamento da própria relação-capital, isto é, da produção de mais-valor. Isto ocorre com a autogestão da luta operária pela própria classe operária, que já instaura a autogestão nas fábricas e do conjunto das relações sociais, abolindo a base da produção de mais-valor.

A luta de classes na sociedade civil já ocorre fora da esfera da produção. O conceito de sociedade civil expressa, tal como em Hegel, a esfera privada em contraposição à esfera pública (estatal) (Hegel, 1979; Lefebvre & Macherey, 1999), posição que será a mesma de Marx, embora este use este termo poucas vezes, e não entra no seu arcabouço teórico. Aqui utilizamos a expressão sociedade civil num sentido bem específico: é o conjunto das formas privadas de regularização das relações sociais. Em outras palavras, além do modo de produção dominante e dos modos de produção subordinados, temos as formas de regularização das relações sociais (“superestrutura”), que podem ser divididas em formas privadas e estatais. As formas estatais são constituídas pelo estado, pelas instituições estatais (fundações, autarquias, etc.), pelos seus aparelhos (jurídico, policial, etc.) por suas ideologias, etc. enquanto que as formas privadas são a cultura, a sociabilidade, as instituições civis (igrejas, partidos, associações, escolas, hospitais etc.), etc. A sociedade civil é constituída, em nossa concepção, por estas formas privadas. A relação entre sociedade civil e estado, entre as formas privadas e as formas estatais de regularização é marcada por conflitos e pelo predomínio da burguesia em ambas. O estado, tal como colocamos anteriormente, é um aparelho privado do capital e a sociedade civil é hegemonizada pela burguesia, pois ela é a classe dominante, comandando o modo de produção e o estado, possuindo o domínio tanto financeiro quanto repressivo e institucional na sociedade civil. Mas esta hegemonia não é absoluta e é por isso que existe luta de classes na sociedade civil.

A luta de classes na sociedade civil é aquela realizada na esfera cultural, nas instituições, nos locais de moradia, etc. Segundo a ideologia dominante, são as lutas sociais em geral, em contraposição às lutas políticas, que só ocorreriam sendo direcionadas para o estado, precisando de sua sanção para conseguir o título de “político”. Tais lutas, na verdade, são lutas políticas institucionais, isto é, uma parte reduzida das lutas políticas, que mantém uma relação com o estado. Mas a parte mais ampla das lutas de classes na sociedade civil ocorre sem apelar para o reconhecimento estatal. Uma delas está na luta cultural cotidiana realizada pelas classes exploradas, movimentos sociais, grupos revolucionários. A esquerda tradicional sempre enfatizou esta esfera da luta, através de suas ações partidárias, mas a direcionou no sentido de conquistar o poder estatal, expressão dos interesses de classes que a anima. Daí sua concepção de partido e consciência exterior (leninismo, social-democracia), revelando sua vocação dirigista e burocrática, expressão dos interesses de classe da burocracia.

Sem dúvida, a luta de classes dirigida ao estado pode ser efetivada pelo conjunto dos explorados e oprimidos, mas isto depende do tipo reivindicação feita e nunca assume uma importância central nas lutas sociais. A luta pela diminuição da jornada de trabalho, por exemplo, foi uma luta da classe operária na sociedade civil que teve repercussão na luta de classes na produção. O mesmo ocorre coma expansão de uma cultura revolucionária. A luta em torno do mais-valor, por sua vez, também interfere na lutas de classes na sociedade civil. Quando a classe dominante quer aumentar a extração de mais-valor absoluto, ela precisa mudar a legislação trabalhista, isto é, interferir na esfera da sociedade civil ou, quando o proletariado realiza um amplo movimento grevista, isto influencia as lutas na sociedade civil, reforçando a cultura revolucionária e aumentando o temor da classe dominante.

Após apresentar esta breve definição de lutas de classes na produção e na sociedade civil, podemos partir para o processo de desenvolvimento das lutas de classes e as mudanças que elas provocam no desenvolvimento capitalista e na política institucional. O desenvolvimento capitalista é marcado pela sucessiva mudança no regime de acumulação. Um regime de acumulação é constituído por uma determinada forma assumida pelo processo de valorização, uma determinada forma de organização estatal e um modo específico de relação entre os países capitalistas, ou seja, de relações capitalistas internacionais.

A passagem da acumulação primitiva de capital para a acumulação capitalista propriamente dita significa a instauração de um novo regime de acumulação, agora especificamente capitalista, dentro dos países capitalistas imperialistas. O regime de acumulação instaurado é o extensivo, no qual a classe capitalista extrai, fundamentalmente, mas não unicamente, mais-valor absoluto. É neste momento histórico que surge o estado capitalista, sob a forma de estado liberal, e o neocolonialismo[1], elementos necessários e complementares para a acumulação capitalista.

O regime de acumulação extensivo, no qual predomina a extração de mais-valor absoluto, se caracteriza por um alto grau de exploração da força de trabalho realizada pela classe capitalista. A luta de classes na produção demonstra o predomínio do capital e a imposição de longas jornadas de trabalho, baixos salários, amplo uso de força de trabalho precoce (crianças e jovens) e feminina, etc. A luta operária era expressa em ações como o cartismo, a quebra de máquinas, etc. As lutas de classes na sociedade civil se manifestavam, por um lado, como luta operária para mudar as condições de trabalho (jornada de trabalho, luta contra o uso de força de trabalho precoce e feminino, etc.), salários, legalização de sindicatos, e pela ampliação dos direitos civis e políticos, etc.

O estado liberal evitava a ampliação da participação restrita das classes sociais na elaboração das políticas estatais (democratização), pois temia, tal como expressava seus ideólogos, que o direito de voto estendido aos trabalhadores resultasse em seu predomínio na esfera estatal (Macpherson, 1978). A democracia censitária e a cidadania civil (direitos civis) era o máximo que poderia ceder o estado liberal, pois as reivindicações operárias (tal como a diminuição da jornada de trabalho) comprometiam o regime de acumulação e este exige um estado repressivo. A década de 40 do século 19 marca uma ascensão das lutas operárias e a dificuldade de reprodução deste regime de acumulação. Na década de 50 tal regime de acumulação entra verdadeiramente em crise e culmina com a Comuna de Paris, em 1871, a primeira tentativa de instauração da autogestão social. “Este modelo de acumulação se esgota a partir dos anos 70: a crise se instaura através da acentuação da luta de classes, marcada pela Comuna de Paris, e só será vencida, através da superação do laissez faire dos anos 50-70 – único período de verdadeiro liberalismo capitalista –, da constituição dos monopólios e da expansão do imperialismo” (Amin, 1977, p. 9)[2].

A ascensão da luta operária marca uma derrota temporária da classe capitalista. A diminuição da jornada de trabalho foi um duro golpe para a classe capitalista e, juntamente com outras determinações, decretou a crise do regime de acumulação extensivo do capitalismo livre-concorrencial e sua substituição pelo regime de acumulação do capitalismo oligopolista. Marx descreveu o longo processo de lutas operárias pela diminuição da jornada de trabalho que perpassa todo o século 19. Segundo Marx, “a criação de uma jornada normal de trabalho, é, por isso, o produto de uma guerra civil de longa duração, mais ou menos oculta, entre a classe capitalista e a classe trabalhadora. Como a luta foi inaugurada no âmbito da indústria mais moderna, travou-se primeiro na terra natal dessa indústria, na Inglaterra” (Marx, 1988a, p. 227).

A guerra civil oculta em torno da jornada de trabalho na Inglaterra (e as lutas operárias em outros países capitalistas, tal como na França) teve conseqüências de alcance mundial. Esta luta de classes na sociedade civil provocou alterações na luta de classes na produção. Mas o que ocorreu nesta esfera, num primeiro momento, foi a ofensiva capitalista que buscava compensar a diminuição de extração de mais-valor absoluto devido a diminuição da jornada de trabalho com o aumento da extração de mais-valor relativo. Trata-se da passagem do regime de acumulação extensivo para o regime de acumulação intensivo.

A obra de Taylor e a “administração científica do trabalho” são a resposta do capital, já esboçada de forma não sistemática antes do surgimento do taylorismo, a este recuo na extração de mais-valor absoluto. Assim se institui um novo regime de acumulação, complementado pelo uma nova forma estatal, o estado liberal-democrático, e uma nova forma de exploração internacional, o imperialismo. O taylorismo buscava, através da organização do processo de trabalho, aumentar a extração de mais-valor relativo. Sem dúvida, este processo foi acompanhado pela resistência operária, em parte descrita pelo próprio Taylor ao relatar suas experiências (Taylor, 1987). O estado liberal-democrático significou uma concessão ao movimento operário, ao regularizar partidos, sindicatos, etc., ampliar a legislação trabalhista, entre outras ações, sendo que na esfera da política institucional isto tudo significou a passagem do estado liberal para o estado liberal-democrático e também a passagem da democracia censitária para a democracia partidária liberal, ao lado da ampliação da cidadania, que passa a englobar os direitos políticos. No entanto, o estado liberal-democrático, ao mesmo tempo em que realizou estas concessões, buscou integrá-las em sua lógica de reprodução, anulando o caráter potencialmente subversivo destas mudanças.

Este processo foi acompanhado pela centralização e concentração de capital originária do período anterior, o que proporcionou a formação dos oligopólios e a dinâmica do capitalismo oligopolista passou a ser centrada na acumulação intensiva. O capital oligopolista gerou uma nova política estatal, o protecionismo e, juntamente com isso, a exportação de capital-dinheiro (Benakouche, 1980), formando a base do imperialismo financeiro, que tornou a forma predominante de exploração internacional, convivendo com as formas neocoloniais que continuavam sobrevivendo de forma secundária a partir desse momento. O capital oligopolista necessitava de ampliar os investimentos e a exportação de capital-dinheiro resolvia parcialmente esta questão, embora provoque o acirramento dos conflitos internacionais com os demais países imperialistas na busca de novos domínios nacionais. A produção capitalista se expande nos países subordinados, tal como a Rússia, o Brasil, entre outros.

O capitalismo oligopolista, com seu regime de acumulação intensivo, entra em crise já no início do século 20.  Este regime de acumulação é substituído por uma versão reformada da acumulação intensiva, o que gera novas transformações na sociedade capitalista.

A luta operária no início do século 20 assusta a burguesia dos países capitalistas imperialistas. A social-democracia crescia eleitoralmente, bem como outras organizações reformistas (sindicatos, por exemplo). As tendências revolucionárias também se alastraram (anarquismo, sindicalismo revolucionário, as correntes esquerdistas do marxismo, etc.) e o movimento operário como um todo mostrava sua força. A luta de classes na produção ia desde a resistência cotidiana ao taylorismo até os fortes movimentos grevistas enquanto que a luta de classes na sociedade civil se manifestava no apoio eleitoral aos partidos social-democratas, o fortalecimento das tendências revolucionárias, a produção cultural contestadora, etc. A revolução russa de 1905 e as greves na Europa nos primeiros anos do século 20 foram seguidas pelas diversas tentativas de revolução social nos anos seguintes, a formação dos conselhos operários e o fortalecimento do anarquismo e do esquerdismo[3], tal como as tentativas de revolução na Alemanha, na Itália, na Hungria, na Rússia, etc. A derrota do movimento operário na Rússia, graças à contra-revolução burocrática realizada pelo bolchevismo, bem como a influência crescente deste em partidos e sindicatos, apareceu, aos olhos da burguesia, como uma “vitória proletária” e como uma “ameaça comunista”.

Em alguns países capitalistas, tal como na Alemanha, o estado liberal-democrático e a classe capitalista resistiram, num primeiro momento, cedendo o governo para a social-democracia, pensando que ela pudesse conter o ímpeto revolucionário devido sua influência na população e sua força nos meios sindicais. Ao ver que tal estratégia não funcionava, teve que apelar para a repressão e o fascismo. Este foi um momento de crise generalizada na Europa, gerando as guerras mundiais. O capitalismo de guerra (os economistas utilizam o eufemismo “economia de guerra”, deixando claro o caráter ideológico da expressão que busca dar aparência de neutralidade ao processo destrutivo assumido pelo capital em momentos de fortes crises) se instaurava e salvava o modo de produção capitalista da destruição.

A segunda guerra mundial abriu caminho para um novo regime de acumulação, pois a destruição em massa das forças produtivas possibilitava uma ampla e generalizada acumulação de capital, principalmente tendo em vista a capacidade tecnológica existente. O novo regime de acumulação se fundamentava no fordismo, no estado integracionista (também chamado de welfare state, keynesiano, social-democrata ou “de bem estar social”) e no imperialismo oligopolista. O fordismo tem suas origens remotas no início do século 20, mas é somente no pós-guerra que irá se tornar hegemônico: “a data inicial simbólica do fordismo deve por certo ser 1914, quando Henry Ford introduziu seu dia de oito horas e cinco dólares como recompensa para os trabalhadores da linha automática de montagem de carros que ele estabelecera no ano anterior em Dearbon, Michigan. Mas o modo de implantação geral do fordismo foi muito mais complicado que isso” (Harvey, 1992, p. 121).

Harvey sustenta que Ford apenas aprimorou algumas tendências tecnológicas e organizacionais e aprofundou a racionalização do processo de trabalho, ação iniciada por Taylor. “O que havia de especial em Ford (e que, em última análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista” (Harvey, 1992, p. 121).

Na verdade, o fordismo se distingue do taylorismo, enquanto forma de organização do trabalho, pela busca de extração de mais-valor relativo via uso da tecnologia (Viana, 2001), ou seja, enquanto Taylor buscava aumentar a produtividade via organização (controle e gerência) do processo de trabalho, Ford ia além e buscava aumentar a produtividade com o uso de novas tecnologias que determinam o ritmo e a intensidade do trabalho. Isto, sem dúvida, não só proporcionava e incentivava a produção em massa, como exigia ela e não tinha aplicabilidade fora dela, pois aumentava os custos de produção (derivados do uso de novas tecnologias) e a tecnologia aplicada proporcionava a produção em massa, o que inviabilizava seu uso em produção de pequena escala. A ampliação das empresas oligopolistas era pré-condição para a generalização do fordismo.

Outra característica do fordismo é que este processo de intensificação do trabalho tendia a aumentar a insatisfação e resistência dos trabalhadores e daí ele ser complementado por um sistema compensatório visando impedir a manifestação desta tendência. Foi por este motivo que H. Ford forneceu aumento salarial aos seus operários, o que, sem dúvida, corroia parte do mais-valor relativo adquirido com o aumento da produtividade[4], mas garantia a estabilidade na empresa  e servia de “incentivo material” para os trabalhadores.

Este foi o motivo pelo qual o taylorismo foi predominante durante o capitalismo oligopolista, pois o fordismo exigia maiores gastos com tecnologia e maiores salários. É somente a partir do pós-guerra que o fordismo se torna predominante nos países capitalistas imperialistas: “a internacionalização propriamente dita do fordismo começou apenas após a Segunda Guerra Mundial, impulsionada ativamente pelos EUA. O plano Marshall, a partir de 1949, poderia à primeira vista ser interpretado como uma tentativa de prover de dólares as economias européias desorganizadas e destruídas pela guerra, para vaciná-las contra o ‘perigo comunista’ e assegurar economicamente a aliança ocidental. Numa focalização mais aprofundada, entretanto, tratava-se de um projeto para abrir possibilidade de mercado à produção americana, facilitando assim a difícil conversão da economia de guerra em economia de paz” (Altvater, 1995, p. 164).

Aqui temos a razão de ser da expansão do fordismo: a produção capitalista após 1945 visa conter suas contradições, buscando integrar a classe operária no capitalismo e aumentando a produção dos meios de consumo (Viana, 2002). A partir desta época, os investimentos são crescentemente investidos na produção de meios de consumo em detrimento da produção de meios de produção (o que não significa, de forma alguma, que tenha diminuído os investimentos na produção de meios de produção, mas sim que houve um deslocamento de investimento para a produção de meios de consumo, o que significou um aumento proporcional deste em relação à produção de meios de produção, que, caso não ocorresse, geraria um ritmo ainda mais acelerado de desenvolvimento tecnológico que aumentaria excessivamente a composição orgânica do capital)[5].

Este crescimento da produção de meios de consumo, por sua vez, trazia a necessidade de ampliação do mercado consumidor. Os aumentos salariais possibilitavam um aumento do mercado consumidor, mas ainda insuficiente. Por outro lado, as lutas operárias e o movimento socialista anterior à guerra tinha colocado em questão o capitalismo e a derrota do nazi-fascismo teve a contribuição de diversas correntes socialistas e da União Soviética, que ainda era vista como “ameaça comunista” pela burguesia e como “socialismo” por grande parte dos trabalhadores.

Isto provocou a transformação do estado liberal-democrático em estado integracionista (também chamado estado do bem estar social e estado keynesiano, sendo que a primeira expressão destaca a política social e o suposto “bem estar” gerado por ela, enquanto que a segunda destaca o intervencionismo estatal na esfera da produção e reprodução do capital), cujo objetivo primordial era integrar a classe operária no capitalismo. A política estatal de seguridade social e o conjunto de políticas voltadas para a educação, saúde, etc., visavam integrar a classe operária, melhorando seu nível de vida e a qualificação de parte dela, e, ao mesmo tempo, buscava ampliar o mercado consumidor, pois a força de trabalho ao ser liberada de determinados gastos e receber seguro-desemprego, entre outros benefícios financeiros, passava a ter um maior poder aquisitivo. No entanto, esta nova forma estatal, bem como a nova estratégia do capital no processo de valorização (fordismo) ao mesmo tempo aumentava a extração de mais-valor relativo, aumentava os gastos estatais e os aumentos salariais que anulavam parte do mais-valor que poderia ser extraído com o aumento de produtividade.

Este dilema do capital foi resolvido com a expansão capitalista transnacional. O imperialismo, neste momento histórico, passa a se caracterizar pelo predomínio da exportação de capital-produtivo, e as empresas transnacionais se instalam em diversos países, abrindo uma nova fase de exploração imperialista, realizando uma ampla transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os países capitalistas imperialistas[6] (Viana, 2000). Assim, o capitalismo oligopolista transnacional inaugura um novo regime de acumulação, o intensivo-extensivo, marcado pela extração de mais-valor relativo nos países imperialistas e pelo predomínio da extração de mais-valor absoluto nos países capitalistas subordinados. Assim, a acumulação intensiva no capitalismo imperialista era reforçada pela acumulação extensiva no capitalismo subordinado, através da transferência de mais-valor.

Este novo regime de acumulação amortece as lutas de classes nos países capitalistas imperialistas, pois o estado integracionista não só busca integrar a classe operária através de sua política de “bem estar social”, o que significa, simultaneamente, a constituição da “cidadania social” (inclusão dos direitos sociais na cidadania, tal como descrita por T. H. Marshall, seu principal ideólogo), bem como as empresas oligopolistas concedem aumentos salariais, mas também pelo intervencionismo estatal nas instituições da sociedade civil (através da regularização jurídica, incentivos, recursos, controle, etc.), reforçando o processo de burocratização e mercantilização das relações sociais. O processo de mercantilização das relações sociais faz parte da estratégia de ampliação do mercado consumidor, fazendo os serviços sociais não-estatais assumirem a forma-mercadoria[7]. O processo de burocratização das relações sociais significa a formação da “sociedade civil organizada”, isto é, burocratizada. Estes processos são complementares e proporcionarão a instituição da democracia partidária burocrática em substituição à democracia partidária liberal.

O regime de acumulação intensivo-extensivo, que alguns chamam de “fordista”[8], se desenvolveu, em cada país, de acordo com suas peculiaridades, tal como no caso francês já abordado, que, por ter sofrido uma destruição maior no processo da segunda guerra mundial, teve um desenvolvimento peculiar, utilizando o processo inflacionário como estratégia para viabilizar a reconstrução da produção nacional (Mauro, 1973). Este regime de acumulação garantiu a estabilidade no capitalismo oligopolista transnacional até o final da década de 60, quando começa o seu declínio. “Em retrospecto, parece que havia indícios de problemas sérios no fordismo já em meados dos anos 60. Na época, a recuperação da Europa Ocidental e do Japão tinha se completado, seu mercado interno estava saturado e o impulso para criar mercados de exportação para os seus excedentes tinha de começar. E isso ocorreu no momento em que o sucesso da racionalização fordista significava o relativo deslocamento de um número cada vez maior de trabalhadores da manufatura. O conseqüente enfraquecimento da demanda efetiva foi compensado nos Estados Unidos pela guerra à pobreza e pela guerra do Vietnã. Mas a queda da produtividade e da lucratividade corporativas depois de 1966 marcou o começo de um problema fiscal dos Estados Unidos que só seria sanado às custas de uma aceleração da inflação, o que começou a solapar o papel do dólar como moeda-reserva internacional estável. A formação do mercado do eurodólar e a contração do crédito no período 1966-1967 foram, na verdade, sinais prescientes da redução do poder norte-americano de regulamentação do sistema financeiro internacional. Foi também perto dessa época que as políticas de substituição de importações em muitos países do Terceiro Mundo (da América Latina em particular), associadas ao primeiro grande movimento das multinacionais na direção da manufatura no estrangeiro (no Sudoeste Asiático em especial), geraram uma onda de industrialização fordista competitiva em ambientes inteiramente novos, nos quais o contrato social com o trabalho era fracamente respeitado ou inexistente. Daí por diante, a competição internacional se intensificou à medida que a Europa Ocidental e o Japão, seguidos por toda uma gama de países recém-industrializados, desafiaram a hegemonia estadunidense no âmbito do fordismo a ponto de fazer cair por terra o acordo de Bretton Woods e de produzir a desvalorização do dólar. A partir de então, taxas de câmbio flutuantes e, muitas vezes, sobremodo voláteis substituíram as taxas fixas da expansão do pós-guerra” (Harvey, 1992, p. 135).

O regime de acumulação intensivo-extensivo, a partir da década de 60, encontra dificuldades crescentes para sua reprodução (Granou, 1974; Harvey, 1992). As lutas sociais se manifestaram através do movimento de contracultura, autonomização do movimento estudantil (em toda a Europa e em outros continentes, mas com destaque para o Maio de 68 em Paris) e do movimento operário (Itália, França, etc.), bem como o ressurgimento ou fortalecimento de tendências revolucionárias, que já vinha se esboçando anteriormente (anarquismo, situacionismo, etc.).

O esgotamento do regime de acumulação intensivo-extensivo foi provocado, mais uma vez, pela tendência declinante da taxa de lucro. O sucesso deste regime de acumulação dependia do alto grau de exploração dos trabalhadores do capitalismo subordinado, da constante reprodução ampliada do mercado consumidor e da integração da classe operária no capitalismo oligopolista transnacional, elemento que dependia dos dois anteriores. A partir do final da década de 60, estes três elementos encontraram dificuldades crescentes em se reproduzir.

A taxa de lucro começa a cair a partir da década de 60 e continua em queda até o início da década de 70 (Harvey, 1992). A solução do capital não poderia ser fundamentada apenas num novo aumento da exploração dos trabalhadores do capitalismo subordinado, pois isto significaria uma elevação extrema da exploração e teria conseqüências, tal como, além de aumentar a instabilidade dos países capitalistas subordinados, impedir a ampliação do mercado consumidor e este, no capitalismo oligopolista transnacional, já não podia crescer no ritmo necessário para a reprodução ampliada do capital. A conseqüência imediata disto seria o fim do estado integracionista, pois a solução encontrada foi o aumento da exploração, tanto no capitalismo imperialista quanto no capitalismo subordinado, além de uma nova disputa interimperialista pela partilha do mercado consumidor.

Assim, ao ver o recrudescimento do mercado consumidor, a disputa por este se torna cada vez mais acirrada, bem como se busca desacelerar a produção de meios de consumo, seja através da transformação de capital produtivo em capital improdutivo (capital financeiro), seja através de guerras, o que permite um fortalecimento da indústria bélica e a destruição das forças produtivas nacionais que, no pós-guerra, se torna um mercado consumidor subordinado.

Juntamente com isto, e esta é a estratégia fundamental, se aumenta a taxa de exploração, tanto nos países imperialistas quanto nos subordinados. Assim, temos o novo regime de acumulação, que vai sendo gestado no final da década de 60 (com exceção do Japão, que lança suas bases já na década de 50, sendo sua forma de reconstrução nacional, mas apenas no que se refere ao processo de valorização), mas que só começa a existir efetivamente e predominantemente a partir da década de 80. Trata-se do regime de acumulação integral, que busca aumentar, simultaneamente, a extração de mais-valor relativo e mais-valor absoluto. Esta busca de aumento da taxa de exploração vai ser batizada de “reestruturação produtiva” e terá no toyotismo (Viana, 2001) e modelos similares a forma como o capital irá agir no processo de valorização, o que será complementado pelo estado neoliberal e pelo neo-imperialismo.

As mudanças no processo de valorização ocorrem tendo por base a reorganização do processo de trabalho, que, na verdade, é uma continuidade do taylorismo-fordismo, com alterações formais (Viana, 2001). O taylorismo centrava sua busca de aumento de extração de mais-valor relativo na organização do trabalho, no controle e gerencia, e o fordismo no uso da tecnologia. O toyotismo, bem como modelos similares, focaliza os dois processos em conjunto. O sistema toyota subordina o processo de produção à demanda do mercado (o método kan-ban, inspirado nos supermercados norte-americanos), o que gera um processo de revezamento entre intensificação e não-intensificação do trabalho, processo que tem como vantagens: não produzir em excesso; proporcionar descanso que faz os trabalhadores suportarem os momentos de extrema intensificação do trabalho. O trabalho em equipe e a pluri-especialização visa catexizar o trabalhador, ou seja, busca fazer com que ele invista suas energias físicas e mentais no processo de trabalho para aumentar a produtividade. O controle de qualidade é apenas uma nova roupagem da vigilância proposta por Taylor, agora realizada pelos próprios trabalhadores (embora não totalmente).

Ao lado disso, temos os fenômenos da terceirização, da sub-contratação, do trabalho “autônomo”. Estes são métodos secundários de exploração capitalista (Marx, 1986b) e que são complementados pela desregulamentação das relações de trabalho e pela lumpemproletarização[9], sendo que o primeiro permite a diminuição de custos pela empresa capitalista e o segundo aumenta o desemprego e a competição pelo mercado de trabalho, o que proporciona a desvalorização da força de trabalho e diminuição salarial.

Assim, temos o elemento principal do processo de acumulação integral: busca de aumento de extração de mais-valor relativo e mais-valor absoluto (Viana, 2001; Harvey, 1992), pois este conjunto de mudanças não só afeta os salários como também a jornada de trabalho, que, surpreendentemente, aumenta. “O mercado de trabalho, por exemplo, passou por uma radical reestruturação. Diante da forte volatilidade do mercado, do aumento da competição e do estreitamento das margens de lucro, os patrões tiraram proveito do enfraquecimento do poder sindical e da grande quantidade de mão-de-obra excedente (desempregados ou subempregados) para impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis. É difícil esboçar um quadro geral claro, visto que o propósito dessa flexibilidade é satisfazer as necessidades com freqüência muito específicas de cada empresa. Mesmo para os empregados regulares, sistemas como ‘nove dias corridos’ ou jornadas de trabalho que têm em média quarenta horas semanais ao longo do ano, mas obrigam o empregado a trabalhar bem mais em períodos de pico da demanda, compensado com menos horas em períodos de redução da demanda, vêm se tornando muito mais comuns. Mais importante do que isso é a aparente redução do emprego regular em favor do crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado” (Harvey, 1992, p. 143)[10].

Este processo demonstra a nova preocupação do capital: aumentar a extração de mais-valor absoluto. Assim, o que temos é que o novo regime de acumulação combina a busca de aumento de extração de mais-valor relativo com a intensificação da extração de mais-valor absoluto (Viana, 2001; Harvey, 1992). “Aqui, a acumulação flexível parece enquadrar-se como uma recombinação simples das duas estratégias de procura de lucro (mais-valia) definidas por Marx. A primeira, chamada de mais-valia absoluta, apóia-se na extensão da jornada de trabalho com relação ao salário necessário para garantir a reprodução da classe trabalhadora num dado padrão de vida. A passagem para mais horas de trabalho associadas com a redução geral do padrão de vida através da erosão do salário real ou da transferência do capital corporativo de regiões de altos salários para regiões de baixos salários representa uma faceta da acumulação flexível de capital” (Harvey, 1992, p. 174).

Nada disso seria possível se o estado capitalista continuasse sendo integracionista. As novas necessidades do novo regime de acumulação fazem emergir o estado neoliberal. A ideologia neoliberal surge no pós-guerra com a obra de Hayek e tem desdobramentos em outras obras e pensadores, tal como Milton Friedman (Anderson, 1998), mas tratava-se de “idéias fora da época”. As idéias neoliberais em plena época de regime de acumulação intensivo-extensivo, com seu estado integracionista, não tinha a menor chance de vingar. As novas necessidades do capitalismo produzem a recuperação de velhas idéias. O neoliberalismo vai sendo gestado e chega a ser implantado no final da década de 70 e início da década de 80 (Margareth Tatcher em 1979, na Inglaterra; Ronald Reagan, nos EUA, em 1980).

O estado neoliberal é um complemento necessário para a luta pelo aumento da extração de mais-valor. A desregulamentação das relações de trabalho, o fim da política social de “pleno emprego”, são ações estatais, entre outras, que atingem diretamente o processo de valorização. Além disto, a redução dos gastos estatais e o “livre mercado” buscam proporcionar uma política estatal favorável à retomada da acumulação capitalista, bem como a nova política fiscal e internacional.

Ao romper com a política integracionista (“bem estar social”) e adotar a política neoliberal, o estado capitalista deve se tornar, tal como coloca alguns de seus ideólogos (Bobbio, 1987; Bobbio, 1988), “mínimo e forte”. estado mínimo é aquele que deixa a mão invisível do mercado, isto é, a ânsia pelo lucro das empresas capitalistas, tomar conta de tudo. O livre mercado revela-se, na verdade, livre exploração. O estado forte é o estado repressor, uma necessidade do capitalismo, pois como o estado neoliberal rompe com o integracionismo, a política de integração da classe operária, provocando o aumento da exploração e, principalmente, da lumpemproletarização, o que gera mais conflitos sociais, protestos, violência, criminalidade e, por conseguinte, do ponto de vista do estado capitalista, produz a necessidade um estado repressor. O estado forte tende a se tornar cada vez mais um estado penal, tal como descrito por Wacquant (2001). Com o aprofundamento do regime de acumulação, também ocorre a tendência de acirramento das lutas sociais e o fortalecimento do bloco revolucionário, o que fornece mais material para a repressão.

O fim do integracionismo marca o recuo da cidadania (social), com a limitação dos direitos sociais. O fim do integracionismo estatal é substituído por uma espécie de “integracionismo civil”, incentivado pelo estado e pelo capital, expresso em instituições da sociedade civil, principalmente ONGs, que buscam cumprir parte das funções de integração do estado capitalista e cooptar indivíduos, integrando-os novamente. O recuo da cidadania social ainda não está completo e a ampliação deste processo (que pode até atingir a cidadania política) vai depender das lutas sociais e das necessidades impostas pelo novo regime de acumulação. O mesmo ocorre com a democracia partidária burocrática, que até agora não sofreu grandes alterações, em parte devido a não ter perdido sua eficácia conservadora[11], mas somente com a instauração completo do regime de acumulação integral é que será visível a nova forma assumida pela democracia burguesa e o grau de mudanças que sofrerá, sendo que, em muitos países, há a tendência para a volta de regimes ditatoriais.

O imperialismo também tende a assumir uma nova forma. O neo-imperialismo é um imperialismo integral, cuja estratégia fundamental ainda consiste na transferência de mais-valor, em parte através das empresas transnacionais, deslocando seus investimentos para locais onde a força de trabalho é mais barata, e através da criação de nichos exclusivos de mercado consumidor, onde que aumenta a tendência competitiva no interior do bloco de países imperialistas. Isto é complementado pela destruição cíclica e localizada de forças produtivas nacionais, através de guerras rápidas que incentivam a indústria bélica e a produção de “capital improdutivo” (armas) e abrem caminho de ação para investimentos nos países destruídos pela guerra (Afeganistão, Iraque, etc.). Isto, obviamente, aumenta os conflitos internacionais (criando expectativas de novas guerras, que, por sua vez, incentivam a produção bélica e o armamento mundial) e reforça o pacifismo, o antiamericanismo, etc.

O regime de acumulação integral não completou seu ciclo de formação, mas já está avançado no processo de valorização e na regularização estatal, embora ainda devam ocorrer ajustes e aprofundamentos. O neo-imperialismo, por sua vez, está esboçado e já desenvolveu algumas de suas características e tendências (como a Alca – Aliança do Livre Comércio das Américas, no qual os EUA tentam criar o seu nicho exclusivo de mercado consumidor). Entramos, assim, num novo regime de acumulação, o integral, que é o do capitalismo neoliberal[12].

A política institucional, até aqui, já proporcionou o estado neoliberal, o recuo da cidadania social e a permanência da democracia partidária burocrática, mas novos desdobramentos devem ocorrer, havendo a possibilidade de ocorrer um endurecimento do neoliberalismo ou, dependendo do país em questão, a volta do fascismo e de regimes ditatoriais, sendo que neoliberalismo e fascismo podem também fazer uma aliança. Há também a possibilidade, caso o novo regime de acumulação continue frágil como está, a passagem para um capitalismo de guerra (o que alguns chamam de “economia de guerra”, segundo o léxico conservador), no qual a destruição das forças produtivas deixa de ser cíclica e nacional e assume extensão mundial ou em regiões inteiras do globo terrestre.

Obviamente que estas possibilidades históricas são as que ocorrem com a permanência do modo de produção capitalista, sendo que outra possibilidade é a transformação social, pois um novo período de lutas sociais começa a emergir, como o processo crescente de corrosão da hegemonia burguesa na sociedade civil, com o fortalecimento do bloco revolucionário, de concepções (anarquismo, situacionismo, conselhismo, etc.), organizações políticas e dos trabalhadores, ações, manifestações, etc., que marcam uma ascensão das lutas sociais tal como não se vê desde o final da década de 60 do século 20. Assim, a história não acabou e o futuro ainda será decidido pela ação humana, na qual a velha opção continua colocada: autogestão ou barbárie.






[1] O neocolonialismo buscava exportar mercadorias e importar dos países subordinados matérias-primas e riquezas que auxiliavam o processo de acumulação de capital. O processo neocolonial abriu caminho para a implantação do capitalismo nos países subordinados, que constituíam modos de produção subordinados ao capitalismo internacional.
[2] Amin consegue descrever bem as crises capitalistas, mas suas conclusões e linguagem deixam muito a desejar. Na verdade, as décadas de 50 e 70 as quais ele se refere não constituem um período de “verdadeiro liberalismo capitalista”, pois este período é-lhe anterior. O que ocorre neste período é a tentativa de superar a crise no interior do mesmo regime de acumulação, através de adaptações e mudanças formais.
[3] Esquerdismo é a corrente que surge no interior do marxismo e foi assim batizada por Lênin (1989). Ela inclui os comunistas conselhistas (Korsch, Pannekoek, Mattick, Rühle, Gorter, etc.), a Esquerda Comunista Italiana (Bordiga), a Esquerda Extra-Parlamentar Inglesa (Sylvia Pankhurst), etc., que rompe com a social-democracia e o bolchevismo, combatendo, simultaneamente, o reformismo e o modelo vanguardista-bolchevique, embora Bordiga e o bordiguismo mantenham algumas ambigüidades neste último aspecto. A crítica ao regime soviético era comum a todas estas correntes, sendo que tal regime foi qualificado como sendo um capitalismo de estado, nada tendo a ver com o projeto socialista.
[4] É claro que isto variava de acordo com o país. No caso da França, por exemplo, país que foi mais atingido pela guerra, devido a invasão nazista, o processo inflacionário era maior e assim os salários eram relativamente inferiores aos de outros países europeus e Estados Unidos: “De 1945 a 1949, os preços franceses foram multiplicados por 20, enquanto que são multiplicados por 4 na Bélgica, por 2 na Grã-Bretanha, por 1,8 nos Estados Unidos” (Mauro, 1973, p. 408). A partir da década de 50 o desenvolvimento dos países capitalistas imperialistas se torna mais homogêneo, com a reconstrução da Europa praticamente concretizado.
[5] A composição orgânica do capital expressa o quantum de trabalho vivo (força de trabalho) e trabalho morto (meios de produção) utilizado no processo de produção, sendo que quanto maior for o trabalho morto e menor o trabalho vivo, menor é a taxa de mais-valia, criando a tendência declinante da taxa de lucro, pois somente o trabalho vivo acrescenta valor às mercadorias, enquanto que o trabalho morto apenas repassa o seu valor a elas.
[6] Neste período histórico, todos os países do mundo já eram predominantemente capitalistas, o que significa dizer que o modo de produção capitalista já havia se tornado dominante em todos os países, com um quantum maior ou menor de persistência de modos de produção subordinados.
[7] Utilizamos a expressão forma-mercadoria para distinguir as mercadorias dos serviços, que assumem a forma de uma mercadoria sem possuir o seu conteúdo material.
[8] Este é o caso de Harvey (1992). No entanto, esta denominação é equivocada, pois toma apenas o fordismo como parâmetro para definir tal regime de acumulação, deixando de lado o papel do estado e da exploração imperialista, elementos fundamentais para se compreendê-lo. Outros, ainda mais equivocados, falam de “modo de produção fordista” (Altvater, 1995; Negri e Lazzarato, 2001), o que é um equívoco ainda mais grosseiro, pois considerar o “fordismo” (regime de acumulação intensivo-extensivo) como uma fase do capitalismo demonstra um problema de linguagem que revela incompreensão de alguns de seus aspectos, mas considerá-lo um modo de produção é, em primeiro lugar, considerar que ele é algo mais que uma fase do capitalismo e, em segundo lugar, abrir mão de conceitos fundamentais para compreendê-lo e isto chega ao extremo no caso de Negri e Lazzarato, que julgam que o capitalismo já foi substituído por uma sociedade pós-capitalista. Para uma crítica desta última concepção, veja Viana (2003b).
[9] Lumpemproletarização, aqui, significa aumento do exército industrial de reserva, ou seja, transformação da força de trabalho ativa em força de trabalho inativa, subempregada, etc. (Viana, 2003c).
[10] Um dos problemas do livro de Harvey está em ceder ao predomínio do léxico capitalista em detrimento da constituição de um léxico revolucionário para compreender o novo regime de acumulação. Daí seu uso de expressões como “mercado de trabalho flexível”, “acumulação flexível”, etc., que expressa um conjunto de eufemismos que partem do ponto de vista da classe capitalista, pois só tem sentido considerar “flexível”, por exemplo, o mercado de trabalho, do ponto de vista do capital, pois para os trabalhadores ele se torna “inflexível”. Criticamos, em outra oportunidade, embora nos referindo a outros autores, a utilização da expressão “flexibilização”: “Na verdade, não existe ‘flexibilização’ do aparato produtivo e muito menos dos trabalhadores, o que existe é uma ‘inflexibilidade’, pois tanto o aparato produtivo quanto os trabalhadores são submetidos ‘inexoravelmente’ e ‘implacavelmente’ ao objetivo de aumentar a extração de mais-valor relativo. A expressão mais adequada a qualquer relação ou fenômeno social deve ser compatível com o ‘ser’ que expressa. No caso da acumulação, o que se busca é concretizar uma acumulação integral, simultaneamente intensiva e extensiva através da extensão do processo de mercantilização das relações sociais e da busca de ampliação do mercado consumidor, mesmo que esta busca se caracterize, em parte, pela produção personalizada, e também pelo aumento da intensificação da exploração da força de trabalho. No caso da especialização ou do que alguns chamam de pluri-especialização (Coriat), trata-se de uma especialização ampliada, onde ao invés do trabalhador se dedicar a apenas uma atividade passa a se dedicar a várias, embora se mantenha afastado do controle do processo de trabalho, o que significa especialização no processo de execução, e continue não executando certas funções práticas que ficam a cargo de outros trabalhadores. No caso dos trabalhadores, o que ocorre é uma intensificação da exploração com a retirada de seus direitos já conquistados e da formação de um mercado de trabalho inflexível, onde os trabalhadores se submetem a subcontratação, ao desemprego, etc.” (Viana, 2001, p. 102-103).
[11] A situação mundial proporciona, em muitos países, a vitória eleitoral das forças do bloco reformista, mas tais mudanças não produzem nenhuma alteração fundamental, pois o que ocorre é que os partidos socialistas no poder adotam políticas neoliberais, de acordo com os interesses do capital e a dinâmica mundial do capitalismo (Bourdieu, 1998), o que significa um enfraquecimento do bloco reformista no capitalismo contemporâneo, já que a maior parte abandona o reformismo ao chegar ao poder.
[12] Denominamos a atual fase do capitalismo como neoliberal devido não só ao fato do regime de acumulação integral ter no estado neoliberal uma pré-condição como também a concorrência interimperialista se tornar uma tendência cada vez mais forte. Isto é, o capitalismo continua sendo oligopolista transnacional, mas agora cada vez mais destrutivo, competitivo (concorrência oligopolista e imperialista), explorador.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A FACE OCULTA DA CIDADANIA



A Face Oculta da Cidadania*

 Nildo Viana

 * Capítulo do livro:VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.

O desenvolvimento do estado capitalista e da democracia burguesa foi, principalmente a partir do século 18, acompanhado pelo desenvolvimento da cidadania. A compreensão das mudanças na política institucional passa pela necessidade de compreender o processo de desenvolvimento da cidadania e das ideologias que se inspiram nela.
O que é a cidadania? Sem dúvida poderíamos retomar a concepção grega de cidadania, mas isto seria muito pouco útil tendo em vista as enormes diferenças tanto em relação à idéia quanto em relação à realidade que ela busca expressar. Ao contrário do estado e da democracia, o significado desta expressão não é muito polêmico. Desde a declaração dos direitos e deveres do homem e do cidadão, o cidadão é um indivíduo portador de determinados direitos e deveres. Conseqüentemente, a cidadania é o reconhecimento destes direitos, mas um reconhecimento de fato, ou seja, a cidadania é a concretização destes direitos e deveres[1].
Quais são estes direitos? Hoje se concorda que estes direitos são os direitos civis, políticos e sociais. Os direitos civis são aqueles referentes à liberdade individual, tal como a liberdade de ir e vir, de imprensa, de pensamento, etc.; os direitos políticos são aqueles referentes ao direito de votar e ser votado, entre outros; os direitos sociais são aqueles referentes ao bem estar físico e mental, tal como o direito à saúde, educação, habitação, etc. Os deveres são os deveres para com o estado: pagar impostos, votar, etc.
A cidadania é um privilégio de quem tem concretizado estes direitos e deveres. Entretanto, tal como observou T. H. Marshall, a cidadania é uma instituição em desenvolvimento e, portanto, transformou-se com o processo histórico (Marshall, 1967; Barbalet, 1989). Segundo Marshall, “quando os três elementos (civil, político e social) da cidadania se distanciam uns dos outros, logo passaram a parecer elementos estranhos entre si. O divórcio entre eles era tão completo que é possível, sem destorcer os fatos históricos, atribuir o período de formação da vida de cada um, a um século diferente – os direitos civis ao século XVIII, os políticos ao XIX e os sociais ao XX. Estes períodos, é evidente, devem ser tratados com uma elasticidade razoável, e há algum entrelaçamento, especialmente entre os dois últimos” (Marshall, 1967, p. 66).
Desta forma, a cidadania se desenvolveu e atingiu o seu ápice no século 20, com a conquista dos direitos sociais. Neste momento se unifica os três direitos e os deveres do cidadão e surge a cidadania plena. Porém, isto não ocorre da mesma forma em todos os países, pois tal acontecimento ocorre na Europa Ocidental e em mais alguns poucos países.
Porém, parece que existe algo oculto por detrás desta aparente “inocência” política da cidadania. Será que cidadania significa somente isto? Não existirá um lado oculto da cidadania que é omitido pela ideologia dominante? A nosso ver sim, e o primeiro ponto que encontramos é a relação entre cidadania e estado.
O cidadão é um ser abstrato criado pelo direito. Se a lei diz que “todos os homens são iguais perante a lei”, a realidade diz: “os seres humanos são desiguais perante a sociedade”, devido à divisão social do trabalho. A desigualdade real existente entre os homens é substituída por uma fictícia igualdade, “perante a lei”. Uma vez que a lei é igual para todos, pressupõe-se que existe uma igualdade jurídica entre os homens. Porém, esta igualdade jurídica é fictícia e isto ocorre porque existe uma desigualdade de fato que corrói esta igualdade fictícia. O indivíduo burguês pode usufruir de seu direito de liberdade, pensamento, expressão, reunião, etc., pelo simples motivo que ele possui as condições materiais para efetivar tais direitos. Qualquer disputa jurídica entre um burguês e um proletário, que são “iguais perante a lei”, tende a ser resolvida em favor do primeiro, pois eles são “desiguais perante a realidade”. O primeiro conta com o poder do dinheiro e isto quer dizer os melhores advogados, as melhores provas, a melhor imagem, etc.
Desta forma observamos que o aparato jurídico do estado Capitalista anuncia a igualdade fictícia dos indivíduos perante a lei (o que significa, no final das contas, perante ao próprio estado). Tal como colocou Marx, “o Estado anula, a seu modo, as diferenças de nascimento, de status social, de cultura e de ocupação, ao declarar o nascimento, o status social, a cultura e a ocupação do homem como diferença não políticas, ao proclamar todo membro do povo, sem atender a estas diferenças, coparticipante da soberania popular em base de igualdade, ao abordar todos os elementos da vida real do povo do ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que a propriedade privada, a cultura e a ocupação atuem ao seu modo, isto é, como propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer sua natureza especial. Longe de acabar com estas diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas, só se sente como Estado político e só faz valer sua generalidade e contraposição a estes elementos seus” (Marx, 1980, p. 25).
Marx coloca que o cidadão só é cidadão perante o estado. É o estado que, ao declarar os direitos do cidadão, lhe concede a cidadania. “Já se demonstrou como o reconhecimento dos direitos humanos pelo estado moderno tem o mesmo sentido que o reconhecimento da escravidão pelo Estado antigo” (Marx, 1980, p. 93).
O cidadão do estado capitalista é o indivíduo portador dos direitos burgueses, separados entre os direitos civis e os direitos políticos. Os direitos civis são os direitos próprios do indivíduo burguês (o direito à propriedade é o exemplo mais típico) e do indivíduo proletário submetido ao indivíduo burguês (o direito de ir e vir é uma necessidade do capital para que ele possa explorar a força de trabalho). Os direitos políticos são os direitos do indivíduo frente ao estado, o que torna este legítimo, bem como sua ficção da igualdade jurídica.
O cidadão, enfim, é um indivíduo que cumpre com seus deveres e direitos, ou seja, é aquele que respeita a propriedade privada, a liberdade de imprensa, etc., paga os impostos, legitima o estado capitalista reconhecendo o processo eleitoral, etc. O cidadão é o indivíduo conservador, o indivíduo que aceita o mundo existente, ou seja, a sociedade burguesa (modo de produção capitalista e formas de regularização não-estatais) e o estado capitalista. A cidadania, por conseguinte, é a concretização dos direitos do cidadão, e, portanto, significa a integração do indivíduo na sociedade burguesa por intermédio do estado.
Por isso talvez seja interessante retomar o desenvolvimento histórico da cidadania desde o surgimento da sociedade burguesa. O movimento do capital comercial engendrou o predomínio do capital industrial e este se consolidou e transformou em uma nova força dominante. Este processo gerou a necessidade do mercado livre, que se manifesta através da instituição do trabalhador juridicamente livre e da propriedade privada burguesa, ao lado da instituição de um mercado consumidor e um mercado distribuidor igualmente livres. Desta forma, os chamados direitos civis (liberdade de ir e vir, de propriedade, etc.) são conseqüências naturais da emergência da civilização burguesa[2].
Trata-se de um período marcado pela formação das classes sociais fundamentais do modo de produção capitalista e que se consolida com a ascensão da burguesia ao poder político. Para efetivar esta ascensão da burguesia tinha que apresentar seus interesses particulares como sendo interesse universal de todas as classes sociais opostas à antiga classe dominante (a classe feudal) e se dizer representante geral da sociedade (cf. Marx, 1978). A burguesia fala em nome do terceiro estado e consegue unificar este a seu redor. Isto quer dizer que a burguesia apresenta seus interesses particulares como interesse geral da sociedade, mas isto é apenas uma ideologia (sistematização de uma falsa consciência), e não uma realidade e por isto não tem o menor sentido se dizer hoje que a burguesia carregava em si “valores” ou “idéias universais”, tal como alguns colocaram.
Os direitos políticos, em sua forma limitada tal como se apresenta na democracia burguesa censitária, são conseqüências naturais da implantação da dominação burguesa. Surge o estado capitalista moderno e com ele os direitos políticos que lhes são correspondentes. A expansão dos direitos políticos (a passagem para a democracia burguesa partidária) revela simplesmente a emergência do proletariado e de sua luta contra a sociedade burguesa e a tentativa do estado capitalista em integrar tal classe social e assim amortecer a luta de classes através do sufrágio universal e do sistema partidário.
Isto, porém, não foi suficiente para impedir a luta operária e o ciclo revolucionário do início do século 20 comprova isto. É a partir da Segunda Guerra Mundial que a classe dominante busca, através do seu poder coletivo, o estado capitalista, consolidar sua dominação e impedir o surgimento de qualquer brecha revolucionária. A reorganização legal da democracia burguesa e a expansão  dos direitos sociais são as formas encontradas para integrar as classes exploradoras na sociedade capitalista, ou seja, a cidadania burguesa entra numa nova fase, onde há algumas alterações nos direitos políticos e a expansão dos chamados direitos sociais, com o surgimento do famigerado estado do bem-estar social.
A passagem da democracia partidária liberal para a democracia partidária burocrática é marcada pela restrição da participação das classes exploradoras na política institucional. Porém, isto vem acompanhado por um crescimento quantitativo das classes auxiliares da burguesia, que recruta indivíduos inclusive provenientes das classes exploradoras, que são cooptados e passam a integrar a burocracia partidária, a burocracia sindical, etc. Isto significa que a expansão das classes auxiliares da burguesia acaba amortecendo a luta de classes.
Iremos abordar rapidamente esta questão das classes auxiliares no contexto desta discussão. Muitos falam do “crescimento da classe média” (sem dúvida, o construto de classe média é bastante útil para a ideologia dominante e está intimamente ligado à ideologia da estratificação social que busca ofuscar a teoria marxista das classes sociais), tal, como, Bottomore: “A luta de classes foi também moderada e está cada vez mais voltada para canais reformistas, pelas mudanças na natureza de estrutura de classes, e em especial pelo crescimento das classes médias” (Bottomore, 1981, p. 29). Este crescimento também foi notado por Poggi, que destaca que tal “classe média assalariada” passa a imitar e superar a classe trabalhadora em sua pressão sobre o estado para satisfazer seus interesses particulares. Ela “procura preservar através da ação estatal essa segurança econômica e posição social que deixou de poder basear na posse de um patrimônio de família (...), ou na capacidade para manter a sua independência enquanto coloca no mercado serviços valiosos e sofisticados”(Poggi, 1981, p. 133).
Poucos são aqueles que percebem que o estado, a democracia burguesa e os partidos políticos são produtores de novos membros das classes auxiliares e por conseguinte, de novos grupos conservadores na sociedade. Robert Michels observou isto em relação aos partidos políticos, que, segundo ele, são produtores de “novas camadas pequeno-burguesas” (Michels, 1982) e Guiducci também observou a expansão das classes auxiliares e seus interesses: “Aqueles que teriam tido o poder de administrar o interesse geral estão impotentes para fazer qualquer coisa sem se autoprejudicar e sem interromper o próprio mecanismo particular de autoconservação através de uma contínua operação parasitária. Portanto, a ‘democracia representativa’, indireta e dominante, consegue representar apenas a si própria, como grupo oligárquico de poder de interesse acima da sociedade civil oprimida. E, em parte notável, também os partidos de esquerda, para continuarem a existir paradoxalmente como partidos de esquerda e/ou diretamente de oposição, entraram no jogo para seu próprio financiamento, tornando-se assim seduzidos e convenientes no jogo particular contra o interesse geral” (Guiducci, 1991, p. 75-76).
Portanto, o que se deve ressaltar é que as classes auxiliares, devido as necessidades de sua própria reprodução, bem como sua inserção social, auxilia a dominação burguesa e se essas classes lutassem contra a burguesia estariam lutando contra a própria existência e privilégios (por exemplo: a luta revolucionária é uma luta pela abolição da democracia burguesa e dos partidos políticos, o que significa a abolição da burocracia parlamentar e partidária... luta que, sem dúvida, elas jamais irão compartilhar, pois assim elas mesmas seriam abolidas enquanto classe, o que significa a perda de seus privilégios).
Este crescimento quantitativo das classes auxiliares juntamente com a expansão dos direitos sociais é possibilitado pela estabilidade e ampliação da acumulação capitalista nos países capitalistas imperialistas a partir da Segunda Guerra Mundial. Esta ampliação da acumulação capitalista foi incentivada pelas condições favoráveis pela situação do pós-Guerra (destruição em massa das forças produtivas, o que serviu como contrapeso temporário ao nível elevado de composição orgânica do capital) e pela exploração imperialista através da transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os países capitalistas imperialistas.
Os direitos sociais oferecidos pelo estado integracionista (do “bem estar social”) são, na verdade, formas de integração das classes exploradoras no modo de produção capitalista. O estado capitalista fornece estes direitos sociais (através de sua política social) porque isto é de interesse do capital. O direito à educação, por exemplo, é uma exigência de muitos setores das classes exploradoras e estes exercem pressão sobre o estado, sendo que contam com o apoio de partes das classes auxiliares (principalmente as produzidas e/ou ligadas aos partidos reformistas). O não-atendimento desta reivindicação fortalece a oposição (tanto a reformista quanto a radical que pode se aproveitar da situação e radicalizar o discurso oposicionista e buscar a hegemonia) e por isso o estado capitalista se vê constrangido a atendê-la. Mas, mesmo que não houvesse reivindicação, o estado capitalista poderia ampliar o atendimento oferecida pela rede escolar estatal, pois isto é de interesse do capital. Qual é o interesse do capital nisto? A escola estatal é uma instituição útil para o capital por vários motivos: a) Ela repassa a ideologia e os valores dominantes e assim contribui com o amortecimento das lutas de classes; b) Ela prepara a força de trabalho necessária ao capital; c) Ela corrompe diversos indivíduos que são incluídos na burocracia escolar ou em posições que fornecem status ou adquirem autoridade sobre outros por conseguinte, o estado capitalista adquire legitimidade ao atender reivindicações populares e ao mesmo tempo reforça a integração dos indivíduos nas suas instituições.
O exemplo da educação revela o que é comum à todos os chamados “direitos sociais”. O seu papel, apesar das diferenças na forma como tais direitos atendem os interesses do capital, é o de legitimar o estado capitalista e integrar os indivíduos na sociedade burguesa.
Aqui podemos colocar uma questão importante para os ideólogos da cidadania. Alguns, ao falarem sobre cidadania, a colocam como se ela fosse doada pelo estado capitalista (Marshall, 1967). Outros vociferam contra a “cidadania outorgada” e defendem a “cidadania conquistada”. Sobre este último ponto de vista, podemos ver esse tipo de afirmação: “A luta pela educação, pela cultura, pelo saber e pela instrução encontra sentido, se inserida nesse movimento de constituição da identidade política do povo comum. Essa luta é um momento educativo enquanto representa uma movimentação, organização, confronto, reivindicação e, conseqüentemente, expressão e prática de consciência do legítimo e do devido” (Arroyo, 1987, p. 77).
Segundo este último ponto de vista, a democracia e a cidadania só são válidas se forem conquistadas e não doadas pelo estado e a própria conquista, que pressupõe mobilização, organização, etc., é que oferece valor à cidadania. A ênfase na conquista parece, se formos incautos, um discurso esquerdista. Mas não é isto que ocorre devido ao fato de se enfatizar a ação no sentido de conquistar cidadania. Uma ação só é revolucionária ou só colabora com o processo de libertação dos explorados se ela tiver um objetivo revolucionário. Uma grande mobilização popular não quer dizer nada se não tiver um objetivo revolucionário ou tiver no seu interior tendências que tenham tal objetivo e busquem torná-lo hegemônico.
Tomemos um exemplo. O impeachment do presidente Fernando Collor de Melo no Brasil. Houve uma grande mobilização popular e esta acabou atingindo os seus objetivos: a derrubada do governo Collor. Porém, isto não provocou nenhum acúmulo para a luta operária e a luta de outros setores explorados, e nem mesmo para o movimento estudantil, um dos principais articuladores da mobilização. Quais foram as razões disto? Isto ocorreu porque tal mobilização foi hegemonizada, inicialmente, pelo bloco reformista (partidos de “esquerda”, que queriam derrubar o governo e convocar novas eleições presidenciais, para lançar seu candidato, Lula), e posteriormente, pelo bloco dominante, que queria tão somente a derrubada do presidente Collor e sua substituição pelo vice-presidente. Poucas vozes discordantes se manifestaram.
Terminada a mobilização, todo mundo, ou melhor, os cidadãos, voltaram para casa e assistiram pela televisão a lição de cidadania que deram ao país. E tudo continuou como antes, com exceção da presidência, que proporcionou uma substituição que nada alterou. Mas o resto estava lá: o conformismo, a consciência fetichista, etc. Apenas outra coisa mudou além do fato do presidente Collor e alguns “bodes expiatórios” terem sido “punidos”: o estado capitalista recuperou sua legitimidade perdida.
Por conseguinte, se a cidadania é outorgada ou conquistada, não faz a menor diferença. A luta pelos direitos sociais só seria proveitosa para o proletariado se fosse uma luta autogerida e com objetivos revolucionários (aliás, uma coisa gera outra), embora um movimento possa começar heterogerido e reformista, defendendo da correlação de forças, se tornar autogerido e revolucionário ou pelo menos fortalecer essa posição junto à sociedade ao disputar a hegemonia no movimento. No entanto, o engajamento nesta luta só tem sentido se existir esta possibilidade concreta.
Neste momento, podemos colocar outra questão muito discutida pelos ideólogos da cidadania: a questão da inclusão e da exclusão. Os excluídos são aqueles que estão fora das esferas burguesas de produção e consumo, dos direitos sociais. Os incluídos são os cidadãos que usufruem da cidadania. Existem os excluídos da cidadania. Resta saber quem são estes indivíduos excluídos que devem, segundo os ideólogos da cidadania, ser incluídos, o que significa serem integrados na sociedade capitalista.
O próximo passo após ter definido que o grande problema social hoje é a exclusão e que a solução é a inclusão (integração) é propor, para os excluídos, o acesso ou a conquista da cidadania e, para os já incluídos, a ampliação da cidadania (claro que esse discurso é mais comum nos países capitalistas subordinados).
Encontramos aqui o mesmo problema anteriormente colocado referente à opção pela “cidadania conquistada”. Conquistar ou ampliar a cidadania significa realizar a integração, ou intensificá-la, na sociedade capitalista. O desempregado (um excluído) teve que receber um emprego (ser incluído) e assim se submeter ao trabalho alienado, à exploração capitalista. Um analfabeto não-eleitor (excluído dos direitos políticos, por não ter o direito de voto) teve ser “educado” pelo estado e/ou deve se tornar um eleitor. Desta forma, ele deve ser oprimido na escola (através da inculcação da ideologia dominante) e deve se tornar mais um legitimador do estado capitalista que o oprime através da participação no processo eleitoral.
Mas o que se deve fazer? Aceitar o desemprego, o analfabetismo, o desrespeito ao direito de votar? Devemos aceitar a exclusão? O problema não se encontra em lutar contra o desemprego, o analfabetismo, etc., e sim na forma como se faz isto, ou seja, o problema se encontra em buscar superar esta situação de miséria e opressão de parte da população através da integração dela na sociedade capitalista. O direito ao voto, por exemplo, deve ser reconhecido legalmente, mas não deve ser um dever (ou seja, não deve ser obrigatório). O direito à educação deve ser reconhecido de fato, mas a própria forma de educação deve ser acompanhado com a transformação da escola e o mesmo ocorre com o emprego, mas trata-se de propor uma transformação na “forma de emprego” no sentido de contribuir com a transformação social. Não se trata também de ampliar a cidadania mas de superá-la, ou seja, o problema não está em conquistar direitos (civis, políticos e sociais) e deveres e sim em transformar a sociedade.
Se lembrarmos que cidadania significa a integração do indivíduo no capitalismo por intermédio do estado, veremos que todas estas reivindicações de direitos são dirigidas ao estado capitalista. A cidadania cedida pelo estado (não interessa se é outorgada ou conquistada) é controlada por ele, pois o sistema de saúde, o sistema escolar, o sistema eleitoral, etc., é tudo dirigido pelo estado capitalista. A conquista da cidadania legitima o estado capitalista e reafirma o processo de exploração capitalista.
Enfim, a busca de cidadania significa a luta por uma integração na sociedade capitalista, isto é, significa lutar por compartilhar do processo de exploração e opressão efetivado por esta sociedade, e significa reconhecer o estado capitalista como legítimo e como a instituição que deve controlar a população. Isto ocorre porque tal luta se fundamenta nos “direitos do cidadão”, mesmo que estes incluam os direitos sociais, pois tais direitos são direitos do cidadão do estado capitalista. É por isso que Marshall, com o seu conservadorismo muito mais esclarecedor do que a ideologia progressista de outros, pôde dizer que: “as diferenças de status podem receber a parcela da legitimidade em termos de cidadania democrática, desde que não sejam muito profundas, mas ocorram numa população unida, numa civilização única; e desde que não sejam expressão de privilégio hereditário. Isto significa que desigualdades podem ser toleradas numa sociedade fundamentalmente igualitária desde que não sejam dinâmicas, isto é, que não criem incentivos que se originam do descontentamento e do sentimento de que ‘este tipo de vida não me agrada’, ou ‘estou decidido a fazer tudo para que meu filho não passe pelo que passei’ ” (Marshall, 1967, p. 108).
O que Marshall quis dizer é que, deixando de lado os seus eufemismos, as diferenças de status e as desigualdades podem ser toleradas graças à cidadania e a “igualdade” que ela proporciona. Substituindo esta linguagem ideológica, podemos dizer que a exploração de classes (e, conseqüentemente, a divisão da sociedade em classes sociais, o que implica em “desigualdade” e “diferença de status”) pode ser tolerada havendo a igualdade fictícia proporcionada pela cidadania. Marshall busca nos convencer da possibilidade da cidadania reduzir as desigualdades mas nós sabemos que isto é impossível por vários motivos, entre os quais, a existência, em todos os países do mundo, de setores que não possuem cidadania. Mas, além disso, podemos dizer que a cidadania não pode e nem quer reduzir as desigualdades e diferenças de status, pois ela é a própria aceitação e reprodução da “desigualdade” e “diferenças de status”, ou melhor dizendo, da exploração de classe.
A classe capitalista não busca o atendimento de “direitos sociais”, pois ela possui o poder financeiro. As migalhas que o estado capitalista cede às classes exploradas servem apenas para reproduzir a situação que gera a necessidade de migalhas por parte delas. A busca da cidadania tão propagandeada pelos reformistas é simplesmente isto: o reconhecimento da exploração e a tentativa de amenizar tais efeitos através do estado capitalista para que se dê continuidade ao processo de exploração.
Se as classes exploradas lutam por migalhas é porque elas realmente precisam de migalhas e é isto que possibilita a reprodução de sua situação de necessitar de migalhas. Se o estado capitalista, o poder coletivo da burguesia, cede migalhas, isto se deve ao fato de que ceder tais migalhas permite a continuidade da apropriação de um mundo de riquezas, a permanência da exploração de classe. Desta forma, reconhecemos que a luta pela cidadania é um projeto do bloco reformista que serve para a reprodução da sociedade burguesa e que a “cidadania conquistada” significa um amortecimento das lutas de classes, o que pressupõe a continuidade da existência das classes sociais e, conseqüentemente, da exploração, da opressão e da miséria.
Os defensores mais ingênuos da conquista da cidadania, mesmo os que buscam um discurso “progressista” se referindo a Marx e ao socialismo, revelam ser portadores de uma ideologia burguesa que buscam integrar as classes exploradoras na sociedade capitalista, principalmente com o discurso de que a cidadania é “uma categoria estratégica para uma sociedade melhor” (Covre, 1991).
A argumentação ideológica é muitas vezes simplista mesmo quando busca se apresentar como “progressista” ou de “esquerda”. Num pequeno livro introdutório ao tema da cidadania (Covre, 1991), a autora busca legitimar, por diversas vezes, a discussão em torno deste tema através do apelo ao fato da “derrocada do socialismo da URSS e Leste Europeu”. Numa dessas passagens podemos ler o seguinte: “Numa era em que os modelos revolucionários desencadeadores do socialismo do Leste perdem credibilidade, o que colocar em seu lugar para satisfazer o sonho – que o homem sempre terá – de alcançar uma sociedade melhor? Para refletir sobre isso, retornemos ao período riquíssimo da burguesia revolucionária e bebamos em suas fontes, naquilo que se propôs e não realizou. Bebamos também na fonte marxista, no que acenou e igualmente não realizou” (Covre, 1991, p. 62. Grifos meus). Deixando de lado que nunca houve socialismo no Leste e sim capitalismo de estado, observamos uma concepção conformista (o sonho que o homem sempre terá, e que, portanto, nunca será realizado...) e reformista (sociedade “melhor” e não uma sociedade radicalmente diferente) que busca assimilar o marxismo (bebamos “também” na fonte marxista) a partir do ponto de vista da burguesia (que mesmo em seu período revolucionário já era burguesia...).
Este ponto de vista está tão ligado à ideologia burguesa que podemos observar, simultaneamente, uma visão europocêntrica do mundo (a Europa Ocidental foi o “berço” da civilização burguesa) e uma mentalidade burguesa na busca em assimilar outras ideologias: “A base de sua inspiração (da ideologia burguesa), estava na releitura dos clássicos (gregos e romanos), que teve sua grande expressão na Renascença, aprendendo tudo o que de melhor houve na humanidade” (Covre, 1991, p. 25). Não deixa de ser cômico ficar sabendo que o escravismo antigo e sua ideologia constitui “tudo o que de melhor houve na humanidade” (sem citar o fato de que o Oriente e o resto do mundo devem ser esquecidos...). Até a ascensão da burguesia que os resgatou e “melhorou”.
Outras afirmações brilhantes são feitas sobre o estado, que não serve somente à reprodução do capitalismo, pois este é “ambivalente” e graças a isto nos permite “acenar à igualdade”: “a ambivalência do capitalismo: de um lado exploração e desigualdade; de outro, caminhando concomitantemente, o aceno à igualdade e à construção da cidadania mais plena” (Covre, 1991, p. 36). Além da ideologia do “estado neutro” temos a ideologia do capitalismo que (acreditem se puderem) acena à igualdade (!). De onde se retira tão extravagante idéia? De Marx! Vejam só: “retiramos do próprio marxismo esse jogo de possibilidades: os homens fazem a história, mas sob determinadas condições. Para manter-se o mais fiel às proposições de Marx, é preciso não pender para nenhum dos lados”; “A mudança entre estrutura e sujeito é complexa; tanto um quanto o outro mudam-se reciprocamente, e é preciso, de forma contínua, apreender-se o novo, a nova estrutura, o novo sujeito” (Covre, 1991, p. 36-37).
Sem dúvida Marx falou que os homens fazem a história sob condições determinadas mas isto não tem nada a ver com uma “ambivalência do capitalismo”, pois ele não acena para a igualdade e sim a sua negação, o proletariado, que faz isto, mesmo sob as condições determinadas pelo capitalismo. A autora troca “faz a história” por “faz o capitalismo”. O discurso sobre “novo sujeito” e “nova estrutura” não vem acompanhado por nada de “novo”, nem a estrutura (que continua capitalista, só que “melhorada” e “mais democrática”) e nem o “sujeito” (o cidadão em busca da cidadania). Por fim, ficamos sabendo que “a luta mais ampla direciona-se para o estado, e que capital e trabalho podem, de certa forma, conviver, embora conscientes do conflito, e estabelecer normas que permitam construir uma sociedade melhor” (Covre, 1991, p. 37), que “determinados empresários e administradores de alto nível podem ter uma visão avançada do processo social, de tal modo que suas empresas tornem-se, de certo modo, patrimônio da sociedade” (Covre, 1991, p. 67), que “a própria constituição é um processo, e não uma carta estagnada” (Covre, 1991, p. 73) e que “a cidadania é o próprio direito à vida no sentido pleno. Trata-se de um direito que precisa ser construído coletivamente, não só em termos de atendimento às necessidades básicas, mas acesso a todos os níveis de existência, incluindo o mais abrangente, o papel do (s) homem (s) no universo” (Covre, 1991, p. 11). Assim, o estado capitalista torna-se uma “forma de dominação legítima”; o conflito capital-trabalho pode conviver e proporcionar uma sociedade melhor; alguns empresários poderão contribuir com isso, bem como as normas jurídicas, tal como a constituição; e devemos buscar integrar o homem num nível mais abrangente da existência, com um apelo místico ao seu “papel no universo”. O capitalismo é prodigioso em produzir ideólogos e ideologias, sustentando as classes auxiliares da burguesia, principalmente os intelectuais, especialistas em falsificar a realidade de acordo com os interesses do capital.
Assim sendo, a cidadania revela sua face oculta: ela significa a integração dos indivíduos na sociedade capitalista por meio do estado. A ideologia da cidadania, por sua vez, é uma concepção que corresponde aos interesses de frações das classes auxiliares da burguesia e que é convergente com o interesse da classe capitalista, sendo, pois, uma ideologia burguesa. Sem dúvida, em determinados momentos históricos e países (devido sua posição na divisão internacional do trabalho), a cidadania pode se converter num obstáculo para a realização dos interesses da classe capitalista ou de algumas de suas frações. Este é o motivo pelo qual a cidadania é mais débil nos países capitalistas subordinados e também a razão de ser do ataque neoliberal a ela, pois a crise do regime de acumulação cria novas necessidades para o capital, que entram em contradição com a cidadania. Este será o ponto que analisaremos a seguir, a dinâmica da política institucional envolvida na luta de classes e no desenvolvimento capitalista.





[1] “A cidadania é uma status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status” (Marshall, 1967, p. 76.).
[2]  “Houve um tempo em que a burguesia, então emergente, defendia idéias universais, como a cidadania, proposta para todos” (Buffa, 1987, p. 11); “Se foi com as revoluções burguesas que a burguesia tomou o poder estatal, e se foi com a Revolução Francesa que se instauram de vez a burguesia como classe dominante e o capitalismo como forma de produzir e viver, como situar a questão do Estado de direito a da cidadania? Como intrinsecamente burguesa? Respondo com um sim e um não... Não, se identificarmos esses resultados como conquista da burguesia – que se processa por longo período de transição entre o feudalismo e o capitalismo – por valores universais, quando carrega todos os segmentos subalternizados (camponeses, artesão, etc.), o chamado terceiro Estado, para a revolução. Sim, se nos ativermos à concepção do Estado de direito, de cidadania, depois que a burguesia se transforma em classe dominante; Principalmente depois que Napoleão Bonaparte torna-se Imperador, difundindo o capitalismo pelo mundo, a partir do século XIX” (Covre, 1991, p. 18-19). As “idéias universais” defendidas pela burguesia são idéias burguesas, e Marx já havia desmascarado elas, tal como se ê em sua análise da declaração dos direitos e deveres do homem e do cidadão (Marx, 1980). A questão é que a burguesia apresenta seus interesses particulares como interesses universais e propor tais interesses para “todos” não nada de verdadeiramente universal, pois isto não passa de uma impostura, tal como se vê nestes intelectuais.