RADICALISMO
E HUMANISMO
Nildo Viana
Os seres humanos são capazes
dos atos e discursos mais belos e, ao mesmo tempo, de concepções e atitudes
mais ignóbeis. Podem agir com extrema grandeza e generosidade, por um lado, e
uma extrema pequeneza e mesquinharia, por outro. Esse processo assume uma
particular importância no campo da militância revolucionária, no qual o
extremismo muitas vezes se confunde com radicalismo e quando isso ocorre há uma
confusão entre ser revolucionário e ser sanguinário. Por isso torna-se
importante discutir a relação entre humanismo e radicalismo, pois um indivíduo
revolucionário deve unir as duas coisas em uma só, o que nem sempre acontece e
a reflexão sobre isso pode esclarecer e ajudar a superar essa dicotomia
existente em alguns casos individuais.
O objetivo de um
revolucionário é, obviamente, a revolução. Sem dúvida, não se pode cair no
equívoco de acreditar que todo mundo que se diz revolucionário o seja só por
ter afirmado tal coisa. Não se analisa um indivíduo pela consciência que ele
tem de si mesmo, já dizia Marx (1983a). Mesmo porque, o que se entende por “revolução”
e “revolucionário” varia de acordo com as pessoas. Um revolucionário, no
sentido aqui utilizado e que obviamente exclui muitos casos, é aquele
indivíduos que tem como objetivo a revolução e compreende esta como um processo
de emancipação humana via emancipação dos trabalhadores, ou, mais precisamente,
do proletariado. Logo, nesse sentido exclui aqueles que pensam que uma revolução
é uma tomada do poder estatal, substituição de um governo, entre outras formas
de se pensar apenas no sentido de uma “revolução política”, pois a emancipação
humana só pode ocorrer através de uma revolução social, ou seja, com a
transformação radical do conjunto das relações sociais. Se o objetivo do
revolucionário é a revolução que emancipa a humanidade em seu conjunto, então
há uma base humanista nesse objetivo. Não existe, portanto, dicotomia entre o
radicalismo de um revolucionário, que quer a transformação radical das relações
sociais para libertar os seres humanos da exploração, dominação, opressão, e
humanismo. No entanto, concretamente esta dicotomia muitas vezes aparece e é sobre
isso que temos que refletir.
A palavra humanismo também
pode ser entendida sob diversas formas. Não cabe aqui uma discussão conceitual
e nem abordar todas as suas formas de manifestação, basta expor as duas formas
básicas de humanismo existente. Uma é o humanismo romântico, ou “abstrato”,
que, tal como Rousseau (1989), considera que o ser humano é “bom por natureza”
e atribui tal qualidade a todos os seres humanos indistintamente, partindo
desse princípio. O ser humano aqui é um valor fundamental e isso é positivo,
embora problemático. Para entender o seu caráter problemático é preciso avançar
até o humanismo radical, que é um humanismo concreto.
Em oposição ao abstrato
(no sentido metafísico do termo), o concreto é “resultado de suas múltiplas
determinações” (MARX, 1983a). Nessa concepção, o ser humano não é bom nem mau
por natureza. O que caracteriza a essência humana é o trabalho e a
sociabilidade, tal como Marx já apontava (MARX, 1983b; MARX, 1988; MARX e ENGELS,
1991). O ser humano é ativo. Ele, ao contrário dos demais animais, age sobre o
mundo, transforma a natureza e humaniza ela e a si mesmo. Ele faz isso em associação,
ou cooperação, com outros seres humanos, sendo também um ser social. Desta forma, o trabalho teleológico
consciente, a práxis, e a associação
com outros seres humanos, são necessidades humanas, são parte de sua essência.
No entanto, com a emergência da sociedade de classes, essa essência é negada. O
trabalho e a sociabilidade são pervertidos, deturpados. O trabalho se torna
alienado, dirigido por outros, fundando a exploração e a dominação e a
sociabilidade se torna, devido a isso, conflituosa. No capitalismo, mais
especificamente, a exploração e dominação no trabalho ocorre através da
extração de mais-valor e a sociabilidade passa a ser comandada, além dos
conflitos de classes, pela competição. Nesse sentido, as sociedades de classes
negam a essência humana e a sociedade capitalista leva ao extremo tal negação.
Nessas sociedades, e de
forma mais ampla no capitalismo, a essência humana é negada e deformada. Surgem
monstruosidades, desde as praticadas por indivíduos até as coletivas, tal como
se pode exemplificar pelo caso de um psicopata, no primeiro caso, e do nazismo,
no segundo. Assim, o humanismo romântico é ilusório. O humanismo radical é
aquele que não desconsidera a história e a negação da natureza humana no
capitalismo, fonte dos desequilíbrios psíquicos, mas também não se ilude com o
mundo da aparência caindo no anti-humanismo, pensando que o ser humano é “egoísta”
por natureza, entendendo o processo social mais amplo fundado na luta de
classes. Contudo, o humanismo radical também não confunde existência com essência,
não se ilude com “empírico” e sabe que por detrás da destruição psíquica dos
seres humanos e de todos os outros problemas como valores deformados, consciência
coisificada, etc., a essência existe, sufocada e reprimida, mas está lá. Todo ser
humano tem a necessidade psíquica de associação com outros seres humanos e
realizar suas potencialidades e se isso não se concretiza, existem efeitos,
inclusive os revolucionários são produtos disso. Os indivíduos revolucionários
o são por manifestarem o desejo da emancipação humana, dos demais e deles
mesmos, embora muitos também saibam que podem nem viver para ver isso. Sem dúvida,
isso é diferente do revoltado ou do rebelde. O primeiro apenas sonha com a
destruição pura e simples, no fundo não quer transformar nada, quer apenas
destruir aquilo que ele identificou como sendo a causa de seus males. O rebelde
é aquele que apenas questiona o que lhe atinge e ao invés de transformar
radicalmente as relações sociais quer, no fundo, mudar sua posição no interior
dessa sociedade, por isso é facilmente cooptado e corrompido[1].
Desta forma, o
humanismo radical mantém a unidade entre humanismo e radicalismo. Como já dizia
Marx, “ser radical é ir até a raiz, e a
raiz, para o homem, é o próprio homem” (1977). Radicalismo sem direção não existe,
é pseudorradicalismo. Não se pode gerar a libertação humana se tornando
desumano. O humanismo sem radicalismo é romantismo e o “radicalismo” sem
humanismo é extremismo inconsequente. O humanismo romântico gera reformismo ou sentimentalismo
e o extremismo gera autoritarismo, moralismo, niilismo. Para a práxis revolucionária nem o humanismo
abstrato nem o extremismo são adequados. Apenas o humanismo radical é correspondente
a tal prática. O humanismo radical evita ações ingênuas derivadas do humanismo
romântico, tal como pensar que numa manifestação popular durante lutas sociais
radicalizadas é possível apelar para a bondade e não violência do aparato
repressivo do Estado (polícia, exército). Da mesma forma, evita também a
prática do terror jacobino. Tal como colocava Rosa Luxemburgo,
“A
revolução proletária não precisa do terror para realizar seus fins, ela odeia e
abomina o assassinato. Ela não precisa desses meios de luta porque não combate
indivíduos, mas instituições, porque não entra na arena cheia de ilusões ingênuas
que, perdidas, levariam a uma vingança sangrenta. Não é a tentativa desesperada
de uma minoria de moldar o mundo à força, de acordo com o seu ideal, mas ação
da grande massa dos milhões de homens do povo, chamada a cumprir sua missão
histórica e a fazer da necessidade histórica uma realidade” (LUXEMBURGO, 1991, p.
103).
Nesse sentido, não é
possível cair nos equívocos do humanismo romântico e seus derivados (sentimentalismo,
pacifismo, reformismo)[2] e
nem no extremismo inconsequente (autoritarismo, moralismo, niilismo,
agressividade ou violência desnecessárias), tanto nos momentos revolucionários
quanto nos períodos de recuo do movimento operário, pois esses dois tipos de ação
apenas dificultam o avanço da luta pela transformação radical da sociedade. É por
este motivo que tanto o humanismo romântico quanto o extremismo devem ser
superados pelo humanismo radical.
Referências
FROMM, Erich. O
Dogma de Cristo. 5ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1986.
LUXEMBURG,
Rosa. O Que Quer a Liga Spartacus?
In: LUXEMBURG, Rosa. A Revolução Russa.
Petrópolis, Vozes, 1991.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia
Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo, Hucitec, 1991.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª Edição, São Paulo,
Martins Fontes, 1983a.
MARX, Karl. Crítica
da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução. Revista Temas de Ciências
Humanas. São Paulo, Grijalbo, vol. 2, 1977.
MARX, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. In: Fromm, E. O Conceito Marxista do Homem. 8ª Edição, Rio de Janeiro: Zahar,
1983b.
MARX, Karl. O Capital. Vol 1. 3ª Edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens. São Paulo: Ática, 1989.
[1] Sobre isso é interessante a
discussão de Erich Fromm a respeito do “caráter rebelde” e do “caráter
revolucionário”, na qual através de sua caracterologia coloca a questão da
personalidade do rebelde (FROMM, 1986).
[2] A mesma Rosa Luxemburgo contesta
tais ilusões: “não passa de delírio extravagante acreditar que os capitalistas
se renderiam de bom grado no veredicto socialista de um parlamento, de uma
Assembleia Nacional, que renunciariam tranquilamente à propriedade, ao lucro,
aos privilégios da exploração. Todas as classes dominantes, com a mais tenaz
energia, lutaram até o fim por seus privilégios. Os patrícios de Roma, assim
como os barões feudais da Idade Média, os gentlemen ingleses, assim como os
mercadores de escravos americanos, os boiardos da Valáquia, assim como os
fabricantes de seda de Lyon – todos derramaram rios de sangue, caminharam sobre
cadáveres, em meio a incêndios e crimes, provocaram a guerra civil e traíram
seus países para defender privilégios e poder” (LUXEMBURGO, 1991, p. 104).
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