Luta Cultural e Propaganda Revolucionária
Nildo Viana
A luta revolucionária se desenvolve na vida cotidiana e nos mais variados aspectos. Ela se desenvolve também no mundo da cultura. A luta cultural, em períodos não-revolucionários, acaba possuindo uma importância fundamental. E na luta cultural os mais variados meios e formas podem ser utilizados, dentre eles a propaganda generalizada. Iremos, no presente texto, discutir esta questão e abordar o papel estratégico que assume hoje a propaganda generalizada.
A Importância da Luta Cultural
As revoluções sociais do século 19 e 20 levadas a cabo pelo proletariado foram revoluções inacabadas. Desde a Comuna de Paris, em 1871, até as experiências mais recentes, o que ocorreu foram tentativas, mais ou menos duradouras, mais ou menos eficazes, etc., que não se concretizaram. É interessante entender o motivo disto. Quando os comunardos realizaram a experiência autogestionária em 1871 eles forjaram, na própria luta, sua força e sua consciência. A idéia de comunismo ou de autogestão social não era forte ou hegemônica em Paris. Os grupos políticos de esquerda eram diminutos e fracos, inclusive teoricamente. O processo que desencadeou a luta heróica dos trabalhadores parisienses foi uma situação favorável, no qual o próprio Estado capitalista forneceu as armas para os operários. Nesta situação, os trabalhadores desenvolveram suas lutas e chegaram, sem grandes reflexões intelectuais, a uma primeira experiência autogestionária, inconclusa e incipiente, mas que abria novas perspectivas para se entender a dinâmica do movimento revolucionário do proletariado. Os grupos políticos existentes na época (jacobinos, proudhonianos, blanquistas, coletivistas, “marxistas”, anarquistas e socialistas utópicos) não tiveram grande influência e nem papel dirigente:
“Como já foi assinalado, a Comuna não é obra de nenhum grupo ideológico concreto. É bem mais uma criação original do povo. Porém é indiscutível que, em grau maior ou menor, influíram em sua organização e funcionamento as teorias sociais que buscavam a libertação do povo, e as que este aderiu com a esperança de desmontar a máquina opressora” (Lopez e Turrado, 1966, p. 20).
Sem dúvida, as revoluções proletárias são produto das lutas operárias e do processo de desenvolvimento da consciência revolucionária a partir destas lutas. Porém, na historiografia acadêmica, mesmo a dita “marxista” e, em alguns casos até mesmo “anarquistas”, uma interpretação simplista do processo de formação da consciência revolucionária. Para a historiografia leninista (e tendências próximas ou similares), o foco da análise ocorre nos partidos e grupos políticos, ideologias e concepções políticas. Alguns anarquistas acabam também caindo em erro semelhante. A reconstituição das histórias das lutas revolucionárias se faz a partir de um modelo analítico estreito que troca a luta de classes por “querelas de organização”, tal como o jovem Trotsky acusava em Lênin em suas teses organizativas (Guérin, 1969; Viana, 2007). Assim, estes intérpretes não compreendem como que, se não havia grupos ou concepções consolidadas, houve um processo revolucionário e, por conseguinte, apela-se para explicações que afirmam que a revolução social como sendo feita devido à incapacidade dos dominantes de manter seu domínio.
“Para um marxista, não há dúvida de que a revolução é impossível sem uma situação revolucionária, mas nem toda situação revolucionária conduz à revolução. Quais são, de maneira geral, os indícios de uma situação revolucionária? Estamos certos de não nos enganarmos se indicarmos três principais pontos que seguem: 1) impossibilidade para as classes dominantes manterem sua dominação de forma inalterada; crise da ‘cúpula’, crise da política da classe dominante, o que cria uma fissura através da qual o descontentamento e a indignação das classes oprimidas abrem caminho. Para que a revolução estoure não basta, normalmente, que ‘a base não queira mais’ viver como outrora, mas é necessário ainda que ‘a cúpula não o possa mais’; 2) agravamento, além do comum, da miséria e angústia das classes oprimidas; c) desenvolvimento acentuado, em virtude das razões indicadas acima, da atividade das massas, que se deixam, nos períodos ‘pacíficos’, saquear tranquilamente, mas que, em períodos agitados, são empurradas tanto pela crise no seu conjunto como pela própria ‘cúpula’, para uma ação histórica independente” (Lênin, 1979, p. 29-30).
No entanto, Lênin complementa que não basta esta situação revolucionária, é necessário também uma outra condição: o avanço subjetivo da classe operária, que é impulsionado pelo partido de vanguarda que deve dirigir uma insurreição para conquistar o poder estatal. Esta visão da “situação revolucionária” é simplesmente antimarxista. Na verdade, uma situação pré-revolucionária é aquela na qual os conflitos de classes ganham uma amplitude grande (e isto pode ou não provocar a crise do governo ou da legitimidade do Estado capitalista) e gera uma ampliação da capacidade combativa, da auto-organização e do desenvolvimento de uma consciência revolucionária no proletariado e demais setores da sociedade potencialmente revolucionários. O partido de vanguarda, neste caso, possui um papel contra-revolucionário, pois o seu objetivo é conquistar o poder estatal e frear a consciência revolucionária, que é precondição para atingir tal objetivo.
A luta emancipatória dos trabalhadores ocorre cotidianamente, com maior ou menor grau de organização e consciência. A luta cotidiana traz em si o germe da negação do capital. Porém, há alguns obstáculos que dificultam a passagem desta luta cotidiana para lutas autônomas e dessas para lutas autogestionárias. A hegemonia cultural burguesa, através da ideologia (ciência, filosofia, etc.), da mentalidade dominante, da axiologia, das representações cotidianas ilusórias (Viana, 2005) é um destes obstáculos, além do sistema repressivo, da ação estatal, sociabilidade capitalista e sua pressão sobre os indivíduos, etc. Caso a luta operária avance no aspecto cultural, ela tende a avançar nas outras instâncias de luta. Também o avanço da luta prática e cotidiana, tende a reforçar a luta cultural. O avanço da luta, por sua vez, é beneficiado pelas crises de governo, de legitimidade do Estado capitalista, financeiras, etc. Tais crises aumentam o descontentamento popular e sua aproximação com idéias e concepções mais radicais. Uma crise no regime de acumulação, por sua vez, tende a criar uma situação drástica, no qual a possibilidade de revolução proletária amplia-se de forma considerável, tornando-se uma tendência.
Porém, um estágio da luta de classes não surge do nada. Ele surge num contexto (seja de crise de governo, de regime de acumulação, etc.), mas tem como pressuposto o estágio anterior. Dependendo do estágio e do nível de desenvolvimento da consciência revolucionária e de embriões de auto-organização, a luta proletária tende a avançar muito mais rápida e ter uma possibilidade muito maior de vitória. Neste contexto, em situações de estabilidade, a luta cultural assume grande importância, bem como a formação de embriões de formas de auto-organização. Porém, se estas iniciativas, em si mesmas, não gerar uma onda revolucionária, ela serve para uma acumulação de forças do proletariado que significa um avanço e capacidade de derrotar a burguesia e suas classes auxiliares (especialmente a burocracia) que seria bem menor em outra situação, no qual o estágio da luta de classes estivesse num nível ainda elementar.
Claro que aqui não defendemos a postura reformista gramsciana, de conquistar a hegemonia no interior da sociedade civil burguesa. Diante da dominação capitalista, é impossível uma hegemonia proletária na sociedade civil (Viana, 2003). Assim, a luta cultural dentro da sociedade capitalista é fundamental para que as forças revolucionárias consigam fazer avançar a luta proletária. Além disso, este avanço da consciência revolucionária do proletariado e demais classes exploradas e grupos oprimidos também é fundamental para impedir o processo de contra-revolução burocrática, e a influência da social-democracia e bolchevismo.
É fundamental defender a espontaneidade do proletariado, sob pena de reproduzir o bolchevismo com linguagem anarquista, conselhista, ou qualquer outra. As revoluções sociais foram realizadas espontaneamente. A espontaneidade revolucionária do proletariado é pressuposto para a instauração da autogestão social, ou seja, da sociedade comunista. Porém, é preciso entender o que significa espontaneidade revolucionária.
“A palavra espontâneo deriva do baixo latim spontaneus, do latim sponte (livremente, voluntariamente), este oriundo de uma raiz grega. Este adjetivo significa, de acordo com Littré: 1) que tem seu princípio em si mesmo; 2) que se faz, se produz por si mesmo; 3) (em fisiologia) que não é produzido por causa exterior” (Guérin, 1982, p. 18).
Sem dúvida, a idéia de espontaneidade presta-se a equívocos e a etimologia da palavra muito mais dificulta do que esclarece seu caráter. Alguns autores e pensadores que se dizem marxistas separam as classes sociais, e pensam ou apenas nas ações da classe dominante ou no das classes exploradas, como se elas não vivessem na mesma sociedade. Obviamente que muitos abordam as classes sociais, mas se limitam às ações de uma delas apenas. Assim, se pode falar em “auto-formação da classe operária” (Thompson, 1987). A própria expressão “auto-formação da classe” é um equívoco. As classes sociais só existem se relacionando, ou seja, a classe social existe em relação com outra, ou então não existe. Logo, por questão lógica e histórica, não é possível haver auto-formação, pois se em sua essência ela só existe na relação com outra classe, então ela não pode fazê-lo sozinha. Sem dúvida, mesmo se admitindo que classe é relação (como é o caso de Thompson), não se ultrapassa um pobre culturalismo e se confunde formação de consciência de classe com formação da classe.
As classes sociais são formadas quando se constituem determinadas relações de produção ou outras relações derivadas delas, que expressam uma determinada divisão social do trabalho. Neste sentido, a espontaneidade revolucionária não pode ser entendida como algo que se produz por si mesmo, pois a ação revolucionária de uma classe só surge no contexto da luta de classes. É a partir da luta que surge a espontaneidade revolucionária. Claro que ingênuos historiadores podem se iludir com as palavras e pensar que dizer que as revoluções proletárias do início do século 20 foram espontâneas é um equívoco, pois existiam outras classes, os governos entravam em crise, etc. Obviamente que aqui o historiador não entendeu que a história é a história da luta de classes e não de apenas uma classe. Claro que por detrás desta negação da espontaneidade revolucionária pode estar, subrepticiamente, uma posição leninista, vanguardista, logo, contra-revolucionária.
O que é a espontaneidade revolucionária? Espontaneidade revolucionária é diferente de mera espontaneidade. Ela é uma espontaneidade que aponta para a revolução, daí ser revolucionária. A espontaneidade significa que surgiu sem direção ou comando externo à classe, ou seja, não foi o governo ou instituições como partido, igreja, sindicatos, meios oligopolistas de comunicação, etc., que fez desencadear um conjunto de ações[1] e sim – a partir de sua luta contra o governo, os capitalistas, etc. – que desenvolveu ações espontâneas com objetivos revolucionários, mais ou menos conscientes. A passagem das lutas espontâneas (cotidianas) para lutas autônomas (independentes de partidos e representantes) marca a possibilidade da espontaneidade revolucionária, isto é, a passagem para lutas autogestionárias. As revoluções proletárias do início do século 20 se iniciaram pela ação espontânea do proletariado e do campesinato. Sem dúvida, estas ações espontâneas não caíram do céu como um raio ou então ocorreram como num passe de mágica, pois sempre houve situações de conflitos anteriores, guerras, fome, crise de governo ou de legitimidade do Estado, acontecimentos que servem de detonador para ações explosivas, etc.
Porém, a defesa da autogestão das lutas operárias pela própria classe operária não significa dizer que os indivíduos que apóiam tal luta nada devem fazer. Sem dúvida, a luta revolucionária é uma luta de todos, pois todos sofrem, direta ou indiretamente, em maior ou menor grau, com as mazelas da sociedade capitalista. Os indivíduos e grupos revolucionários devem lutar pela libertação humana e para fazer isso deve se aliar ao movimento revolucionário do proletariado, sem a pretensão de querer dirigi-lo, controlá-lo, etc. A ação dos grupos e indivíduos revolucionários contribui com a luta pela emancipação humana e fazem parte da luta de classes. A inatividade sob o pretexto de não ser vanguarda ou não querer ser vanguarda é, na verdade, uma ação que beneficia os partidos vanguardistas, pois, não apresentando uma visão alternativa e se omitindo no processo da luta de classes, acaba beneficiando as forças contrárias.
Da mesma forma que Marx, pensadores como Proudhon e Bakunin, por exemplo, perceberam isto:
“Entre os fundadores do anarquismo, dá-se ênfase à espontaneidade e, é bem possível que seja a partir deles que a palavra terminou por entrar na linguagem política alemã” (Guérin, 1982, p. 21).
“Entretanto, os dois pensadores libertários, ao contrário do que imaginam seus adversários marxistas, se enfatizam a espontaneidade, não desprezam, absolutamente, o papel das minorias conscientes. Proudhon observa que ‘as idéias, que em todas as épocas agitaram as massas, nasceram antes no cérebro de algum pensador (...). A prioridade nunca coube às multidões’. Quanto a Bakunin, se se afasta de Proudhon ao inverter o raciocínio deste e ao atribuir prioridade à ação elementar das massas, prescreve aos revolucionários conscientes o imperioso dever de ‘ajudar o nascimento de uma revolução, difundindo às massas idéias’ correspondentes ao seu instinto ‘de servir como intermediários entre a idéia revolucionária e os instintos populares’ ‘de contribuir para a organização revolucionária do poder das massas” (Guérin, 1982, p. 22).
Assim, tal como Marx apresentou juntamente com Engels no Manifesto Comunista, os revolucionários não possuem interesses opostos aos da classe operária e nem formam um “partido à parte e oposto” aos demais grupos revolucionários; “não tem interesses que os separem do proletariado em geral”; “não proclamam princípios particulares, segundo os quais pretenderiam modelar o movimento operário” (Marx e Engels, 1988, p. 88). A única diferença entre os revolucionários e o proletariado é o fato de ser “a fração que impulsiona as demais; teoricamente têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário” (Marx e Engels, 1988, p. 88).
Justamente devido esta formação teórica, cabe aos revolucionários não se omitirem e atuarem no sentido de reforçar a luta do proletariado. Para fazer isso, existem as mais variadas formas, desde a produção e divulgação de idéias revolucionárias; produção teórica e artística; ações políticas práticas, busca de organização e trabalho coletivo visando constituir elementos para apoiar a luta proletária, etc. Assim, um dos elementos fundamentais é a luta cultural visando corroer a hegemonia burguesa e acelerar o processo de desenvolvimento da consciência de classe do proletariado, efetivando a passagem da consciência concreta para uma consciência revolucionária, mesmo que em círculos mais restritos, e buscando sua expansão para círculos mais amplos. É neste contexto que se coloca a questão da propaganda revolucionária e da propaganda generalizada.
Propaganda Política e Propaganda Revolucionária
A propaganda é o processo no qual um indivíduo ou grupo propaga determinadas idéias. No caso da sociedade capitalista, há a propaganda comercial, cujo objetivo é convencer ao consumo e a propaganda política, cujo objetivo é adesão a determinada idéia, partido, etc. A propaganda política é extremamente utilizada por governos e partidos, estes últimos principalmente em períodos eleitorais.
A propaganda revolucionária, ou seja, a que tem como objetivo contribuir com o desencadeamento de um processo revolucionário, difere das formas dominantes de propaganda em nossa sociedade. Neste sentido, torna-se útil distinguir a propaganda revolucionária e seu modo operandi de outra forma de propaganda que é possível confundir, que é a propaganda partidária realizada pelo leninismo.
Lênin é considerado por alguns como um grande propagandista. Ele utilizou palavras de ordem e outros elementos manipulativos da opinião da população para conseguir a supremacia no processo revolucionário russo. A propaganda do partido de tipo leninista visa a adesão às idéias do partido e aceitação de sua direção. Lênin foi perspicaz no sentido de perceber que fazendo concessões para as classes exploradas e defendendo suas reivindicações, seria possível ganhar tal adesão e aceitação. Suas palavras de ordem: “Pão, Paz e Terra” e “todo o poder aos sovietes” foi apenas uma forma de manipulação eficaz, pois retirou das necessidades da população suas palavras de ordem e colocou o seu partido como aquele que transformaria as palavras de ordem em realidade. O objetivo era conquistar o apoio da população para tomar o poder estatal. Por mais que a propaganda dissesse “todo o poder aos sovietes”, isto era apenas um meio para conseguir “todo o poder ao partido”, que era, na verdade, a mensagem sub-reptícia por detrás desta palavra de ordem.
Nos debates intelectuais ele também usava um discurso retórico para derrotar os adversários, entre os quais se destacava os adjetivos pejorativos, o argumento de autoridade, e outros estratagemas discursivos. Porém, esta forma medíocre de debater e o caráter manipulativo de sua propaganda são coerentes com sua visão vanguardista e seus objetivos contra-revolucionários. Porém, isto é totalmente inadequado para quem parte da perspectiva do proletariado. Assim, os objetivos da propaganda leninista são opostos aos objetivos da propaganda revolucionária. Se no caso da propaganda leninista o que se quer é adesão e aceitação, ou seja, se busca criar uma relação de dependência e tutela; no caso da propaganda revolucionária o que se objetiva é o desenvolvimento da consciência de classe e da capacidade crítica-reflexiva e da autonomia e auto-organização.
Assim, a propaganda revolucionária não possui um caráter de busca de persuasão por interesses de partido e sim busca de formação. O objetivo não é informar e sim formar, contribuir para a formação de recursos intelectuais que não são fornecidos pela tradição, pela escola, pelos meios oligopolistas de comunicação. Neste sentido, a propaganda revolucionária somente é propaganda no sentido da origem etimológica da palavra:
“O dicionário de Oxford define propaganda como ‘uma associação ou projeto para propagar uma doutrina ou prática’, e a palavra origina-se do latim propagare, que significa a técnica do jardineiro de cravar no solo os rebentos novos das plantas a fim de reproduzir novas plantas que depois passarão a ter vida própria” (Brown, 1971, p. 12).
Assim, a propaganda revolucionária visa divulgar “rebentos novos” para que as classes exploradas possam utilizá-los em sua ação cotidiana e política. Não se trata de formar adesão a grupo ou fazer doutrinação e sim incentivar a auto-reflexão através da contribuição com o desenvolvimento de uma consciência crítica e da auto-organização. Assim, se a propaganda leninista visa atacar determinado governo ou coisas mais abstratas (imperialismo, burguesia, etc.) sem um processo de esclarecimento intelectual, revela apenas que quer fazer auto-propaganda, e que é um objetivo em si mesmo. Logo, cria interesses particulares e opostos ao do proletariado.
Assim, o modo operandi da propaganda revolucionária é radicalmente diferente. Não se trata de direcionar a mensagem para a crítica ao governo ou entidades abstratas e nem para solicitar voto, apoio, adesão ou aceitação de direção. A propaganda revolucionária visa: a) esclarecimento intelectual sobre a totalidade da sociedade capitalista; b) fornecer recursos intelectuais, ferramentas para que os indivíduos desenvolvam a capacidade de análise crítica sobre as relações sociais e sua situação particular no capitalismo; c) incentivar a auto-formação intelectual e a auto-organização política.
O saber que é repassado pelas tradições, pelas escolas e meios oligopolistas de comunicação é marcado pela superficialidade, moralismo, fragmentação, formalismo, valores dominantes. Um mundo de informação é oferecido, mas as ferramentas intelectuais para trabalhar este conjunto de informações não são repassadas em lugar algum. Assim, a propaganda revolucionária deve ser um primeiro momento formativo que deve visar o incentivo para a auto-formação. Os indivíduos escolarizados não conseguem fazer interpretações e análises mais profundas de acontecimentos, programas televisivos, ou seja lá o que for, e não tiver feito um esforço pessoal no sentido de adquirir e desenvolver habilidades intelectuais que permitam uma percepção da realidade, tal como a visão da totalidade, por exemplo.
Assim, o objetivo da propaganda revolucionária é fornecer ferramentas básicas para um pensamento crítico e incentivar a auto-formação. Para atingir este objetivo, deve utilizar os meios adequados para tal. Os meios devem possuir uma unidade com os objetivos. Sendo assim, a propaganda via panfleto, meios de comunicação, etc., deve buscar incentivar, no seu próprio ato, a reflexão e a formação, e, ao mesmo tempo, já passar uma mensagem. O doutrinário não tem intenção de formar e sim de convencer, pois assim ganha a adesão e mantém a relação de dependência. O revolucionário tem a intenção de formar, pois assim contribui com a luta pela emancipação. Para formar, é preciso não só passar a mensagem que deseja e que faz parte da formação, mas também criar mecanismos intelectuais pelos quais o indivíduo atingido pela mensagem saiba refletir sobre ela e muitos outros assuntos não relacionados diretamente.
Sem dúvida, no que se refere à propaganda generalizada, isto é bastante difícil. Um panfleto, por exemplo, devido seu tamanho, a heterogeneidade do público (cultural, escolar, política, religiosa, etc.), o desinteresse pela leitura ou pelo assunto, são obstáculos. Por isso, a produção de um panfleto revolucionário deve, inicialmente, pensar no tema-base e objetivo do panfleto, tentando apresentá-lo da forma mais simples possível. O critério da simplicidade significativa é aquele no qual o processo de simplificação não anula a mensagem que se quer passar, pois assim perderia o sentido e a panfletagem seria um objetivo em si mesmo.
Sem dúvida, se o objetivo do panfleto for uma questão bastante delimitada, tal como a chamada para o voto nulo, então deverá focalizar a proposta e justificar/fundamentar e, ao fazer isso, remeter ao conjunto das relações sociais (totalidade), bem como indo além e propondo algo mais do que meramente anular o voto (por exemplo, auto-organização). Assim, mesmo quando ataca uma questão pontual, é necessário, para proceder a um processo de formação, ir além de tal questão. Na estrutura do panfleto há uma organização que reflete a própria proposta do método dialético e, em cursos de formação, pode servir de exemplo para iniciação à dialética. Se a questão pontual é o preço das tarifas de ônibus, é preciso não somente apresentar a proposta de abaixar o preço da tarifa e justificar/fundamentar tal proposta, remetendo a outras relações sociais (caráter coletivo e social do transporte, apropriação privada e lucro, papel do Estado, etc.), bem como propor formas de auto-organização para conquistar/garantir sua efetivação (associação de usuários, por exemplo) e ir, além disso, (proposta de estatização e controle pelos usuários, etc.).
Obviamente, que, a propaganda revolucionária é apenas um mecanismo no processo da luta cultural e tem que ser complementada com outros, entre os quais, atividades formativas como cursos, textos, etc. Assim, o trabalho coletivo na produção, confecção, reprodução e distribuição de um panfleto é apenas uma parte do trabalho que deve ser complementada com formas mais amplas de formação e divulgação. A propaganda revolucionária não é propaganda política, não visa voto, apoio a governo, adesão a partido e, por isso, não pode encerrar-se em si mesma. É necessário criar mecanismos pelos quais os resultados da propaganda generalizada com objetivo revolucionário sejam avaliados e complementados.
Sobre o processo de avaliação, é necessário fazer uma distinção entre os resultados visíveis e os resultados invisíveis. O resultado visível pode ser constatado, é perceptível nos comentários das pessoas, nos contatos imediatos que poderão surgir, e, posteriormente, no efeito que poderá ter (se for pelo voto nulo, num aumento considerável deste, se for para formar núcleos de formação e ação, na possível formação deles). Caso este resultado seja extraordinário, será visto com muito mais facilidade e, uma vez ocorrendo, reforça sua eficácia e ampliação da propaganda revolucionária. Porém, se o resultado for bom, mas não extraordinário, é possível expandir a idéia e tentar divulgá-la para se repetir em outras cidades, etc., mas com cuidado, pois dando resultado, logo aparecerão os oportunistas e partidos da pseudo-esquerda querendo ou fazer algo semelhante, deturpando a idéia, ou se apropriar da idéia ou do resultado. E como sabemos que os recursos e manipulação que eles fazem é forte, todo o cuidado é necessário, inclusive sempre deixar claro na propaganda, o papel dos partidos políticos (que é uma primeira forma de prevenir tal deformação).
O resultado invisível, é aquele que não se vê, tal como a leitura que abre a percepção de uma pessoa que não se manifesta, ou um grupo (de estudos, ação, etc.) que se forma, mas não entra em contato, no desenvolvimento da consciência de classe de forma rudimentar, mas que não se toma conhecimento, etc. Uma primeira panfletagem é apenas um passo, que tem que ser complementado por outras (gerais e específicas) e, caso dê bons resultados, tende a se ampliar e contar com mais pessoas ajudando no processo. Por conseguinte, mesmo que não vejamos resultado nenhum, o trabalho pode ter surtido efeito.
Assim, o processo de avaliação de uma panfletagem deve levar em consideração estes resultados e tentar obter informações para ampliar a visão deles. Além disso, é preciso dar continuidade ao trabalho de luta cultural e propaganda, formação, etc.
O complemento da propaganda revolucionária é o incentivo e apoio para o processo de auto-formação e auto-organização da população. Neste sentido, a idéia de produzir material sobre diversos temas numa perspectiva revolucionária e mais acessível ganha um papel fundamental. Entre este material, produzir cadernos de formação é muito importante, pois não só permite acesso por parte de pessoas a uma explicação mais acessível da sociedade capitalista como também possibilitar ferramentas intelectuais para análise da sociedade, unindo análise da realidade e recursos intelectuais para analisar outros fenômenos e compreendê-los. Isto, é claro, é um nível que deve ser complementado com a produção teórica, mais elaborada e profunda, que, no entanto, já pressupõe uma formação anterior dos indivíduos para que seja acessível e faz parte da busca de compreensão das relações sociais e do desenvolvimento capitalista para fornecer subsídios e recursos intelectuais para a ação revolucionária.
Na atualidade, a propaganda revolucionária generalizada assume grande importância como meio alternativo de tentar romper o isolamento dos grupos revolucionários junto à população e o cerco da cultura burguesa sobre os indivíduos, principalmente os das classes exploradas. A luta cultural deve se tornar ampla, se generalizar e atingir a população. Neste sentido, abre-se a possibilidade de mais indivíduos, principalmente, neste caso, oriundos das classes exploradas, ampliar a visão crítica da sociedade capitalista e reforçar o processo de luta pela autogestão social. Este processo, tende, em períodos não-revolucionários, a ser cumulativo e pode, dependendo das lutas sociais, se tornar muito mais amplo e fornecer uma base cultural mais sólida para lutas futuras. Também pode, numa visão mais otimista, ser uma forma de expandir a própria luta e desencadear uma radicalização e autonomização das classes exploradas, o que permitiria uma nova fase da luta de classes.
Referências Bibliográficas.
Brown, J. A. Técnicas de Persuasão. 2ª Edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1971.
Guérin, Daniel. Rosa Luxemburgo e a Espontaneidade Revolucionária. São Paulo, Perspectiva, 1982.
Lênin, W. A Falência da II Internacional. São Paulo, Kairós, 1979.
Marx, Karl e Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 7a edição, São Paulo, Global, 1988.
Thompson, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Vol. 1. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
Viana, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
Viana, Nildo. Luta de Classes e Universo Cultural. Revista Letra Livre. Rio de Janeiro, Ano 11, n. 45, 2006.
Viana, Nildo. Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro, Achiamé, 2008.
Artigo publicado originalmente em: Revista Enfrentamento, Ano 02, no
03, Jul./Dez. de 2007.
[1] Seria desnecessário acrescentar que aqui se fala de ações que dirigem o próprio movimento da classe e não qualquer ação. Por exemplo, se um determinado governo resolve abaixar o salário mínimo nacional, ele pode desencadear ações espontâneas do proletariado, ou seja, a espontaneidade é uma resposta proletária à ação da classe dominante e suas classes auxiliares. Tais ações não seriam espontâneas se elas mesmas fossem dirigidas e coordenadas por elementos exteriores à classe. Por exemplo, no caso do governo usar seus meios tecnológicos de comunicação para incitar a população a fazer greve contra a sua determinação de abaixar os salários, uma situação não só inusitada como impossível. Alguns historiadores acham que a espontaneidade do proletariado caí do céu, que os proletários acordam mal humorados e sem nenhum fato novo resolveriam desenvolver ações espontâneas. Mas como elas sempre devem ter um antecedente, e o historiador não vê nenhum na própria classe, então conclui que foi a classe dominante ou a crise estatal que provocou a ação proletária e, logo, não houve espontaneidade, o que significa também não entender o que é espontaneidade. Outro tipo de historiador vai buscar encontrar intelectuais ou grupos políticos que prepararam um programa político que a classe posteriormente seguiu.
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