Renda Familiar, Consumo e Trabalho Precoce
Nildo Viana
Trecho:
A utilização de trabalho precoce, isto é, da força de trabalho de menores de dezoito anos, pelas famílias de catadores de lixo, tem como causa fundamental a necessidade de complemento da renda familiar, elemento indispensável para se realizar o consumo de bens necessários para a sobrevivência da família. O trabalho precoce é necessário devido ao fato de que na relação despesa-consumo se cria a necessidade de aumentar a renda para compensar a despesa representada pelos indivíduos menores de idade. Isto tem entre outras conseqüências, como veremos mais adiante, um uso elevado de trabalho precoce. Mas existem diversas outras conseqüências, tal como o caso da desescolarização dos menores de dezoito anos que vivem nestas famílias.
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CATADORES
DE LIXO:
RENDA
FAMILIAR, CONSUMO E TRABALHO PRECOCE
Nildo Viana
A
utilização de trabalho precoce, isto é, da força de trabalho de menores de
dezoito anos, pelas famílias de catadores de lixo, tem como causa fundamental a
necessidade de complemento da renda familiar, elemento indispensável para se
realizar o consumo de bens necessários para a sobrevivência da família. O
trabalho precoce é necessário devido ao fato de que na relação despesa-consumo
se cria a necessidade de aumentar a renda para compensar a despesa representada
pelos indivíduos menores de idade. Isto tem entre outras conseqüências, como
veremos mais adiante, um uso elevado de trabalho precoce. Mas existem diversas outras conseqüências,
tal como o caso da desescolarização dos menores de dezoito anos que vivem
nestas famílias.
Unidade
Doméstica, Proletarização e Lumpemproletarização
Por qual
motivo determinadas famílias se tornam coletoras de lixo? O que engendra essa
forma de buscar adquirir os meios de sobrevivência? Isto ocorre devido ao fato
de que em nossa sociedade, desde a Revolução Industrial, criou-se uma separação
entre trabalhadores e meios de produção. Sem meios de produção, ou seja, sem
ter como produzir os seus meios de sobrevivência, não resta outra saída a não ser
vender sua força de trabalho em troca de um salário. Porém, o mercado de
trabalho não absorve toda a força de trabalho disponível. Desta forma surge ao
lado do proletariado (força de trabalho efetivamente empregada e submetida ao
salariato), o lumpemproletariado (força de trabalho potencial, sub-utilizada ou
não-utilizada)[1].
O
lumpemproletariado precisa, então, criar estratégias de sobrevivência. Isto
decorre do fato de que na sociedade capitalista ocorre uma “mercantilização de
tudo” (Wallerstein), inclusive dos meios de consumo[2].
A alimentação, o vestuário etc., se transformam em mercadorias e a única forma
(dentro dos padrões convencionais, ou seja, excetuando-se o caso do roubo) de
adquiri-las é através da compra efetivada por intermédio do dinheiro. Esta é
uma lógica bem diferente da existente nas sociedades pré-capitalistas,
principalmente as de caráter rural. Nestas sociedades, a unidade doméstica era
simultaneamente unidade de produção e unidade de consumo, ou seja, se
fundamentava na produção de valores de uso, na auto-subsistência.
Esta
identidade entre unidade de produção e unidade de consumo na unidade doméstica
rompe-se com a ascensão do modo de produção capitalista. A produção mercantil
exige não só a separação entre trabalhador e meios de produção como também
entre unidade de produção e unidade de consumo[3].
A produção
mercantil capitalista possui a seguinte lógica: D-M-D
(dinheiro-mercadoria-dinheiro), onde se usa o dinheiro para comprar mercadoria
e vendê-la por um valor superior ao que foi gasto. Desta forma, a produção
capitalista visa a reprodução ampliada do capital[4].
Ao lado da produção mercantil capitalista persiste existindo a produção
mercantil simples, que, por sua vez, possui outra lógica: M-D-M
(mercadoria-dinheiro-mercadoria), onde se produz uma mercadoria para adquirir
dinheiro para comprar outra mercadoria (que não é produzida nesta unidade
doméstica). Isto quer dizer que a produção mercantil simples também precisa de
garantir uma renda monetária para possibilitar a compra de mercadorias não
produzidas na sua própria esfera. Porém, esta unidade doméstica é, ainda,
unidade de consumo e unidade de produção, embora não seja auto-suficiente, ou
seja, não produz tudo que necessita para consumir e por isso precisa produzir
um excedente para adquirir dinheiro com sua venda e assim comprar as
mercadorias que necessita.
Assim, com
exceção da produção mercantil simples subordinada à produção mercantil
capitalista, a distinção entre unidade de consumo e unidade de produção se
generaliza em toda a sociedade capitalista. Mas tanto a produção mercantil
simples quanto a produção mercantil capitalista já foram objetos de extensas
análises e estudos. Curiosamente, o mesmo não aconteceu com a unidade de
consumo separada da unidade de produção, separação esta instituída pela
produção mercantil capitalista. Poucos autores se dedicaram ao problema do
consumo em si mesmo[5] e
menos ainda se dedicaram ao que denominamos unidade de consumo[6].
Se a lógica da unidade de produção capitalista é D-M-D, resta saber qual é a
lógica da unidade de consumo.
Alguns
aspectos da unidade de consumo são fáceis de se delimitar. A unidade doméstica
deixou de ser uma unidade de produção para os agentes envolvidos na produção
mercantil capitalista ¾ a classe
capitalista e a classe operária ¾, para o conjunto dos trabalhadores assalariados improdutivos
e para aqueles que só possuem sua força de trabalho mas que não conseguem
vendê-la no mercado de trabalho formal. Porém, a unidade doméstica continuou
sendo uma unidade de consumo. Ora, se não é unidade de produção e é unidade de
consumo, então sua lógica é D-M (dinheiro-mercadoria). Em outras palavras, as
unidades domésticas são apenas unidades de consumo e para o consumo se efetivar
é necessário uma renda monetária. Este caso é mais grave no que diz respeito
àqueles que possuem como única propriedade a sua força de trabalho e são
constrangidos a buscar adquirir uma renda monetária para garantir sua
sobrevivência. Numa sociedade onde tudo (ou quase tudo) se transformou em
mercadoria e que, por conseguinte, possui um valor de troca, então torna-se
necessário para adquiri-las ter acesso ao meio de troca universal, ou seja, ao
dinheiro.
Neste
sentido, a sobrevivência da unidade doméstica — que se transformou em uma
unidade exclusivamente de consumo — depende da renda familiar. A renda familiar é o que
permite o funcionamento da unidade doméstica enquanto unidade de consumo. A
renda familiar é o total em dinheiro adquirido pelo conjunto dos membros da
família, embora ela também possa ser adquirida por apenas um membro ou por uma
parte deles. Porém, esta renda monetária adquirida é revertida para o conjunto
da família, independentemente de quantos participam da sua formação.
Os membros
da família que não participam da formação da renda familiar desempenham outras
atividades delimitadas por uma divisão social do trabalho na qual os que se
dedicam à tarefa de adquirir renda monetária geralmente não participam (com
exceção de algumas funções tais como consertos, construção e reforma de casa etc.).
Estas atividades consistem principalmente em processamento de meios de consumo
e de criação de condições para a realização do consumo e para liberar membros
para a busca da renda monetária. Esta divisão social do trabalho ocorre
principalmente entre homens e mulheres, sendo que geralmente, mas nem sempre,
os homens se dedicam a busca de renda monetária e as mulheres cuidam da unidade
doméstica, que inclui atividades como limpeza, preparação de comida etc. Em
muitos casos as mulheres fazem estas atividades e ajudam na busca da renda
monetária e em casos mais raros os homens colaboram em tais atividades
consideradas “domésticas”[7].
A formação
da renda familiar ocorre de forma diferente em unidades domésticas diferentes.
Nas famílias proletárias, o principal meio (embora não seja o único, pois
outros membros da família podem utilizar outros meios para complementar a
renda) para a formação da renda monetária é o trabalho assalariado. Nas
famílias lumpemproletárias existem diversos meios utilizados para se adquirir renda monetária: trabalho
assalariado temporário, trabalho independente (também chamado de “trabalho
autônomo” ou “por conta própria”), roubo, mendicância etc.[8].
Resta saber
quais são os membros da família que são os responsáveis pela aquisição da renda
monetária. Isto depende do período histórico e do contexto cultural mas podemos
dizer que nas famílias proletárias com níveis salariais mais altos cabe ao
indivíduo adulto do sexo masculino a tarefa de adquirir renda monetária. As
mudanças históricas e culturais podem alterar este quadro. Durante a Revolução
Industrial, por exemplo, mulheres e crianças foram jogadas no trabalho
assalariado enquanto muitos homens eram vítimas do desemprego, tal como ocorre
hoje, no caso das crianças, em muitos países do chamado “terceiro mundo” e que
volta a ocorrer nos países da Europa Ocidental.
Nas
famílias proletárias com níveis salariais baixos a situação é diferente. A
renda monetária proporcionada pelo trabalhador adulto pode ser ¾ e geralmente é ¾ insuficiente para manter a
unidade doméstica com suas necessidades de consumo. Isto pode provocar tanto a
desagregação desta unidade doméstica como a viabilização de alternativas para
aumentar a renda familiar, tal como o uso do trabalho precoce e/ou do trabalho
feminino. Portanto, a renda monetária insuficiente adquirida pelo trabalhador
assalariado adulto cria a necessidade de uso do trabalho precoce e/ou feminino.
Nas
famílias lumpemproletárias a renda monetária adquirida é geralmente
insuficiente. Em determinados casos e momentos históricos de uma família, esta
renda pode ficar aquém da necessidades de sobrevivência e em casos raros pode
permitir uma relativa tranqüilidade na aquisição dos meios de sobrevivência. É
claro que isto depende de qual segmento do lumpemproletariado se faz parte,
pois na maioria dos casos a fome, a desnutrição, entre outros aspectos que
demonstram as suas condições precárias de vida, é o que predomina. Os
responsáveis pela aquisição da renda monetária e de recursos adicionais, são
todos os membros com condições de desenvolver estas atividades, ou seja, apenas
as crianças pequenas (cuja idade varia dependendo da família ou do segmento do
lumpemproletariado) estão em geral livres destas tarefas.
Na
sociedade capitalista, uma sociedade mercantil par excellence, a generalização da mercantilização e, por
conseguinte, do uso da moeda, cria o chamado “cálculo econômico” ¾ ou cálculo financeiro ¾ como forma de organizar a
relação entre despesas e renda[9].
Este cálculo financeiro também é utilizado em unidades domésticas
lumpemproletárias, embora de forma semiconsciente e assistemática. A relação
despesas-renda varia de acordo com o tamanho da família. O cálculo é simples: a
renda deve ser superior às despesas e o equilíbrio orçamentário depende ou da diminuição
das despesas ou de aumento da renda. Além disso, quanto maior a família,
maiores serão as despesas, e, por conseguinte, maior é a necessidade de
aumentar a renda familiar. O aumento das despesas leva à necessidade de
aumentar a renda.
De que
forma se pode aumentar a renda e/ou os recursos adicionais? Há duas formas
principais para se conseguir isto: sobrecarregando os membros ativos da
família, quando isto é possível, ou incorporando mais membros nas atividades
que geram renda ou recursos adicionais. Esta sobrecarga de atividades sobre os
membros ativos geralmente ocorre quando as crianças ainda estão demasiadamente
pequenas para trabalharem e a incorporação de mais membros geralmente ocorre
quando tais crianças já possuem condições de executarem tais atividades. Tendo
em vista que geralmente a renda familiar das famílias lumpemproletárias mal
consegue satisfazer a necessidade do que o antropólogo Eric Wolf chamou de
“mínimo calórico”[10],
então vê-se que, para estas famílias, o uso do trabalho precoce é
indispensável. Neste sentido, podemos dizer que o aumento do tamanho da família
— no caso de
crescimento vegetativo — provoca um
aumento de despesas que, à curto prazo, gera uma intensificação do trabalho dos
membros ativos e, à longo prazo, a utilização do trabalho precoce.
Mas, antes
de continuarmos, devemos esclarecer por qual motivo utilizamos a expressão
lumpemproletarização ao invés de exclusão social[11],
termo que vem sendo amplamente utilizado. Ao nosso ver, o termo exclusão social
apresenta limitações que não ocorrem com o conceito de lumpemproletarização. A
mais grave limitação que observamos no termo exclusão social é de caráter
teórico-metodológico. A idéia de exclusão não tem como pano de fundo uma teoria
da totalidade da vida social enquanto unidade dinâmica e contraditória e sim
uma visão dualista[12]:
a sociedade estaria dividida em duas esferas: a dos “incluídos” e a dos
“excluídos”, como se fossem duas unidades sociais que existissem
independentemente uma da outra.
Podemos
observar outros problemas teórico-metodológicos em torno da idéia da exclusão
social. Em primeiro lugar, tal concepção nos fornece uma falsa impressão que
não há uma divisão interna entre os considerados “incluídos” e também entre os
considerados “excluídos”. Em segundo lugar, não disfarça a sua preferência pelo
mundo dos “incluídos” (seja ele qual for, se lembrarmos que este não é
homogêneo), que passa a ser visto acriticamente e julgado como um mundo
desejável pelos “excluídos” (o problema passa a girar em como “incluir” os “excluídos”).
Em terceiro lugar, não trabalha de forma suficiente a razão de ser da chamada
exclusão social, demonstrando, na maioria das abordagens sobre este tema, que é
um processo sem agentes e sem contradição, sendo produto não se sabe do que,
ou, em outras palavras, a idéia de exclusão social assume um caráter descritivo
e não explicativo.
A idéia de
lumpemproletarização, ao contrário, surge no interior de uma teoria das classes
sociais e o lumpemproletariado não é um segmento social totalmente excluído ¾ se houvesse tal
possibilidade ¾ pois ele
pode estar momentaneamente afastado do mercado de trabalho, dos direitos
sociais (da cidadania) e marginalizado no mercado de consumo, mas não está
definitivamente excluído de nenhum destes aspectos da vida social, pois existe
tanto mudanças que alteram sua situação quanto uma mobilidade entre
lumpemproletariado e proletariado, entre segmentos do lumpemproletariado etc.
Por conseguinte, consideramos como mais adequado o uso da teoria do
lumpemproletariado ao invés do uso da concepção da exclusão social e por isso
lançaremos mão dela no presente trabalho.
Catadores
de Lixo: Renda Familiar, Consumo e Trabalho Precoce
O
lumpemproletariado cria diversas estratégias de sobrevivência, tal como já
havíamos colocado. Aqui nos interessa a forma específica representada pela
coleta de lixo. As famílias lumpemproletárias que se dedicam à coleta de lixo e
vivem desta coleta será o nosso foco de análise daqui em diante.
Os
coletores de lixo (também chamados de “catadores de lixo” e “trabalhadores do
lixo”) atuam em diversas cidades brasileiras. O que permite sua existência é a
indústria da reciclagem do lixo que transforma os coletores em fornecedores de
matérias-primas. O tipo de produto que extraem do lixo é variado, sendo
principalmente papel, garrafas, plásticos, latas e cobre. Segundo Bursztyn e
Araújo, “o processamento industrial do papel coletado pelos catadores de
Brasília é um bom negócio. Estima-se que para cada tonelada adquirida a empresa
gasta igual valor no processamento, para depois vender a matéria-prima por 2,5
vezes mais do que os custos”[13].
O comércio
do lixo entre os catadores de lixo e as empresas de reciclagem geralmente passa
pela mediação dos “atravessadores”: “boa parte das compras não é feita
diretamente pelas empresas. Também nesse setor a terceirização chegou, de forma
que há intermediários entre os catadores e a indústria: são os ‘atravessadores’
do papel”[14].
A existência de atravessadores pode ser explicada por dois motivos principais.
Em primeiro lugar, o fato de que existe dificuldade de locomoção dos catadores
de lixo para entregar o material nas empresas compradoras[15].
Em segundo lugar, porque é mais vantajoso para as empresas utilizar o trabalho
dos catadores de lixo ¾ já que os
catadores selecionam o material (separando os vários tipos de papel, que
possuem preços diferentes, e outros materiais, tais como vidros, latas etc.) ¾ do que recolherem diretamente
o lixo e os atravessadores ocupam um papel importante neste caso, pois ao mesmo
tempo que provocam um aumento do preço também diminuem as despesas das empresas
com transporte e funcionários, o que não altera muita coisa para elas.
Portanto, é
a indústria de reciclagem de lixo que permite a existência dos catadores de
lixo que comercializam o produto de sua coleta, ou seja, somente existindo
aquele que compra é que pode existir aquele que vende. É o lucro proporcionado
pelo lixo que cria o comércio do lixo e a relação mercantil e,
consequentemente, é o que permite às famílias de catadores de lixo adquirir
renda monetária.
Qual é a
origem dos catadores de lixo? Tal como é comum para uma grande parte do
lumpemproletariado, a principal forma de produção de coletores de lixo é a
migração, ou seja, o deslocamento da força de trabalho de um lugar para outro,
seja do campo para a cidade ou de uma localidade urbana (cidade, região ou
país) para outra. Segundo Peliano, “se o capitalismo, de um lado, ao separar o
trabalho de suas condições de realização (pois as tornam propriedades de
alguns), gera historicamente os contínuos e específicos deslocamentos
populacionais em busca de recomposição de novas condições de trabalho, de outro
lado, ao separar trabalho necessário e o trabalho excedente (pois vital à
perpetuação do capital), gera progressivamente trabalhadores excedentes ao
processo imediato de produção e, em conseqüência, produz igualmente novos
migrantes. Nessa perspectiva, é insuspeito afirmar que, sob o capitalismo, ou a
partir da evolução das formações econômicas no caminho capitalista, ocorrem o
aumento e a intensidade dos deslocamentos populacionais no espaço econômico das
sociedades, seja de forma absoluta (campo-cidade), seja de forma relativa
(cidade-cidade ou cidade-campo). Assim, as migrações, enquanto deslocamentos
naturais de população, se tornam deslocamentos determinados (provocados) de
população, na medida em que se intensificam e aceleram no capitalismo quando,
então, passam a ser produtos necessários à forma capitalista de produção”[16].
A
destruição de relações de produção pré-capitalistas e não-capitalistas, o que
significa, ao mesmo tempo, a instauração de relações de produção capitalistas
que não absorve toda a força de trabalho liberada pelas formas não-capitalistas
de produção, é uma das principais causas da migração, isto é, do deslocamento
da força de trabalho na sociedade. Além disso, o processo de proletarização e
lumpemproletarização que decorre daí é reforçado pela necessidade do capital de
diminuir os gastos com a força de trabalho, o que é realizado através do
aumento de produtividade e desenvolvimento tecnológico que provoca desemprego
(lumpemproletarização) e redução dos gastos com salários através da implantação
de indústrias em regiões onde o movimento operário é mais fraco, a força de
trabalho inativa é grande e os níveis salariais são baixos.
A migração
é, portanto, o deslocamento da força de trabalho provocada pela destruição de
relações de produção pré-capitalistas e não-capitalistas (campo-cidade) ou pela
lumpemproletarização e baixos salários existentes em determinadas regiões ou
países, cujo principal exemplo é o deslocamento de força de trabalho do
“terceiro mundo” para a Europa Ocidental[17].
Os
catadores de lixo são produtos deste deslocamento da força de trabalho. Os
coletores de lixo de Campos/RJ, por exemplo, “já residiram em diversas cidades
do país, e retornaram para Campos por dispensa ou término dos contratos de
trabalho, por salários insuficientes, pela desilusão com as contradições entre
ganhos e gastos ou, ainda, em menor escala, por motivos pessoais ligados a
casamentos, separações, doenças ou desejo de ficar perto da família[18]”.
Podemos
dizer que a razão da migração se deve a diversos fatores mas todos derivados do
desemprego (lumpemproletarização) e de condições precárias de vida e, por
conseguinte, da expectativa de conseguir melhores condições de vida e/ou
emprego. Porém, depósitos de lixo e grandes quantidades de restos consumidos
pela população existem em diversas cidades, principalmente nas grandes, onde se
destacam as capitais, e em menor grau, nas cidades médias. Por qual motivo,
então, se escolhe determinada cidade? Que motivo há para escolher Campos/RJ,
Goiânia/GO, São Paulo/SP, Brasília/DF e não qualquer outra cidade? Em outras
palavras, resta saber por qual motivo se escolhe determinado local para ir. A
escolha pode ser motivada por informações, conhecimento prévio do local,
proximidade entre moradia de origem e o local escolhido, existência de parentes
residindo no local escolhido etc.
A “opção” ¾ que é, na verdade, uma falta de opção ¾ por ser catador de lixo
decorre de condições sociais específicas. Muitos indivíduos passam por diversas
atividades antes de se tornar catador de lixo enquanto que outros já chegam à
cidade e adotam imediatamente esta atividade, como é o caso daqueles que
possuem parentes trabalhando com o lixo. Aliás, existem resistências a este
tipo de atividade, que é rejeitada por muitos. Mas a falta de alternativa e a existência
de condições de sobrevivência através do trabalho com o lixo proporciona tal
decisão. Para haver esta decisão é preciso que haja uma indústria de reciclagem
que atue no local, empresas e/ou atravessadores que comprem o lixo coletado, um
quantum razoável de lixo na cidade (o
que pressupõe uma cidade no mínimo de médio porte), ou seja, é preciso haver
certas condições externas que possibilitem e viabilizem a coleta do lixo. As
condições internas são a lumpemproletarização, a falta de alternativas e uma
trajetória individual e/ou familiar que torne conhecida esta possibilidade de
adotar a coleta de lixo como estratégia de sobrevivência. Além disso,
determinadas alternativas ou “opções” são rejeitadas por parecerem mais
humilhantes ou desonestas. É comum ouvir, por exemplo, que coletar lixo é
“melhor que roubar”, onde se mistura vergonha e justificativa para a opção pela
coleta de lixo.
A
mendicância, embora seja praticada de forma subsidiária em alguns poucos casos,
também é rejeitada como forma alternativa de sobrevivência, o que demonstra que
os coletores de lixo possuem uma mentalidade onde se mescla vergonha (da
atividade desenvolvida) e orgulho ferido, o que cria determinados “mecanismos
de defesa”, para utilizar linguagem psicanalítica, que lhe fornece uma
justificativa e conforto psíquico.
Para
explicar a questão específica do uso do trabalho precoce devemos considerar
também a questão da renda monetária que pode ser adquirida com a coleta de
lixo. Sem dúvida, a atividade de coleta de lixo proporciona uma renda monetária
familiar insuficiente para atender as necessidades do mínimo calórico. Embora,
em determinados casos, ela proporcione recursos adicionais, principalmente para
aqueles que desenvolvem suas atividades em depósitos de lixo, tal como os
restos de alimentos. Segundo Juncá, “a alimentação e saúde ganham, porém, novos
contornos no lixão. Os restos de alimentos encontrados, ou mesmo as verduras,
leite, carnes e frangos, em processo de deterioração, com prazos de validade
vencidos ou embalagens violadas, que são regularmente trazidos para o lixão,
determinam a única possibilidade de variação e ‘enriquecimento’ de sua ‘dieta’
básica”[19].
Desta forma
observamos que a renda familiar é insuficiente e a necessidade do uso do
trabalho precoce se torna evidente, principalmente para as famílias que possuem
crianças, o que aumenta suas despesas. Mas o uso do trabalho precoce já era uma
realidade antes da coleta de lixo para a maioria das famílias[20].
Nas famílias de catadores de lixo, as crianças em torno dos dez anos passam a
se dedicar a esta atividade. Sem o trabalho precoce o cálculo financeiro
apontaria para um volume de despesas elevado em contraste com uma renda
familiar baixa.
O caso dos
catadores de lixo em Brasília, em muitos aspectos, não difere muito dos de
outras cidades. A renda familiar é baixa e o trabalho precoce é amplamente
utilizado. A renda monetária adquirida com a venda do lixo varia de um mês para
outro, pois depende da composição e do quantum
de lixo que é coletado. Isto decorre do fato de que o preço varia dependendo do
quantum e do tipo do material.
Segundo
Bursztyn e Araújo, os produtos extraídos do lixo possuem preços variados, tal
como observamos em nosso trabalho de campo. Segundo estes autores, “cada um
destes produtos é objeto de uma operação diferente de comercialização. O que dá
maior volume e renda é o papel. O branco é o mais valorizado, sendo vendido a
R$ 0,08 o quilo. O ‘misto’, vale bem menos: R$ 0,02. O alumínio e o plástico
rendem R$ 0,30 o quilo. Pelo papelão pode-se obter R$ 0,05 por quilo”[21].
A renda
familiar adquirida geralmente é suficiente apenas para a sobrevivência,
estando, pois, abaixo do mínimo calórico. A atividade com o lixo também é
apresentada como um “mal necessário”, devido a falta de opção. Em Brasília, tal
como em qualquer outro lugar do país, a atividade de coleta de lixo é retratada
pelos seus praticantes de forma auto-justificadora.
O seguinte
discurso, apresentado por uma catadora de lixo de Brasília, nos apresenta uma
visão que se tem desta atividade:
“Se não fosse o papel a gente não tinha nada (...). A
gente vai ajuntando de pouquinho. O papel não dá (...). O papel só dá prá comer
e é mal. Tem dia que a gente come, tem dia que a gente não tem nada. Precisa
esperar vender esse papelzinho para ganhar um dinheirinho pouco, pra gente
fazer uma feirinha pra poder comer. E não dá. Por que o recurso que a gente tem
aqui mesmo é só o papel velho. Se não fosse esse papel aqui a gente já teria
até morrido de fome, senão estava com uma cuia na cabeça pedindo esmola”.
A coleta de
lixo é vista como uma atividade vital, como único meio de sobrevivência, que,
porém, é insuficiente. Ele é apresentado como o único recurso possível e assim
se vê justificado, pois não há outra alternativa. Também é desqualificado pelos
próprios catadores, pois no trecho acima vemos algumas expressões no diminutivo
(“papelzinho”, “dinheirinho”, “feirinha”) que retratam esta desqualificação
(desvalorização). Mas, independentemente de ser uma atividade desqualificada,
ela é necessária e única alternativa, sob pena de ter que optar por uma
atividade ainda mais desqualificada e vergonhosa: pedir esmola (ou, como
colocou o marido desta catadora, catar papel “é melhor do que roubar”). Desta
forma, a coleta de lixo é vista como necessária, porém não é motivo de orgulho
e ainda por cima é visto como insuficiente. Como disse outro catador, “a renda
é pouca, só dá prá gente passar mesmo na marra”.
As despesas
com alimentação, vestuário e remédios formam os gastos básicos da família,
embora, como veremos mais adiante, também existam outros gastos com bens de
consumo duráveis. Neste contexto de renda familiar limitada, o uso do trabalho
precoce se torna uma necessidade. As crianças com mais de dez anos geralmente
trabalham e contribuem com a formação da renda familiar, embora existam muitos
casos em que os trabalhadores precoces com menos de dez anos também trabalhem,
mas em outras atividades, tais como a de engraxate, vigia de carros etc.
Estimamos
que a contribuição dos trabalhadores precoces para a formação da renda familiar
gira em torno de 25 a 60% do seu total. Esta contribuição e seu quantum dependem do tamanho da família,
do número de trabalhadores precoces, bem como de sua idade e sexo. As famílias
grandes podem adquirir uma renda monetária per
capita maior desde que o número de não-trabalhadores (geralmente crianças
menores de dez anos) seja pequeno ou não exista e que os trabalhadores precoces
tenham um bom desempenho.
O número de trabalhadores precoces também interfere
na formação da renda familiar, embora também interfira nas despesas. Podemos
supor também que a idade dos trabalhadores precoces também interfere na
formação da renda. Por exemplo, uma família com três trabalhadores precoces de
10, 12 e 13 anos tem uma renda inferior em aproximadamente 40% em relação a uma
família com três trabalhadores precoces de 11, 14 e 17 anos. Alguns casos
reforçam esta hipótese, que, no entanto, é apenas uma hipótese que somente com
uma pesquisa mais abrangente poderá ser confirmada ou não.
O sexo dos
trabalhadores precoces também interfere na formação da renda, já que a parte do
trabalho dedicada à coleta do lixo é mais importante para a formação da renda e
geralmente fica a cargo dos trabalhadores precoces do sexo masculino, enquanto
que o trabalho de seleção do lixo é desenvolvido geralmente pelos trabalhadores
não-precoces e pelos trabalhadores precoces do sexo feminino. A contribuição do
trabalho precoce de sexo feminino, devido a isto, é inferior. Algumas meninas
menores de dezoito anos se dedicam aos trabalhos “domésticos”, no sentido
estrito do termo, além de contribuir com o trabalho de seleção do lixo.
As despesas
das famílias grandes também é maior. O cálculo financeiro que podemos extrair
destas informações é o seguinte: as famílias grandes com poucos (ou nenhum)
não-trabalhador e com um número superior de trabalhadores precoces e
não-precoces possuem uma renda per capita
superior à das famílias na mesma situação só que com um número maior de
não-trabalhadores, embora, desde que estes não-trabalhadores sejam menores de
dez anos, a tendência, com o passar do tempo, é esta última elevar o seu nível
de renda e a outra estagnar. As famílias com um número maior de trabalhadores
do sexo masculino (precoces ou não) tendem (pois isto também depende do número
e idade dos trabalhadores ativos) a ter uma renda familiar per capita mais elevada. Enfim, podemos dizer que a formação da
renda familiar depende do tamanho da família, da idade, sexo e número de
trabalhadores ativos e dos inativos. As despesas são maiores quanto maior for a
família e, portanto, o aumento da renda pode apenas acompanhar o aumento das
despesas. A renda per capita somente
aumenta nas condições anteriormente citadas.
Os
trabalhadores precoces (do sexo masculino) desempenham a atividade mais
importante para o processo de coleta de lixo, que é a própria coleta. As outras
atividades, tais como a seleção e a venda, são dependentes desta. É a atividade
de coleta que determina o quantum e a
qualidade do material coletado e, portanto, é o que determina o valor a ser
arrecadado, ou seja, é a atividade que determina a formação da renda familiar.
A renda
familiar se reverte principalmente para a satisfação das necessidades básicas,
porém, o consumismo muitas vezes provoca a substituição (e, por conseguinte,
devido ao baixo nível de renda dos catadores de lixo, a precarização) do
consumo vital pelo consumo conspícuo[22].
O consumismo é um produto simultaneamente cultural e psíquico da sociedade
capitalista mercantil, onde se produz uma forte insatisfação dos indivíduos
frente à vida alienada e, conseqüentemente, a busca de sublimação (Freud) e, ao mesmo tempo, cria-se uma cultura que vê no
consumo o caminho para a felicidade. O modo de produção capitalista realiza uma
constante ampliação da produção (reprodução ampliada do capital) que gera a necessidade de constante ampliação
do mercado consumidor. As empresas criam várias estratégias para ampliar este
mercado (obsolescência planejada das mercadorias, produtos descartáveis,
redução do tempo de vida útil dos produtos, as sucessivas modas etc.) mas se
destaca a estratégia de criar necessidades fabricadas, principalmente através
da publicidade.
As
mercadorias são apresentadas como símbolos de status e de estilos de vida e o
indivíduo passa a ser valorizado pelo que tem e não pelo que é. Assim, o
consumo conspícuo, que é o consumo ligado à aparência, ao supérfluo, se torna
uma “necessidade” e o consumo vital (alimentação, remédios etc.) se torna
secundário, ocorrendo assim uma transubstanciação do consumo conspícuo em
consumo vital. A maioria das famílias de catadores de lixo possuem televisão e
aparelho de som, comprados à prestação e retirando da renda familiar uma parte
que deveria ser revertida para o consumo vital (melhor alimentação, por
exemplo). O nível da alimentação de 20 famílias pesquisadas ¾ que possuem trabalhadores
precoces ¾ é, na
maioria dos casos, abaixo do mínimo calórico. A dieta básica é constituída por
arroz e feijão para 30%; arroz, feijão e mais um alimento (carne, frango ou
verdura) constitui a dieta básica de 45%; apenas 25% tem como dieta básica
arroz, feijão e mais dois alimentos. O consumo conspícuo ocorre em outro
sentido: 52% possuem aparelho de som; 51% possuem televisão; e 50% possuem
ambos.
Constatamos
que a compra de bens supérfluos tem uma demanda incentivada pelos trabalhadores
precoces, pois estes estão mais envolvidos pela cultura dominante, de caráter
urbano, mercantil ¾ ao
contrário da cultura rústica dos pais, que também buscam o consumo de bens
supérfluos mas de forma menos intensa. Em muitas casas se vê aparelhos de som e
televisão, entre outros eletrodomésticos e outros bens de consumo supérfluos, e
não se vê condições de moradia e alimentação adequadas, só para citar o
contraste entre a substituição do consumo vital pelo consumo conspícuo.
Portanto, a
renda familiar precisa da contribuição do trabalho precoce sob pena de não
conseguir garantir a reprodução da família. As famílias lumpemproletárias dos
catadores de lixo são constrangidas a usarem o trabalho precoce e este é de
fundamental importância para a formação da renda familiar e reprodução das
condições de existência da família.
Os pais
reconhecem o valor da contribuição dos trabalhadores precoces, tal como se pode
depreender da seguintes afirmações:
“Aqui nós todos trabalha. Eles [os 03 trabalhadores
precoces] contribuem talvez com a metade, pois são eles que puxam o papel. São
o meu braço direito; eles me ajudam demais”.
“A minha renda com a minha família está na faixa de
250 reais por mês. Nessa renda ele [o filho, que é trabalhador precoce] vai ficar com essa faixa de 100,
porque ele trabalha mais que nós, pois se trabalha na rua faz mais que nós.
Se fosse para dividir, então a maior parte era dele”.
Destas afirmações pode se
ver que o trabalho precoce é reconhecido pela família e não só isto como também
se observa uma certa divisão social do trabalho que confere aos trabalhadores
precoces a parte mais importante da coleta de lixo, que é a própria coleta do
lixo na rua, ou seja, a atividade que define o quantum e a qualidade do lixo coletado, e, portanto, o seu valor.
Esta divisão social do trabalho privilegia a atividade de coleta do lixo na rua
para os trabalhadores precoces de sexo masculino devido a facilidade que eles
possuem de circular na cidade. Os pais e as filhas trabalhadoras (inclusive as
trabalhadoras precoces, ou seja, menores de dezoito anos) trabalham
principalmente com a seleção do lixo. Isto deixa entrever que o trabalho precoce
é fundamental para as famílias catadoras de lixo.
Muitas famílias irão
utilizar o trabalho precoce sob outra forma, ou seja, irão utilizar o trabalho
precoce não na coleta de lixo e sim em outras atividades, tais como as de
engraxate, vigia de carro etc. Estes trabalhadores precoces também irão
contribuir de forma bastante significativa com a formação da renda familiar,
tornando-se uma contribuição também necessária.
No entanto, isto traz
diversas conseqüências para os trabalhadores e trabalhadoras precoces. Em
primeiro lugar, tal como ocorre em diversas outras famílias tanto proletárias
quanto lumpemproletárias, se promove uma desescolarização das crianças e
adolescentes que se dedicam ao trabalho, devido a diversos fatores relacionados
a ele, tal como o tempo de trabalho, o cansaço derivado dele, baixa renda
familiar etc.[23].
Mas além disso, as famílias de catadores de lixo, que não atuam no lixão,
possuem um problema adicional: as constantes mudanças e a distância das
escolas. Algumas afirmações colocam as dificuldades envolvidas em qualquer
tentativa de fornecer escolarização para os trabalhadores precoces:
“Não estão [os três filhos, todos trabalhadores precoces] estudando.
Eles não estudam por que escola aqui é difícil. A gente não sossega num canto
que vem eles, o povo da Terracap, chegam e arrancam a gente do lugar. Eles não
deixam a gente quieto num lugar. A gente muda muito. Vai de um lugar para o
outro. Aí fica difícil manter os meninos na escola”.
“Ela [a filha, trabalhadora precoce] tava estudando, ela tava estudando
aqui, passou uns três anos estudando. Três anos aqui estudando. Aí, depois, a
Terracap tirou nóis daqui, jogava nóis prá outro lado, jogava prá acolá. Aí não
consegui mais continuar ela na escola porque prá deixar ela ir de noite, por causa
das horas, ela saía depois das onze da noite, aí não dava. É longe, lá na Vila
[Planalto]. O senhor sabe, né? Tem gente boa e tem gente ruim. A gente não
sabe. As estradas é tudo perigosa, tudo cheio de mato. Aí ele [o pai] saía
daqui dez horas prá chegar onze horas aqui com ela. Aí não conseguimos mais.
Tava ela e um menino de dez anos na escola. O menino estudava até as seis
horas. Aí ela ia buscar ele, quando chegava aqui já era dela voltar prá escola.
O pai ia buscar de noite. Aí não continuou. Eu não botei eles mais na escola.
Mas ela estudou muito, estudou até bastante. Ela tem memória boa, sabe? Sabe
fazer quase tudo. Ela estudou até a terceira [série]. Estudou um bocadozinho.
Se ela tivesse lá esse tempo todinho que eu tô aqui [em Brasília], se não
tivesse a Terracap, se eles não tivessem tirado nóis, jogado aí prá debaixo dos
pés de paus, minha filha estava bem estudada. Mas por causa deles, por causa
que eles não quer deixar nóis em paz aqui. A gente botava os meninos no estudo
e eles chegavam aqui, derrubavam o barraco, tocava fogo, tocava fogo no papel,
tocava fogo no barraco, jogava a gente prá debaixo desses pés de pau. Sofrendo
aqui direto, durante o tempo que eu moro aqui dentro de Brasília, é sofrendo
direto, direto, por causa da Terracap”.
O fato de
morarem em locais públicos cria confrontos constantes com a Terracap, órgão do
governo responsável por estes locais, que ao retirá-los dos locais onde se
estabelecem, provoca mudanças permanentes de moradia, o que cria uma
dificuldade adicional para o processo de escolarização dos trabalhadores e
trabalhadoras precoces. Isto, obviamente reforça a tendência de reprodução de
pertencimento de classe e de segmento social destes indivíduos. Neste sentido,
a falta de escolarização é extremamente grave do ponto de vista do
desenvolvimento individual, pois dificulta a inserção dos indivíduos que são
trabalhadores precoces em outro segmento social.
Mas o
discurso acima traz mais alguns elementos interessantes. Em primeiro lugar, a
incompreensão do papel da escola como um dos meios de manutenção ou alteração
do pertencimento de classe ou segmento social. Isto se vê quando se considera
que ter estudado até a terceira série é “estudar muito”, “bastante” e que “sabe
quase tudo”, pois “tem boa memória”, o significa que a percepção da escola é a
de uma instituição que fornece ensino útil (ler, escrever, fazer conta) e não
um meio de ascensão social (concepção dominante, que, muitas vezes se revela
ilusória). Assim, a visão da escola é a de que ela tem um caráter utilitário.
Em segundo lugar, vê-se uma valorização da escolarização, o que já apresenta um
indício de transformação cultural, na qual a cultura rústica perde espaço para
a cultura urbana. Isto se pode ver no grau de emoção (que não pode ser
transmitido pela via escrita mas que está presente na fala) quando ela se
refere ao sofrimento provocado pelas constantes expulsões realizadas pela
Terracap, que, embora não se deva apenas ao problema criado para o acesso à
escola pelos filhos, como também pela destruição de sua moradia. Mas, de
qualquer forma, existe um dose de emotividade também relacionada ao fato de não
poder ter garantido a escolarização dos filhos.
Neste caso,
o problema criado pela existência do trabalho precoce para a escolarização é
reforçado por estas constantes mudanças. Também se pode dizer que tal baixo
nível de escolarização se deve ao elevado grau de analfabetismo dos pais. Sem
dúvida, o grau de analfabetismo dos pais é elevado. Nas vinte famílias
pesquisadas que possuem trabalhadores precoces observamos que há 70% de pais
analfabetos e apenas 30% alfabetizados. Também constatamos que 75% dos
trabalhadores precoces de 7 a 14 anos não estão na escola e apenas 25%
freqüentam a escola. Por conseguinte, o número de pais analfabetos e o número de
crianças de 7 a 14 anos sem acesso à escola parece reforçar esta hipótese.
Porém,
outros números refutam tal conclusão. Em primeiro lugar, devemos considerar que
a influência da educação e valorização da escolarização deve levar em conta não
apenas o pai mas também a mãe e em muitos casos esta possui escolarização
enquanto que o marido não. Nestas famílias, os pais e mães que são
simultaneamente analfabetos são 45% e não 70%. Em segundo lugar, os casos em
que o pai e a mãe são ambos alfabetizados é bastante restrito, chegando a 20%.
Em terceiro lugar, a diferença entre os filhos de pais analfabetos e pais
alfabetizados que estudam é pequena, sendo que no primeiro caso se conta 10% e
no segundo 0,5%. No caso dos que não freqüentam a escola os números são os
seguintes: 40% para os analfabetos e 15% para os alfabetizados. Porém, como os
pais analfabetos são quase o dobro dos alfabetizados, esta diferença é pequena.
Se contarmos apenas as famílias de pais alfabetizados teremos 25% dos
trabalhadores precoces freqüentando a escola e 75% sem acesso à escola e nas
famílias de pais analfabetos teremos 20% freqüentando a escola e 80% sem acesso
a ela. Diferença que é praticamente irrelevante.
O fator
mais importante, além dos específicos derivados do trabalho precoce (questão da
jornada de trabalho, cansaço, renda insuficiente etc.), é representado pelas
constantes mudanças que os catadores de lixo são geralmente obrigados a fazer.
20% destas famílias tiveram que mudar mais de 10 vezes (há casos em que se fala
de 20 e de até 50 mudanças, embora este último caso parece ser mais força de
expressão do que afirmação literal) e 25% mais de 5 vezes desde que se mudaram
para Brasília. As famílias que mudaram menos de 5 vezes formam um total de 55%
(sendo que dentre estas a maioria teve que mudar três vezes). O gráfico abaixo
relaciona o número de mudanças com o número de filhos na escola e fora dela.
Fonte: Autor.
O que se
pode ver no gráfico acima é que as famílias que mudam mais possuem menos
condições de manter os filhos na escola. Apenas uma destas famílias consegue
ter filhos na escola (10%) enquanto que nove (90%) não conseguem manter os
filhos na escola. Entre os que mudaram menos de cinco vezes a situação é
diferente, pois quatro famílias conseguem ter os filhos na escola (40%)
enquanto que seis não conseguem (60%). Neste sentido, as constantes mudanças
que as famílias catadoras de lixo são forçadas a fazer é uma dificuldade
adicional que torna bastante difícil a escolarização dos menores de idade. Isto
aumenta mais ainda a dificuldade dos trabalhadores precoces em ter acesso à
educação formal.
Por fim,
podemos colocar que as famílias de catadores de lixo vivem em condições
precárias de vida e que possuem uma renda familiar baixa, o que provoca o uso
do trabalho precoce ¾ uso
necessário, pois sem ele a renda familiar per
capita não seria nem próximo ao mínimo calórico ¾ e cria toda uma situação de vida desfavorável
para os trabalhadores precoces não só no presente como também no seu futuro,
tal como no caso dos obstáculos criados à escolarização, o que dificulta mais
ainda suas possibilidades de passagem para um segmento social ou classe com
melhores condições de vida.
Bibliografia
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Wolf, Eric. Sociedades Camponesas. 2a edição, Rio de Janeiro,
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[1]A definição de lumpemproletariado
não é consensual. O conceito surgiu com Marx e ganhou diversas significações
posteriores. Tal conceito vem sendo retomado na França, principalmente a partir
do final da década de 80 (cf. Moreau de
Bellaing, Louis. La Misère Blanche.
Paris, L’ Harmattan, 1988). Aqui o significado deste conceito é equivalente ao
de exército industrial de reserva, tal como este último termo foi definido por
Marx (cf. Marx, Karl. O Capital. Vol. 2, 3a edição,
São Paulo, Nova Cultural, 1988; cf. também discussão sobre este termo
apresentada por Nun, José. Superpopulação Relativa, Exército Industrial
de Reserva e Massa Marginal. In: Pereira,
Luiz (org.). Populações Marginais.
São Paulo, Duas Cidades, 1978).
[2]Cf. Wallerstein, Imannuel. O
Capitalismo Histórico. São Paulo, Brasiliense, 1984.
[3] Mas é necessário dizer que
isto não ocorreu de forma imediata, pois foi um produto da paulatina
constituição do capitalismo (cf. Motta,
Fernando P. O Que é Burocracia. São
Paulo, Brasiliense, 1985).
[4]Cf. Marx, Karl. O Capital.
Vol. 1, 3a edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
[5]Um dos raros autores que se
dedicou ao problema específico do consumo foi o economista norte-americano
Thorstein Veblen (Cf. Veblen,
Thorstein. A Teoria da Classe Ociosa.
Col. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1980) e tal tema vem recebendo
atenção dos que se dedicam à questão da sociedade de consumo.
[6]Uma das raras exceções
encontra-se em textos orientados por uma preocupação feminista sobre o trabalho
feminino nas famílias proletárias (cf. Harrison,
John; Seccombe, Wally; Gardiner, Jean. El Ama de Casa Bajo el Capitalismo. Barcelona, Anagrama, 1975).
[7] Aliás, é este um dos motivos
da desvalorização das atividades domésticas e, por conseguinte, das atividades
femininas desempenhadas em tal lugar: a unidade doméstica passou a ser o locus do consumo e por conseguinte do
que é “improdutivo”, ao contrário, por exemplo, da unidade doméstica no modo de
produção escravista, que era o oikos
e no modo de produção feudal, o feudo, onde não se limitava apenas ao consumo
mas também à produção de bens.
[8] Offe, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 1984.
[9] “As pessoas que querem
sobreviver contam todas as rendas que podem receber, não importa a fonte, e as
calculam em termos das despesas reais que precisam fazer” (Wallerstein, Imannuel. Ob. cit., p. 19).
[10] “Esse mínimo pode ser
definido com bastante rigor, em termos fisiológicos, como o consumo diário de
calorias alimentares exigido para compensar o desgaste de energia que o homem
despende em seu rendimento diário de trabalho. Esse montante pode ser avaliado,
aproximadamente, entre 2.000 a 3.000 calorias por pessoa em cada dia de
trabalho. Não será errado afirmar que este mínimo ainda não se alcançou na
maior parte do mundo. Cerca da metade da população mundial tem, em média, uma
ração per capta diária de menos de 2.250 calorias. Essa faixa inclui a Indonésia (com 1.750
calorias), a China (com 1.800 calorias) e a Índia (com 1.800 calorias). Dois
décimos da população mundial incluem-se na categoria que recebe, em média, uma
ração de 2.250 a 2.750 calorias per
capita; esse grupo inclui a Europa Mediterrânea e os países balcânicos.
Somente três décimos da população mundial ¾ os Estados Unidos, os domínios britânicos, a
Europa Ocidental e a União Soviética ¾ conseguem ficar acima de 2.750 calorias” (Wolf, Eric. Sociedades Camponesas. 2a edição, Rio de Janeiro,
Zahar, 1976, p. 17).
[11] Sobre exclusão social,
consulte-se: Nascimento, Elimar. A Exclusão Social no Brasil: Algumas
Hipóteses de Trabalho e Quatro Sugestões Práticas. In: Cadernos CEAS. No
152, Jul/Ago. de 1994; Juncá,
Denise. Ilhas de Exclusão: O Cotidiano dos Catadores de Lixo de Campos. Ano
XVII, no 52, 1996.
[12] Tal crítica também foi
endereçada à chamada “teoria da marginalidade” (em suas diversas versões), que
também teria uma visão dualista da sociedade (cf. Berlinck, Manoel. Marginalidade
Social e Relações de Classe em São Paulo. Petrópolis, Vozes, 1975).
Consideramos que tais críticas se aplicam também à concepção de exclusão
social, tendo em vista suas características semelhantes.
[13]Bursztyn, Marcel & Araújo, Carlos Henrique. Da Utopia à Exclusão: Vivendo nas Ruas em
Brasília. Rio de Janeiro/Brasília, Garamond/Codeplan, 1997, p. 39.
[15] “Por não dispor das
condições mínimas para buscarem opções de venda desse material no mercado, em
função dos limites de locomoção, a troca é estabelecida no próprio local de
trabalho, via ‘atravessadores’. Estes encostam seus veículos e aguardam o que
cada um tem a oferecer, impondo um processo de seleção, separando o que é ou
não aproveitável e determinando o valor a ser pago” (Juncá, Denise. Ob. cit., p. 110).
[16]Peliano, José Carlos. Acumulação de Trabalho e Mobilidade do
Capital. Brasília, UNB, 1990, p. 124.
[19]Juncá, Denise. Ob. cit., p 113. Porém, o trabalho precoce no
lixo não é um problema só no Brasil e sim mundial, tal como ocorre na Etiópia,
Zaire, Peru, Índia, Filipinas, Camboja etc. (cf. UNICEF. Situação
Mundial da Infância, 1997. Brasília, 1997).
[20] “Descendentes de famílias
oriundas de diferentes municípios do estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais,
Espírito Santo, os atuais catadores de lixo desde cedo começaram a conviver com
o cotidiano de negatividade de possibilidades. Em função da necessidade de
ajudar no sustento da família, por volta dos dez anos ingressaram no mundo do
trabalho. Alguns executando tarefas auxiliares aos pais, predominantemente na
zona rural, cuidando do gado, tirando leite, ou exercendo atividades de plantio
e capina, principalmente na lavoura da cana de açúcar. Outros buscaram a área
do trabalho doméstico, iniciando como babás, e encontrando uma vantagem
adicional: a moradia e a alimentação. Mas nas duas situações não havia qualquer
salário ou rendimento individual. Ajudando os pais, estes é que recebiam de
seus patrões, e como domésticas tinha de retorno roupas, remédios ou pequenos
objetos de higiene pessoal” (Juncá,
Denise. Ob. cit., p.110).
[22]Sobre consumismo e
substituição do consumo vital pelo consumo conspícuo, veja-se: Pietrocolla, L. Ob. cit.; Fromm, Erich. Ter ou Ser? 4a edição, Rio de Janeiro, Guanabara,
1987; veja-se também sobre consumo conspícuo: Veblen,
Thorstein. Ob. cit.
[23]Cf. Campos, Maria Machado. Infância
Abandonada ¾ O
Piedoso Disfarce do Trabalho Precoce. In: Martins,
José de Sousa (org.). O Massacre dos
Inocentes. A Criança sem Infância no Brasil. 2a edição,
São Paulo, Hucitec, 1993.
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Artigo publicado originalmente na Revista Estudos (Goiânia), Goiânia, v. 27, n. 3, p. 509-537, 2000.
Nildo ,
ResponderExcluirBom dia,
Qual e-mail eu posso falar com vc ?
Alécio, acesse minha página http://nildoviana.com/ e clique em "contato". Abraços!
ResponderExcluir