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sexta-feira, 1 de abril de 2011

Catadores de Lixo: Renda Familiar, Consumo e Trabalho Precoce



Catadores de Lixo:
Renda Familiar, Consumo e Trabalho Precoce

Nildo Viana
Trecho:

A utilização de trabalho precoce, isto é, da força de trabalho de menores de dezoito anos, pelas famílias de catadores de lixo, tem como causa fundamental a necessidade de complemento da renda familiar, elemento indispensável para se realizar o consumo de bens necessários para a sobrevivência da família. O trabalho precoce é necessário devido ao fato de que na relação despesa-consumo se cria a necessidade de aumentar a renda para compensar a despesa representada pelos indivíduos menores de idade. Isto tem entre outras conseqüências, como veremos mais adiante, um uso elevado de trabalho precoce. Mas existem diversas outras conseqüências, tal como o caso da desescolarização dos menores de dezoito anos que vivem nestas famílias.

CATADORES DE LIXO:
RENDA FAMILIAR, CONSUMO E TRABALHO PRECOCE
Nildo Viana

A utilização de trabalho precoce, isto é, da força de trabalho de menores de dezoito anos, pelas famílias de catadores de lixo, tem como causa fundamental a necessidade de complemento da renda familiar, elemento indispensável para se realizar o consumo de bens necessários para a sobrevivência da família. O trabalho precoce é necessário devido ao fato de que na relação despesa-consumo se cria a necessidade de aumentar a renda para compensar a despesa representada pelos indivíduos menores de idade. Isto tem entre outras conseqüências, como veremos mais adiante, um uso elevado de trabalho precoce.  Mas existem diversas outras conseqüências, tal como o caso da desescolarização dos menores de dezoito anos que vivem nestas famílias.
Unidade Doméstica, Proletarização e Lumpemproletarização
Por qual motivo determinadas famílias se tornam coletoras de lixo? O que engendra essa forma de buscar adquirir os meios de sobrevivência? Isto ocorre devido ao fato de que em nossa sociedade, desde a Revolução Industrial, criou-se uma separação entre trabalhadores e meios de produção. Sem meios de produção, ou seja, sem ter como produzir os seus meios de sobrevivência, não resta outra saída a não ser vender sua força de trabalho em troca de um salário. Porém, o mercado de trabalho não absorve toda a força de trabalho disponível. Desta forma surge ao lado do proletariado (força de trabalho efetivamente empregada e submetida ao salariato), o lumpemproletariado (força de trabalho potencial, sub-utilizada ou não-utilizada)[1].
O lumpemproletariado precisa, então, criar estratégias de sobrevivência. Isto decorre do fato de que na sociedade capitalista ocorre uma “mercantilização de tudo” (Wallerstein), inclusive dos meios de consumo[2]. A alimentação, o vestuário etc., se transformam em mercadorias e a única forma (dentro dos padrões convencionais, ou seja, excetuando-se o caso do roubo) de adquiri-las é através da compra efetivada por intermédio do dinheiro. Esta é uma lógica bem diferente da existente nas sociedades pré-capitalistas, principalmente as de caráter rural. Nestas sociedades, a unidade doméstica era simultaneamente unidade de produção e unidade de consumo, ou seja, se fundamentava na produção de valores de uso, na auto-subsistência.
Esta identidade entre unidade de produção e unidade de consumo na unidade doméstica rompe-se com a ascensão do modo de produção capitalista. A produção mercantil exige não só a separação entre trabalhador e meios de produção como também entre unidade de produção e unidade de consumo[3].
A produção mercantil capitalista possui a seguinte lógica: D-M-D (dinheiro-mercadoria-dinheiro), onde se usa o dinheiro para comprar mercadoria e vendê-la por um valor superior ao que foi gasto. Desta forma, a produção capitalista visa a reprodução ampliada do capital[4]. Ao lado da produção mercantil capitalista persiste existindo a produção mercantil simples, que, por sua vez, possui outra lógica: M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria), onde se produz uma mercadoria para adquirir dinheiro para comprar outra mercadoria (que não é produzida nesta unidade doméstica). Isto quer dizer que a produção mercantil simples também precisa de garantir uma renda monetária para possibilitar a compra de mercadorias não produzidas na sua própria esfera. Porém, esta unidade doméstica é, ainda, unidade de consumo e unidade de produção, embora não seja auto-suficiente, ou seja, não produz tudo que necessita para consumir e por isso precisa produzir um excedente para adquirir dinheiro com sua venda e assim comprar as mercadorias que necessita.
Assim, com exceção da produção mercantil simples subordinada à produção mercantil capitalista, a distinção entre unidade de consumo e unidade de produção se generaliza em toda a sociedade capitalista. Mas tanto a produção mercantil simples quanto a produção mercantil capitalista já foram objetos de extensas análises e estudos. Curiosamente, o mesmo não aconteceu com a unidade de consumo separada da unidade de produção, separação esta instituída pela produção mercantil capitalista. Poucos autores se dedicaram ao problema do consumo em si mesmo[5] e menos ainda se dedicaram ao que denominamos unidade de consumo[6]. Se a lógica da unidade de produção capitalista é D-M-D, resta saber qual é a lógica da unidade de consumo.
Alguns aspectos da unidade de consumo são fáceis de se delimitar. A unidade doméstica deixou de ser uma unidade de produção para os agentes envolvidos na produção mercantil capitalista ¾ a classe capitalista e a classe operária ¾, para o conjunto dos trabalhadores assalariados improdutivos e para aqueles que só possuem sua força de trabalho mas que não conseguem vendê-la no mercado de trabalho formal. Porém, a unidade doméstica continuou sendo uma unidade de consumo. Ora, se não é unidade de produção e é unidade de consumo, então sua lógica é D-M (dinheiro-mercadoria). Em outras palavras, as unidades domésticas são apenas unidades de consumo e para o consumo se efetivar é necessário uma renda monetária. Este caso é mais grave no que diz respeito àqueles que possuem como única propriedade a sua força de trabalho e são constrangidos a buscar adquirir uma renda monetária para garantir sua sobrevivência. Numa sociedade onde tudo (ou quase tudo) se transformou em mercadoria e que, por conseguinte, possui um valor de troca, então torna-se necessário para adquiri-las ter acesso ao meio de troca universal, ou seja, ao dinheiro.
Neste sentido, a sobrevivência da unidade doméstica que se transformou em uma unidade exclusivamente de consumo depende da renda familiar. A renda familiar é o que permite o funcionamento da unidade doméstica enquanto unidade de consumo. A renda familiar é o total em dinheiro adquirido pelo conjunto dos membros da família, embora ela também possa ser adquirida por apenas um membro ou por uma parte deles. Porém, esta renda monetária adquirida é revertida para o conjunto da família, independentemente de quantos participam da sua formação.
Os membros da família que não participam da formação da renda familiar desempenham outras atividades delimitadas por uma divisão social do trabalho na qual os que se dedicam à tarefa de adquirir renda monetária geralmente não participam (com exceção de algumas funções tais como consertos, construção e reforma de casa etc.). Estas atividades consistem principalmente em processamento de meios de consumo e de criação de condições para a realização do consumo e para liberar membros para a busca da renda monetária. Esta divisão social do trabalho ocorre principalmente entre homens e mulheres, sendo que geralmente, mas nem sempre, os homens se dedicam a busca de renda monetária e as mulheres cuidam da unidade doméstica, que inclui atividades como limpeza, preparação de comida etc. Em muitos casos as mulheres fazem estas atividades e ajudam na busca da renda monetária e em casos mais raros os homens colaboram em tais atividades consideradas “domésticas”[7].
A formação da renda familiar ocorre de forma diferente em unidades domésticas diferentes. Nas famílias proletárias, o principal meio (embora não seja o único, pois outros membros da família podem utilizar outros meios para complementar a renda) para a formação da renda monetária é o trabalho assalariado. Nas famílias lumpemproletárias existem diversos meios utilizados  para se adquirir renda monetária: trabalho assalariado temporário, trabalho independente (também chamado de “trabalho autônomo” ou “por conta própria”), roubo, mendicância etc.[8].
Resta saber quais são os membros da família que são os responsáveis pela aquisição da renda monetária. Isto depende do período histórico e do contexto cultural mas podemos dizer que nas famílias proletárias com níveis salariais mais altos cabe ao indivíduo adulto do sexo masculino a tarefa de adquirir renda monetária. As mudanças históricas e culturais podem alterar este quadro. Durante a Revolução Industrial, por exemplo, mulheres e crianças foram jogadas no trabalho assalariado enquanto muitos homens eram vítimas do desemprego, tal como ocorre hoje, no caso das crianças, em muitos países do chamado “terceiro mundo” e que volta a ocorrer nos países da Europa Ocidental.
Nas famílias proletárias com níveis salariais baixos a situação é diferente. A renda monetária proporcionada pelo trabalhador adulto pode ser ¾ e geralmente é ¾ insuficiente para manter a unidade doméstica com suas necessidades de consumo. Isto pode provocar tanto a desagregação desta unidade doméstica como a viabilização de alternativas para aumentar a renda familiar, tal como o uso do trabalho precoce e/ou do trabalho feminino. Portanto, a renda monetária insuficiente adquirida pelo trabalhador assalariado adulto cria a necessidade de uso do trabalho precoce e/ou feminino.
Nas famílias lumpemproletárias a renda monetária adquirida é geralmente insuficiente. Em determinados casos e momentos históricos de uma família, esta renda pode ficar aquém da necessidades de sobrevivência e em casos raros pode permitir uma relativa tranqüilidade na aquisição dos meios de sobrevivência. É claro que isto depende de qual segmento do lumpemproletariado se faz parte, pois na maioria dos casos a fome, a desnutrição, entre outros aspectos que demonstram as suas condições precárias de vida, é o que predomina. Os responsáveis pela aquisição da renda monetária e de recursos adicionais, são todos os membros com condições de desenvolver estas atividades, ou seja, apenas as crianças pequenas (cuja idade varia dependendo da família ou do segmento do lumpemproletariado) estão em geral livres destas tarefas.
Na sociedade capitalista, uma sociedade mercantil par excellence, a generalização da mercantilização e, por conseguinte, do uso da moeda, cria o chamado “cálculo econômico” ¾ ou cálculo financeiro ¾ como forma de organizar a relação entre despesas e renda[9]. Este cálculo financeiro também é utilizado em unidades domésticas lumpemproletárias, embora de forma semiconsciente e assistemática. A relação despesas-renda varia de acordo com o tamanho da família. O cálculo é simples: a renda deve ser superior às despesas e o equilíbrio orçamentário depende ou da diminuição das despesas ou de aumento da renda. Além disso, quanto maior a família, maiores serão as despesas, e, por conseguinte, maior é a necessidade de aumentar a renda familiar. O aumento das despesas leva à necessidade de aumentar a renda.
De que forma se pode aumentar a renda e/ou os recursos adicionais? Há duas formas principais para se conseguir isto: sobrecarregando os membros ativos da família, quando isto é possível, ou incorporando mais membros nas atividades que geram renda ou recursos adicionais. Esta sobrecarga de atividades sobre os membros ativos geralmente ocorre quando as crianças ainda estão demasiadamente pequenas para trabalharem e a incorporação de mais membros geralmente ocorre quando tais crianças já possuem condições de executarem tais atividades. Tendo em vista que geralmente a renda familiar das famílias lumpemproletárias mal consegue satisfazer a necessidade do que o antropólogo Eric Wolf chamou de “mínimo calórico”[10], então vê-se que, para estas famílias, o uso do trabalho precoce é indispensável. Neste sentido, podemos dizer que o aumento do tamanho da família no caso de crescimento vegetativo provoca um aumento de despesas que, à curto prazo, gera uma intensificação do trabalho dos membros ativos e, à longo prazo, a utilização do trabalho precoce.
Mas, antes de continuarmos, devemos esclarecer por qual motivo utilizamos a expressão lumpemproletarização ao invés de exclusão social[11], termo que vem sendo amplamente utilizado. Ao nosso ver, o termo exclusão social apresenta limitações que não ocorrem com o conceito de lumpemproletarização. A mais grave limitação que observamos no termo exclusão social é de caráter teórico-metodológico. A idéia de exclusão não tem como pano de fundo uma teoria da totalidade da vida social enquanto unidade dinâmica e contraditória e sim uma visão dualista[12]: a sociedade estaria dividida em duas esferas: a dos “incluídos” e a dos “excluídos”, como se fossem duas unidades sociais que existissem independentemente uma da outra.
Podemos observar outros problemas teórico-metodológicos em torno da idéia da exclusão social. Em primeiro lugar, tal concepção nos fornece uma falsa impressão que não há uma divisão interna entre os considerados “incluídos” e também entre os considerados “excluídos”. Em segundo lugar, não disfarça a sua preferência pelo mundo dos “incluídos” (seja ele qual for, se lembrarmos que este não é homogêneo), que passa a ser visto acriticamente e julgado como um mundo desejável pelos “excluídos” (o problema passa a girar em como “incluir” os “excluídos”). Em terceiro lugar, não trabalha de forma suficiente a razão de ser da chamada exclusão social, demonstrando, na maioria das abordagens sobre este tema, que é um processo sem agentes e sem contradição, sendo produto não se sabe do que, ou, em outras palavras, a idéia de exclusão social assume um caráter descritivo e não explicativo.
A idéia de lumpemproletarização, ao contrário, surge no interior de uma teoria das classes sociais e o lumpemproletariado não é um segmento social totalmente excluído ¾ se houvesse tal possibilidade ¾ pois ele pode estar momentaneamente afastado do mercado de trabalho, dos direitos sociais (da cidadania) e marginalizado no mercado de consumo, mas não está definitivamente excluído de nenhum destes aspectos da vida social, pois existe tanto mudanças que alteram sua situação quanto uma mobilidade entre lumpemproletariado e proletariado, entre segmentos do lumpemproletariado etc. Por conseguinte, consideramos como mais adequado o uso da teoria do lumpemproletariado ao invés do uso da concepção da exclusão social e por isso lançaremos mão dela no presente trabalho.
Catadores de Lixo: Renda Familiar, Consumo e Trabalho Precoce
O lumpemproletariado cria diversas estratégias de sobrevivência, tal como já havíamos colocado. Aqui nos interessa a forma específica representada pela coleta de lixo. As famílias lumpemproletárias que se dedicam à coleta de lixo e vivem desta coleta será o nosso foco de análise daqui em diante.
Os coletores de lixo (também chamados de “catadores de lixo” e “trabalhadores do lixo”) atuam em diversas cidades brasileiras. O que permite sua existência é a indústria da reciclagem do lixo que transforma os coletores em fornecedores de matérias-primas. O tipo de produto que extraem do lixo é variado, sendo principalmente papel, garrafas, plásticos, latas e cobre. Segundo Bursztyn e Araújo, “o processamento industrial do papel coletado pelos catadores de Brasília é um bom negócio. Estima-se que para cada tonelada adquirida a empresa gasta igual valor no processamento, para depois vender a matéria-prima por 2,5 vezes mais do que os custos”[13].
O comércio do lixo entre os catadores de lixo e as empresas de reciclagem geralmente passa pela mediação dos “atravessadores”: “boa parte das compras não é feita diretamente pelas empresas. Também nesse setor a terceirização chegou, de forma que há intermediários entre os catadores e a indústria: são os ‘atravessadores’ do papel”[14]. A existência de atravessadores pode ser explicada por dois motivos principais. Em primeiro lugar, o fato de que existe dificuldade de locomoção dos catadores de lixo para entregar o material nas empresas compradoras[15]. Em segundo lugar, porque é mais vantajoso para as empresas utilizar o trabalho dos catadores de lixo ¾ já que os catadores selecionam o material (separando os vários tipos de papel, que possuem preços diferentes, e outros materiais, tais como vidros, latas etc.) ¾ do que recolherem diretamente o lixo e os atravessadores ocupam um papel importante neste caso, pois ao mesmo tempo que provocam um aumento do preço também diminuem as despesas das empresas com transporte e funcionários, o que não altera muita coisa para elas.
Portanto, é a indústria de reciclagem de lixo que permite a existência dos catadores de lixo que comercializam o produto de sua coleta, ou seja, somente existindo aquele que compra é que pode existir aquele que vende. É o lucro proporcionado pelo lixo que cria o comércio do lixo e a relação mercantil e, consequentemente, é o que permite às famílias de catadores de lixo adquirir renda monetária.
Qual é a origem dos catadores de lixo? Tal como é comum para uma grande parte do lumpemproletariado, a principal forma de produção de coletores de lixo é a migração, ou seja, o deslocamento da força de trabalho de um lugar para outro, seja do campo para a cidade ou de uma localidade urbana (cidade, região ou país) para outra. Segundo Peliano, “se o capitalismo, de um lado, ao separar o trabalho de suas condições de realização (pois as tornam propriedades de alguns), gera historicamente os contínuos e específicos deslocamentos populacionais em busca de recomposição de novas condições de trabalho, de outro lado, ao separar trabalho necessário e o trabalho excedente (pois vital à perpetuação do capital), gera progressivamente trabalhadores excedentes ao processo imediato de produção e, em conseqüência, produz igualmente novos migrantes. Nessa perspectiva, é insuspeito afirmar que, sob o capitalismo, ou a partir da evolução das formações econômicas no caminho capitalista, ocorrem o aumento e a intensidade dos deslocamentos populacionais no espaço econômico das sociedades, seja de forma absoluta (campo-cidade), seja de forma relativa (cidade-cidade ou cidade-campo). Assim, as migrações, enquanto deslocamentos naturais de população, se tornam deslocamentos determinados (provocados) de população, na medida em que se intensificam e aceleram no capitalismo quando, então, passam a ser produtos necessários à forma capitalista de produção”[16].
A destruição de relações de produção pré-capitalistas e não-capitalistas, o que significa, ao mesmo tempo, a instauração de relações de produção capitalistas que não absorve toda a força de trabalho liberada pelas formas não-capitalistas de produção, é uma das principais causas da migração, isto é, do deslocamento da força de trabalho na sociedade. Além disso, o processo de proletarização e lumpemproletarização que decorre daí é reforçado pela necessidade do capital de diminuir os gastos com a força de trabalho, o que é realizado através do aumento de produtividade e desenvolvimento tecnológico que provoca desemprego (lumpemproletarização) e redução dos gastos com salários através da implantação de indústrias em regiões onde o movimento operário é mais fraco, a força de trabalho inativa é grande e os níveis salariais são baixos.
A migração é, portanto, o deslocamento da força de trabalho provocada pela destruição de relações de produção pré-capitalistas e não-capitalistas (campo-cidade) ou pela lumpemproletarização e baixos salários existentes em determinadas regiões ou países, cujo principal exemplo é o deslocamento de força de trabalho do “terceiro mundo” para a Europa Ocidental[17].
Os catadores de lixo são produtos deste deslocamento da força de trabalho. Os coletores de lixo de Campos/RJ, por exemplo, “já residiram em diversas cidades do país, e retornaram para Campos por dispensa ou término dos contratos de trabalho, por salários insuficientes, pela desilusão com as contradições entre ganhos e gastos ou, ainda, em menor escala, por motivos pessoais ligados a casamentos, separações, doenças ou desejo de ficar perto da família[18]”.
Podemos dizer que a razão da migração se deve a diversos fatores mas todos derivados do desemprego (lumpemproletarização) e de condições precárias de vida e, por conseguinte, da expectativa de conseguir melhores condições de vida e/ou emprego. Porém, depósitos de lixo e grandes quantidades de restos consumidos pela população existem em diversas cidades, principalmente nas grandes, onde se destacam as capitais, e em menor grau, nas cidades médias. Por qual motivo, então, se escolhe determinada cidade? Que motivo há para escolher Campos/RJ, Goiânia/GO, São Paulo/SP, Brasília/DF e não qualquer outra cidade? Em outras palavras, resta saber por qual motivo se escolhe determinado local para ir. A escolha pode ser motivada por informações, conhecimento prévio do local, proximidade entre moradia de origem e o local escolhido, existência de parentes residindo no local escolhido etc.
A “opção” ¾ que é, na verdade, uma falta de opção ¾ por ser catador de lixo decorre de condições sociais específicas. Muitos indivíduos passam por diversas atividades antes de se tornar catador de lixo enquanto que outros já chegam à cidade e adotam imediatamente esta atividade, como é o caso daqueles que possuem parentes trabalhando com o lixo. Aliás, existem resistências a este tipo de atividade, que é rejeitada por muitos. Mas a falta de alternativa e a existência de condições de sobrevivência através do trabalho com o lixo proporciona tal decisão. Para haver esta decisão é preciso que haja uma indústria de reciclagem que atue no local, empresas e/ou atravessadores que comprem o lixo coletado, um quantum razoável de lixo na cidade (o que pressupõe uma cidade no mínimo de médio porte), ou seja, é preciso haver certas condições externas que possibilitem e viabilizem a coleta do lixo. As condições internas são a lumpemproletarização, a falta de alternativas e uma trajetória individual e/ou familiar que torne conhecida esta possibilidade de adotar a coleta de lixo como estratégia de sobrevivência. Além disso, determinadas alternativas ou “opções” são rejeitadas por parecerem mais humilhantes ou desonestas. É comum ouvir, por exemplo, que coletar lixo é “melhor que roubar”, onde se mistura vergonha e justificativa para a opção pela coleta de lixo.
A mendicância, embora seja praticada de forma subsidiária em alguns poucos casos, também é rejeitada como forma alternativa de sobrevivência, o que demonstra que os coletores de lixo possuem uma mentalidade onde se mescla vergonha (da atividade desenvolvida) e orgulho ferido, o que cria determinados “mecanismos de defesa”, para utilizar linguagem psicanalítica, que lhe fornece uma justificativa e conforto psíquico.
Para explicar a questão específica do uso do trabalho precoce devemos considerar também a questão da renda monetária que pode ser adquirida com a coleta de lixo. Sem dúvida, a atividade de coleta de lixo proporciona uma renda monetária familiar insuficiente para atender as necessidades do mínimo calórico. Embora, em determinados casos, ela proporcione recursos adicionais, principalmente para aqueles que desenvolvem suas atividades em depósitos de lixo, tal como os restos de alimentos. Segundo Juncá, “a alimentação e saúde ganham, porém, novos contornos no lixão. Os restos de alimentos encontrados, ou mesmo as verduras, leite, carnes e frangos, em processo de deterioração, com prazos de validade vencidos ou embalagens violadas, que são regularmente trazidos para o lixão, determinam a única possibilidade de variação e ‘enriquecimento’ de sua ‘dieta’ básica”[19].
Desta forma observamos que a renda familiar é insuficiente e a necessidade do uso do trabalho precoce se torna evidente, principalmente para as famílias que possuem crianças, o que aumenta suas despesas. Mas o uso do trabalho precoce já era uma realidade antes da coleta de lixo para a maioria das famílias[20]. Nas famílias de catadores de lixo, as crianças em torno dos dez anos passam a se dedicar a esta atividade. Sem o trabalho precoce o cálculo financeiro apontaria para um volume de despesas elevado em contraste com uma renda familiar baixa.
O caso dos catadores de lixo em Brasília, em muitos aspectos, não difere muito dos de outras cidades. A renda familiar é baixa e o trabalho precoce é amplamente utilizado. A renda monetária adquirida com a venda do lixo varia de um mês para outro, pois depende da composição e do quantum de lixo que é coletado. Isto decorre do fato de que o preço varia dependendo do quantum e do tipo do material.
Segundo Bursztyn e Araújo, os produtos extraídos do lixo possuem preços variados, tal como observamos em nosso trabalho de campo. Segundo estes autores, “cada um destes produtos é objeto de uma operação diferente de comercialização. O que dá maior volume e renda é o papel. O branco é o mais valorizado, sendo vendido a R$ 0,08 o quilo. O ‘misto’, vale bem menos: R$ 0,02. O alumínio e o plástico rendem R$ 0,30 o quilo. Pelo papelão pode-se obter R$ 0,05 por quilo”[21].
A renda familiar adquirida geralmente é suficiente apenas para a sobrevivência, estando, pois, abaixo do mínimo calórico. A atividade com o lixo também é apresentada como um “mal necessário”, devido a falta de opção. Em Brasília, tal como em qualquer outro lugar do país, a atividade de coleta de lixo é retratada pelos seus praticantes de forma auto-justificadora.
O seguinte discurso, apresentado por uma catadora de lixo de Brasília, nos apresenta uma visão que se tem desta atividade:
“Se não fosse o papel a gente não tinha nada (...). A gente vai ajuntando de pouquinho. O papel não dá (...). O papel só dá prá comer e é mal. Tem dia que a gente come, tem dia que a gente não tem nada. Precisa esperar vender esse papelzinho para ganhar um dinheirinho pouco, pra gente fazer uma feirinha pra poder comer. E não dá. Por que o recurso que a gente tem aqui mesmo é só o papel velho. Se não fosse esse papel aqui a gente já teria até morrido de fome, senão estava com uma cuia na cabeça pedindo esmola”.
A coleta de lixo é vista como uma atividade vital, como único meio de sobrevivência, que, porém, é insuficiente. Ele é apresentado como o único recurso possível e assim se vê justificado, pois não há outra alternativa. Também é desqualificado pelos próprios catadores, pois no trecho acima vemos algumas expressões no diminutivo (“papelzinho”, “dinheirinho”, “feirinha”) que retratam esta desqualificação (desvalorização). Mas, independentemente de ser uma atividade desqualificada, ela é necessária e única alternativa, sob pena de ter que optar por uma atividade ainda mais desqualificada e vergonhosa: pedir esmola (ou, como colocou o marido desta catadora, catar papel “é melhor do que roubar”). Desta forma, a coleta de lixo é vista como necessária, porém não é motivo de orgulho e ainda por cima é visto como insuficiente. Como disse outro catador, “a renda é pouca, só dá prá gente passar mesmo na marra”.
As despesas com alimentação, vestuário e remédios formam os gastos básicos da família, embora, como veremos mais adiante, também existam outros gastos com bens de consumo duráveis. Neste contexto de renda familiar limitada, o uso do trabalho precoce se torna uma necessidade. As crianças com mais de dez anos geralmente trabalham e contribuem com a formação da renda familiar, embora existam muitos casos em que os trabalhadores precoces com menos de dez anos também trabalhem, mas em outras atividades, tais como a de engraxate, vigia de carros etc.
Estimamos que a contribuição dos trabalhadores precoces para a formação da renda familiar gira em torno de 25 a 60% do seu total. Esta contribuição e seu quantum dependem do tamanho da família, do número de trabalhadores precoces, bem como de sua idade e sexo. As famílias grandes podem adquirir uma renda monetária per capita maior desde que o número de não-trabalhadores (geralmente crianças menores de dez anos) seja pequeno ou não exista e que os trabalhadores precoces tenham um bom desempenho.
O número de trabalhadores precoces também interfere na formação da renda familiar, embora também interfira nas despesas. Podemos supor também que a idade dos trabalhadores precoces também interfere na formação da renda. Por exemplo, uma família com três trabalhadores precoces de 10, 12 e 13 anos tem uma renda inferior em aproximadamente 40% em relação a uma família com três trabalhadores precoces de 11, 14 e 17 anos. Alguns casos reforçam esta hipótese, que, no entanto, é apenas uma hipótese que somente com uma pesquisa mais abrangente poderá ser confirmada ou não.
O sexo dos trabalhadores precoces também interfere na formação da renda, já que a parte do trabalho dedicada à coleta do lixo é mais importante para a formação da renda e geralmente fica a cargo dos trabalhadores precoces do sexo masculino, enquanto que o trabalho de seleção do lixo é desenvolvido geralmente pelos trabalhadores não-precoces e pelos trabalhadores precoces do sexo feminino. A contribuição do trabalho precoce de sexo feminino, devido a isto, é inferior. Algumas meninas menores de dezoito anos se dedicam aos trabalhos “domésticos”, no sentido estrito do termo, além de contribuir com o trabalho de seleção do lixo.
As despesas das famílias grandes também é maior. O cálculo financeiro que podemos extrair destas informações é o seguinte: as famílias grandes com poucos (ou nenhum) não-trabalhador e com um número superior de trabalhadores precoces e não-precoces possuem uma renda per capita superior à das famílias na mesma situação só que com um número maior de não-trabalhadores, embora, desde que estes não-trabalhadores sejam menores de dez anos, a tendência, com o passar do tempo, é esta última elevar o seu nível de renda e a outra estagnar. As famílias com um número maior de trabalhadores do sexo masculino (precoces ou não) tendem (pois isto também depende do número e idade dos trabalhadores ativos) a ter uma renda familiar per capita mais elevada. Enfim, podemos dizer que a formação da renda familiar depende do tamanho da família, da idade, sexo e número de trabalhadores ativos e dos inativos. As despesas são maiores quanto maior for a família e, portanto, o aumento da renda pode apenas acompanhar o aumento das despesas. A renda per capita somente aumenta nas condições anteriormente citadas.
Os trabalhadores precoces (do sexo masculino) desempenham a atividade mais importante para o processo de coleta de lixo, que é a própria coleta. As outras atividades, tais como a seleção e a venda, são dependentes desta. É a atividade de coleta que determina o quantum e a qualidade do material coletado e, portanto, é o que determina o valor a ser arrecadado, ou seja, é a atividade que determina a formação da renda familiar.
A renda familiar se reverte principalmente para a satisfação das necessidades básicas, porém, o consumismo muitas vezes provoca a substituição (e, por conseguinte, devido ao baixo nível de renda dos catadores de lixo, a precarização) do consumo vital pelo consumo conspícuo[22]. O consumismo é um produto simultaneamente cultural e psíquico da sociedade capitalista mercantil, onde se produz uma forte insatisfação dos indivíduos frente à vida alienada e, conseqüentemente, a busca de sublimação (Freud) e, ao mesmo tempo, cria-se uma cultura que vê no consumo o caminho para a felicidade. O modo de produção capitalista realiza uma constante ampliação da produção (reprodução ampliada do capital)  que gera a necessidade de constante ampliação do mercado consumidor. As empresas criam várias estratégias para ampliar este mercado (obsolescência planejada das mercadorias, produtos descartáveis, redução do tempo de vida útil dos produtos, as sucessivas modas etc.) mas se destaca a estratégia de criar necessidades fabricadas, principalmente através da publicidade.
As mercadorias são apresentadas como símbolos de status e de estilos de vida e o indivíduo passa a ser valorizado pelo que tem e não pelo que é. Assim, o consumo conspícuo, que é o consumo ligado à aparência, ao supérfluo, se torna uma “necessidade” e o consumo vital (alimentação, remédios etc.) se torna secundário, ocorrendo assim uma transubstanciação do consumo conspícuo em consumo vital. A maioria das famílias de catadores de lixo possuem televisão e aparelho de som, comprados à prestação e retirando da renda familiar uma parte que deveria ser revertida para o consumo vital (melhor alimentação, por exemplo). O nível da alimentação de 20 famílias pesquisadas ¾ que possuem trabalhadores precoces ¾ é, na maioria dos casos, abaixo do mínimo calórico. A dieta básica é constituída por arroz e feijão para 30%; arroz, feijão e mais um alimento (carne, frango ou verdura) constitui a dieta básica de 45%; apenas 25% tem como dieta básica arroz, feijão e mais dois alimentos. O consumo conspícuo ocorre em outro sentido: 52% possuem aparelho de som; 51% possuem televisão; e 50% possuem ambos.
Constatamos que a compra de bens supérfluos tem uma demanda incentivada pelos trabalhadores precoces, pois estes estão mais envolvidos pela cultura dominante, de caráter urbano, mercantil ¾ ao contrário da cultura rústica dos pais, que também buscam o consumo de bens supérfluos mas de forma menos intensa. Em muitas casas se vê aparelhos de som e televisão, entre outros eletrodomésticos e outros bens de consumo supérfluos, e não se vê condições de moradia e alimentação adequadas, só para citar o contraste entre a substituição do consumo vital pelo consumo conspícuo.
Portanto, a renda familiar precisa da contribuição do trabalho precoce sob pena de não conseguir garantir a reprodução da família. As famílias lumpemproletárias dos catadores de lixo são constrangidas a usarem o trabalho precoce e este é de fundamental importância para a formação da renda familiar e reprodução das condições de existência da família.
Os pais reconhecem o valor da contribuição dos trabalhadores precoces, tal como se pode depreender da seguintes afirmações:
“Aqui nós todos trabalha. Eles [os 03 trabalhadores precoces] contribuem talvez com a metade, pois são eles que puxam o papel. São o meu braço direito; eles me ajudam demais”.
“A minha renda com a minha família está na faixa de 250 reais por mês. Nessa renda ele [o filho, que é trabalhador precoce] vai ficar com essa faixa de 100, porque ele trabalha mais que nós, pois se trabalha na rua faz mais que nós. Se fosse para dividir, então a maior parte era dele”.
Destas afirmações pode se ver que o trabalho precoce é reconhecido pela família e não só isto como também se observa uma certa divisão social do trabalho que confere aos trabalhadores precoces a parte mais importante da coleta de lixo, que é a própria coleta do lixo na rua, ou seja, a atividade que define o quantum e a qualidade do lixo coletado, e, portanto, o seu valor. Esta divisão social do trabalho privilegia a atividade de coleta do lixo na rua para os trabalhadores precoces de sexo masculino devido a facilidade que eles possuem de circular na cidade. Os pais e as filhas trabalhadoras (inclusive as trabalhadoras precoces, ou seja, menores de dezoito anos) trabalham principalmente com a seleção do lixo. Isto deixa entrever que o trabalho precoce é fundamental para as famílias catadoras de lixo.
Muitas famílias irão utilizar o trabalho precoce sob outra forma, ou seja, irão utilizar o trabalho precoce não na coleta de lixo e sim em outras atividades, tais como as de engraxate, vigia de carro etc. Estes trabalhadores precoces também irão contribuir de forma bastante significativa com a formação da renda familiar, tornando-se uma contribuição também necessária.
No entanto, isto traz diversas conseqüências para os trabalhadores e trabalhadoras precoces. Em primeiro lugar, tal como ocorre em diversas outras famílias tanto proletárias quanto lumpemproletárias, se promove uma desescolarização das crianças e adolescentes que se dedicam ao trabalho, devido a diversos fatores relacionados a ele, tal como o tempo de trabalho, o cansaço derivado dele, baixa renda familiar etc.[23]. Mas além disso, as famílias de catadores de lixo, que não atuam no lixão, possuem um problema adicional: as constantes mudanças e a distância das escolas. Algumas afirmações colocam as dificuldades envolvidas em qualquer tentativa de fornecer escolarização para os trabalhadores precoces:
“Não estão [os três filhos, todos trabalhadores precoces] estudando. Eles não estudam por que escola aqui é difícil. A gente não sossega num canto que vem eles, o povo da Terracap, chegam e arrancam a gente do lugar. Eles não deixam a gente quieto num lugar. A gente muda muito. Vai de um lugar para o outro. Aí fica difícil manter os meninos na escola”.
“Ela [a filha, trabalhadora precoce] tava estudando, ela tava estudando aqui, passou uns três anos estudando. Três anos aqui estudando. Aí, depois, a Terracap tirou nóis daqui, jogava nóis prá outro lado, jogava prá acolá. Aí não consegui mais continuar ela na escola porque prá deixar ela ir de noite, por causa das horas, ela saía depois das onze da noite, aí não dava. É longe, lá na Vila [Planalto]. O senhor sabe, né? Tem gente boa e tem gente ruim. A gente não sabe. As estradas é tudo perigosa, tudo cheio de mato. Aí ele [o pai] saía daqui dez horas prá chegar onze horas aqui com ela. Aí não conseguimos mais. Tava ela e um menino de dez anos na escola. O menino estudava até as seis horas. Aí ela ia buscar ele, quando chegava aqui já era dela voltar prá escola. O pai ia buscar de noite. Aí não continuou. Eu não botei eles mais na escola. Mas ela estudou muito, estudou até bastante. Ela tem memória boa, sabe? Sabe fazer quase tudo. Ela estudou até a terceira [série]. Estudou um bocadozinho. Se ela tivesse lá esse tempo todinho que eu tô aqui [em Brasília], se não tivesse a Terracap, se eles não tivessem tirado nóis, jogado aí prá debaixo dos pés de paus, minha filha estava bem estudada. Mas por causa deles, por causa que eles não quer deixar nóis em paz aqui. A gente botava os meninos no estudo e eles chegavam aqui, derrubavam o barraco, tocava fogo, tocava fogo no papel, tocava fogo no barraco, jogava a gente prá debaixo desses pés de pau. Sofrendo aqui direto, durante o tempo que eu moro aqui dentro de Brasília, é sofrendo direto, direto, por causa da Terracap”.
O fato de morarem em locais públicos cria confrontos constantes com a Terracap, órgão do governo responsável por estes locais, que ao retirá-los dos locais onde se estabelecem, provoca mudanças permanentes de moradia, o que cria uma dificuldade adicional para o processo de escolarização dos trabalhadores e trabalhadoras precoces. Isto, obviamente reforça a tendência de reprodução de pertencimento de classe e de segmento social destes indivíduos. Neste sentido, a falta de escolarização é extremamente grave do ponto de vista do desenvolvimento individual, pois dificulta a inserção dos indivíduos que são trabalhadores precoces em outro segmento social.
Mas o discurso acima traz mais alguns elementos interessantes. Em primeiro lugar, a incompreensão do papel da escola como um dos meios de manutenção ou alteração do pertencimento de classe ou segmento social. Isto se vê quando se considera que ter estudado até a terceira série é “estudar muito”, “bastante” e que “sabe quase tudo”, pois “tem boa memória”, o significa que a percepção da escola é a de uma instituição que fornece ensino útil (ler, escrever, fazer conta) e não um meio de ascensão social (concepção dominante, que, muitas vezes se revela ilusória). Assim, a visão da escola é a de que ela tem um caráter utilitário. Em segundo lugar, vê-se uma valorização da escolarização, o que já apresenta um indício de transformação cultural, na qual a cultura rústica perde espaço para a cultura urbana. Isto se pode ver no grau de emoção (que não pode ser transmitido pela via escrita mas que está presente na fala) quando ela se refere ao sofrimento provocado pelas constantes expulsões realizadas pela Terracap, que, embora não se deva apenas ao problema criado para o acesso à escola pelos filhos, como também pela destruição de sua moradia. Mas, de qualquer forma, existe um dose de emotividade também relacionada ao fato de não poder ter garantido a escolarização dos filhos.
Neste caso, o problema criado pela existência do trabalho precoce para a escolarização é reforçado por estas constantes mudanças. Também se pode dizer que tal baixo nível de escolarização se deve ao elevado grau de analfabetismo dos pais. Sem dúvida, o grau de analfabetismo dos pais é elevado. Nas vinte famílias pesquisadas que possuem trabalhadores precoces observamos que há 70% de pais analfabetos e apenas 30% alfabetizados. Também constatamos que 75% dos trabalhadores precoces de 7 a 14 anos não estão na escola e apenas 25% freqüentam a escola. Por conseguinte, o número de pais analfabetos e o número de crianças de 7 a 14 anos sem acesso à escola parece reforçar esta hipótese.
Porém, outros números refutam tal conclusão. Em primeiro lugar, devemos considerar que a influência da educação e valorização da escolarização deve levar em conta não apenas o pai mas também a mãe e em muitos casos esta possui escolarização enquanto que o marido não. Nestas famílias, os pais e mães que são simultaneamente analfabetos são 45% e não 70%. Em segundo lugar, os casos em que o pai e a mãe são ambos alfabetizados é bastante restrito, chegando a 20%. Em terceiro lugar, a diferença entre os filhos de pais analfabetos e pais alfabetizados que estudam é pequena, sendo que no primeiro caso se conta 10% e no segundo 0,5%. No caso dos que não freqüentam a escola os números são os seguintes: 40% para os analfabetos e 15% para os alfabetizados. Porém, como os pais analfabetos são quase o dobro dos alfabetizados, esta diferença é pequena. Se contarmos apenas as famílias de pais alfabetizados teremos 25% dos trabalhadores precoces freqüentando a escola e 75% sem acesso à escola e nas famílias de pais analfabetos teremos 20% freqüentando a escola e 80% sem acesso a ela. Diferença que é praticamente irrelevante.
O fator mais importante, além dos específicos derivados do trabalho precoce (questão da jornada de trabalho, cansaço, renda insuficiente etc.), é representado pelas constantes mudanças que os catadores de lixo são geralmente obrigados a fazer. 20% destas famílias tiveram que mudar mais de 10 vezes (há casos em que se fala de 20 e de até 50 mudanças, embora este último caso parece ser mais força de expressão do que afirmação literal) e 25% mais de 5 vezes desde que se mudaram para Brasília. As famílias que mudaram menos de 5 vezes formam um total de 55% (sendo que dentre estas a maioria teve que mudar três vezes). O gráfico abaixo relaciona o número de mudanças com o número de filhos na escola e fora dela.

Fonte: Autor.
 
O que se pode ver no gráfico acima é que as famílias que mudam mais possuem menos condições de manter os filhos na escola. Apenas uma destas famílias consegue ter filhos na escola (10%) enquanto que nove (90%) não conseguem manter os filhos na escola. Entre os que mudaram menos de cinco vezes a situação é diferente, pois quatro famílias conseguem ter os filhos na escola (40%) enquanto que seis não conseguem (60%). Neste sentido, as constantes mudanças que as famílias catadoras de lixo são forçadas a fazer é uma dificuldade adicional que torna bastante difícil a escolarização dos menores de idade. Isto aumenta mais ainda a dificuldade dos trabalhadores precoces em ter acesso à educação formal.
Por fim, podemos colocar que as famílias de catadores de lixo vivem em condições precárias de vida e que possuem uma renda familiar baixa, o que provoca o uso do trabalho precoce ¾ uso necessário, pois sem ele a renda familiar per capita não seria nem próximo ao mínimo calórico ¾  e cria toda uma situação de vida desfavorável para os trabalhadores precoces não só no presente como também no seu futuro, tal como no caso dos obstáculos criados à escolarização, o que dificulta mais ainda suas possibilidades de passagem para um segmento social ou classe com melhores condições de vida.


Bibliografia


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[1]A definição de lumpemproletariado não é consensual. O conceito surgiu com Marx e ganhou diversas significações posteriores. Tal conceito vem sendo retomado na França, principalmente a partir do final da década de 80 (cf. Moreau de Bellaing, Louis. La Misère Blanche. Paris, L’ Harmattan, 1988). Aqui o significado deste conceito é equivalente ao de exército industrial de reserva, tal como este último termo foi definido por Marx (cf. Marx, Karl. O Capital. Vol. 2, 3a edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988; cf. também discussão sobre este termo apresentada por Nun, José. Superpopulação Relativa, Exército Industrial de Reserva e Massa Marginal. In: Pereira, Luiz (org.). Populações Marginais. São Paulo, Duas Cidades, 1978).
[2]Cf. Wallerstein, Imannuel. O Capitalismo Histórico. São Paulo, Brasiliense, 1984.
[3] Mas é necessário dizer que isto não ocorreu de forma imediata, pois foi um produto da paulatina constituição do capitalismo (cf. Motta, Fernando P. O Que é Burocracia. São Paulo, Brasiliense, 1985).
[4]Cf. Marx, Karl. O Capital. Vol. 1, 3a edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
[5]Um dos raros autores que se dedicou ao problema específico do consumo foi o economista norte-americano Thorstein Veblen (Cf. Veblen, Thorstein. A Teoria da Classe Ociosa. Col. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1980) e tal tema vem recebendo atenção dos que se dedicam à questão da sociedade de consumo.
[6]Uma das raras exceções encontra-se em textos orientados por uma preocupação feminista sobre o trabalho feminino nas famílias proletárias (cf. Harrison, John; Seccombe, Wally; Gardiner, Jean. El Ama de Casa Bajo el Capitalismo. Barcelona, Anagrama, 1975).
[7] Aliás, é este um dos motivos da desvalorização das atividades domésticas e, por conseguinte, das atividades femininas desempenhadas em tal lugar: a unidade doméstica passou a ser o locus do consumo e por conseguinte do que é “improdutivo”, ao contrário, por exemplo, da unidade doméstica no modo de produção escravista, que era o oikos e no modo de produção feudal, o feudo, onde não se limitava apenas ao consumo mas também à produção de bens.
[8] Offe, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984.
[9] “As pessoas que querem sobreviver contam todas as rendas que podem receber, não importa a fonte, e as calculam em termos das despesas reais que precisam fazer” (Wallerstein, Imannuel. Ob. cit., p. 19).
[10] “Esse mínimo pode ser definido com bastante rigor, em termos fisiológicos, como o consumo diário de calorias alimentares exigido para compensar o desgaste de energia que o homem despende em seu rendimento diário de trabalho. Esse montante pode ser avaliado, aproximadamente, entre 2.000 a 3.000 calorias por pessoa em cada dia de trabalho. Não será errado afirmar que este mínimo ainda não se alcançou na maior parte do mundo. Cerca da metade da população mundial tem, em média, uma ração per capta diária de menos de 2.250 calorias.  Essa faixa inclui a Indonésia (com 1.750 calorias), a China (com 1.800 calorias) e a Índia (com 1.800 calorias). Dois décimos da população mundial incluem-se na categoria que recebe, em média, uma ração de 2.250 a 2.750 calorias per capita; esse grupo inclui a Europa Mediterrânea e os países balcânicos. Somente três décimos da população mundial ¾  os Estados Unidos, os domínios britânicos, a Europa Ocidental e a União Soviética  ¾  conseguem ficar acima de 2.750 calorias” (Wolf, Eric. Sociedades Camponesas. 2a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, p. 17).
[11] Sobre exclusão social, consulte-se: Nascimento, Elimar. A Exclusão Social no Brasil: Algumas Hipóteses de Trabalho e Quatro Sugestões Práticas. In: Cadernos CEAS. No 152, Jul/Ago. de 1994; Juncá, Denise.  Ilhas de Exclusão: O Cotidiano dos Catadores de Lixo de Campos. Ano XVII, no 52, 1996. 
[12] Tal crítica também foi endereçada à chamada “teoria da marginalidade” (em suas diversas versões), que também teria uma visão dualista da sociedade (cf. Berlinck, Manoel. Marginalidade Social e Relações de Classe em São Paulo. Petrópolis, Vozes, 1975). Consideramos que tais críticas se aplicam também à concepção de exclusão social, tendo em vista suas características semelhantes.
[13]Bursztyn, Marcel & Araújo, Carlos Henrique. Da Utopia à Exclusão: Vivendo nas Ruas em Brasília. Rio de Janeiro/Brasília, Garamond/Codeplan, 1997, p. 39.
[14]Bursztyn, Marcel & Araújo, Carlos Henrique. Ob. cit., p. 38.
[15] “Por não dispor das condições mínimas para buscarem opções de venda desse material no mercado, em função dos limites de locomoção, a troca é estabelecida no próprio local de trabalho, via ‘atravessadores’. Estes encostam seus veículos e aguardam o que cada um tem a oferecer, impondo um processo de seleção, separando o que é ou não aproveitável e determinando o valor a ser pago” (Juncá, Denise. Ob. cit., p. 110).
[16]Peliano, José Carlos. Acumulação de Trabalho e Mobilidade do Capital. Brasília, UNB, 1990, p. 124.
[17]Exemplos deste tipo de migração se encontra em: Moreau de Bellaing, Louis. Ob. cit.
[18]Juncá, Denise. Ob. cit., p. 114.
[19]Juncá, Denise. Ob. cit., p 113. Porém, o trabalho precoce no lixo não é um problema só no Brasil e sim mundial, tal como ocorre na Etiópia, Zaire, Peru, Índia, Filipinas, Camboja etc. (cf. UNICEF. Situação Mundial da Infância, 1997. Brasília, 1997).
[20] “Descendentes de famílias oriundas de diferentes municípios do estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, os atuais catadores de lixo desde cedo começaram a conviver com o cotidiano de negatividade de possibilidades. Em função da necessidade de ajudar no sustento da família, por volta dos dez anos ingressaram no mundo do trabalho. Alguns executando tarefas auxiliares aos pais, predominantemente na zona rural, cuidando do gado, tirando leite, ou exercendo atividades de plantio e capina, principalmente na lavoura da cana de açúcar. Outros buscaram a área do trabalho doméstico, iniciando como babás, e encontrando uma vantagem adicional: a moradia e a alimentação. Mas nas duas situações não havia qualquer salário ou rendimento individual. Ajudando os pais, estes é que recebiam de seus patrões, e como domésticas tinha de retorno roupas, remédios ou pequenos objetos de higiene pessoal” (Juncá, Denise. Ob. cit., p.110).
[21]Bursztyn, Marcel & Araújo, Carlos Henrique. Ob. cit., p. 39.
[22]Sobre consumismo e substituição do consumo vital pelo consumo conspícuo, veja-se: Pietrocolla, L. Ob. cit.; Fromm, Erich. Ter ou Ser? 4a edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1987; veja-se também sobre consumo conspícuo: Veblen, Thorstein. Ob. cit.
[23]Cf. Campos, Maria Machado. Infância Abandonada ¾  O Piedoso Disfarce do Trabalho Precoce. In: Martins, José de Sousa (org.). O Massacre dos Inocentes. A Criança sem Infância no Brasil. 2a edição, São Paulo, Hucitec, 1993. 
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Artigo publicado originalmente na Revista Estudos (Goiânia), Goiânia, v. 27, n. 3, p. 509-537, 2000.










https://informecritica.blogspot.com/2011/04/catadores-de-lixo-renda-familiar.html

2 comentários:

  1. Nildo ,

    Bom dia,

    Qual e-mail eu posso falar com vc ?

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  2. Alécio, acesse minha página http://nildoviana.com/ e clique em "contato". Abraços!

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