Darwin nu
Nildo Viana*
O representante ideológico da chamada
“sociobiologia”, expressão mais contemporânea do “darwinismo social”, escreveu
um livro chamado O Macaco Nu (Morris, 1980). O objetivo do
presente texto é fazer como a criança do conto de Andersen, A Roupa
Nova do Imperador, ou seja, revelar que Darwin, tal como o rei, está nu. E
este objetivo é concretizado através da perspectiva marxista, o que nos remete
ao estudo das relações entre as teses de Darwin e dos seus seguidores e a
teoria marxista.
A relação entre Darwin (e darwinismo)
e o marxismo é muito mais complexa do que parece à primeira vista. Na área de
influência marxista, a concepção hegemônica e mais divulgada é que as duas
concepções são semelhantes e uma estaria ligada ao processo de evolução
biológica enquanto que a outra seria expressão da evolução social. O darwinismo
abordaria a luta pela sobrevivência, a evolução das espécies, enquanto que o
marxismo abordaria as mudanças sociais. Darwin teria produzido uma teoria da
evolução que seria um complemento e confirmação da teoria marxista e da
dialética materialista, servindo, simultaneamente, para refutar as doutrinas
religiosas e criacionistas e apresentar uma base biológica para a dialética.
Estas teses, no entanto, realizam uma
simplificação de uma relação complexa e só se aplica a um determinado marxismo
empobrecido, muito mais próximo ao positivismo, evolucionismo e metafísica do
que ao pensamento de Marx e de alguns dos principais teóricos do marxismo. Por
isso, se torna importante resgatar o debate entre Darwin e Marx, e, por
conseguinte, entre darwinismo e marxismo, para demonstrar a incompatibilidade
entre as duas concepções e contribuir com a retomada da crítica ao darwinismo e
assim reavaliar o significado histórico da obra A Origem das Espécies,
bem como da totalidade da obra de Darwin.
O elogio do darwinismo
A idéia de compatibilidade e
complemento entre marxismo e darwinismo tem origem nas próprias ações e
afirmações de Marx e Engels. É conhecido o fato de que Marx enviou carta para
Darwin solicitando que ele escrevesse um prefácio para O Capital, o que foi
recusado[1]. No seu escrito de homenagem ao funeral
de Marx, Engels reforçou isto ao afirmar: “tal como Darwin descobriu a lei da
evolução da natureza orgânica, assim também Marx descobriu a lei da evolução
histórica humana” (apud Fromm, 1983, p. 220). Esta afirmação se tornou o
elemento fundamental para os que se diziam adeptos do pensamento de Marx
realizar o elogio do darwinismo e reproduzir a idéia de complemento entre as
duas concepções e, nesta ideologia, Marx seria o grande teórico da evolução
social e Darwin da evolução das espécies.
Isto foi reforçado pelos principais
representantes da suposta “ortodoxia marxista”, tal como Kautsky. Este discute
a “ética darwinista” e ressalta a sua grande contribuição para a compreensão da
origem do homem – não sem grande confusão e sem entender o verdadeiro cerne da
concepção darwiniana, tal como se vê em sua referência a Espinas, antagônica à
concepção competitiva de Darwin, e que para Kautsky seria a mesma – afirmando
que, no entanto, “antes que Darwin demonstrasse sua teoria revolucionária, já
havia nascido a doutrina que também desvelara o segredo do ideal moral: a
doutrina de Engels e Marx” (Kautsky, 1980, p. 69). Aqui não só se atribui a
Darwin uma “teoria revolucionária”, como a confunde com a concepção de ética em
Marx e Engels, um equívoco colossal, derivado da má compreensão tanto da
concepção darwiniana quanto da marxista.
Porém, Kautsky, após a morte de
Engels, era a grande referência do suposto marxismo que se organizara na
Segunda Internacional e é por isso que suas concepções influenciaram gerações,
e até pensadores com maior autonomia intelectual, como o futuro espartaquista
Franz Mehring e o austro-marxista Otto Bauer, que não irão refutar este
equívoco na compreensão da relação entre marxismo e darwinismo (Bauer, 1980;
Mehring, 1980).
Isto se reproduziu na nova ortodoxia
dita marxista estabelecida por Lênin e depois ampliada e reproduzida por Stálin
e a III Internacional, com o processo de bolchevização dos partidos comunistas.
Nos regimes estabelecidos sob inspiração bolchevista, tal como no capitalismo
estatal cubano, Darwin recebe as mesmas glórias que nos países capitalistas
privados:
“No socialismo real da
atualidade, encontramos nos livros didáticos da Biologia de Cuba, a mesma linha
básica da história oficial do darwinismo dos americanos. Darwin é elogiado como
sendo ‘o grande naturalista inglês que derrubou a idéia de que as espécies são
imutáveis’, criadas por um Deus, e que elaborou o princípio da seleção natural.
Nenhuma alusão é feita nem mesmo à crítica de Marx e Engels” (Marco, 1987, p.
77).
Neste sentido, o que temos é a
apologia do darwinismo e sua atribuição de “teoria revolucionária”, a grande
“teoria da evolução” não questionada e, para alguns, inquestionável. Estas
teses, no geral, seriam defendidas por Marx e Engels[2]. No entanto, as coisas não são assim tão
simples e se torna necessário averiguar que a relação entre marxismo e
darwinismo é marcada por posições críticas, que serão apresentadas a seguir.
Crítica ao darwinismo
A aparente adesão de Marx e Engels
aos postulados de Darwin consiste num exagero e em um desconhecimento da
verdadeira posição e ação destes autores. Marx realmente considerou a
possibilidade de Darwin prefaciar sua grande obra, O Capital? Na
verdade, há aqueles que afirmam isso, mas sem a devida fundamentação. Outra
versão da história diz que Marx leu A Origem das Espécies em
1860 e a considerou, tal como colocou em carta para Engels, que sua obra
oferecia a “base histórico-natural de nossa concepção”, “apesar de todas as
suas insuficiências”. Porém, em que pese Marx considerar que Darwin trazia
uma certa contribuição ao desenvolvimento da compreensão da natureza –
especialmente a superação da teleologia na natureza – e assim fornecer
elementos de crítica e superação de ideologias conservadoras, ele não era
acrítico em relação às suas teses e, na verdade, o que ele teria feito[3], foi, segundo alguns, solicitar
autorização de Darwin para dedicar-lhe o volume 2 de O Capital.
Isto, contudo, é refutado por outros,
baseando-se em pesquisas sobre as cartas recebidas por Marx. O que ocorreu, na
verdade, foi uma carta de Edward Aveling, genro de Marx, solicitando a
autorização de Darwin para dedicar-lhe sua obra (e não a de Marx)
intitulada Darwin para Estudantes, de caráter anti-religioso, e por
isso houve a recusa do famoso naturalista, que encaminhou a mesma para Marx e
se encontrava junto com suas correspondências e por isso não havia referência à
qual obra se referia o seu autor, o que permitiu a confusão estabelecida e que
se tornou a versão verdadeira da história até 1975[4].
Assim, as teses de Darwin realmente
seriam aprovadas por Marx, com ressalvas, o que foi possível neste momento,
devido ao contexto e seu possível potencial crítico[5], mas após uma segunda leitura, verificou
os aspectos problemáticos de A Origem das Espécies, a principal
obra de Darwin e a mais conhecida. Segundo Marx, em carta enviada para Engels:
“Darwin, que estou
relendo, diverte-me quando diz que aplica a teoria de Malthus nos animais e
também nas plantas, como se em Malthus não fosse brincadeira aplicar a teoria,
inclusive da progressão geométrica, não às plantas e animais, mas aos homens. É
notável ver como Darwin encontra nos animais e nas plantas sua sociedade
inglesa, com a divisão de trabalho, a competição, a abertura de novos mercados,
as ‘invenções’ e a ‘luta pela existência’ de Malthus” (apud. Marco, 1987, p,
75-76)[6].
Nélio Marco também cita a crítica que
Engels realiza a Darwin em A Dialética da Natureza. Nesta obra,
Engels afirma que até o advento da obra de Darwin e idéia de harmonia na
natureza predominava e as mesmas pessoas passaram a “só ver luta por toda a
parte”, sendo ambas as concepções unilaterais e estreitas. Segundo Engels:
“Toda a teoria de
Darwin baseada na luta pela vida é simplesmente a transferência, da sociedade
para a natureza animada, da teoria de Hobbes do bellum omnium contra
omnes e mais ainda: da teoria burguesa da livre competição e da teoria
malthusiana sobre a superpopulação. Uma vez levada a cabo essa proeza (cuja
justificação incondicional é ainda muito problemática, especialmente no que se
refere à teoria malthusiana) é muito fácil transferir de volta essas teorias,
passando-as da história natural para a história da sociedade; e, afinal de
contas, é uma grande ingenuidade pretender, com isso, haver demonstrado essas
afirmações como sendo leis eternas da sociedade” (Engels, 1985, p. 163).
Engels realiza outras observações
críticas mais específicas a Darwin, mas aqui cabe destacar apenas estes
elementos, derivados dos argumentos de Marx na carta endereçada a Engels, tal
como citamos anteriormente.
A crítica de Marx e Engels a Darwin
tem dois elementos principais, que são complementares e possuem a mesma fonte:
o primeiro elemento é a inspiração malthusiana das teses de Darwin,
especialmente a idéia da sobrevivência dos mais aptos e o segundo elemento é a
transposição para a natureza das relações sociais capitalistas em consolidação
na Inglaterra na época em que este pensador escrevia[7].
Esta crítica será desenvolvida também
por Anton Pannekoek em sua obra Marxismo e Darwinismo, no início do
século 20, bem como por alguns outros pensadores marxistas e, no entanto, foi
esquecida ou silenciada e, em seu lugar, uma adesão sem ressalvas foi produzida
e se tornou a verdade sobre o darwinismo no interior do que se denominou
marxismo-leninismo.
A implicação da crítica de Marx a
Darwin abre espaço para se pensar criticamente a história da biologia (e das
ciências naturais em geral) e entender a teoria da consciência desenvolvida
pelo autor de O Capital. Assim, iremos a seguir destacar as
conseqüências teórico-metodológicas da crítica de Marx e, a partir disto,
retomar o significado e a importância de A Origem das Espécies e
sua tese da luta pela sobrevivência no contexto do desenvolvimento da
consciência da natureza e da sociedade, o que nos remeterá também à sua outra
obra, A Origem do Homem.
Análise marxista do darwinismo
Retomando os pontos essenciais da
crítica de Marx a Darwin, temos os seguintes elementos: a) Darwin transpõe a
sociedade de sua época para o mundo natural; b) Darwin se inspira em Malthus
para defender sua tese da luta pela sobrevivência. Engels também destacará o
caminho de volta realizado por Darwin, ou seja, uma vez atribuído à natureza as
características da sociedade de sua época, depois se faz o caminho de retorno,
afirmando que a lei natural se manifesta também na sociedade (Engels, 1985)[8]. Posteriormente, ao discutir a obra de
Pierre Trémaux, Marx afirmará outra deficiência, agora mais no interior da
própria argumentação darwiniana, referente ao postulado de uma evolução casual
que é superada por este outro autor ao enfatizar o papel do solo no processo
evolutivo. Este último aspecto possui caráter metodológico que destacaremos
posteriormente.
O fato de Darwin transpor as relações
sociais da sociedade inglesa, capitalista, para o mundo natural é algo que
possui importância fundamental. Darwin apresenta sua teoria da evolução a
partir da reprodução na natureza da divisão social do trabalho, da competição,
da abertura de mercados, etc. Para a teoria da consciência de Marx, a
consciência não é mais que o ser consciente (Marx e Engels, 2002; Viana, 2007)
e, neste sentido, este ser expressa suas relações sociais. Porém, não se trata
de relações sociais abstratas, mas concretas, e os seres humanos não vivem as
mesmas relações, nas quais elementos comuns, em determinados lugares e épocas,
coexistem com elementos distintos, oriundo principalmente da divisão social do
trabalho e posição de classe dos indivíduos.
Darwin expressava a consciência
burguesa e assim reproduzia as relações sociais burguesas em suas teses sobre a
evolução (Viana, 2001; Viana, 2003; Marco, 1987), e era atraído pela leitura
que reforçava tais idéias (Herbert Spencer, Thomas Malthus, etc.) e só
conseguiu o sucesso e que sua teoria da evolução suplantasse as demais, tais
como as de Lamarck, Wallace e Bates, porque produzia idéias que correspondiam à
sociedade de sua época e atendiam aos interesses dominantes (Viana, 2003).
Cabe destaque, neste aspecto, o papel
da competição, que é um elemento estrutural da sociedade capitalista. A
sociabilidade na sociedade capitalista é dominada pela competição e isto será
reconhecido e trabalhado por inúmeros pesquisadores. Mannheim (1990) irá
destacar a reprodução da competição na esfera do mundo das idéias; Wright Mills
(1971) irá analisar a “personalidade competidora”, e outros autores (Viana, 2008)
irão desenvolver idéias sobre a importância da competição e seu caráter
estruturante da sociedade capitalista.
Isto revela uma questão básica: as
idéias produzidas pelas ciências naturais – assim como por qualquer outra
produção cultural humana – são produtos sociais e históricos que – caso não
assumam uma perspectiva crítica, condição para a não naturalização das relações
sociais existentes – tendem a reproduzir tais relações, realizando o processo
de justificação, universalização e naturalização das relações sociais
existentes. E isto é comum nas ciências naturais, o que significa que, além dos
limites técnicos, de financiamento e interesses por detrás da produção
científica, ela não é “livre de valores” e nem “exata”, o que provoca a
necessidade da crítica e da dúvida em relação à grande parte de sua produção.
A inspiração em Malthus (entre
outros) é apenas mais um capítulo desta história, pois as ideologias (da
ciência econômica, no caso) influenciam e reforçam a produção de outras
ideologias em outras áreas (na biologia, no caso de Darwin). Logo, as relações
sociais existentes produzem representações cotidianas e ideologias que, por sua
vez, influenciam na reprodução de representações cotidianas e outras ideologias
que se reforçam reciprocamente, confirmando e reforçando tais relações sociais.
E este foi o aspecto colocado por Engels, ao colocar a ação de retorno da
ideologia darwinista, que transpõe as relações sociais na natureza, agora
apresentada como “lei natural”, sobre a sociedade capitalista, legitimada,
universalizada e naturalizada. E isto se manifesta exemplarmente na obra de
Darwin.
Um outro elemento, de caráter
metodológico, é a percepção de que a evolução das espécies está relacionada com
o solo, ou seja, com as mudanças geológicas, tal como defendido por Trémaux e
retomado por Marx. Isto residia no fato de que a abordagem de Darwin não
conseguia responder a determinadas questões e fornecia a primazia evolutiva ao
processo de luta pela sobrevivência em intraespécies e não extraespécies, tal
como Wallace e Bates (Ferreira, 1990; Viana, 2003). Ao focalizar a luta pela
sobrevivência no interior das espécies – oriunda da lei da população de Malthus
– e de acordo com a competição capitalista, o mecanismo evolutivo precisa de um
complemento e este foi a teoria da herança dos caracteres adquiridos, especialmente
a sua concepção de pangênese, que não seria apresentada em A Origem das
Espécies, mas em um texto seu pouco conhecido. O que Marx encontra em
Trémaux é uma análise mais próxima do método dialético, na qual o concreto é o
resultado de suas múltiplas determinações e não produto do acaso, tornando sua
obra, desta forma, mais útil do que a de Darwin.
O sucesso de “A Origem das Espécies”
Se Darwin não tivesse publicado sua
obra mais famosa, A Origem das Espécies, isto mudaria sensivelmente
a história da cultura ocidental e a evolução da sociedade moderna. Afinal de
contas, “ao estabelecer a teoria da Evolução, Darwin trouxe a mais vasta
contribuição até hoje feita por um único homem” e, assim, “pode, realmente, ser
chamado o Newton da Biologia” (Huxley, 1960, p. 25). Porém, este tipo de
colocação não se justifica. Em primeiro lugar, é necessário reconhecer a
existência de várias concepções de evolução antes de Darwin, embora a maioria
não tão sistemática quando a dele, e várias outras que surgiram ao mesmo tempo
que a dele (Wallace, Bates), bem como as posteriores (excluindo as que nasceram
influenciadas pelo darwinismo ou em antagonismo com ele, pois não existiriam
nesta situação hipotética). É preciso deixar claro que diversas outras “teorias
da evolução” foram produzidas (Marco, 1987; Guyénot, 1955), para romper com a
falsa idéia exposta por livros didáticos e biólogos com formação deficiente
segundo a qual a teoria de Darwin seria a “definitiva” e “verdadeira” ou,
ainda, “inquestionável”. De qualquer forma, o estabelecimento de uma concepção
da evolução hegemônica e influente como a de Darwin dificilmente teria surgido.
Mas qual é a importância desta obra
na atualidade? Além do valor histórico que assumiu e de sua influência social
posterior, a obra de Darwin ganha importância como exemplo de processo de
produção de ideologia, no reino das ciências naturais. Agora, se a pergunta se
centra no conteúdo de sua obra, aí torna-se necessário descobrir o que da
teoria da evolução de Darwin continua vivo ou o que pode ser considerado uma
contribuição duradoura e ainda válida. Um balanço geral seria bastante negativo
para quem parte de uma perspectiva crítica. Neste sentido, resta explicar as
razoes do sucesso de tal obra. Já fizemos isto em outro lugar (Viana, 2003) e
por isso realizaremos apenas uma síntese desse processo de sucesso da concepção
darwinista e, mais especificamente, do livro A Origem das Espécies.
A esfera científica é formada por um
conjunto de cientistas de várias áreas e que se organizam em instituições,
fundam grupos de afinidades, criam interesses e valores próprios, e disputam
entre si o direito de definir o que é ciência e qual é a melhor produção
científica, numa competição bastante darwinista[9]. O processo segundo o qual Darwin acabou
vencendo a luta com as concepções concorrentes é explicado por sua posição
social superior aos dos dois principais adversários (Wallace e Bates), o que
lhe trazia recursos financeiros, amizades influentes, entre outras vantagens
competitivas, por um lado, e a maior estruturação de sua obra, bem como
adequação ao mundo das representações cotidianas e das ideologias dominantes de
sua época. Em relação à Lamarck, a obra de Darwin tinha a nítida vantagem
competitiva de se fundamentar numa episteme mecanicista, dominante na época,
enquanto que o seu concorrente era, como todos sabem, um vitalista:
“O vitalismo, tão
evidente em algumas de suas leis, estava em oposição ao materialismo do
pensamento científico, e tirava a esperança de novos conhecimentos através da
investigação em linhas materialistas. É verdade que alguns dos biologistas eram
vitalistas, especialmente entre os alemães, mas o materialismo da Ciência
Física estava ficando na moda e estendendo-se aos cientistas de outros grupos”
(Carter, 1959, p. 33).
Aqui reside uma das determinações
sociais do pensamento científico, que é a hegemonia de determinadas idéias e
concepções, que acabam influenciando toda uma época. O dito materialismo acima
citado é o mecanicista que, naquela época, dominava a Física, que era a ciência
em destaque naquele período.
Porém, além das vantagens pessoais e
adequação à ideologia mecanicista, havia um outro elemento que tornava a teoria
de Darwin mais aceita do que as demais: enquanto Wallace e Bates pregavam uma
concepção de luta pela sobrevivência interespécies, ou seja, entre as espécies,
a dele apontava para a luta intraespécie, ou seja, no interior de uma mesma
espécie. Lembrando que Marx já havia afirmado que Darwin apenas realizava a
transposição da sociedade capitalista para o mundo natural, então se tornava
mais aceitável tal teoria e, além disso, ainda permitia explicar a própria
sociedade humana. A inspiração na lei da população de Malthus já era uma
explicação neste sentido e Darwin, uma vez generalizando a tese malthusiana,
também a naturaliza e, assim, pode aplicá-la, de volta, à espécie humana.
Sem dúvida, muitos dirão que Darwin
não aplicou suas teses ao mundo humano. Porém, tal como alguns já colocaram,
isto não é verdade (Marco, 1987; Viana, 2001; Viana, 2003). Em A Origem
das Espécies, Darwin está tratando de uma lei geral e que, portanto, se
aplica a casos particulares. Se a luta pela sobrevivência é uma lei geral da
evolução das espécies, então ela se aplica, normalmente, aos seres humanos. O
próprio Darwin deixa isto explícito ao discutir a concepção malthusiana da luta
pela sobrevivência devido ao aumento populacional em progressão geométrica:
“Todo indivíduo que,
durante o estado natural da vida, produz muitos ovos ou muitas sementes, deve
ser destruído em qualquer período de sua existência, ou durante uma estação
qualquer, porque, de outro modo, dando-se o princípio do aumento geométrico, o
número dos seus descendentes tornar-se-ia tão notável, que nenhuma região os
poderia alimentar” (Darwin, 1979, p. 70).
“Não há exceção alguma
à regra que se todo o ser organizado se multiplicasse naturalmente com tanta
rapidez, e não fosse destruído, a terra em breve seria coberta pela
descendência de um só par. O próprio homem, que se reproduz tão lentamente,
veria o seu número dobrado cada vinte e cinco anos, e, nesta proporção, em
menos de mil anos, não haveria espaço suficiente no globo onde se conservasse
de pé” (Darwin, 1979, p., 70).
Obviamente que ainda é possível
afirmar que isto não é tão evidente assim e que a aplicação das teses
darwinistas à sociedade humana é produto do darwinismo social. Porém, ao ler as
outras obras de Darwin, como cartas, sua autobiografia e outras produções não é
mais possível desconsiderar que ele é o criador do “darwinismo social”, ou
melhor, ele é o criador do darwinismo e, portanto, da aplicação de suas teses à
sociedade humana. Isto fica mais que evidente em sua obra A Origem do
Homem e a Seleção Sexual.
Da Origem das Espécies à Origem do Homem
A obra mais conhecida de
Darwin, A Origem das Espécies, é a onde ele expõe sua teoria da
luta pela vida e da sobrevivência dos mais aptos e é a fonte ideológica de suas
demais obras, entre elas, A Origem do Homem. Curiosamente, esta
última não teve a fama e o impacto da obra dedicada à ideologia da seleção
natural. Sem dúvida, tendo em vista que A Origem das Espécies é
muito citada e aclamada, mas pouco lida, inclusive por especialistas da área,
seria normal saber que A Origem do Homem é pouquíssimo
conhecida e lida. No entanto, era de se esperar que tal obra tivesse o mesmo
impacto que a anterior, inclusive por sua temática.
Na introdução de A Origem do
Homem, Darwin confirma nossa afirmação anterior. Ele diz que considerou
suficiente ter indicado em A Origem das Espécies que tal obra
“irradiaria luz sobre a origem do homem e sua história” e que “o homem deve ser
incluído com os demais seres viventes em qualquer conclusão geral que seja, no
que tange ao modo de aparecimento sobre a terra” (Darwin, 1974, p. 11).
Infelizmente, por questão de espaço, não poderemos abordar tal obra
detalhadamente e por isso apenas faremos algumas referências breves aos
aspectos mais importantes para nossa discussão. O que importa destacar é que
Darwin aplica sua concepção exposta na sua grande obra sobre a evolução das
espécies ao caso do ser humano. A tese da seleção natural e seleção sexual é
apresentada nesta obra e junto com a exposição das teses se observa um conjunto
de afirmações racistas e sexistas. Eis apenas um exemplo que nosso espaço
permite:
“A distinção principal
nos poderes mentais dos dois sexos reside no fato de que o homem chega antes
que a mulher em toda ação que empreenda, requeira ela um pensamento profundo ou
então razão, imaginação, ou simplesmente o uso das mãos e dos sentidos. Se
houvesse dois grupos de homens e mulheres que mais sobressaíssem na poesia, na
pintura, na escultura, na música (trate-se da composição ou da execução), na
história, nas ciências e filosofia, não poderia haver termos de comparação.
Baseados na lei do desvio da média, tão bem ilustrada por Galton em seu livro
Hereditary Genius, podemos também concluir que, se em muitas disciplinas os
homens são decididamente superiores às mulheres, o poder mental médio do homem
é superior àquele destas últimas” (Darwin, 1974, p. 649).
Desta forma, Darwin considera que o
homem é superior, naturalmente, à mulher e para isso não hesita em citar
Francis Galton, seu primo e principal idealizador da eugenia, a purificação da
raça, posteriormente levada a cabo pelos nazistas. Muitos já denunciaram o
racismo de Darwin (Marco, 1987; Prenant, 1940). O seu racismo fica mais
evidente em suas cartas, tal como na endereçada a W. Graham em 1881, nas quais
o preconceito racial está intimamente ligado com suas teses expostas em A
Origem das Espécies:
“Poderia discutir e
mostrar que a seleção natural fez e faz, todavia, mais pelo progresso da
civilização do que você está disposto a admitir. Recorda o perigo que correram
há poucos séculos as nações européias de ser superadas pelos turcos, e como
parece ridícula em nossos dias semelhante idéia. As raças, mais civilizadas, às
chamadas caucasianas, derrotaram os turcos completamente na luta pela
existência. Lançando um olhar pelo mundo, sem deter-se num futuro longínquo,
quantas raças inferiores serão prontamente eliminadas por outra que alcançaram
um grau de civilização superior!” (Apud. Prenant, 1940, p. 139).
É por isso que ele também irá afirmar
que preferia descender dos “selvagens” do que dos macacos (Marco, 1987; Darwin,
1974). Enfim, o homem não descende dos macacos, mas dos “bárbaros” (Darwin,
1974; George, 1985), ou seja, semelhantes aos nativos das tribos indígenas. O
pensamento de Darwin, além do racismo e do sexismo, mostra sua indissolúvel
ligação com os valores e idéias dominantes, o que foi transposto para suas
teses biológicas. Eis que a obra de Darwin carrega não somente o “espírito da
época”, é um homem de seu tempo, mas também o faz de uma determinada forma,
pois nem todos nessa época eram racistas e sexistas e muito menos produziam
teses supostamente científicas que reforçariam tais preconceitos. Um pensador
só tem valor se for ousado, se tiver coragem para dizer a verdade, mesmo que
seja impopular ou contra as idéias dominantes, caso contrário não passa de um
ideólogo. Assim, A Origem das Espécies é que nem a “roupa nova
do imperador”: todo mundo elogia, mas ninguém a vê realmente. Mas a razão não é
a cegueira dos olhos e sim algo bem pior: a mente limitada pelas relações
sociais, pela hipocrisia, pressão, conveniência ou censura social, tornando-a
incapaz de transcender sua limitada condição social e histórica e dizer que a
roupa invisível do imperador é uma farsa. Daí a produção de pensadores que não
pensam como deveriam pensar. Outros tantos como Darwin.
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NOTAS
1] “Fala-se que Marx admirava o trabalho de Darwin, ao
ponto de ter-lhe pedido para prefaciar um dos volumes de sua maior obra, O
Capital. Evidentemente, o pedido teria sido recusado” (Marco, 1987, p. 75).
[2] Até se atribui a Marx e Engels, sem nenhuma
fundamentação ou evidência a favor, a ideológica tese da “herança dos
caracteres adquiridos”: “Marx e Engels opuseram à concepção do desenvolvimento
do mundo orgânico o papel decisivo do meio, das condições da vida material no
desenvolvimento dos organismos. Desenvolvendo a tese da dependência dos
organismos das condições exteriores, das condições de existência, Marx e Engels
assinalaram a faculdade de adaptação dos organismos ao meio mutável e a
hereditariedade dos caracteres adquiridos. Salientaram que a mudança das
qualidades hereditárias sob a influência do meio era um fato inelutável. Essas
conclusões de Marx e Engels foram confirmadas e desenvolvidas pela teoria
biológica de Mitchurine” (Fataliev, 1966, p. 63). Também o “caso Lysenko” e o
“caso Vavilov” foram expressões das mudanças políticas soviéticas a partir do
stalinismo e dos interesses da URSS, promovendo uma apropriação indevida das
obras de Marx e Engels, o que até hoje é objeto de controvérsias, equívocos e
incompreensões, tal como as de Buican (1987).
[3] Inclusive devido à influência de Engels, de sua filha
Eleanor Marx e Edward Avelling, admirador e autor de textos e livros sobre
Darwin (chegando a defender que este era um ateísta, ao contrário das intenções
do próprio autor de A Origem das Espécies).
[4] A leitura da carta, a qual não citamos por questão de
espaço, mostra bem que não se trata de O Capital e sim um texto que aborda a
própria obra de Darwin e realiza ataques diretos á religião, sendo este último
elemento a razão da recusa de Darwin, pois provocaria desagrado “a alguns membros
da minha família” (apud. Montalenti, 1984).
[5] “É provável que Marx e Engels tenham tratado o
darwinismo, em público, com muita discrição devido a três fatores. Como ele era
alvo de ataques dos setores muito conservadores, como a Igreja, é possível que
não gostariam de se verem confundidos com eles. Em segundo lugar, seria
necessário levar adiante a crítica propondo um mecanismo evolutivo alternativo.
Engels tentou, mas não conseguiu senão emitir algumas opiniões muito genéricas.
A crítica radical poderia ser mal interpretada, como se a idéia de evolução
fosse também equivocada. Finalmente, é provável que alguns aspectos da teoria
fossem considerados importantes ou estratégicos: a idéia de que até a natureza
tinha um mecanismo de mudança, que existia uma contradição fundamental na
natureza, semelhante à luta de classes” (Marco, 1987, p. 76-77). Aqui cabe
deixar claro que a crítica ao darwinismo não é referente à existência de
evolução das espécies e sim ao mecanismo que permite tal evolução, a luta pela
vida e a sobrevivência dos mais aptos, através da seleção natural via herança
dos caracteres adquiridos. Existiram várias outras teorias da evolução e muito
mais profícuas que a de Darwin.
[6] A crítica radical de Marx a Malthus, bem como sua
teoria da população totalmente oposta à concepção abstrata e burguesa do
economista inglês, deixa claro o que significa a vinculação de Darwin e Malthus
(Marx, 1985; Viana, 2006).
[7] Um terceiro elemento seria o não reconhecimento por
Darwin da existência de “mudanças bruscas”, o “salto dialético” (Prenant,
1940), o que, no entanto, só é concebível numa dialética metafísica e
pseudomarxista fundada em leis, tal como desenvolvida originalmente por Engels
e aperfeiçoada por Lênin, Stálin e seguidores, mas bem distante do pensamento
de Marx e das tendências marxistas que não abandonaram a essência da dialética.
[8] É preciso destacar aqui as reais diferenças entre
Marx e Engels, em todos os aspectos, inclusive no político e no que se refere à
dialética, mas especialmente, no presente caso, no que diz respeito ao caso do
darwinismo. Marx tinha uma posição muito mais crítica em relação a Darwin, e
daí a divergência entre ambos na polêmica em relação a Pierre Trémaux e o fato
de que foi Engels que enviou carta entusiasmada para Marx sobre o lançamento
de A Origem das Espécies, e a resposta de Marx demorou cerca de um
ano. A posição de ambos sobre o darwinismo tinha diferenças, sendo Engels mais
favorável a Darwin do que Marx. Apesar das críticas de Marx, Engels irá
defender Darwin de críticas semelhantes realizadas por Düring (Engels, 1979) em
1878 e assumirá um tom mais crítico posteriormente, em 1883 (Engels, 1985) cuja
base já estava nas cartas de Marx e em visível contradição com o livro
anterior, sendo que afirmações que criticava em Düring são retomadas, embora a
origem fosse Marx. Sem dúvida, o motivo deve ter sido a polêmica com Düring,
mas demonstra falta de rigor e coerência. A raiz da diferença se encontra na
radicalidade de Marx e ao fato de sua obra ser expressão teórica do
proletariado, o que o tornava não tão influenciável pelo desenvolvimento das
ciências naturais e o sucesso de determinadas ideologias, como era Engels.
[9] A obra de Bourdieu (1984) sobre o “campo
científico” ganha relevância aqui, desde que se supere o seu reprodutivismo e
perceba que além das lutas intercientíficas existem também a luta de classes e
esta se sobrepõe aquela.
Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Darwin Nu. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico, v. 9, p. 1-1, 2009.
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