Cascão e o Carrinho Ecológico:
Um Fragmento do Mundo Axiológico e Ideologêmico de Maurício de Sousa*
Nildo Viana
As histórias em quadrinhos sempre pareceram inocentes, ingênuas e bem distantes das questões sociais, políticas e existenciais mais amplas. Essa percepção das HQ é que se revelou ingênua. Contudo, apenas a parte das HQ considerada adulta ou mais politizada recebeu atenção de pesquisadores e críticos. Este é um procedimento comum e que ocorre com a análise de outros produtos culturais. Em todos estes casos, o que temos é uma dificuldade de perceber que os mais simples, superficiais e aparentemente ingênuos produtos culturais manifestam valores, concepções, sentimentos, interesses, etc.[1].
Isto pode ser explicado, por um lado, pela forma simples da mensagem e a aparência de distanciamento em relação ao mundo social e político e, por outro lado, pode ser atribuído ao fato de que reproduz de forma naturalizante o cotidiano da sociedade capitalista, o nosso cotidiano, que é, como já dizia Kosik (1986), a nossa “atmosfera natural” e isto se reproduz nas representações cotidianas (Viana, 2008). Uma terceira determinação desse processo é o envolvimento dos leitores (e também dos pesquisadores) com o universo ficcional expresso em determinada produção quadrinística (e que também vale para outras formas de obras fictícias, como o filme, por exemplo), o que o prende à sua dinâmica e lhe afasta da realidade social.
Porém, é fundamental desnaturalizar a naturalização, mostrar os vínculos sociais existentes nos produtos culturais. O objetivo do presente texto é justamente pegar uma HQ considerada como sendo uma das mais simples e ingênuas e mostrar a mensagem que ela repassa, os valores, sentimentos e concepções que estão materializadas nela. Escolhemos uma estória do personagem Cascão, para demonstrar isso.
Em qualquer banca de revista ou mesmo em um supermercado, ao lado da fila, dispostos estrategicamente para o consumidor realizar um consumo extra enquanto aguarda sua vez, pode-se comprar a revista “Cascão”, número 49, por R$3,20, de janeiro de 2011. Foi o que ocorreu com o autor deste texto. Ainda no carro, indo para casa, já que outra pessoa dirigia, deu para ler a primeira estória desta Revista em Quadrinhos, intitulada “O Carrinho Ecológico”. Uma história simples e ingênua, tanto que é difícil ler, já que não possui nenhum atrativo maior e seriam as crianças que teriam maior facilidade de envolvimento com leitura de estória tão superficial, que é seu “público-alvo”. Claro que era a estória principal, o carro-chefe da revista, e por isso as outras eram bem piores e mais superficiais, uma até irritante pela repetição, o que deve ser feito por alguma estratégia para o público infantil, que é subestimado e “infantilizado” pelos produtores destas HQ.
Porém, a leitura preliminar foi suficiente para a realização de uma análise, pois, após ela, uma breve reflexão já mostra a manifestação de valores, sentimentos e concepções na estória. Uma segunda leitura já traz novos elementos e aspectos não percebidos imediatamente. Isso é o que demonstraremos a seguir.
A estória é bem simples: Cascão está brincando com um “carrinho” (uma roda puxada por um arame) e encontra Cebolinha, com um carrinho com controle remoto. Cascão pergunta onde ele conseguiu aquele “carrinho maneiríssimo” e Cebolinha diz que ganhou de “blinde” dos cereais Klic Kloc. Cascão corre para sua casa e abre uma caixa, duas e nada de vale-brinde. Pede outra caixa para mãe, que diz que só após comer o prato cheio poderá lhe dar outra, e ao terminar, ela aparece com cereais de outra marca, mais barata, e ele explica que não se trata de gosto repentino por cereais e sim a busca de um vale brinde para ganhar um carrinho. A mãe diz que não comprará outra e habilmente o convence de que possui criatividade para criar seu próprio carrinho “ecologicamente correto”.
Ele tenta, assim, a produzir seu próprio carrinho, e logo aparece novamente diante de Cebolinha, com um carrinho maior do que o deste e com controle remoto, resultado de um trabalho com um carrinho velho e estragado e outras sucatas. Cascão volta a se encontrar com Cebolinha e mais três amigos que admiravam o carro deste último. Eles perguntam se também ganhou um vale brinde e ele diz que não, pois seu carro não é tão pequeno, e Cebolinha retruca dizendo que o dele não é pequeno, mas, retoma Cascão, não é “tão radical” e mostra suas proezas, correr mais rápido, etc. Porém, Cebolinha logo descobre a farsa, pois trata-se de um robô e estava amarrado com uma linha de pesca que o fazia correr junto com seu dono e ele passou a ser motivo de riso de todos.
Porém, de repente surge Xabéu Lorota, nova personagem, que elogia a iniciativa de Cascão, ao mostrar criatividade e criar um carro ecológico. Desde sua chegada, os coraçõezinhos vermelhos dos meninos mostram sua admiração por Xabéu Lorota e tão logo ela elogia o carro de Cascão, todos dizem concordar com ela, “a gente tinha achado a mesma coisa” (Cebolinha). E, após isto, ela dá um beijo no Cascão. Este reclama da mentira dos demais sobre terem “achado isso” e depois todos saem em debandada com desculpas diferentes.
Na manhã seguinte, na casa de Xabéu Lorota, o seu irmão, Xaveco, aparece reclamando da “muvuca lá fora” que deveria ser por causa dela e ela vê, pela janela, uma fila de meninos com carrinhos, aviões e outros brinquedos produzidos por eles e um diz: “o meu submarino feito com potes de iogurte é mais criativo! Não mereço um beijinho!”. A estória termina com o mesmo quadro que ainda tem Xabéu Lorota dizendo: “crianças, grunff!”.
Assim, parece ser algo extremamente simples e ingênuo, algo infantil e que nada tem de político, valorativo, etc. No entanto, há muito mais por detrás da estória, pois ela manifesta valores, concepções e sentimentos que colocaremos a seguir. Comecemos pelo título da estória: “o carrinho ecológico”. Pois bem, um carrinho de brinquedo ecológico aponta para um determinado ideologema[2], que é derivado da ideologia do reformismo ecológico[3]. O reformismo ecológico aponta para a necessidade de realizar reformas ou mudanças no sentido de diminuir o impacto ambiental do capitalismo e não o combate às suas raízes concretas, a acumulação de capital. O que é valorado na estória, inclusive pela personagem Xabéu Lorota, da qual voltaremos a discutir, e assume importância central na história, é o fato do carrinho ser “ecológico”, na verdade, produzido de forma ecológica (com sucatas, materiais que foram “reciclados”). Obviamente que o carro, em si, continua sendo um valor, e não se pode esquecer que é o principal símbolo de consumo do capitalismo. Da mesma forma, está ligada à socialização diferencial do sexo masculino e por isso todos os personagens masculinos valoram o carro e alguns em especial (Cascão e Cebolinha), o que já remete para valores burgueses, ligado ao processo de competição, e algumas expressões deixam claro os valores e a competição: “carro maneiríssimo”, a disputa em ser menor ou maior, ser “radical”.
Porém, além do título, outros elementos estão presentes. A trama toda tem um tema fundamental: a competição. A competição é um dos elementos fundamentais da sociabilidade capitalista e se manifesta o tempo todo na estória. Inicia com a competição entre Cascão e Cebolinha em torno do carro imaginário e do carro brinde, o que faz Cascão buscar um carro igual e armar uma farsa para enganar Cebolinha e os demais e assim ganhar a competição. A ânsia de Cascão não é ter um carrinho para brincar e sim ganhar a competição do Cebolinha, e isto fica explícito com a farsa montada. A competição continua na busca de Cebolinha em provar a farsa. A irrupção de Xabéu Lorota faz nascer nova competição, desta feita pelo seu afeto e beijos. E a competição é naturalizada com a frase final de Xabéu: “crianças, grunff!” ou seja, isso é natural das crianças, ou seja, temos aqui um ideologema.
Assim, a estória repassa o ideologema de que a competição social é natural. Ela se revela em outros momentos, tal como no diálogo da mãe de Cascão com ele, no qual ele tenta convencê-la a comprar mais cereais Klik Kloc e ela tenta convencê-lo de usar sua “criatividade”. Isto mostra o caráter axiológico da estória, perpassada pela naturalização e valoração da competição. Sem dúvida, o momento da criatividade e da preocupação ecológica poderia ser um contraponto. A criatividade, no entanto, é apenas um meio para ganhar a competição e pode ser uma farsa. Quando Xabéu Lorota diz que nunca viu nada “tão criativo” quanto o carro-robô de Cascão, e, ainda ecológico, parece mostrar um caráter axionômico. Porém, esta preocupação é apenas desta personagem, que é marginal nas estórias e é retratada de uma determinada forma, que mostraremos adiante. Quanto à valoração da criatividade no caso da mãe de Cascão, ela é apenas uma forma de manipular o filho, na qual mostra um determinado tipo de relação mãe-filho. No entanto, essa valoração oportunista da criatividade é acompanhada de um ideologema, pois ela diz que a criatividade é um “dom”, que Deus deu para Cascão. Ou seja, a criatividade não é uma potencialidade humana, presente em todos os seres humanos, mas um atributo individual de Cascão, doado por Deus, sendo, portanto, um fragmento da ideologia do dom, ou “aptidão natural”[4], ou seja, um ideologema. Da mesma forma, os valores axionômicos são marginalizados e secundarizados, submetido a valores axiológicos e hegemônicos, como o da competição. A criatividade é apenas um meio para ganhar a competição.
Outros valores e ideologemas são apresentados durante a estória. Este é o caso do consumo como valor. O carrinho é um brinde e não uma mercadoria, mas é uma estratégia dos cereais Klic Kloc para aumentar sua vendagem (assim como os brinquedos do McDonald), uma estratégia mercadológica. Isto é apresentado de forma naturalizante e a oposição da mãe de Cascão é apenas para evitar mais gastos. Quando Cebolinha conta como achou o vale-brinde, um dos seus colegas afirma: “meu sonho de consumo!”. Assim, há o valor do consumo sendo reproduzido pelos personagens. O brinquedo – no caso o carrinho – é um objeto de consumo e Cascão quer consumir cereais para obter um carrinho e ganhar a competição de Cebolinha. Após comer duas caixas de cereais e pedir a terceira, que a mãe cede, embora de outra marca, e depois da reclamação diz que dará outra da marca Klic Kloc após terminar aquela. Não há nenhum questionamento por parte da mãe dos efeitos de tal exagero alimentar e de suas motivações (ganhar carro para ganhar competição). Novamente, os fins justificam os meios, outro ideologema subentendido na estória. Competição e consumo se complementam.
Porém, outros elementos axiológicos e ideologêmicos estão presentes na mesma estória. É o que se vê na imagem das personagens femininas. É possível ver uma diferença entre a imagem da mãe Cascão e a de Xabéu Lorota. A mãe de Cascão é desenhada, nesta estória, o que ocorre quase sempre, com um lenço na cabeça e avental. Ela é retratada como “dona de casa”, exercendo o papel de mãe e dona de casa. Xabéu Lorota é uma jovem de 16 anos apresentada como sendo a paixão dos meninos e estando de acordo com o padrão dominante de beleza, loira, formas bem traçadas. Num caso, temos uma jovem, objeto de desejo sexual, e, noutro, a dona do lar, que é para onde se refugia Cascão. Uma concepção ideologêmica das mulheres é apresentada na história (e não só nessa).
Xabéu "Lorota" |
Obviamente que a busca constante em ser “politicamente correto” se faz presente sob a forma de ideologemas na estória. Isso possivelmente foi produto das críticas endereçadas a Maurício de Sousa, que buscou diminuir os aspectos mais condenados de suas estórias e personagens, desde as críticas moralistas até as de “esquerda”. Obviamente que hoje não é o indivíduo Maurício de Sousa, mas a sua equipe, que conta, obviamente, com sua supervisão. Em entrevista o próprio Maurício de Sousa mostra sua valoração do “politicamente correto”[5]. Sem dúvida, basta o exemplo da mudança dos pais de Cascão, antes semelhantes ao filho em sua falta de higiene, que depois se tornaram “pais normais”.
A Família "Cascão" antes do "politicamente correto" |
Xabéu Lorota entra nesse processo. Para quem se acostumou com o chavão de que as loiras são burras, encontra-se uma que é apresentada como sendo inteligente. A sua suposta inteligência é representada, nessa história, por estar sempre com um livro na mão. Ela diz que estava lendo um livro e ouviu a discussão entre os meninos e quando seu irmão a chama para ver a fila de meninos na frente de sua casa, ela estava lendo. Porém, é possível pensar que o “politicamente correto” é imposto externamente, muito mais do que algo autêntico. Pois ao mesmo tempo em que Xabéu é apresentada como sendo inteligente e fazendo discurso sobre criatividade e ecologia, seu sobrenome é “Lorota”, cujo significado é depreciativo, tal como no dicionário, sendo compreendido como “conversa fiada”. Ou seja, a suposta “inteligência” é contradita pelo sobrenome, tal como também as afirmações politicamente corretas sobre ecologia e criatividade, o que significa que são valores menores no conjunto da estória. Isto mostra a possível preocupação com o “politicamente correto” e ao mesmo tempo uma contradição em relação ao mesmo, já que, no fundo, isso foi imposto externamente, muito mais do que uma necessidade do autor e sua equipe. Daí as ambigüidades e contradições nas estórias.
Desta forma, determinados ideologemas e valores são identificados na estória. Eles são acompanhados de alguns sentimentos também perceptíveis. O sentimento mais perceptível e presente na estória é um dos mais incentivados pela sociedade moderna e pela competição social, o sentimento da inveja. Cebolinha é o primeiro a ser invejado, devido seu carrinho, embora isso não fique tão explícito, e, posteriormente, Cascão com seu carro se torna alvos de inveja, tal como se nota na afirmação do personagem Jeremias: afirma “esse seu carrinho faz o do cebolinha morrer de inveja”. O caso do sentimento por Xabéu Lorota é outro exemplo.
Desta forma, um pequena estória, infantil e aparentemente inocente, revela valores, ideologemas, sentimentos. Uma leitura atenta revela estes elementos. Uma parte do que é repassado pela história é inintencional e outra parte é intencional. A grande questão é que as estórias são lidas e nem sempre são apreendidas nestas mensagens, mas elas estão presentes e muitas vezes naturalizam as relações sociais existentes, os valores dominantes, os ideologemas existentes. E a naturalização de algo que é a sociabilidade capitalista tende a reforçar sua reprodução e de sua conseqüência mais nefasta, a mentalidade burguesa (Viana, 2008b). Além disso, as revistas em quadrinhos em geral, e esta em particular, também exercem um papel na socialização das crianças, e, por conseguinte, de sua formação individual, embora o grau possa variar dependendo dos indivíduos, classes, etc. Porém, nesta estória, assim como é o mais comum nas histórias da Turma da Mônica, a competição é naturalizada, e o exemplo clássico é a eterna competição entre Cebolinha (com apoio de Cascão) contra a Mônica e a vitória repetida desta, naturalizando também uma determinada relação de que um é sempre ganhador e outro sempre perdedor, da mesma forma que em Tom e Jerry, Pica-pau, Pernalonga, Papa Léguas e Coiote, Piu-Piu e Frajola, entre outros, com as devidas diferenças. A naturalização da competição é acompanhada pela naturalização do vencedor e do perdedor, como se alguns nascessem para ganhar e outros para perder. A naturalização pode ser intencional ou não, mas o que interessa é que ela ocorre e reproduz o existente, com tudo que isso significa.
Referências:
BIHR, Alain. Os Desafios Atuais do Movimento Operário. Disponível em: http://www.pucsp.br/neils/downloads/v7_artigo_alain_bihr.pdf Acessado em: 03/02/2011
BISSERET, Noëlle. A Ideologia das Aptidões Naturais. In: Durand, José Carlos Garcia (org.). Educação e Hegemonia de Classe. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
CHESNOIS, F. “Socialismo o barbarie”: las nuevas dimensiones de una alternativa http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-42/socialismo-o-barbarie-las-nuevas-dimensiones-de-una-alternativa Acessado em: 03/02/2011
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. 2ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.
SOUSA, Maurício de. Entrevista. In: Visuais e Barulhos, num. 51, Dezembro de 2009. Acessível em: http://www.ruadebaixo.com/mauricio-de-sousa.html Acessado em 03/02/2011.
VIANA, Nildo. Como Assistir um Filme? Rio de Janeiro, Corifeu, 2009.
VIANA, Nildo. Senso Comum, Representações Sociais e Representações Cotidianas. Bauru, Edusc, 2008a.
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. São Paulo, Escuta, 2008b.
[1] Esse é o caso do filme, mesmo os seus filmes mais triviais passam mensagens, composta por valores, concepções, sentimentos, etc. (Viana, 2009) e cabe ao pesquisador analisar todos os produtos culturais e não apenas aqueles considerados “superiores”, mesmo porque, os considerados “inferiores” atingem grande parte da população.
[2] Ideologema é um fragmento de ideologia, uma sentença ou pequena parte de uma ideologia extraída de seu contexto e simplificada, o que é muito comum no processo de passagem do pensamento complexo para as representações cotidianas.
[3] Para uma crítica do reformismo ecológico. Veja também: Bihr (2011) e Chesnois (2011).
[4] Cf. Bisseret (1979).
[5] Maurício de Sousa, fala, em entrevista, que seu filho mais novo é “politicamente correto” (isto mostra seus valores) e queria criar um personagem que o retratasse, “Marcelinho o certinho”, o que o filho não aceitou (Sousa, 2011).
* PARTE DO LIVRO "QUADRINHOS E CRÍTICA SOCIAL. O UNIVERSO FICCIONAL DE FERDINANDO (Rio de Janeiro: Azougue, 2013).
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Muito bom
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