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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Reflexões sobre a Música Popular Brasileira


Reflexões sobre a Música Popular Brasileira


Nildo Viana




A definição do que é MPB é bastante complexa e depende do ponto de vista teórico-metodológico de quem a faz, do ponto de vista do pensamento complexo, ou dos valores e concepções, do ponto de vista das representações cotidianas.

A MPB não constitui um "gênero musical", tal como o samba, o jazz, o frevo, etc. Por isso, a MPB é um conjunto de manifestações musicais (incluindo gêneros ou mesmo mistura de gêneros) que convencionalmente passou a ser classificada como tal. Esse processo classificatório é de origem social e os meios de comunicação de massas, os críticos musicais, os produtores, as gravadoras, etc., são os principais agentes deste processo classificador.

A partir desta classificação social podemos definir a MPB, pois se ela é produto de uma classificação social, então é a partir disto que podemos entender o que vem a ser MPB. É claro que a classificação social é re-classificada, principalmente por indivíduos, mas as idiopatias não são critério para uma definição de algo abrangente como a música popular brasileira. Assim, discordamos das definições daqueles que definem MPB pelo que querem que seja a MPB e não pelo que ela é efetivamente. Efetivamente, a MPB é um produto de uma classificação social que se solidificou, tornando-se um fenômeno social existente de fato a partir dos parâmetros classificatórios instituídos socialmente.

A Música Popular Brasileira é o conjunto das manifestações musicais que não são folclóricas (de autores desconhecidos e repassados oralmente de geração a geração) e nem erudita (ou clássica) e que é brasileira, isto é, produzida por compositores/cantores brasileiros, em língua portuguesa, e que possui abrangência em território nacional, não sendo, pois, puramente regional (de apenas uma região), embora possa ter origem regional. A expressão “popular” é utilizada não no sentido do público em geral, mas no sentido de que possui ressonância em um determinado público, geralmente o das camadas mais intelectualizadas da população. Isto significa que a Música Popular Brasileira é toda e qualquer música que possui abrangência nacional e produzida por brasileiros em língua portuguesa e que possui um público intelectualizado e pertencente prioritariamente às classes sociais privilegiadas. Assim, ela inclui um conjunto de gêneros, tal como samba, frevo, rock, bossa-nova, etc.

Assim, podemos perceber que a MPB é uma manifestação musical que tem sua fonte nas relações sociais, na emergência da reprodutibilidade técnica da música e do nascimento da indústria cultural, bem como de classes sociais que se tornaram o público destas produções. A indústria cultural, desde o seu nascimento, embora passe de uma forma rudimentar para uma complexa, sempre constituiu uma divisão social no mercado consumidor, isto é, cria faixas de consumidores para determinadas mercadorias, inclusive as mercadorias culturais. Assim, a MPB se distingue de outras manifestações musicais, tanto estrangeiras quanto brasileiras. A distinção em relação à música estrangeira se encontra no fato de que esta é produzida por pessoas de outra nacionalidade que não a brasileira e em língua que não a portuguesa. A distinção entre a MPB e outras manifestações musicais brasileiras já é mais complexa, pois ela se distingue da música regional (ou “folclórica”) por possuir abrangência nacional, e da música popular regional (que é a música regional que consegue espaço na indústria cultural em determinada região, que não são, evidentemente, as nas quais se concentram a indústria cultural) por sua abrangência superior. Também se distingue da música nacional, que é toda música produzida em território nacional. Neste caso tem a distinção com a chamada “música brega”, que é uma música comercial temporária produzida para o público composto pelas classes sociais mais pobres e que tem como característica a baixa qualidade, no sentido técnico e também no sentido político, nas letras e melodias.

Sendo assim, não tem muito sentido alguém apresentar uma “convicção pessoal” do que é a MPB, já que é um fenômeno social. A visão pessoal de um fenômeno social acaba sendo arbitrária ao desconhecer este caráter social. Daí a irrelevância das definições idiopáticas da MPB.

Outra coisa é a avaliação da MPB, isto é, a visão pessoal sobre a “qualidade”, o que é boa e má MPB. Sem dúvida, muitos podem considerar que boa MPB é a bossa nova, outros o samba, ou, ainda, o Rock brasileiro. O gosto é produzido socialmente, tal como coloca Bourdieu (1) e está relacionado com o processo de formação social dos indivíduos, incluindo sua classe social.

Os critérios de qualidade variam de acordo com os valores dos indivíduos e por isso não cabe aqui discutir a avaliação da MPB, a não ser a avaliação da MPB como um todo. Para muitos, a MPB ainda é um fetiche, principalmente para aqueles que possuem posições elitistas, tal como se pode ver no último Festival da TV Cultura (2). Isto está presente até mesmo nos cantores e compositores que povoam os festivais de MPB e fazem canções para criticar aquilo que eles consideram com não sendo da MPB ou que, segundo eles, pode até fazer parte dela mas não possui qualidade. Desde Rita Lee (veja letras abaixo) passando por Alceu Valença em festival da década de 80 criticando o Rock Brasileiro, até chegar ao último festival da TV Cultura, onde o Rock e a música brega foram atacados, passando por Eduardo Dusek e suas críticas à música sertaneja e brega em geral nos anos 80. Rita Lee pode ser considerada a iniciadora deste processo:



ARROMBOU A FESTA

Rita Lee e Paulo Coelho

Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu

Com a música popular brasileira?

Todos falam sério, todos eles levam a sério

Mas esse sério me parece brincadeira

Benito lá de Paula com o amigo Charlie Brown

Revive em nosso tempo o velho e chato Simonal

Martinho vem da Vila lá do fundo do quintal

Tornando diferente aquela coisa sempre igual

Um tal de Raul Seixas vem de disco voador

E Gil vai refazendo seu xodó com muito amor

Dez anos e Roberto não mudou de profissão

Na festa de arromba ainda está com seu carrão

Parei pra pesquisar

Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu

Com a música popular brasileira?

Todos falam sério, todos eles levam a sério

Mas esse sério me parece brincadeira

O Odair José é o terror das empregadas

Distribuindo beijos, arranjando namoradas

Até o Chico Anísio já bateu pra tu batê

Pois faturar em música é mais fácil que em TV

Celly Campello quase foi parar na rua

Pois esperavam dela mais que um banho de lua

E o mano Caetano tá pra lá do Teerã

De olho no sucesso da boutique da irmã

Bilú, bilú, fafá, faró, faró, tetéia

Severina e o filho da véia

A música popular brasileira

A música popular

Sou a garota papo firme que o Roberto falou

Da música popular

O tico-tico nu, o tico-tico cu, o tico-tico pá rá rá rá

Música popular

Olha que coisa mais linda, mais cheia de...

Música popular

Mamãe eu quero, mamãe eu quero

Mamãe eu quero a música popular brasilera

Pega, mata e come!



ARROMBOU A FESTA II

Rita Lee e Paulo Coelho

Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu

Com a música popular brasileira?

Quando a gente fala mal, a turma toda cai de pau

Dizendo que esse papo é besteira

Na onda discoteque da América do Sul

Lenilda é Miss Lene, Zuleide é Lady Zu

Pra defender o samba contrataram Alcione

É boa de piston mas bota a boca no trombone

No meio disso tudo a Fafá vem dar um jeito

Além de muita voz, ela também tem muito peito

E a música parece brincadeira de garoto

Pois quando ligo o rádio ouço até Cauby Peixoto

Cantando: "Conceição!"

Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu

Com a música popular brasileira?

Quando a gente fala mal, a turma toda cai de pau

Dizendo que esse papo é besteira

O Sidney Magal rebola mais que o Matogrosso

Cigano de araque, fabricado até o pescoço

E o Chico na piscina grita logo pro garçon

Afasta esse cálice e me traz Moët Chandon

Com tanto brasileiro por aí metido a bamba

Sucesso no estrangeiro ainda é Carmen Miranda

E a Rita Lee parece que não vai sair mais dessa

Pois pra fazer sucesso arrombou de novo a festa

Ziri, ziriguidum, skindô, skindô, lelê

Sai da frente que eu quero é comer

A música popular brasileira

Lady Laura

A música popular

Parabéns a você, parabéns para a...

Música popular

Música popular

Oh, eu te amo, oh, eu te amo, meu amor

Ai Sandra Rosa Madalena

O meu sangue ferve pela...

Música popular

Oh, fricote, eu fiz xixi

Fricote, eu fiz xixi

Na música popular brasileira

Corre que lá vem os "hôme"!



A Música Popular Brasileira passou por diversas fases, com altos e baixos. A atualidade da MPB é de decadência. A crítica de Rita Lee é ao momento dos anos 70, época de música brega e crise da MPB, que só se recuperou nos anos 80 com a emergência do rock crítico da segunda metade desta década, e cai novamente em desgraça dos anos 90 para cá (3). A explicação deste processo nos remete às transformações sociais e o contexto histórico. A tendência é de decadência progressiva da MPB e das manifestações musicais em geral, pois o desenvolvimento tecnológico é acompanhado pela queda na criatividade, ou seja, as potencialidades técnicas se tornam mais amplas ao lado de uma redução da capacidade humana de utilizá-las. Não é sem motivo que o cinema mudo com os recursos limitados produziu obras clássicas e de alta qualidade, enquanto que hoje, com todos os recursos tecnológicos existentes, existe uma completa pobreza da produção cinematográfica (sem esquecer as exceções, é claro). O desenvolvimento tecnológico tem sua fonte na necessidade da reprodução ampliada do capital e permite a reprodutibilidade técnica em alta escala, tal como colocou Walter Benjamin (4). A perda da criatividade também tem fonte social: a necessidade de reprodução ampliada do mercado consumidor e a produção em massa de mercadorias culturais são os elementos fundamentais.



Notas

1- BOURDIEU, P. Gostos de Classe e Estilos de Vida. In: Ortiz, R. (org.). Pierre Boudieu. 2ª edição, São Paulo, Ática, 1994.

2- VIANA, Nildo. O Festival de MPB da TV Cultura. in: http://nildoviana.multiply.com/recipes/item/3

3 – VIANA, Nildo. A Miséria da Música Popular Brasileira. Em: http://www.lainsignia.org/2005/mayo/cul_017.htm

4 – BENJAMIN, W. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. In: Obras Escolhidas, vol. 1, São Paulo, Brasiliense, 1987.

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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo . Reflexões sobre a MPB. Humanidades em Foco, v. 04, p. 6, 2006.

2 comentários:

  1. Olá, gostei das reflexões propostas, porém discordo de um dos pontos abordados. Acredito que a arte não está sofrendo um processo de perda de criatividade devido aos avanços tecnológicos e a cultura de massificação. O que de fato ocorre é que as novas tecnologias proporcionaram um acesso maior a 1) produção artística 2) divulgação artística. Sendo assim, existe um número gigantesco de arte sendo divulgada e promovida, e portanto, mais arte das quais nós não gostamos, seja pela baixa qualidade técnica, seja por motivos culturais referentes a época e classe social. A criatividade ainda está lá, intacta. Mas é mais difícil alcança-la, ou mesmo "criar" a impressão de que ela é mais prevalente sobre outras.

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    1. Olá! Compreendo o seu raciocínio. Porém, considero que há um descréscimo de criatividade no âmbito do que é tema do texto, ou seja, da MPB. Não se trata de crise de criatividade em geral e nem na música em geral, mas no âmbito da MPB, que remete ao capital comunicacional ("indústria cultural"). Esse texto é apenas um artigo de opinião sem maior aprofundamento e desenvolvimento. A definição de MPB, fundamental para entender o argumento sobre criatividade, pode ser vista de forma mais desenvolvida em: https://informecritica.blogspot.com/2020/01/o-misterio-da-mpb.html Por outro lado, há uma queda efetiva de criatividade - e isso em todos os âmbitos - derivado não apenas do desenvolvimento tecnológico (que tem maior impactos em algumas áreas, como a MPB), mas também pelo desenvolvimento capitalista em geral, empobrecimento cultural, mercantilização crescente, etc. É o que se observa, por exemplo, na produção intelectual (filosófica e científica), mas também no cinema, etc. Agradeço a sua opinião! abs.

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