Discurso e Poder
Por Nildo Viana*
O objetivo que nos propomos no presente ensaio é discutir a relação entre poder e discurso, visando analisar mais detidamente as formas de censura de determinados discursos e idéias. O poder censura os discursos, não permite que qualquer idéia venha à tona, mas tão-somente permite a manifestação daquelas idéias que estão de acordo com as relações de poder instituídas em uma determinada sociedade. Além disso, o discurso reproduz o poder, tem um caráter mobilizador, ou seja, age sobre a realidade no sentido de reproduzir/questionar as relações de poder.
O primeiro ponto é definir o conceito de linguagem e realizar a distinção entre este termo e o de discurso. Com o nascimento da lingüística através da obra de Ferdinand de Saussure se tornou comum distinguir entre língua e fala (Saussure, 1995). A primeira se caracteriza por ser uma estrutura formal de caráter sincrônico e a segunda se caracteriza por ser uma manifestação concreta da linguagem. A língua cumpria os requisitos para formar um objeto de estudo que poderia ser decomposto de forma “objetiva” e desta forma se poderia compreender sua estrutura interna. Nascia, assim, o estruturalismo em lingüística e este, posteriormente, invadiria as demais ciências humanas (antropologia, sociologia, filosofia, psicanálise, etc.).
Várias correntes contestaram tal distinção entre língua e fala ou pelo menos o modo de conceber suas relações, isolando uma da outra. A sociolingüística, a psicologia da linguagem, a pragmática, a análise do discurso, entre outras abordagens, apresentaram uma visão diferente a respeito da linguagem.
O filósofo Jean-Jacques Rousseau apresentou uma interessante tese sobre a origem da linguagem. Para ele, a linguagem não surge a partir das necessidades e nem da razão, pois “não se começou raciocinando, mas sentindo. Pretende-se que os homens inventaram a palavra para exprimir suas necessidades; tal opinião parece-me insustentável. O efeito natural das primeiras necessidades consiste em separar os homens e não em aproximá-los” (Rousseau, 1987, p. 163). A partir disso ele conclui que a origem das línguas não se deve às primeiras necessidades dos homens, pois “seria absurdo que da causa que os separa resultasse o meio que os une. Onde, pois, estará esta origem? Nas necessidades morais, nas paixões. Todas as paixões aproximam os homens, que a necessidade de procurar viver força a separarem-se. Não é a fome ou a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera, que lhes arrancaram as primeiras vozes” (Rousseau, 1987, p. 164).
Muitos consideram tais teses ultrapassadas e realmente é difícil sustentar que os sentimentos isoladamente tenham produzido a linguagem e que a necessidade não tenha sido sua condição de possibilidade, mas tais observações possuem um momento de verdade. Um desses momentos é amplamente reconhecido atualmente: o caráter social da linguagem. Esta surge para possibilitar a comunicação humana. A comunicação é uma necessidade dos seres humanos. O processo de humanização do mundo e a constituição da sociedade só se tornam possíveis existindo esta comunicação através da linguagem. A origem da linguagem, portanto, está ligada a necessidade dos seres humanos de realizarem uma associação. Esta necessidade de associação é tanto afetiva, como coloca Rousseau, quanto “material”, negada por ele. Neste sentido, a linguagem possui uma origem e um caráter sociais.
A colocação de Rousseau referente ao fato de que as necessidades materiais de sobrevivência separam os seres humanos não foi fundamentada por ele e isto é suficiente para que a ignoremos. Além disso, o contrário é que é verdadeiro, pois, devido a sua debilidade física em comparação com os demais animais, eles precisam se associar para conseguir os meios de sobrevivência. A caça, por exemplo, só se tornou uma fonte de alimentos graças à eficácia da associação dos caçadores, tal como demonstrou Moscovici (1990).
Mas, enfim, o que é a linguagem? Sabemos que ela tem uma origem social, mas resta esclarecer o que ela é. Podemos dizer que, resumidamente, a linguagem é um conjunto de recursos simbólicos criados pelos seres humanos para possibilitar a comunicação humana e que, portanto, é essencialmente de natureza social. Segundo Sapir, a linguagem “é um método puramente humano e não-instintivo de comunicação de idéias, emoções e desejos por meio de um sistema de símbolos voluntariamente produzidos. Entre eles, avultam primacialmente os símbolos auditivos, emitidos pelos chamados ‘órgãos da fala’” (Sapir, 1980, p. 14). Este autor acrescenta que
“A linguagem escrita, para empregarmos uma frase matemática, é assim uma equivalência termo a termo da sua contraparte falada. As formas escritas são símbolos secundários das formas faladas – símbolos de outros símbolos – mas, não obstante, é tão exata a correspondência que se podem substituir inteiramente aos outros, não apenas em teoria, mas ainda na prática atual dos que só lêem com os olhos, e até talvez em certos tipos de reflexão mental” (Sapir, 1980, p. 22).
Quais são estes recursos simbólicos? São os provenientes fundamentalmente da fala, como coloca Sapir, e também, derivado dela, os da escrita. São os recursos simbólicos utilizados na comunicação humana, isto é, os recursos gráficos e sonoros utilizados para se realizar a comunicação entre os seres humanos.
A linguagem, devido seu caráter social, está submetida ao processo social, possuindo, portanto, a mesma dinâmica, historicidade e singularidade da sociedade onde ela emerge. Assim, linguagem, tal como coloca Fromm (1979), está intimamente ligada à sociedade na qual ela emerge, sendo que existe uma sinonímia entre linguagem e sociedade. A sociedade produz uma linguagem adequada a ela, com um léxico, uma semântica, uma gramática etc. que é específica e socialmente organizada.
Nas sociedades marcadas pela divisão em classes sociais antagônicas e com uma divisão social do trabalho complexa, a linguagem passa a ser perpassada pelos conflitos de classes (Bakhtin, 1990) e pelo que alguns estudiosos chamam de “estratificações sociais da língua” (Guiraud, 1976).
A luta de classes que perpassa a linguagem se dá em torno do significado das palavras e dos demais signos utilizados na comunicação humana. A classe dominante possui o interesse em emperrar um livre desenvolvimento da consciência humana além de um determinado limite. Ela busca, de forma às vezes inintencional, impor sua ideologia, suas concepções, sua mentalidade. As demais classes sociais buscam resistir e as classes exploradas esboçam uma linguagem diferenciada. Entretanto, a diferença de linguagem ocorre no interior de uma totalidade, ou seja, a diferença vem acompanhada por uma semelhança.
O semelhante é a língua e a escrita que em uma determinada sociedade é comum a todas as classes sociais e a diferença se dá em aspectos que produzem uma divisão no interior de uma mesma linguagem. No interior de uma mesma linguagem (não se confundindo esta com uma ideologia) é possível se criar concepções de mundo diferentes. Embora a linguagem seja um obstáculo para o desenvolvimento de uma mentalidade antagônica à concepção de mundo dominante, ela permite que isto ocorra exatamente por que possui brechas que possibilitam sua transformação. Apesar da língua-padrão (ou “culta”) ser imposta socialmente pelo Estado e instituições auxiliares, especialmente a escola, existe uma língua diferenciada, chamada de linguagem coloquial (ou popular), que é muitas vezes vista com preconceito (Viana, 2004). Segundo M. Bakhtin:
“Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Conseqüentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir” (Bakhtin, p. 46).
Em toda sociedade dividida em classes sociais existe uma mentalidade e uma ideologia dominantes e estas produzem uma atribuição de sentido às palavras que também é dominante. Mas o fato de haver uma atribuição de sentido dominante significa que existe atribuição (ou atribuições) de sentido não-dominante(s) ou dominada(s). Neste sentido, a “plurivalência do signo”, segundo Bakhtin, ou a “polissemia da palavra”, segundo Régine Robin (1977), expressam esta visão de que existe um processo de significação e ressignificação das palavras e que tal processo é marcado pelas relações e lutas sociais.
Disto se conclui que a linguagem não é neutra e o reconhecimento disto é fundamental para se compreender a mensagem veiculada por intermédio da linguagem. O caráter social da linguagem repercute sobre a análise da linguagem e sobre as explicações desta. A partir do reconhecimento do caráter social da linguagem se tornam insustentáveis os procedimentos analíticos da lingüística estruturalista de Saussure e seus seguidores, pois ela se revela meramente formal e descritiva, enquanto que uma teoria deve ser explicativa.
A partir destas observações sobre a linguagem, podemos prosseguir nossa reflexão sobre o discurso e sua relação com o poder. O próximo passo consiste em definir o que é o discurso. Discurso e linguagem é a mesma coisa? O conceito de linguagem é muito amplo, pois ele se refere a todos os recursos simbólicos (gráficos e sonoros) existentes em uma sociedade para viabilizar a comunicação humana. Além disso, a linguagem, numa sociedade de classes, é perpassada pela polissemia.
O discurso não pode ser definido da mesma forma que a linguagem e isto se deve a três motivos principais: em primeiro lugar, o discurso e a linguagem não são a mesma coisa pelo motivo de que a linguagem é principalmente um meio de expressão enquanto que o discurso é fundamentalmente expressão. Em outras palavras, o discurso se manifesta através da linguagem e a linguagem é o meio de manifestação do discurso. Todo discurso é transmitido através da linguagem, mas a linguagem pode ser portadora de diversos discursos.
Em segundo lugar, linguagem e discurso, numa sociedade classista, se distinguem pelo fato de que a primeira é polissêmica (e é por isso que ela pode ser portadora de diversos discursos) e o segundo é unissêmico, ou seja, possui uma coerência semântica. Se na linguagem uma palavra possui significados diferentes dependendo de quem a profere, no discurso só existe um significado próprio que pode, em certos casos, conviver com diversos significados alheios. Tomemos um exemplo: a palavra economia. Esta palavra pode possuir diversos significados na linguagem corrente, mas no discurso só pode possuir um significado próprio. Na linguagem corrente a palavra economia pode significar: 1) Produção: este sentido da palavra pode ser encontrado em frases do tipo: “o nosso objetivo é estudar a economia (produção) política do signo”; 2) Ciência Econômica: tal significado está presente neste tipo de frase: “a economia (ciência econômica) tem como objeto de estudo a distribuição de riquezas”; 3) Poupança: vê-se este significado expresso nesta frase: “o governo fez uma grande economia (poupança) este ano”; 4) Modo de Produção: este significado pode ser observado nesta frase: “a economia (modo de produção) determina, em última instância, toda a superestrutura jurídica, política e ideológica da sociedade”; 5) Forma de Organização Produtiva e/ou Distributiva das Riquezas: é neste sentido que se entende afirmações do tipo “em uma economia (forma de organização produtiva e distributiva) de mercado predomina a lei da oferta e da procura”; 6) Curso de Economia: tal como se percebe na frase, “ele fez economia (curso de economia) na Universidade de Brasília”.
Portanto, observamos a partir dos exemplos acima colocados que uma palavra na linguagem corrente pode ter mais de um significado e elencamos 6 significados diferentes atribuídos à palavra economia. Uma pesquisa aprofundada poderá descobrir outros significados atribuídos a esta palavra. E num discurso isto pode ocorrer? Sem dúvida, em um discurso a mesma palavra pode ter mais de um significado. Isto ocorre pelo motivo de que um discurso é composto por elementos internos e externos. Os elementos internos são a parte do discurso que apresenta suas características próprias, as atribuições de significado que lhes são própria, os elementos constituídos pelo próprio discurso. Os elementos externos são elementos auxiliares extraídos da linguagem existente (tradição, cultura popular, concepções filosóficas, políticas, religiosas, etc.).
Isto pode ocorrer sob diversas formas. Um elemento auxiliar pode se transformar em um elemento interno no decorrer do processo de formação de um discurso. A palavra “entretanto” é em todos os discursos um elemento auxiliar, mas se um filósofo criar uma “filosofia do entretanto” e fazer divagações sobre esta palavra e lhe atribuir um significado mais amplo do que o comum, então ela se torna, no discurso deste filósofo, um elemento interno. A expressão “clareira”, por exemplo, é uma palavra comum e que na maioria dos discursos geralmente assume a posição de elemento externo, mas na filosofia de Heidegger isto se altera e a palavra ganha um significado e importância que lhe torna um elemento interno do seu discurso. Daí a importância do desenvolvimento histórico de um discurso.
Outro caso é quando num determinado grupo social uma palavra possui um significado bastante difundido e alguém realiza uma ressignificação ou mutação de sentido da palavra, mas mantém o uso da palavra no sentido tradicional. É isto que ocorreu com a palavra alienação no discurso de Marx, por exemplo. Marx utilizou o termo alienação no sentido tradicional que lhe era atribuído na filosofia alemã (principalmente por Hegel e pelos neo-hegelianos) em revezamento com o sentido novo que ele mesmo atribuiu ao termo (Viana, 1995). O mesmo ocorre quando um marxista utiliza a expressão economia como sinônimo de modo de produção e como sinônimo de ciência econômica, ou seja, usa o termo como elemento interno do discurso marxista e como elemento externo, auxiliar, o que significa usar o termo em dois sentidos diferentes, um de acordo com o discurso e outra de acordo com um dos significados da palavra na linguagem comum.
O conjunto dos elementos internos de um discurso forma a sua estrutura. O conjunto de elementos auxiliares (externos) forma a sua conjuntura. A estrutura do discurso é composta por seus elementos intrínsecos e permanentes e a conjuntura por seus elementos auxiliares, retirados da linguagem cotidiana ou de outros discursos, e passageiros, não sendo parte fixa do discurso. As unidades do discurso (as palavras, os conceitos, as noções, etc.) são estruturais ou conjunturais. O caráter destas unidades (estruturais ou conjunturais) e o seu sentido são definidos de acordo com a estrutura do discurso, ou o que podemos chamar de contexto discursivo. Mas este papel das unidades do discurso pode ser alterado com o desenvolvimento deste discurso. Entretanto, e é aqui que reside uma das diferenças fundamentais entre linguagem e discurso, pois neste último um termo só pode ter um significado estrutural e é aí que se encontra o seu caráter unissêmico. O discurso é unissêmico em sua estrutura, embora possa ser polissêmico em seus elementos auxiliares (conjuntura).
Em terceiro lugar, o discurso não é tão amplo quanto a linguagem. A fronteira que separa a linguagem e o discurso não é muito fácil de se ver, mas, devido ao que foi dito anteriormente, podemos colocar o seguinte: a linguagem, tal como foi acima definida, pode ser subdividida (linguagem religiosa, científica, filosófica, popular, etc., bem como em suas subdivisões, as linguagens especializadas no interior da ciência, por exemplo) e isto significa que nela convive o geral e o particular, mas o discurso só enfatiza o que é particular. Na linguagem há a heterogeneidade e no discurso há a homogeneidade. Na linguagem em geral há a polissemia e no discurso há apenas a unissemia, pelo menos em sua estrutura Sem dúvida, o discurso é uma forma de manifestação da linguagem, embora seja uma forma particular de manifestação e é desta particularidade que vem sua definição e distinção.
Existiram poucas tentativas de definição do discurso. Uma das primeiras tentativas neste sentido foi a de Émile Benveniste: “deve-se entender por discurso em sua extensão mais ampla: toda enunciação que pressupõe um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de influenciar o outro de algum modo” (apud. Kuroda, 1983, p. 121). Para Foucault, o discurso é “um conjunto de enunciados que se remetem a uma mesma formação discursiva” (apud. Brandão, 1997, p. 28). Pêcheux, por sua vez, opõe sistema da língua e discurso:
“O sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não se pode concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso: a língua se apresenta, assim, como a base comum de processos discursivos diferenciados, que estão compreendidos nela na medida em que (...) os processos ideológicos simulam processos científicos” (Pêcheux, 1988, p. 91).
Estas abordagens do discurso possuem seus momentos de verdade, mas em sua essência e totalidade não dão conta de oferecer uma definição adequada de discurso. Benveniste define o discurso pela existência de uma interlocução na qual o locutor busca influenciar o ouvinte. A interlocução é uma característica da comunicação humana e por isso não pode caracterizar o discurso, uma modalidade específica de sua manifestação. O elemento complementar, a persuasão, é característico de alguns discursos (político, religioso, científico, etc.), mas não de todos, tal como se pode exemplificar pelo discurso de pessoas indecisas ou de outras sobre assuntos desconhecidos. A concepção foucaultiana dilui o discurso na “formação discursiva”, uma abstração metafísica. A definição de Pêcheux, por sua vez, parte de uma separação metafísica entre língua e discurso, que mantém a dicotomia saussuriana entre uma estrutura formal invariante, a língua, e suas manifestações concretas, a fala. O discurso estaria no segundo caso, o que demonstra que Pêcheux não percebeu que o primeiro caso só existe na concepção ideológica de Saussure e nunca na realidade concreta. Partindo da percepção da insuficiência destas concepções, retomemos nossa definição de discurso.
Podemos definir o discurso da seguinte maneira: é uma manifestação concreta e delimitada da linguagem. As suas partes constitutivas são a estrutura e a conjuntura e o caráter de sua estrutura é unissêmico. Isto quer dizer que o discurso é algo concreto e delimitado, ou seja, é sempre o discurso de um autor, de uma escola, de um grupo social, etc., que possui uma estrutura unissêmica e é uma totalidade. Assim, o discurso é uma manifestação particular, específica, concreta da linguagem e que possui uma estrutura unissêmica, sendo, pois um todo coerente e organizado, embora o nível de coerência e organização varie dependendo do discurso. A coerência e organização dependem de quem profere o discurso.
É importante não perder de vista que um discurso é sempre o discurso de alguém. O discurso é sempre manifestação discursiva de quem o profere. Ele é a manifestação de um ser consciente – a consciência, segundo Marx, não é nada mais do que o ser consciente, que é um ser social (Marx e Engels, 1992) – por conseguinte, o indivíduo, grupo, etc., que profere o discurso sempre o faz a partir de sua posição no conjunto das relações sociais e da forma como concebe sua posição. O discurso, por conseguinte, é constituído socialmente e para descobrir seu processo de produção é preciso compreender o seu produtor. O discurso não é uma “entidade abstrata”, mera peça de uma unidade mais ampla chamada “formação discursiva”, como em Foucault, e sim uma manifestação concreta da linguagem, mas não é derivado e constituído pela linguagem e sim pelos seres sociais que usam a linguagem sob uma forma concreta e particular. Pensar que o discurso é um produto da linguagem ao invés dos seres sociais (mesmo que a linguagem crie obstáculos para a livre manifestação deles) é nada mais do que uma concepção fetichista da linguagem.
Quais são as condições de possibilidade para a formação de um discurso? Existem duas condições básicas: o contexto social e o contexto cultural. A condição de possibilidade de um discurso depende fundamentalmente do contexto social, ou seja, depende das transformações ou contradições existentes no conjunto das relações sociais. Este contexto social é o conjunto das relações sociais no qual emerge aquele que profere o discurso a partir de sua posição em tal contexto, o que implica tudo que é derivado daí (interesses, valores, etc.). As condições de possibilidade do discurso científico (que, por sua vez, carrega uma multiplicidade de discursos no seu interior) estão ligadas ao processo histórico de constituição da sociedade capitalista. A ascensão da moderna sociedade capitalista trouxe consigo um enorme desenvolvimento das forças produtivas e a necessidade de aumentar o controle sobre o meio ambiente visando à maximização do lucro (o que proporciona o desenvolvimento das ciências naturais) e sobre a sociedade para conservá-la e lhe permitir um desenvolvimento estável (o que proporciona o desenvolvimento das ciências sociais). Isto significa que é a luta de classes em um determinado período histórico que torna possível a formação do discurso científico. Mas uma vez instituído, o discurso tende a se cristalizar, tal como a sociedade que lhe produziu, tal como Fromm (1979) destacou se referindo à linguagem.
Entretanto, para que esse discurso possa existir é necessária outra condição: o contexto cultural. Ora, o discurso científico não poderia surgir imediatamente do contexto social, pois é necessária a mediação de formas de pensar, de palavras, de concepções. A sociedade capitalista surge dos escombros da sociedade feudal, mas a ciência não poderia derivar diretamente da teologia, que era a forma dominante de ideologia dominante no feudalismo. O combate entre burguesia e nobreza feudal forjou as armas culturais que a primeira utilizaria para a combater a segunda e posteriormente formar sua própria forma de ideologia e seu próprio discurso. Estas armas foram retiradas da sociedade escravista que havia criado a filosofia (Viana, 2000). O renascimento e o iluminismo produziram o contexto cultural necessário que possibilitou a superação da teologia e para a formação da ciência. Além disso, há a fonte representada pelos elementos apontados por Fromm, a língua e suas características próprias, que, devido sua homologia com a sociedade que a produz, também cria determinações na formação de um discurso.
Portanto, o contexto social e o contexto cultural formam as condições de possibilidade de formação de um discurso. Mas tanto um quanto o outro são formas de expressão da luta de classes e isto significa que as condições de possibilidade de um discurso estão indissoluvelmente ligadas ao desenvolvimento histórico das lutas de classes e cada discurso corresponde ao interesse de uma ou outra classe em luta. Ou seja, não se pode deixar de lado o fato de que o discurso é um produto social, isto é, uma produção dos indivíduos que pertencem a determinados grupos sociais. Assim, o processo de constituição de um discurso possui “múltiplas determinações”, sendo que o contexto social é sua determinação fundamental e o contexto cultural sua determinação formal, embora exista uma influência recíproca entre ambos. Mas isto é realizado efetivamente pelos indivíduos, seres humanos concretos, que através de seu processo histórico de vida são formados por estes contextos, mas através da especificidade de cada vida individual, o que permite múltiplas formas de discursos, principalmente derivados de grupos sociais nos quais eles estão inseridos ou envolvidos, fundamentalmente nas classes sociais (Marx & Engels, 1992).
O discurso possui duas partes constitutivas: a estrutura e a conjuntura. Estas partes, por sua vez, possuem os termos (palavras, noções, conceitos, etc.) como unidades constitutivas. Na estrutura do discurso a ligação entre os termos ocorre de forma articulada e na conjuntura de forma desarticulada. Esta articulação pode ser espontânea ou planejada. A estrutura do discurso é unissêmica e a conjuntura é polissêmica e ela pode ser coerente ou não com a estrutura. Em alguns discursos predominam a estrutura e em outros a conjuntura, dependendo do seu nível de articulação e organização.
O sentido das palavras estruturantes do discurso devem ser descobertas na sua articulação interna e o sentido das palavras conjunturais do discurso remete ao seu papel na totalidade do discurso. Em outras palavras, para se compreender o sentido de uma palavra (o que significa realizar um estudo semântico) é preciso nos remeter ao contexto discursivo no qual tal palavra está inserida. Portanto, para se entender a unidade do discurso é preciso compreender sua totalidade e para se compreender esta é necessário compreender aquela. Quando se focaliza as unidades do discurso (os termos) se faz um estudo semântico e quando se focaliza sua totalidade (estrutura, conjuntura) se faz uma análise do discurso. Entretanto, ambos os procedimentos são necessários e se complementam.
Entretanto, um discurso é estruturado no interior de um contexto social e cultural, sendo, pois, perpassado pela luta de classes e sendo assim a totalidade do discurso está inserida numa totalidade mais ampla, que é a totalidade da sociedade que lhe produz e determina. Este é um ponto essencial para a compreensão do discurso e, portanto, para a sua relação com o poder. Desta forma observamos que o discurso possui uma estrutura, que é o seu conteúdo, a concepção que ele carrega, possui uma conjuntura, que são os elementos da linguagem que servem de auxílio para a sua transmissão.
Como se manifesta a luta de classes no discurso? Ele se manifesta de acordo com as relações de poder na sociedade, o que significa que existe a supremacia da classe dominante, que se manifesta sob várias formas. Iremos destacar tal supremacia para depois apontar para o processo de resistência realizado pelas classes exploradas.
Para analisar a relação entre discurso e poder podemos lançar mão de um conjunto de contribuições, tais como as da análise do discurso, Bourdieu, Foucault, Bakhtin, Fromm, entre outros. Alguns destes autores se referem ao discurso propriamente dito, outros abordam a linguagem, isto é, um fenômeno mais amplo. No entanto, consideramos que a discussão referente ao problema da linguagem e poder também se aplicam ao caso particular do discurso e por isso iremos apresentar ambos os casos, mas compreendendo que a discussão referente ao fenômeno mais amplo – a linguagem – se aplica ao discurso.
Comecemos pela contribuição da análise do discurso. Existe uma discussão sobre o discurso que busca superar a concepção apresentada pela lingüística estruturalista, entendendo-o como uma ação social, realizada por um “sujeito” (indivíduo, grupo social etc.). Assim, o discurso é sempre proferido por alguém. Ele não é autônomo e nem é neutro. Todo discurso é discurso de alguém e a compreensão das razões do discurso nos leva a buscar compreender quem o proferiu e em que condições sociais ele foi produzido. A partir destas colocações já podemos deixar claro a divergência com a perspectiva da lingüística estruturalista, tal como fundada por Saussure (1995) e desenvolvida por seus continuadores.
Estas idéias estão presentes na contribuição de algumas abordagens da lingüística que estão mais próximas de uma perspectiva sociológica, em especial a teoria da enunciação ¾ tal como representada por Mikhail Bakhtin (1990) ¾ e da análise do discurso. Bakhtin irá trazer para a esfera da linguagem a idéia de luta de classes e assim rompe com a idéia de pretensa inocência do discurso, pois ele é perpassado (até em suas unidades mais simples, tal como o signo) pelos conflitos de classes e, portanto, possui caráter social e está intimamente ligado com as relações de poder na sociedade.
A análise do discurso, por sua vez, nos trará diversas contribuições. Esta se caracteriza, entre outras coisas, em romper com a dicotomia rígida entre língua (estrutura invariante da linguagem) e fala (manifestação concreta da linguagem) inaugurada pela lingüística estruturalista de Saussure: “embora reconhecendo o valor da revolução lingüística estruturalista provocada por Saussure, logo se descobriram os limites dessa dicotomia pelas conseqüências advindas da exclusão da fala do campo dos estudos lingüísticos” (Brandão, 1997, p. 9).
O discurso é produzido e reproduzido socialmente e seu estudo, portanto, deve incorporar não apenas sua estrutura formal, mas principalmente o seu caráter social. Porém, nem sempre os adeptos da análise do discurso conseguiram efetivar este projeto. Coube à chamada “escola francesa da análise do discurso” levar esta perspectiva até suas últimas conseqüências e isto proporcionou, segundo Brandão (1997), a demolição do muro que separava lingüística e sociologia.
A escola francesa de análise de discurso nasce da tentativa de articulação entre lingüística, marxismo e psicanálise e tem como característica articular “o lingüístico com o social” (Brandão, 1997, p. 17), trabalhando de forma interdisciplinar ao tomar em consideração as contradições de diversas ciências humanas (história, sociologia, psicologia, etc.). Porém, a análise do discurso busca se distinguir das demais correntes da lingüística e para fazer isto deve incluir novas dimensões, tal como colocou Maingueneau (apud. Brandão, 1997), a saber:
1. O quadro das instituições em que o discurso é produzido, as quais delimitam fortemente a enunciação;
2. Os embates históricos, sociais, etc. que se cristalizam no discurso;
3. O espaço próprio que cada discurso configura para si mesmo no interior de um interdiscurso.
Portanto, temos aqui uma concepção que remete ao estudo da instituição onde o discurso é produzido, aos conflitos históricos e sociais, além de levar em consideração a configuração do espaço próprio de um discurso no contexto de um meio discursivo.
Neste momento devemos colocar em discussão a relação entre discurso e poder. Nesta discussão iremos retomar algumas considerações de Foucault sobre este tema, lembrando que ele exerce uma grande influência sobre a escola francesa de análise do discurso. Segundo Foucault,
“Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (Foucault, 1996, p. 8-9).
Assim, o poder impede a manifestação livre do discurso. Cria um processo de exclusão através da interdição e também (no caso da oposição entre razão e loucura) da separação e rejeição.
Porém, não devemos esquecer as diferenças entre Foucault e outras abordagens do discurso, tais como as de Bakhtin e algumas tendências da análise do discurso. Foucault apresenta uma concepção metafísica de poder (Viana, 2000), pois ele está difuso na sociedade e está em todo lugar, sendo mais uma relação do que uma propriedade (Foucault, 1986; Foucault, 1983). Em Bakhtin, por exemplo, existe o poder, mas ele não é autônomo e sim a incorporação da dominação de classe que também se encontra na esfera do discurso. A fonte da diferença, neste caso, está no estruturalismo de Foucault e no marxismo de Bakhtin.
Mas precisamos também analisar o processo de censura do discurso, ou seja, como tal processo é concretamente realizado. Foucault trata disto, ao colocar que em nossa sociedade existem procedimentos de exclusão e interdição, mas também da separação e da rejeição. Esta é a esfera que produz a segregação da loucura. Mas, além destas, existe também a “vontade de saber”, a busca da verdade que delimita o verdadeiro e o falso. Segundo Foucault,
“Dos três sistemas de exclusão que atingem o discurso, a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade, foi do terceiro que falei mais longamente. É que, há séculos, os primeiros não cessaram de orientar-se em sua direção; é que, cada vez mais, o terceiro procura retomá-los, por sua própria conta, para, ao mesmo tempo, modificá-los e fundamentá-los; é que, se os dois primeiros não cessam de se tornar mais frágeis, mais incertos na medida em que são agora atravessados pela vontade de verdade, esta, em contrapartida, não cessa de se reforçar, de se tornar mais profunda e mais incontornável” (Foucault, 1996, p. 19).
Mas quem efetiva isto? Com que objetivo? De que forma? Tais questões, do nosso ponto de vista, devem ser respondidas em uma concepção não-foucaultiana. É preciso perceber que a abordagem de Foucault possui uma limitação que está no cerne do seu próprio discurso. Tal limitação está nas características próprias do discurso filosófico, que se constitui com um saber reflexivo e especulativo, não chegando nunca ao fenômeno concreto (Viana, 2000). Isto é reforçado por sua concepção considerada “estruturalista”, que cria um obstáculo para se perceber os agentes e produtores do discurso e suas lutas.
De qualquer forma, a relação que Foucault faz entre discurso e poder ¾ que pode muito bem ser integrada numa concepção conflitual fundamentada na luta de classes, tal como expresso na obra de Bakhtin e na escola francesa de análise do discurso, que lança mão explicitamente da obra de Foucault ¾ é de fundamental importância para se compreender o engendramento de um discurso no interior de uma instituição.
Segundo Foucault, toda forma de saber é produto das relações de poder e um “novo poder” gera um “novo saber”. Assim se pode dizer que o poder sobre os “loucos” gera a psiquiatria, o poder exercido sobre os estudantes a pedagogia, etc. Assim, Foucault nos oferece concreticidade quando se trata de “discursos específicos”, aqueles que são produzidos e reproduzidos em determinadas instituições. Portanto, segundo a abordagem foucaultiana, o discurso é produzido no interior de uma instituição e por isso possui características próprias em cada instituição. Isto significa que existem formas de discurso que correspondem a formas de poder. Temos as instituições sociais que criam e controlam determinadas formas de discurso e impedem a manifestação de outras formas.
Erich Fromm (1979) nos oferece, através de sua tentativa de síntese do pensamento de Marx e Freud e de sua contribuição original, alguns elementos para pensarmos a censura na esfera do pensamento, da consciência. Segundo Fromm, toda sociedade apresenta um filtro social que permite a consciência de determinadas experiências ou não. Isto quer dizer que tal filtro social é condição de possibilidade do discurso e simultaneamente o seu censor, ou seja, ele não só determina o que pode e dever ser dito como também o que não deve e não pode ser dito, sendo, ao mesmo tempo, coercitivo e repressivo, positivo e negativo.
Erich Fromm coloca três elementos que segundo ele compõem este filtro social. O primeiro elemento é o sistema conceptual produzido em determinada sociedade. Fromm afirma que
“Para que qualquer experiência chegue à consciência, deve ser compreensível segundo as categorias em que o pensamento consciente está organizado. Só posso adquirir consciência de qualquer ocorrência, dentro ou fora de mim, quando ela se relaciona com o sistema de categorias dentro do qual se fazem as minhas percepções. Algumas dessas categorias, como tempo e espaço, podem ser universais, e constituir categorias de percepção comuns a todos os homens. Outras, como a causalidade, podem ser válidas para muitas, mas não para todas as formas de percepção consciente. Outras categorias são ainda menos gerais e diferem de cultura para cultura. Numa cultura pré-industrial, por exemplo, as pessoas podem não atribuir a certas coisas um valor comercial, ao passo que no sistema industrial isso não ocorrerá. De qualquer modo, a experiência só pode adquirir consciência sob a condição de ser percebida, relacionada e ordenada em termos de um sistema conceptual e de suas categorias. Esse sistema é, em si, o resultado da evolução social. Toda sociedade, pela sua prática de vida e pelo seu modo de relações, de sentir e perceber, desenvolve um sistema, ou categorias, que determinam as formas de percepção, ou consciência. Esse sistema trabalha, por assim dizer, como um filtro socialmente condicionado: a experiência não pode atingir a consciência se não se atravessar esse filtro” (Fromm, 1979, p. 110-111).
Há outro elemento de censura que se encontra na linguagem. Existem certas culturas, segundo Fromm, que a língua não fornece expressão para determinados fenômenos. No entanto, este é apenas um dos aspectos presentes na censura lingüística. Outros elementos seletivos e censuradores da língua se encontram em sua sintaxe, sua gramática e pela etimologia de suas palavras. Segundo Fromm, retomando Whorf, “a totalidade da linguagem representa uma atitude de vida, é uma expressão congelada da experimentação da vida de um certo modo” (Fromm, 1979, p. 112). Fromm cita como exemplo a preferência, em nossa sociedade, por substantivos ao invés de verbos, pois estes expressam atividades e aquelas propriedades, o que está de acordo com uma sociedade em que o ter (sociedade fundada na propriedade privada, na acumulação e no consumismo) predomina sobre o ser.
Outro elemento do filtro social é a lógica. Esta é considerada como “natural e universal”, mas é apenas expressão de determinada formação social. Este é o caso da lógica aristotélica (formal) que predomina em nossa sociedade e que subordina as outras formas lógicas, tal como a lógica paradoxal (dialética), fazendo com que o princípio da identidade reine absoluto e ao mesmo tempo obscureça o princípio da contradição.
Mas existe um terceiro elemento do filtro social que é mais importante. Ele é constituído pelos “tabus sociais”. Eles apresentam determinadas idéias e sentimentos como sendo impróprios, perigosos, proibidos e os impedem de chegar ao nível da consciência. Desta forma, segundo Fromm, a consciência sofre uma censura da língua, da lógica e dos tabus sociais.
Assim, vemos concretamente o processo de censura da consciência. O indivíduo está submetido aos limites impostos por sua língua, sua lógica e pelos tabus sociais. Possui uma dificuldade lingüística e lógica de manifestar um discurso diferente e ainda tem os tabus sociais que reprimem as tentativas de se desvencilhar dos dois primeiros obstáculos anteriores. Podemos dizer que estes elementos presentes na consciência também estão presentes nas formas de discurso existentes em nossa sociedade.
Assim, o discurso é sempre um determinado discurso. Aqui podemos retomar a contribuição de Foucault sobre a interdição, a segregação, a rejeição. A classe dominante predomina em todas as instituições sociais, comandando o processo de produção e reprodução do discurso. O discurso científico, o discurso político, o discurso religioso etc., são controlados por aqueles que detêm o poder. Tomemos o exemplo do discurso científico. Não é qualquer discurso que consegue o status de científico e nem que atinge a legitimidade em sua esfera. O discurso científico delimita o seu campo de atuação e se auto-define, excluindo tudo o que escapa da camisa de força que ele produz. A ciência passa a ser cercada de um conjunto de critérios definidores (os chamados “critérios de cientificidade”), técnicas, objetivos, formas de procedimento, que tem o efeito de impedir a manifestação de um discurso crítico. A epistemologia e a metodologia são partes deste processo de interdição no discurso científico. Para muitos, por exemplo, o marxismo e a psicanálise, devido ao caráter subversivo do primeiro e do potencial crítico do segundo, não são discursos científicos, pois, para uns, não são “neutros” e, para outros, não podem ser “refutados” por pesquisas empíricas (não há como refutar a teoria do valor-trabalho ou a teoria do inconsciente através de dados empíricos). A interdição do discurso marxista e psicanalítico vem acompanhada pela rejeição destes e outras formas de discurso. Mas, além disso, atua a legitimação de uma forma de saber pelos especialistas nele, tal como colocou Bourdieu. Este autor contribui de forma especial quando alerta para o fato de que os discursos não servem somente à classe dominante, mas também aos especialistas que os produzem (embora devamos acrescentar que tais especialistas, ao produzirem os seus discursos de acordo com os seus interesses, reproduzem os interesses da classe dominante, o que o próprio Bourdieu reconhece). Segundo Bourdieu,
“As ideologias devem a sua estrutura e as funções mais específicas às condições sociais da sua produção e da sua circulação, quer dizer, às funções que elas cumprem, em primeiro lugar, para os especialistas em concorrência pelo monopólio da competência considerada (religiosa, artística etc.) e, em segundo lugar e por acréscimo, para os não-especialistas. Ter em mente que as ideologias são sempre duplamente determinadas – que elas devem as suas características mais específicas não só aos interesses das classes ou das frações de classe que elas exprimem (função de sociodicéia), mas também aos interesses específicos daqueles que as produzem e à lógica específica do campo de produção (comumente transfigurado em ideologia da ‘criação’ e do ‘criador’) – é possuir o meio de evitar a redução brutal dos produtos ideológicos aos interesses das classes que servem (efeito de ‘curto-circuito’ freqüente na crítica ‘marxista’) sem cair na ilusão idealista a qual consiste em tratar as produções ideológicas como totalidades auto-suficientes e autogeradas, passíveis de uma análise pura e puramente interna (semiologia)” (Bourdieu, 1989, p. 13).
Bourdieu também considera que existe uma homologia entre o campo da produção ideológica e o campo da luta de classes, sendo que o primeiro realiza uma “eufemização” do segundo, realizado “uma imposição mascarada”, não percebida nem pelos seus produtores. Assim, o discurso especializado reproduz as taxinomias políticas sob um sistema de classificação aparentemente neutro e legítimo (filosófico, jurídico, religioso etc.). No caso específico do discurso científico, temos uma disputa na esfera científica (ou, segundo linguagem de Bourdieu, “campo científico”, que mereceria, por sua vez, uma análise do discurso...) que define o que é ciência e o que é legítimo (Bourdieu, 1994). Nesta disputa, o discurso científico se assume enquanto “verdadeiro”, “objetivo”, criando a ilusão da “ausência do sujeito” (Greimas, 1976).
Assim, Foucault e Bourdieu nos fornecem elementos para pensar a produção do discurso como produto das relações de poder na sociedade. Aqui podemos nos reencontrar também com Bakhtin e a teoria da luta de classes em torno do signo. Também nos reencontramos com a tese de Ardiner a respeito dos grupos silenciados. Segundo esta teoria, os grupos dominantes na sociedade silenciam a voz dos grupos dominados e a voz destes ¾ quando aparece, nos raros casos em que isto ocorre ¾ o faz sob a linguagem própria dos dominantes. Este silenciamento dos grupos dominados (Ardiner, apud. Moore, 1991) ou o predomínio da classe dominante na esfera do discurso (Bakhtin, 1990) são elementos que podem ser, juntamente com a tese de Bourdieu, integrados numa análise que se utiliza da concepção foucaultiana de discurso em sua relação com o poder.
No entanto, a resistência também ocorre na esfera do discurso. A resistência se forma a partir tanto no interior do próprio discurso dominante (científico, religioso, jurídico, artístico etc.) como também contra ele. No primeiro caso, muitas vezes o discurso crítico acaba sucumbindo e sendo assimilado pelo discurso dominante e, no segundo, ele é marginalizado socialmente, pois se institui fora das instituições sociais. Um exemplo do primeiro caso podemos encontrar no marxismo e sua relação com o discurso científico. O discurso científico possui uma formação conservadora por natureza, expressa em alguns de seus princípios, tais como o da neutralidade, mas também em outros elementos, como sua identificação com o empírico, retirando da análise do real a categoria de possibilidade, e, por conseguinte, a sua historicidade.
O marxismo, ao contrário, nega a neutralidade (considerando ela impossível e ao mesmo tempo indesejável em certos casos, pois o que é obstáculo ao desenvolvimento da consciência não são os valores em si e sim determinados valores, especialmente os valores burgueses) e coloca como fundamental a categoria da possibilidade e a historicidade do real. No entanto, o marxismo acabou penetrando nas instituições acadêmicas e aí houve uma verdadeira luta cultural, onde, de um lado, os representantes das instituições e dos interesses da classe dominante buscaram rejeitar o marxismo ou assimilá-lo, transformando-o em mais uma forma, entre outras, de discurso científico.
É assim que Marx se torna um “clássico da sociologia” sem nunca ter sido sociólogo, bem como da economia, da ciência política, da filosofia. Aqui reside mais uma diferença entre marxismo e ciência: ele ao buscar abarcar a totalidade da vida social, torna todo o existente como seu domínio temático, não cabendo, tal como colocou Korsch (1977), em nenhuma das “gavetas” entre as intituladas ciências humanas, pois ele “passeia” por todas, não sendo um discurso especializado sobre uma parte recortada da realidade tal como as diversas disciplinas científicas. Ele foi integrado ao discurso dominante ou rejeitado, como não-científico.
O próprio marxismo teve consciência disto e isto foi expresso através de diversas formas. Para alguns, como Kautsky (1980), tratava-se de distinguir entre “ciência burguesa” e “ciência proletária”, bem como para vários pensadores do fim do século 19 e início do século 20. Esta solução, aparentemente agradável, pois atraía para o marxismo o status (socialmente supervalorizado) de ciência e ao mesmo tempo o distinguia da ideologia científica burguesa, apenas facilitou o processo de assimilação do marxismo pelo discurso dominante. Foi isto que permitiu o surgimento do chamado “marxismo acadêmico”, inteiramente subordinado ao discurso científico e, portanto, já totalmente assimilado pelo seu adversário. Daí nasceu a nova resistência, já esboçada por Karl Korsch, que já afirmava que o marxismo não poderia ser considerado uma ciência, no “sentido burguês do termo”. Posteriormente, outros marxistas irão retomar tal distinção visando impedir tal assimilação, tal como Fougeyrollas (1990), que afirmou que “o casamento do marxismo com as ciências sociais é tão impossível quanto o do fogo com a água”.
Mas outras formas de discurso crítico também tiveram experiências semelhantes, tal como o caso do discurso feminista, anarquista, entre outros. O discurso feminista, por exemplo, conseguiu perceber o sexismo no discurso científico, “as críticas feministas revelaram numerosas instâncias em que as hipóteses que orientavam os cientistas condicionavam o tipo de resultados (ou realidades) que a pesquisa poderia produzir. E, porque essas hipóteses orientadoras representam perspectivas masculinas predominantes, as realidades científicas tipicamente suprimem a voz feminina” (Gergen, 1993, p. 50). No entanto, apesar desta visão crítica da ciência, o trabalho de análise feminista continua na esfera científica e subordinado a ele (reforçado pelos laços institucionais). Uma “epistemologia feminista” continua sendo uma epistemologia e continua no domínio discursivo que busca se desvencilhar, o que significa que a ruptura parcial acaba integrando os “opostos”, limitando a crítica e a superação do discurso dominante.
Assim, o discurso contestador existe e às vezes é subordinado ao discurso dominante, perdendo sua radicalidade, às vezes resiste e cai na marginalidade, às vezes faz compromissos e realiza uma crítica parcial. Ele pode surgir sob diversas formas e possuir um nível mais ou menos elevado de articulação e complexidade (tal como no exemplo do discurso religioso contestador presente nas rebeliões camponesas na época de transição do feudalismo para o capitalismo).
Resta destacar o caráter mobilizador do discurso. Sem dúvida, a relação entre discurso e poder não pode ser vista apenas partindo da visão de como as relações de poder constituem o discurso, mas é preciso perceber também como o discurso reproduz e assume, ele mesmo, a forma de uma relação de poder.
O discurso como sinal de distinção e superioridade social foi analisado por Bourdieu em seus vários escritos. Alguns pensadores já colocaram que o discurso científico produz práticas, técnicas e tecnologias que reproduzem o poder (Marcuse, 1982; Habermas, 1988). Mas esta análise do discurso científico se aplica também ao discurso religioso e a história é pródiga em mostrar o que um discurso pode fazer, tanto no sentido da conservação quanto da transformação. Neste sentido, “saber é poder”, tal como disse Bacon, mas em um duplo sentido.
No entanto, o próprio discurso pode ser uma manifestação do poder. O discurso censurador, por exemplo, é uma manifestação do poder. O discurso é censurado, mas não todo discurso, assim alguns discursos (e podemos dizer que alguns elementos gerais em todos os discursos), principalmente aqueles produzidos por indivíduos das classes exploradas e grupos oprimidos. O discurso da classe dominante e suas classes auxiliares não sofre tanta censura e, na maioria das vezes, são censuradores. Na concepção metafísica de Foucault, a censura simplesmente existe como se fosse algo característico do discurso e não um processo histórico e social. O discurso censurador impede a manifestação de outros discursos, cria determinados discursos e impede/produz determinadas ações. O discurso de um líder fascista é mobilizador e censurador dos discursos opostos.
Assim, o discurso é não só limitado por quem detém o poder, mas ele é reprodutor do poder e uma de suas formas de manifestação. No entanto, não é todo o discurso, mas sim o discurso de quem detém o poder. O discurso dos explorados e oprimidos pode e muitas vezes é um discurso emancipador, quando ele rompe com a censura do discurso dominante ele se transforma num meio de libertação. Por conseguinte, é preciso saber qual discurso e de quem é o discurso para saber de suas tendências, reprodutoras do poder ou questionadoras dele. O discurso de Marx sobre a Comuna de Paris, por exemplo, é emancipador, libertário. Por isso, o discurso pode tanto ser um reprodutor do poder como ser crítico do poder, bem como ser manifestação do poder ou manifestação da luta contra o poder.
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Artigo publicado originalmente na Revista História e Luta de Classes, Rio de Janeiro-RJ, v. 01, n. 02, p. 19-27, 2005 e republicado no livro: VIANA, Nildo. Linguagem, Discurso e Poder. Pará de Minas, Virtualbooks, 2008.
* Professor da UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB – Universidade de Brasília.
Excelente texto. Possibilita se pensar o discurso nao apenas como algo intelectual, neutro, saber manifesto, mas como ideologia, como representando grupos e classes, como sendo valor, e sendo censurado, dominado. Muito bom mesmo.
ResponderExcluirJonas Pureza