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domingo, 6 de janeiro de 2008

Um veredicto sobre a teoria das esferas sociais - Edmilson Marques


Um veredicto sobre a teoria das esferas sociais

Edmilson Marques*

VIANA, Nildo. As Esferas Sociais: a constituição capitalista da divisão do trabalho intelectual. Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.

            Em nenhuma sociedade da história humana a divisão social do trabalho atingiu a amplitude e intensidade como veio atingir na sociedade capitalista. Com o desenvolvimento do capitalismo ampliou-se ao mesmo tempo a especialização do trabalho e em seu interior foram sendo criadas subdivisões. Entre as várias formas assumidas pelo trabalho especializado está o trabalho intelectual, que por sua vez, foi perpassado por um processo de complexificação, fruto da ampliação e aprofundamento da divisão social do trabalho intelectual.
Esse processo mostra a necessidade de compreender o trabalho intelectual e sua dinâmica interna, suas especificidades, seu papel na sociedade moderna e a determinação fundamental que explica as características assumidas por ele no capitalismo. Uma análise desse fenômeno foi publicada recentemente no Brasil, com o título As Esferas Sociais: a constituição capitalista da divisão do trabalho intelectual, produto de uma pesquisa realizada pelo sociólogo e filósofo brasileiro Nildo Viana. Trata-se de um livro de 152 páginas dividido em oito partes. É esta obra que julgaremos no presente texto.
  Como está expresso em seu título, a obra aborda as esferas sociais, concebidas pelo autor como um fenômeno derivado da constituição capitalista da divisão do trabalho intelectual. Em estudos anteriores, Nildo Viana já havia refletido sobre o processo de divisão social que gerou as esferas sociais. Os estudos mais aprofundados sobre este processo foram realizados por Karl Marx, Max Weber e Pierre Bourdieu. Eles são, inclusive, como aponta Nildo Viana, “as fontes inspiradoras” de sua concepção sobre as esferas sociais. A inspiração aqui aludida não quer dizer que os três autores foram tomados indistintamente como pressupostos teórico-metodológicos de sua análise, o que seria uma contradição, tendo em vista a diferença radical de perspectivas entre os três autores. Na verdade, Nildo Viana utiliza alguns elementos das reflexões desses autores para demonstrar o significado das esferas sociais e sua relação com a totalidade da sociedade capitalista. É sobre esta questão que ele debruça-se no primeiro capítulo da obra.
O autor ressalta que Marx não desenvolveu uma teoria das esferas sociais e nem utilizou este nome ou outro semelhante. Contudo, ao apresentar a teoria da historicidade das sociedades humanas e sua evolução histórica assim como a teoria do capitalismo, Marx tratou de forma rigorosa a questão da complexificação da divisão social do trabalho. Esta sua análise é o ponto fundamental na qual se baseia Nildo Viana para entender as esferas sociais. Para tanto, as contribuições de Marx para a articulação da teoria das esferas sociais e pressupostos fundamentais para a discussão de Nildo Viana são: 1) Seus pressupostos teórico-metodológicos, aqui se refere ao método dialético e ao materialismo histórico; 2) Sua teoria do modo de produção capitalista e 3) Suas análises diversas “sobre os agentes ou produtos de uma ou outra esfera social” (p. 10).
Já Max Weber buscou sistematizar suas observações sobre questões específicas das esferas sociais, utilizando inclusive o termo “esferas”, embora também não tenha criado uma teoria das esferas sociais. Nildo Viana retoma os estudos de Weber que tratam da formação das esferas e sua análise sobre estas no contexto desenvolvimento do processo de racionalização da sociedade moderna, gerando, concomitantemente, o processo de especialização. Weber fez estudos gerais sobre as esferas e abordou algumas esferas específicas. São estes estudos que fornecem alguns dos elementos que são utilizados por Nildo Viana para elaborar a teoria das esferas sociais.
Já a principal contribuição de Bourdieu está em seu estudo sobre o que denominou de “campo”. Para Viana, Bourdieu oferece duas contribuições fundamentais: 1) “A tentativa de delimitar o processo de funcionamento e dinâmica interna dos campos” e 2) “Um material informativo que traz e amplia as possibilidades analíticas” (p. 11). Dos três autores citados anteriormente, Viana considera haver limites e problemas nas concepções de Weber e Bourdieu, apesar de não desconsiderar suas contribuições para a explicação que fornece das esferas sociais. É a partir destas considerações iniciais que Nildo Viana vai posteriormente construir a teoria das esferas sociais, iniciando com uma breve introdução onde aborda a inserção das esferas sociais na sociedade capitalista.
Mas, o que são “esferas sociais”? A concepção de esferas sociais desenvolvida por Nildo Viana não pode ser confundida com as “esferas”, segundo a concepção de Weber, e nem com a concepção de “campo”, de Bourdieu. Partindo desta crítica é que Viana observa que as esferas sociais são um fenômeno típico da sociedade capitalista e só existem nesta, sendo expressão da complexificação da divisão social do trabalho e sendo explicadas pelo modo de produção capitalista e seu desenvolvimento.
É sobre esta tese que o autor vai se debruçar na primeira parte de sua obra, apontando a dinâmica do modo de produção capitalista e sua relação com as esferas sociais, sua compreensão sobre o que são as esferas sociais e suas características, a relação das esferas sociais com a intelectualidade, o processo de especialização da ciência e a ampliação da divisão social do trabalho intelectual etc. O papel fundamental das esferas sociais para Nildo Viana é “a reprodução das relações de produção capitalistas” (p. 23). Isso quer dizer que não são autônomas e nem estão livres da dinâmica do modo de produção capitalista, pelo contrário, as esferas sociais atuam sobre sua dinâmica, assim como são determinadas pelo mesmo. A conclusão à qual o autor chega é que as esferas sociais são partes das formas sociais (“superestrutura”) que integram a sociedade capitalista, mas que possuem especificidades.
É sobre estas especificidades que será dedicada a segunda parte do livro. As especificidades de cada esfera social, segundo ele, “manifestam-se através do produto de suas atividades, do seu modus operandi, do seu ethos, seu corpus mentalis (mentalidade), da sua função na sociedade e dos seus espólios[1]” (p. 26). Apesar de distintas e no seu interior haver contradições (incluindo concepções distintas que buscam superar elas próprias), as esferas sociais possuem em comum o objetivo de produção e reprodução cultural voltada para a manutenção do modo de produção capitalista. O papel de produção cultural no interior das esferas sociais deve-se especificamente à classe social que está em suas bases, tratando-se da intelectualidade.
Como colocamos anteriormente, as esferas sociais não são autônomas. Elas integram as relações sociais, o que quer dizer que em sua dinâmica interna reproduz a dinâmica do modo de produção capitalista, manifestando características básicas como a mercantilização, a burocratização e a competição social. A luta de classes também se manifesta em seu interior. Isso coloca a necessidade de compreender o processo que faz emergir a competição em suas relações internas, é o que o autor busca fazer na terceira parte do livro, focando as relações sociais que se estabelece nas esferas sociais.
A competição existente nas esferas sociais é fruto da forma como se organizam, ou seja, internamente se estabelece uma hierarquia entre seus agentes. Esta forma de organização leva alguns indivíduos a possuírem mais privilégios, recursos, espaços institucionais, reconhecimento do que outros. Viana ressalta que essa hierarquia é dos seus segmentos, uma vez que em casos individuais pode ser diferente. É a partir desta discussão que Nildo Viana apresenta uma representação piramidal dos segmentos que compõem as esferas sociais, com intuito de esclarecer os aspectos das relações hierárquicas em seu interior, que tem no topo os hegemônicos e logo abaixo deles os dissidentes. Em seguida há os venais seguidos pelos ambíguos. E em sua base estão os engajados e os amadores.
Os hegemônicos são aqueles que dominam determinada esfera social. Os dissidentes, que estão logo abaixo dos hegemônicos, defendem os mesmos interesses que aqueles. A diferença entre ambos é que estes últimos manifestam uma posição mais crítica à hegemonia estabelecida. Já os venais, que estão logo abaixo destes dois anteriores, têm como principal objetivo buscar dinheiro e poder, o que é feito a partir de sua busca extraesférica, o que quer dizer que seu foco é o círculo externo à esfera social que integra, tal como empresas e meios de comunicação. Outro segmento das esferas sociais é o composto pelos ambíguos, que se caracterizam por ficar entre a esfera que integra profissionalmente e outros espaços (um cientista, por exemplo, que se relaciona com um determinado partido político). E na base da hierarquia piramidal das esferas sociais estão os amadores e os engajados. Estes dois também estão mais distantes da competição interna de uma determinada esfera social. Os amadores, por exemplo, “estão ligados a outras atividades no nível da sobrevivência ou então vivem sob formas precárias como amador, mas seu público é mais restrito” (p. 51). Já os engajados podem ou não ser integrantes das esferas sociais. Na verdade, eles são antiesféricos em sua posição diante da esfera. A questão é que, apesar de participarem de uma determinada esfera social, estão na base da hierarquia, estando marginalizados. Eles não compartilham dos interesses esféricos e assumem uma postura crítica de negação da própria esfera social. Isso ocorre por partirem da perspectiva do proletariado enquanto que os outros partem de uma posição de defesa e reprodução das esferas sociais.
Observa-se, no entanto, que as esferas sociais reproduzem a sociabilidade capitalista e nesse sentido constituem uma hierarquia, uma divisão interna entre seus agentes e uma competição social intensiva. O último aspecto analisado por Viana para compreender a dinâmica das esferas sociais são os mecanismos de competição. O autor ressalta que os “mecanismos de competição” não podem ser confundidos com “estratégias de luta”. O primeiro se refere às “formas de encaminhar a competição social”, já o segundo às “formas de garantir a perspectiva do proletariado no interior das esferas sociais e no conjunto da sociedade” (p. 63). Essa é a questão abordada por Nildo Viana na quarta parte do livro, onde analisa os mecanismos gerais de competição das esferas sociais (competência real, competência formal, competência aparente, reprodução da hegemonia, popularidade, procedimentos institucionais, processo de ataque, originalidade, pseudo-originalidade, o esquecimento das fontes, complementado com as táticas de defesa).
Na parte seguinte, o autor propõe apresentar em linhas gerais “alguns dos aspectos mais determinantes para o processo de emergência das esferas sociais” (p. 81). Sua análise recai aqui mais especificamente sobre o processo inicial de formação das primeiras esferas sociais, buscando apresentar suas determinações e focando a primeira das esferas sociais, a religiosa. O autor faz uma minuciosa análise a respeito de movimentos que ocorreram desde o século XII, que são considerados por ele como os embriões desta esfera social, até chegar ao século XVI quando é dado o passo seguinte na formação da esfera religiosa através da reforma protestante e do anabatismo. É nesse período também que vão se formando outras esferas sociais, a exemplo da esfera artística, científica, técnica e também o que ele considera como semiesfera filosófica.
É a partir deste estudo que Nildo Viana conclui que as esferas sociais são produtos do desenvolvimento do capitalismo, ou seja, elas não surgem de imediato com a emergência do capitalismo. Os elementos que são fundamentais nesse processo se referem à expansão comercial, ao sistema colonial e ao Estado absolutista. A emergência e formação das esferas sociais foi um processo longo, que o autor observa ser caracterizado pela mercantilização, racionalização e burocratização, por conseguinte pela especialização e competição. Esse processo demarca uma sociedade distinta que tem como marco a produção capitalista de mercadorias e como “condição de possibilidade a divisão social do trabalho” (p. 89).
Uma vez que as esferas sociais surgem e vão se ampliando concomitantemente com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, torna-se fundamental abordar a relação entre capital e esferas sociais, como coloca o autor “é com o desenvolvimento do capitalismo que se amplia a divisão social do trabalho e emergem as esferas sociais”. Esta discussão é realizada por Viana na sexta parte do livro que tem como título Capital e Esferas Sociais. Há aí uma análise rigorosa das características da sociedade capitalista, a exemplo da mercantilização e burocratização das relações sociais, do aprofundamento da divisão social do trabalho intelectual que resulta na emergência e ampliação da especialização.
 O estado também é essencial na explicação das esferas sociais. Segundo o próprio autor “o aparato estatal é uma das principais determinações das esferas sociais e em alguns casos assume uma importância primordial” (p. 107). A discussão sobre esta questão é apresentada na sétima parte de sua obra, onde ressalta que outros autores não deram muita importância à atuação do estado sobre as esferas sociais, a exemplo de Weber e Bourdieu. O autor discute as várias formas de atuação do estado sobre as esferas sociais, como as formas de controle direto e indireto, que promove um amplo processo de burocratização. A questão é que a atuação do estado influencia a própria dinâmica interna das esferas sociais, inclusive fortalecendo e ampliando a competição através do controle de algumas instâncias de formação e reprodução, financiamento, etc., processo esse pautado por investimentos em políticas culturais.
Nildo Viana finaliza a obra com uma última parte onde aborda as esferas sociais e sua relação com a luta de classes. Aqui o leitor poderá finalmente perceber de forma explícita, embora em todo o livro isso já tenha ficado claro, a diferença radical entre sua análise das esferas sociais com a perspectiva e concepção de Bourdieu e Weber, autores que, apesar de evidenciarem vários elementos das esferas sociais que podem ser interpretados como integrantes da luta de classes, não concebem a luta de classes como questão fundamental em suas análises, o que promove o seu ocultamento, abolindo-a de suas interpretações.
O autor demonstra que a luta de classes é inerente à história das esferas sociais. Perpassa por seu processo de formação e desenvolvimento, se reproduz nas relações internas das esferas sociais e se manifesta em suas produções culturais. Se há luta, há resistência interna e momentos de desestabilização das próprias esfera sociais. A questão é que “as esferas sociais são constituídas por frações da classe intelectual, relacionadas com a burguesia, burocracia, etc.” (p. 120). A intelectualidade, por sua vez, é uma classe que auxilia a burguesia no processo de manutenção e reprodução do modo de produção capitalista e faz isso através da produção cultural.
No interior da intelectualidade, no entanto, há indivíduos que integram o segmento que está nas bases da hierarquia piramidal, a exemplo dos engajados. Estes, por partirem da perspectiva do proletariado, assumem uma posição distinta do que as esferas sociais exigem de seus integrantes. Criam estratégias de luta que são distintas dos mecanismos de competição sendo responsáveis pela manifestação da luta de classes no interior das esferas sociais. Sua referência é a classe operária revolucionária e seu objetivo contribuir para a emancipação humana, que só pode ser efetivada com a abolição do capitalismo, e concomitantemente das próprias esferas sociais, e efetivação da autogestão social.
Bom, apresentamos algumas das principais teses que estão presente em As Esferas Sociais. Agora podemos apresentar um veredicto a respeito do objetivo que o próprio autor esperava de sua obra, qual seja, “uma compreensão mais profunda das esferas sociais e sua relação com a sociedade capitalista”. Antes, porém, é preciso apresentar uma observação geral sobre a obra. A primeira questão que emerge desta leitura é o rigor do autor em sua análise, na precisão conceitual e metodológica; sua abordagem apresenta as esferas sociais como resultado de múltiplas determinações. Além disso, há uma originalidade em sua análise, pois ultrapassa os limites que Weber e Bourdieu apresentaram na abordagem que realizaram das “esferas” e do “campo”, respectivamente, e inova apresentando uma teoria das esferas sociais que se fundamenta na perspectiva do método dialético.
Não resta dúvida de que temos, a partir desta obra, um marco essencial para a análise e compreensão das esferas sociais. Como o objetivo do autor não era analisar uma determinada esfera social[2], mas reconstituir o significado e dinâmica das esferas sociais na sociedade capitalista, isso nos desperta para a necessidade de se ampliar a aprofundar este estudo com a abordagem de esferas sociais específicas, a exemplo da esfera jurídica. Os novos estudos que surgirem, no entanto, poderão encontrar aqui um referencial necessário e indispensável para aprofundar sua análise.
Ao leitor deste breve texto, ressaltamos que não objetivamos apresentar todos os detalhes e riqueza que a obra oferece sobre as esferas sociais. A proposta era destacar algumas das questões apontadas pelo autor e oferecer uma ideia geral sobre a mesma. Portanto, a leitura que fizemos nos possibilita utilizar do malhete e considerar: a obra oferece uma explicação das esferas sociais e sua especificidade e sobre a relação que estabelece com o conjunto das relações sociais que constituem a sociedade capitalista. Cabe a outros leitores percorrer suas páginas e apresentar o seu julgamento.





* Doutor em História e pós-doutor em Sociologia. Professor da universidade Estadual de Goiás/Câmpus Uruaçu.
[1] O modus operandi “está ligado à atividade e bem (produto) que resulta de sua produção, bem como dos espólios almejados” (p. 27). O ethos é o modo de ser que os agentes da esfera manifestam e está intimamente ligado ao bem cultural produzido e modus operandi da mesma e seus espólios, bem como à sua função específica e ao seu conjunto de valores, representações e interesses (p. 29). O corpus mentalis se refere ao conjunto de valores, representações e interesses, ou seja, a uma determinada mentalidade que compartilha elementos básicos da mentalidade burguesa. E os espólios são aquilo que é oferecido por ela para seus agentes e que é o objetivo da maioria (p. 29).
[2] Em outras obras o autor analisa esferas e subesferas específicas, a exemplo de A Esfera Artística e seus estudos sobre cinema, quadrinhos, música etc.

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Publicado originalmente em:
Revista Ciências Sociais - Unisinos, vol. 52, n. 2, 2016.

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