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quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

JUVENTUDE, CONTESTAÇÃO, AUTOGESTÃO

Juventude: anos 2000



JUVENTUDE, CONTESTAÇÃO, AUTOGESTÃO




Nos processos sociais contemporâneos, a contestação se torna cada vez mais presente. A juventude sempre está presente nas ações contestatórias existentes, não somente as atuais como as do passado. Assim, existe um forte vínculo entre juventude e contestação no processo histórico concreto. Daí é possível discutir e abordar a questão da “contestação juvenil” e das suas formas. Uma das formas que essa contestação assumiu foi a da luta pela autogestão, como caso exemplar foi a rebelião estudantil de Maio de 1968. Assim, a relação entre juventude, contestação e projeto autogestionário se torna objeto de uma necessidade teórica em esclarecer os seus vínculos, explorar suas relações e potencialidades, no sentido de uma compreensão mais ampla do fenômeno. Daí a importância de discutir, aprofundar e desenvolver análises e estudos sobre a rebeldia juvenil, especialmente em seu caráter político e consequências sociais. Nesse sentido, nosso objetivo é apresentar uma análise da rebeldia juvenil em geral para, posteriormente, efetivar uma comparação entre as lutas juvenis que culminam com o Maio de 1968 em Paris, buscando compreender a dinâmica política e vínculo com a ideia de transformação social radical expresso no projeto autogestionário.
O Conceito de Contestação
No sentido jurídico do termo, contestação quer dizer uma peça de defesa na qual o reclamado terá oportunidade de solicitar a impugnação da pretensão de expor provas e permitir apresentar a matéria de defesa pertinente. Obviamente que o sentido jurídico não serve para uma análise das relações sociais. Contestar, no sentido mais simples do termo e que se pode encontrar nos dicionários, significa recusar, protestar, colocar em dúvida, questionar. Neste contexto, tanto o sentido jurídico quanto o sentido comum apontam para algum aspecto que pode incluir o conceito de contestação, mas são insuficientes. O sentido comum da palavra contestação é abstrato, não se refere a nada concreto e o sentido jurídico se refere a algo muito particular. Um é muito geral e o outro muito específico. Sem dúvida, podemos considerar que como linguagem simples, a palavra contestação significa recusa, questionamento, mas como elemento de um discurso complexo (teórico, ideológico, científico, filosófico, etc.), é insuficiente.
Para pensar as relações sociais é necessário entender a contestação social (que pode ser dividida em política, cultural, etc., quando é uma forma cujo alvo é um setor da divisão social do trabalho específico ou se realiza sob forma específica). Sendo assim, contestação é o ato de manifestar descontentamento contra algo e isso pode ser realizado sob formas distintas. Mas nenhuma contestação é realizada no vazio e sim no interior de determinadas relações sociais. Logo, até a contestação individual – realizada por um indivíduo e considerando que se trata de um problema apenas dele – é constituída socialmente e pode possuir um caráter social se for compartilhado por outros indivíduos em relações sociais análogas. Como a contestação é sempre contestação de algo, então é preciso compreender o algo antes de compreender o contestador. É somente no interior de relações sociais marcadas pela exploração, dominação, opressão, marginalização, entre outras, é que se pode pensar em contestação. A contestação, no fundo, é ela mesma uma relação social. Aqueles que contestam realizam a recusa de determinadas relações sociais ou sua posição no seu interior. A determinação de sua contestação das relações sociais e ela mesma é uma relação social.
Assim, no caso temos relações sociais estabelecidas e questionamento de tais relações. Se a contestação é em relação ao conjunto das relações sociais, então é revolucionária, radical, pois coloca em questão da totalidade da sociedade e propõe uma nova sociedade. Se ela é parcial, então contesta apenas determinadas relações sociais sem se ocupar da totalidade social. A contestação social mais significativa é aquela em que uma coletividade (grupos, classes, organizações) recusa e age contra determinadas relações sociais de forma consciente de seu caráter social. Existe uma contestação social na qual as pessoas que contestam estão isoladas umas das outras, e realizam atos de contestação individualmente. Essa é uma contestação compartilhada de forma não consciente. É o caso de um indivíduo que foge de casa para contestar o autoritarismo familiar e isso é realizado por inúmeros outros indivíduos pela mesma razão. Assim, as relações familiares autoritárias são a determinação do ato de recusa, mas essa é realizada sem articulação, união, e sem consciência de seu caráter coletivo. Se, alguns jovens que fizeram isso ou se encontram nessa situação, se organizam e percebem que é algo mais coletivo e amplo, passando a questionar sob várias formas as relações familiares autoritárias, então amplia sua capacidade contestadora e transformadora. E, caso consiga perceber que a questão não é apenas familiar, que suas relações surgem de processos sociais mais amplos que estão nas bases e no conjunto das relações sociais, então passa uma contestação mais ampla e radical.
Assim, o conceito de contestação social nos leva a pensar em relações sociais que produzem contestação, em indivíduos e grupos contestadores, e nos próprios atos e formas de contestação. Desta forma, podemos definir contestação social como uma relação social marcada pela recusa por parte de alguns indivíduos ou grupos das relações sociais estabelecidas. Assim, contestação pressupõe descontentamento com determinadas relações sociais e motivos para isso, tal como exploração, dominação, opressão, marginalização, violência, etc. A contestação pressupõe o que é contestado, que é o que é dominante, estabelecido, hegemônico, etc. O antropólogo Luigi Sartriani (1986) expressou esse processo, se inspirando em Gramsci, para discutir a questão da cultura (e do folclore, mais especificamente) em termos de uma oposição entre cultura hegemônica e cultura contestadora. O folclore possui, simultaneamente, um papel de narcotizante e um papel contestador. O caráter contestador do folclore se manifesta diante da cultura hegemônica e, por conseguinte, a oposição entre duas culturas (SARTRIANI, 1986), a hegemônica e a subalterna. Logo, o conceito de contestação remete ao problema das sociedades de classes.
O que nos interessa nessa abordagem é a ideia de que a contestação revela um questionamento do hegemônico, do estabelecido, do dominante. Porém, nem toda contestação é em relação a esses aspectos. Por exemplo, no sentido mais abstrato do termo, um regime ditatorial pode contestar uma manifestação pacífica (que, por sua vez, também é uma contestação). Porém, no sentido mais concreto de contestação social, ela pode significar a recusa do dominante ou do hegemônico, mas também do estabelecido que não é necessariamente hegemônico e dominante. O dominante é o que se instaura a partir de relações de dominação e o hegemônico remete ao que possui supremacia cultural. O estabelecido é o que simplesmente existe e não quer dizer necessariamente que seja dominação ou hegemonia, embora possa ter relação com estes processos. Isso é possível quando relações sociais estabelecidas podem ser classificadas como sendo fundadas na dominação, exploração, opressão, etc., mas isso não consiste em algo real, sendo apenas uma ideologia (no sentido marxista do termo[1]).
Além disso, indivíduos e grupos descontentes com sua situação dentro da sociedade atual podem fazer uma contestação parcial dela e querer manter a totalidade existente ou podem contestar aspectos da realidade social que são pontuais ou conjunturais e não o conjunto das relações sociais. Existem muitos exemplos desse processo, tal como o caso de reivindicações corporativas de categorias profissionais, que contestam a política salarial e seus salários ou mesmo os níveis salariais de toda população (o que seria ainda uma contestação do estabelecido que não coloca em questão o hegemônico e dominante) e não o salariato em geral. Nesse caso, o que é contestado é a posição no interior da sociedade e não esta em sua totalidade. Da mesma forma, quando se contesta uma ditadura militar é algo conjuntural e, ainda parcial, já que não questiona o conjunto das relações sociais. Um exemplo de contestação pontual é o movimento ecológico conservacionista quando solicita mais uma reserva florestal em determinado lugar ao invés de questionar as relações sociais que engendram a destruição ambiental, como faz o projeto social-ecologista (PÁDUA e LAGO, 1982).
A contestação juvenil é uma das manifestações da contestação social e é uma das mais recorrentes na sociedade moderna. Ela também assume formas distintas e bases específicas e torna-se necessário analisá-las. Desde a contestação moderada e cotidiana até a participação em movimentos revolucionários ou até mesmo explosão inicial de processos de radicalização, a juventude emerge na cena política mostrando sua tendência contestadora, o que, por sua vez, promoveu diversas ideologias e pesquisas para explicar a sua “rebeldia”. Daí a necessidade de entender a contestação juvenil em geral para passar para suas formas mais radicais e vínculo com o projeto autogestionário.
A Contestação Juvenil
A juventude é sempre relacionada com rebeldia. Essa imagem da juventude é repassada pelos meios de comunicação, abordagens científicas, representações cotidianas e dominam o imaginário coletivo. Já no início da década de 1960, o sociólogo Georges Lapassade comenta a criação da ideia de que a juventude seria formada por “rebeldes sem causa”:
‘A inadaptação’ da juventude à vida coletiva e sua oposição às condições de existência dita “adulta” manifestam-se sobretudo nos países mais industrializados do mundo contemporâneo. Um pouco, em toda parte neste mundo, uma minoria de jovens, reunidos em grupos “informais”, vive à margem, desenvolve condutas agressivas, chama a atenção do público e dos observadores por meios que estão fora da ordem estabelecida. Periodicamente, o público é informado pela imprensa. Consagram-se conferências ao “mal da juventude”, à sua “revolta sem causa”. Publicam-se relatórios oficiais sobre a questão. Psicólogos e sociólogos procedem a entrevistas que permitem acumular as descrições, sem entretanto chegar a definir claramente os fatos observados e a lhes dar a razão. Tudo se passa, então, como se a sociedade estivesse reduzida a constatar aquele mal e a apontar os meios de repressão” (LAPASSADE, 1968, p. 113).
Esse texto foi publicado em 1963, sendo parte de uma das obras mais importantes escritas sobre juventude até hoje (LAPASSADE, 1975). Esse trecho mostra o que já se colocava desde a época que antecedeu o maio de 1968: o problema da rebeldia juvenil. Na maioria das interpretações, tal rebeldia não tem “causa”, mesmo porque sua manifestação mais visível seria nos países do capitalismo dito “mais desenvolvido”, onde reinava o “Estado de bem estar social”, ou, para outros, que procuraram fornecer uma causa, isso era devido ao problema da idade, do organismo (origem biológica), etc., ou seja, explicações que remetem para uma fonte associal, biológica, cronológica ou qualquer outra que naturaliza este fenômeno.
Essa discussão não se encerrou e a hegemonia do discurso médico, biológico e psicológico sobre a juventude ainda existe e faz parte do processo de explicação ideológica de sua rebeldia (GROPPO, 1998). Nesse sentido, resta responder, novamente, a uma antiga pergunta: a rebeldia juvenil é determinada biologicamente? Esta ideia tem sua origem nas ciências naturais e na psicologia. Após uma época em que se pensava a passagem da juventude para a idade adulta como algo pacífico e sem problemas, a partir das mudanças sociais e da emergência de conflitos entre jovens e a sociedade estabelecida, estas mesmas ciências passaram a naturalizar a contestação juvenil, reproduzindo assim as representações cotidianas do fenômeno (GROPPO, 1998). É uma questão de “idade”, biológica (puberdade) e/ou psicológica (formação da identidade).
“A modernidade traz consigo um processo de cerceamento político, policial, moral, empírico e científico do indivíduo. As ciências médicas e a psicologia buscam uma definição exaustiva, detalhada e objetiva das fases de maturação desse indivíduo, bem como propõem métodos de acompanhamento apropriados a cada fase dessa evolução do indivíduo à maturidade ou idade adulta. Trata-se do fenômeno da ‘naturalização’ e objetivação das faixas de idade pelas técnicas sociais e pelas ciências médicas e humanas, que enfatizou principalmente a infância e a juventude. Cada indivíduo passa a poder ter certeza de que, no momento indicado, o sinal da natureza irá despertar nele transformações bio, psico e sociológicas pré-diagnosticadas pelas ciências modernas” (GROPPO, 1998, p. 59).
Essas ideologias passam a conceber uma evolução linear do indivíduo, que passaria tranquilamente da infância para a juventude e desta para a idade adulta, sem maiores problemas. Na psicologia, o construto “adolescência” assume o papel de elemento explicativo da mutação da infância e caminho para a maturidade, expressa tanto em mudanças biológicas, a puberdade, quanto em mudanças culturais, a formação da identidade. Seria na adolescência que o jovem definiria sua identidade particular (GROPPO, 1998). A passagem da adolescência para a idade adulta é descrita através de uma concepção ideal que vê um processo sem dificuldades. No entanto, isso “está longe de ser igual àquilo que é observado na realidade” (GROPPO, 1998). A realidade cotidiana e os “conflitos de gerações” são elementos que colocam em questão tal ideologia, o que provoca mudanças ideológicas:
“Desde logo as psicologias rearranjaram seus discursos sobre a adolescência. Os pequenos conflitos com adultos, pequenos distúrbios psíquicos, etc. seriam parte integrante do processo de construção da identidade e da individualidade na adolescência. O ‘processo de individuação’, realizando durante a juventude, não é totalmente tranquilo. Pode e deve envolver problemas emocionais, conflitos com os pais, com os valores sociais, etc. Tudo isso é necessário e saudável, desde que em doses corretas e de modo a permitir que, ao final, o indivíduo encontre sua identidade própria e ajuste-se ao grupo social a que pertence” (GROPPO, 1998, p. 63).
Assim, a mutação ideológica parte da naturalização da adolescência e juventude – concebida como uma evolução linear sem dificuldades – para uma nova naturalização que remete ao problema dos conflitos, da rebeldia, etc. O próprio conflito é naturalizado ao invés de ser visto como uma questão social. É algo típico da juventude, que é um estágio que chega ao cume evolutivo com a maturidade e assim, tal como na psicanálise de Anna Freud, a juventude é a época da imprevisibilidade, conflitos e ambiguidades que é superada pela segurança, identidade plena e autodefinição, a idade adulta, maturidade. No mundo das representações cotidianas isso será expresso por diversas formas, desde ditos populares como os de “rebeldes sem causa”[2], “juventude transviada”, entre outros, bem como ditados, tais como “aos vinte (anos), incendiário; aos quarenta, bombeiro”, entre outros[3]. Assim, a rebeldia e até a militância revolucionária é algo explicado biologicamente, e como algo passageiro. Se algum indivíduo mantém elementos deste processo, é por um problema mal resolvido, não conseguiu chegar à maturidade, ou seja, não está de acordo com o mito do adulto-padrão (LAPASSADE, 1975). Essa concepção psicológica, que não era a única – e as demais não se diferenciavam tanto – foi uma das influentes não apenas nas representações cotidianas, mas também nas demais ciências e a sociologia norte-americana, tal como a Escola de Chicago e a abordagem funcionalista, beberam nessa fonte e produziram a partir dela uma diversidade de estudos, nos quais se destaca a questão da delinquência como objeto de estudo (GROPPO, 1998). E isto atinge até pesquisadores que se autodenominam “marxistas” e assim a rebeldia juvenil é explicada não pelas relações sociais, mas pela psicologia (PONCE, 1939). Estas ideologias ainda existem e se reproduzem, bem como novas emergem mudando a linguagem ou determinados aspectos, tal como a sociobiologia, mas mantendo esse núcleo central.
Porém, o que falta a todas essas ideologias é a percepção da concreticidade do fenômeno. Com toda ideologia, ela inverte o real, apesar de representá-lo. Ao nível do empírico, parece confirmado e verdadeiro, mas não é algo concreto, é mera aparência[4]. Tais ideologias tomam a aparência pela essência, ficando no “mundo da pseudoconcreticidade” (KOSIK, 1986). Ao não buscar reconstituir o fenômeno como algo concreto (MARX, 1983; VIANA, 2007), se iludem com o aparecer social, naturalizando-o, o que é comum nas representações cotidianas ilusórias e nas ideologias (VIANA, 2008) e se reproduz na medicina, biologia e grande parte da psicologia. Uma vez existindo tais representações cotidianas e ideologias, elas se consolidam e atuam sobre a realidade, reforçando-a em seus aspectos colocados por elas como “ideais” e condenando aquilo que está fora de sua concepção normativa[5].
Nesse sentido, estas ideologias não são suficientes para explicar o fenômeno da contestação juvenil. Para entender a rebeldia juvenil é preciso compreender que a juventude é um produto social e histórico (VIANA, 2004; MUUSS, 1974; AVANZINI, 1980)[6] e, portanto, é nas relações sociais que se encontram as fontes de sua contestação (CARANDELL, 1979; VIANA, 2004). Assim, a primeira e fundamental questão é entender o que é a juventude. Se a juventude é um produto histórico e social, então não é na natureza ou biologia que poderemos entender o seu significado.
“A juventude é, pois, um grupo social em processo de ressocialização. No processo de socialização, a criança, através da família, da escola e da comunidade, é preparada para viver no interior de determinadas relações sociais, instituídas pelo capitalismo, adquirindo habilidades (falar, ler, escrever, etc.), valores, padrões de comportamento, etc., e um certo grau de saber necessário para sua idade e atividades sociais. O processo de ressocialização visa, fundamentalmente, preparar a força de trabalho para sua inserção no mercado de trabalho. A escola atua nos dois processos, mas de forma diferenciada, pois na ressocialização se fornece uma escolarização que permite a entrada no mercado de trabalho, seja apenas promovendo a exigência mínima em determinadas fatias deste mercado (ensino médio), ou mais aprimorado (cursos técnicos) o maior exigência, o ensino superior especializado (universidade). Ao lado da preparação da força de trabalho, o jovem também é preparado para o processo de imputação de responsabilidades sociais. Além da inserção no mercado de trabalho, o adulto também deve realizar outras atividades sociais, entre as quais as obrigações familiares e sociais em geral (casamento, sustento da família, cuidado dos filhos, atividades civis e institucionais, etc.). O processo de ressocialização é uma preparação do jovem para que ele se insira na “vida adulta” (VIANA, 2004, p. 38-39).
A ressocialização é, portanto, a base social e unificadora da juventude. Porém, ela é reforçada, aprimorada e cristalizada pela ação exercida pelos meios oligopolistas de comunicação, ideologias científicas, legislação e outros mecanismos de enquadramento desse grupo etário (VIANA, 2004). Esse processo de ressocialização tem como objetivo transformar o jovem em adulto, ou seja, integrá-lo no mercado de trabalho e no mundo das responsabilidades sociais (civis, políticas, etc., ou seja, voltado para a família, obrigações políticas e sociais, etc.). Obviamente que esse processo assume formas específicas e características próprias em diferentes classes sociais (formas diferenciadas de escolarização e de tempo de vida escolar, de relações familiares, etc.). Assim, existe na sociedade moderna uma ressocialização diferencial. Contudo, o trabalho, a família, as obrigações civis e políticas, entre outras, são de uma sociedade específica e traz suas marcas nesse processo. É uma ressocialização para preparar o indivíduo para assumir o papel de adulto-padrão (LAPASSADE, 1975) e este é aquele que reproduz a sociedade capitalista, se submetendo ao trabalho alienado, ao mercado, etc. Logo, é uma ressocialização repressiva e coercitiva (VIANA, 2004). É por isso que a escola reproduz elementos do processo de trabalho, exercendo uma violência disciplinar e cultural[7] que serve para produzir o futuro trabalhador, cidadão, etc. Essa violência não apenas reprime, ou seja, impede a manifestação de ideias, valores, sentimentos, comportamentos, etc., mas também exerce coerção, ou seja, incentiva ideias, valores, sentimentos, comportamentos, por parte dos indivíduos.
Desta forma, o caráter repressivo e coercitivo do processo de ressocialização produz conflitos e estes se manifestam principalmente através da contestação juvenil. Logo, são as relações sociais impostas à juventude que geram sua recusa e sua contestação. As análises psicologistas e biologistas não levam em consideração esse processo social por partir de uma concepção empiricista e que, portanto, despreza a totalidade e a historicidade do fenômeno. Desta forma, encontram causas biológicas, psicológicas ou distúrbios individuais para explicar tal contestação. O protesto juvenil, ao contrário, e sob as mais variadas formas, desde as individuais passando para as culturais até chegar às ações políticas, estão intimamente ligadas ao processo de ressocialização[8] que caracteriza esse grupo etário (VIANA, 2004), no qual, principalmente através das escolas, se prepara a juventude para atuar no mercado de trabalho, assumir as responsabilidades sociais (civis, familiares, etc.), ou seja, para a “vida adulta”, sob o modelo do “adulto-padrão” (LAPASSADE, 1975). Essa ressocialização, devido seu caráter repressivo e coercitivo voltado para a formação de indivíduos adequados ao processo de reprodução das relações de produção capitalistas e a totalidade da sociedade capitalista, promove um impedimento de desenvolvimento de algumas potencialidades humanas (tal como, por exemplo, a sexualidade, temática recorrente nos movimentos juvenis) e sua substituição por atividades e habilidades que são necessárias para o seu futuro ethos adulto na sociedade capitalista. Porém, é impossível fugir dessa realidade, já que isso é uma exigência da sociedade capitalista e do seu necessário processo de reprodução.
A contestação juvenil pode ser, portanto, de duas formas: a que fica nos limites da sociedade moderna e, por conseguinte, não ultrapassa os limites de diminuição da repressão e coerção, ou outros paliativos (e o mercado consumidor jovem é rico em protestos culturais e semelhantes) ou a contestação total, que assume caráter politizado e aponta para a transformação social. Claro que ambas as formas podem, por sua vez, assumir contornos diferenciados. Amaral Vieira (1970), expõe algumas fases da “revolta da juventude”, que seriam as seguintes: a) delinquência; b) Beatles e Hippies; c) protesto político. Obviamente que a terminologia é totalmente inadequada, mas para nossos objetivos trazem alguns momentos de verdade e por isso vamos, temporariamente, seguir seu raciocínio para depois apresentar uma concepção alternativa do processo de lutas juvenis. O primeiro momento, segundo Amaral Vieira, seria a delinquência, que assim ele expõe:
“A fase inicial é a de delinquência (‘juventude transviada’, ‘menores infratores’), mais aguda em países industrializados (embora não restrita a eles) e apontada como resultado de fatores diversos, destacando-se: crise habitacional, desemprego, êxodo rural e crescente urbanização das populações, problemas de escolaridade e educação, conflito no lar, condicionamento da imprensa (noticiário policial ou de escândalo, fotonovelas, historias em quadrinhos, televisão, etc.). A esse momento da revolta não se pode atribuir a menor consciência; os adolescentes atingem a sociedade por tabela; os adolescentes procuram alcançar quando investem abertamente contra o seu status” (AMARAL VIEIRA, 1970, p. 108).
Após essa fase inicial, haveria uma que a contestação seria principalmente cultural:
“Outra fase é a que medeia entre os ritmos alucinantes e a conduta hippie. Paulatinamente, o jovem emaranha-se em uma trilha que, partindo do rock’n roll, desembocaria no iê-iê-iê e, mais recentemente, na música de protesto. O jovem, que já repudiava a guerra, a segregação racial e as desigualdades sociais (criações do mundo adulto), passa a combater não só com a música ou com a vestimenta escandalosa, mas com o próprio estilo de vida: os cabelos longos e as roupas exóticas; a toxicomania e a vadiagem” (AMARAL VIEIRA, 1970, p. 109).
A última fase, segundo Amaral Vieira, é a do protesto político:
“A revolta adquire aspectos políticos quando se reflete como instrumento de luta dos estudantes. De forma mais ou menos declarada, e às vezes violenta, se batem tenazmente por princípios inaceitáveis pela estruturação social, tais como, a igualdade social e a condenação da sociedade de consumo. Seu caráter torna-se mais agudo e mais sério quando os jovens, que antes se limitavam à condenação moral, investem contra os valores da sociedade” (AMARAL VIEIRA, 1970, p. 112).
Essa análise da evolução da contestação juvenil é problemática mas é útil para estabelecermos uma concepção alternativa. Sem dúvida, “delinquência”, “vadiagem” e outros termos são pejorativos e mostram os valores e posição do autor[9]. Além disso, não existe uma homogeneidade total na juventude, ela possui como elemento comum e unificador a ressocialização, mas está marcada pela divisão: principalmente a de classes sociais, bem como de outras diferenciações, tais como a de cultura, região, etc. O modelo de Amaral Vieira reproduz o caso europeu e de forma alguma poderia ser tido como uma “lei geral” da evolução da contestação juvenil. Porém, é possível avançar a partir desta posição para uma outra mais próxima da realidade. Podemos, em linhas gerais, colocar que a contestação juvenil tende a se realizar na seguinte sequência: lutas imediatistas; b) lutas estilistas; c) lutas institucionais; d) lutas autônomas; e) lutas revolucionárias. Claro que estas fases vão se manifestar de forma diferenciada em classes distintas, tal como, por exemplo, no caso das classes privilegiadas, a tendência é iniciar na fase das lutas estilistas mesclada com elementos da fase de lutas imediatistas; no lumpemproletariado, tende a se manifestar através das lutas imediatistas em forma de delinquência, no sentido mais jurídico do termo. As lutas imediatistas assumem formas diferentes em classes diferentes, bem como as demais. E determinados indivíduos, grupos, classes, podem mesclar e usar mais de uma forma de luta simultaneamente.
As lutas imediatistas são aquelas que se desdobram no cotidiano, geralmente de forma individual – conflitos familiares e escolares, duas instâncias de ressocialização, furtos para manter o consumo almejado por determinados setores da juventude, etc. – ou de pequenos grupos (gangues, bandos, tribos, etc.) e são a primeira forma que assume qualquer luta juvenil (o que difere de outras formas de luta, a luta é juvenil quando ela contesta a condição juvenil, ou seja, o processo de ressocialização). Obviamente que isso se entrelaça com o pertencimento de classe. O que se convencionou chamar de “menor infrator” (QUEIROZ, 1987) é o que atinge parte da juventude das classes desprivilegiadas, geralmente do lumpemproletariado e a chamada “infração” pode gerar outras necessidades e consequências, tal como no caso que o ato do roubo pode depois se tornar uma “significação compensadora” (AVANZINI, 1980)[10]. Os bandos geralmente são formados por jovens que vivem relações familiares problemáticas, marcadas pelo conflito e desafeto e que faz do mesmo se tornar um substituto da família, provendo o jovem de afetividade ausente nessa instância. Por isso ele “corresponde fundamentalmente, pelo menos em parte, à necessidade de afeto, no sentido de que representa um meio solidário cuja cumplicidade e sigilo, que lhe está ligado, servem para reforçar os seus laços” (AVANZINI, 1980, p.104).
As lutas estilistas são aquelas na qual a cultura tem proeminência, através de um estilo de vida conscientemente planejado que manifesta uma recusa da ressocialização passiva. Este é o caso de punks, emos, hippies, etc. A música, a roupa, e outros elementos são a forma de manifestação e de busca de criação de uma coletividade que rompa com a cultura hegemônica e com a forma existente de ressocialização. As lutas estilistas podem assumir formas mais ou menos radicais, desde as que cumprem com o objetivo de criar uma cultura específica de grupo para manter uma sociabilidade grupal sem pretensões críticas mais profundas até as que assumem maior radicalidade e contestam conscientemente não somente a condição juvenil como também a sociedade como um todo ou aspectos dela. Esse é o caso de algumas expressões da luta juvenil, tal como os provos, os hippies, os beatniks, entre outros. Nos anos 1950, os libertinos, vagabundos, beatniks foram as suas principais manifestações, enquanto que nos anos 1960 foram os hippies e os provos (no caso holandês) (CARANDELL, 1979).
As lutas institucionais são aquelas nas quais o seu caráter juvenil é relativamente apagado em favor de questões institucionais e seguindo interesses de determinadas instituições[11] que podem subordinar grupos de jovens aos seus objetivos, especialmente partidos políticos. Esse é o caso de lutas estudantis dirigidas por partidos – principalmente de tendência socialdemocrata ou leninista, mas também partidos direitistas, em determinados casos –, o que lhe coloca em uma situação de ambiguidade, pois a questão principal não é a condição juvenil, que é secundarizada nesse caso. É uma luta heterogerida que tem elementos derivados da própria condição juvenil e por isso emerge de forma marginal, mas se mantém. Uma expressão disso é as “juventudes” dos partidos políticos (juventude nazista, comunista, socialista, etc.) e mostra sua falta de autonomia, o que Groppo analisou no caso da juventude hitlerista (GROPPO, 1998). O mesmo ocorre com os setores da juventude ligados a igrejas e outras instituições.
As lutas autônomas são aquelas em que são derivadas de ruptura com as lutas institucionais, aumentando a autonomia dos jovens e grupos juvenis, assumindo ou não a forma de agrupamentos políticos. Um exemplo pode esclarecer esse processo:
“Os jovens tiveram quase imediatamente uma participação relevantes naquilo que [nos Estados Unidos – NV] foi batizado como movimento dos direitos cívicos. Entre outras iniciativas, no outono de 1861 foi fundada uma associação para os direitos cívicos composta exclusivamente por jovens, o Student Nonviolent Coordinating Comittee (SNCC). Este grupo, que em 1964 ainda só contava com 150 aderentes, composto de pessoas que verdadeiramente tinham deixado todas as coisas para se sentirem livres na realização dos seus ideais, desenvolveu ações que se poderiam chamar de heroicas, se tal palavra não estivesse demasiado gasta pela retórica, e deu que falar de si em toda a América. Os militantes do SNCC desencadearam campanhas para a inscrição nos cadernos eleitorais dos negros das zonas mais atrasadas do ‘extremo sul’ dos Estados Unidos, sofrendo atentados, prisões e condenações ilegítimas; alguns deles perderam a vida nesta luta” (BONZA, 1975, p. 65).
As lutas revolucionárias, por sua vez, colocam a juventude no processo político mais geral e radical, a luta pela transformação social. Esse é o caso de maio de 1968 na França, na qual os estudantes buscaram se articular com o proletariado e promover uma transformação radical das relações sociais, gerando uma contestação total. Assim, as lutas revolucionárias são a forma da contestação total da juventude, enquanto que as demais são formas dentro dos limites da sociedade capitalista, principalmente as lutas imediatistas e institucionais[12]. As lutas estilistas mais radicais e as lutas autônomas estão entre as duas formas, sendo que podem passar para a forma revolucionária com relativa facilidade em alguns casos e contextos históricos. Elas são formas intermediárias e por isso oscilam entre uma ou outra. As lutas revolucionárias da juventude geralmente aparecem em momentos de explosão de lutais sociais, épocas de crise, processos revolucionários, e existem marginalmente na sociedade capitalista em períodos de estabilidade, cuja força varia de acordo com os contextos. A contestação total ocorre de forma exemplar através de lutas revolucionárias e são essas que abordaremos agora, pois acaba se relacionando com o projeto revolucionário e autogestionário[13].
Essas formas de lutas – ou algumas delas – podem coexistir em determinado período histórico e lugar, bem como uma pode evoluir para outra. O mais comum é a passagem das lutas imediatistas paras as que possuem um caráter coletivo mais amplo e dessas para as lutas revolucionárias, quando ocorrem situações históricas favoráveis. Porém, as lutas revolucionárias, uma vez derrotadas, podem abrir campo para o retorno da predominância das formas anteriores. A forma que predomina depende da sociedade e sua situação concreta, bem como das classes e divisões internas. Além disso, os movimentos de contestação são perpassados por outras lutas de outros segmentos sociais, como de classe, sexo, raça, etc. Em geral, a juventude, sendo um produto social, reproduz a sociedade e é determinada por ela. A produção capitalista da juventude (VIANA, 2004) gera uma determinada juventude. Esta reage, em suas formas iniciais, a partir dessa própria sociedade, sem realizar uma ruptura com ela, pois até sua contestação é assimilada pela dominação capitalista, não somente pelas ideologias científicas que visam explicá-la, mas também por sua transformação em algo inofensivo ou em mercadoria. Os estilos de vida se tornam mercadorias e transformam determinados setores da juventude em nichos de mercado, as lutas institucionais são canalizadas para a reprodução das relações políticas institucionais existentes, etc.
Esse processo, no capitalismo contemporâneo, assume novos contornos, que envolve as mudanças realizadas em vários setores da sociedade a partir da instauração do regime de acumulação integral (VIANA, 2009), o que não poderemos abordar aqui; Isso gera novos elementos e espaços para a contestação parcial, desde a hipermercantilização ao processo de produção de identidades, incluindo a transformação de identidades em essências (YOUNG, 2002). O nosso foco, a partir de agora, será a contestação total, pois é ela que coloca em evidência a relação entre juventude e autogestão, embora haja uma relação e mescla entre ela e a contestação parcial e por isso essa aparecerá no desenvolvimento da análise, mas de forma secundária.
A Contestação Total e o Projeto Autogestionário
A juventude não é uma classe social e, muito menos, uma classe revolucionária. A contestação juvenil é a de um grupo social cuja composição social temporária (sempre se renova, pois os jovens de uma década se tornam adultos nas décadas seguintes e as crianças se tornam jovens, ou seja, não é uma condição permanente do indivíduo), que não tem condições de criar um projeto alternativo de sociedade, por não estar inserido nas relações de produção capitalistas, no seu núcleo essencial e como não é portador de novas relações de produção, é incapaz de apresentar um projeto revolucionário, elemento fundamental das revoluções sociais (DECOUFLÉ, 1976).
Dessa forma, a juventude tem uma potencialidade revolucionária, mas não um ser social revolucionário. A juventude pode se engajar num processo revolucionário ou mesmo ser o estopim e o propagador da mensagem revolucionária, mas não pode concretizar a revolução. Ela precisa do proletariado. É a classe proletária que, por estar no coração da produção capitalista, por sua própria existência concreta de classe explorada, dominada, submetida à alienação, que se constitui como classe revolucionária (VIANA, 2011; VIANA, 2008). Assim, a juventude realiza seu potencial revolucionário ao se aliar ao proletariado. O projeto revolucionário encarna nessa classe, seja nas ideias produzidas, inspiradas ou geradas por ela, seja pelas suas experiências históricas, ações práticas.
Assim, para entender o vínculo entre a contestação juvenil e o projeto autogestionário é necessário entender este último e como ele é engendrado social e historicamente. As primeiras noções de um projeto autogestionário remontam ao socialismo utópico-abstrato do século 19, embora antecedentes já existissem, mas sob formas mais restritas e menos delineadas e totalizantes. Essas concepções foram ganhando novos contornos com a emergência do anarquismo e do marxismo, que marcam a passagem do utopismo abstrato para a utopia concreta[14]. O anarquismo, através do federalismo de Proudhon, abre espaço para uma proposta autogestionária, o que é retomado pela tradição anarquista posterior, especialmente Bakunin, ainda no século 19. Por outro lado, Marx vai produzindo sua teoria revolucionária na qual a classe operária vai engendrando novas relações sociais e forma de organização social que, após um curto período de ditadura do proletariado[15], se constitui em autogestão social generalizada (MARX, 2011; VIANA, 2011). A concepção de Marx se torna mais precisa após a experiência histórica da Comuna de Paris, que passa a ser uma fonte inspiradora para suas análises sobre a autoemancipação proletária (MARX, 2011; VIANA, 2011). As experiências históricas que assumiram caráter autogestionário posteriormente foram as mais variadas e não iremos citá-las aqui, sendo que uma de suas últimas manifestações, em estado ainda embrionário, ocorreu na Argentina em 2002 (FERREIRO, 2007).
As teorias da autogestão também proliferaram, principalmente a partir do maio de 1968, mas já existia sob formas distintas muito antes (MASSARI, 1976) e uma de suas manifestações mais estruturadas ocorreu na época das revoluções proletárias inacabadas do início do século 20, tal como a Revolução Russa (1917), Revolução Alemã (1918-1921), Revolução Húngara (1919), Revolução Italiana (1920) e lutas operárias radicais em vários outros países no mesmo período e foram caracterizadas pela emergência de conselhos operários, que por sua vez, teve como expressão teórica o chamado comunismo de conselhos, em oposição ao chamado “comunismo de partido”, o leninismo. Uma produção teórica levada a cabo por Pannekoek (1977); Korsch (1977), Rühle (1975), entre outros, acabou servindo de inspiração para a formação de outras teorias posteriores[16]. Posteriormente, outros grupos, indivíduos, irão retomar a teoria da autogestão sob formas distintas, desde o grupo Socialismo ou Barbárie, de Castoriadis e Lefort, passando pela Internacional Situacionistas de Debord e Vaneigen, até chegar aos teóricos franceses do pós-1968, ligados a diversas tendências e que se aglutinaram na revista Socialisme et Autogestion, como Guillerm e Bourdet (1976), Henri Lefebvre (1976), Georges Gurvitch (1976), Georges Lapassade (1989), Rene Lourau (1975), entre outros[17].
O projeto autogestionário se distingue dos projetos socialdemocrata e bolchevista por não pregar a conquista do poder estatal e sim sua destruição e substituição pela autogestão social generalizada. A proposta aponta para a destruição do Estado e abolição do salariato e da exploração, via socialização dos meios de produção e autogestão das unidades de produção e de todas as demais relações sociais. Assim, o projeto autogestionário é o projeto revolucionário por excelência, pois une totalidade e historicidade, tal como coloca Decouflé (1976). A totalidade significa transformação total das relações sociais, “mudar de vida”, lema de Rimbaud e Latreamont que é reproduzido pelos situacionistas e outros e historicidade significa a ruptura radical com as relações sociais existentes, uma nova sociedade radicalmente diferente ao invés da reforma da sociedade atual. A autogestão social tem sua base nas relações de produção e se generaliza para o conjunto das relações sociais assim realiza a promessa da emancipação humana via emancipação proletária (VIANA, 2008). O proletariado, em seu próprio processo de luta, deixa de ser uma classe determinada pelo capital e passa a ser autodeterminada, e isso ocorre, tal como já colocava Pannekoek, via greve selvagem (ilegais, não-oficiais e geralmente contra os sindicatos), cria suas próprias formas de auto-organização, tal como os comitês de greve, e com o processo de ocupação das fábricas e novas tarefas oriundas do desenvolvimento da luta, criam os conselhos operários que passam a gerir a produção e ao mesmo tempo serem os órgãos da revolução proletária (tal como ocorreu na Rússia e Alemanha, entre outros países). Esse processo é generalizado para toda a sociedade e assim se instaura a autogestão social (RATGEB[18], 1974; VIANA, 2008).
O atrativo dessas ideias para a juventude radicalizada é visível. Sem dúvida, a contestação juvenil quando assume maior radicalidade e se encontra com a proposta de transformação social tende a se aliar com as ideias e teorias existentes, buscando nelas a inspiração e guia para ação. Devido sua impossibilidade de promover, por si mesma, a revolução social, então a juventude busca se aproximar do proletariado para conseguir concretizar o projeto autogestionário. A união do proletariado e da juventude gera, por sua vez, uma fusão que abre espaço para a possibilidade concreta da autogestão social, pois a transformação das relações de produção e a ação juvenil no interior das demais relações sociais criam o clima favorável para aglutinar os demais setores descontentes da sociedade e garantir uma hegemonia do projeto autogestionário. Esse foi o processo que se iniciou no final da década de 1960 e quase se concretizou no maio de 1968 em Paris, que é nosso objeto de análise a seguir.
A Rebelião Estudantil e o Projeto Autogestionário: Maio de 1968
Para encerrar a discussão sobre contestação juvenil em sua forma de contestação total, nada melhor do que analisar uma experiência histórica na qual ela se manifestou de forma exemplar, o Maio de 1968 em Paris[19]. Porém, trata-se de um acontecimento histórico que não foi, tal como nenhum outro é, casual e sim produto de diversas determinações. Não poderemos apresentar este conjunto de determinações de forma detalhada, mas cabe destacar aqui algumas das principais para analisarmos as características desta rebelião, mesmo que de forma sintética e descritiva, mas remetendo a pesquisas que desenvolvem melhor estes aspectos.
A sociedade francesa vivia um período de contestação juvenil forte antes da rebelião estudantil e da influência de lutas juvenis em outros países. A contracultura, o fenômeno do Rock e sua ligação com a rebeldia e crítica social, entre outros aspectos, era um elemento presente na cultura francesa. Porém, a crise do capitalismo oligopolista transnacional que dominou desde o pós-Segunda Guerra Mundial[20], comandado pelo regime de acumulação intensivo-extensivo ou conjugado (chamado por alguns autores de fordista) é a chave para entender todo o processo que culminou com a revolta estudantil. Essa crise se caracterizou pela queda da taxa de lucro médio (VIANA, 2009; HARVEY, 1992) e teve efeitos sobre a sociedade francesa, que, além disso, perdeu as colônias que possuía. É neste contexto que a “sociedade de consumo” e do “Estado do bem estar social” começa e perder a imagem de “evolução vitoriosa para a era da abundância”.
Neste contexto, o novo regime de acumulação e suas bases começa a se desgastar e junto com isso a situação do ensino superior começa a se deteriorar devido ao crescimento enorme do número de estudantes universitários aliado com a pouca perspectiva de inserção futura no mercado de trabalho. A situação do capitalismo francês em declínio provocou a busca da reforma universitária através do plano Fouchet e do V Plano (MANDEL, 1979), segundo a qual a qualidade do ensino, a condição estudantil, ficava prejudicada. Aliado a isso, a perspectiva de desemprego após o término dos estudos era outra preocupação existente, o que trazia não só a recusa da ressocialização e do futuro ethos de adulto, mas também até a falta de perspectiva de inserção no mercado de trabalho. A precarização da condição estudantil era motivo de insatisfação adicional dos jovens, já descontentes com o processo de ressocialização e tendo que viver esta em situação precária e submetidos a uma reforma universitária apontando para criação de uma universidade tecnocrática (TOURAINE, 1974).
É neste contexto que se inicia um processo de recusa que vai ficando mais forte e a cultura contestadora existente na França (e em outros países) acaba sendo usada para explicar e inspirar o movimento estudantil e juvenil em geral. A cultura contestadora abre espaço para uma crítica dos partidos e sindicatos da esquerda tradicional e as práticas (e concepções) dessas organizações, fundadas numa perspectiva reformista e colaboracionista, também reforçam a busca de uma alternativa. Os acontecimentos internacionais (a atuação da URSS na política internacional, a guerra do Vietnã e o movimento pacifista que emerge a partir dela, a revolução cultural na China, entre outros) também são elementos que reforçam a crítica dos partidos comunistas e das centrais sindicais ligadas a ele, o que ficará mais forte com a ação prática destes no contexto da rebelião estudantil.
Assim, as teses de Socialismo ou Barbárie, da Internacional Situacionista (especialmente a crítica do cotidiano e da sociedade espetacular, a ideia de revolução total e dos conselhos operários), de Henri Lefebvre (crítico da “sociedade burocrática de consumo dirigido”), além das obras de Daniel Guérin, André Gorz, Jean-Paul Sartre (este com grande influência direta no movimento estudantil), entre outros, inclusive que mais tarde serão adicionados no bojo do próprio movimento (como é o caso de Marcuse e da retomada dos pensadores anarquistas e comunistas de conselhos, bem como o maoísmo com ares esquerdistas da época, devido influência da revolução cultural chinesa), formam uma cultura contestadora que irá fornecer armas para um grande contingente de estudantes radicalizados deste período. Dentro dessa cultura contestadora, a ideia de autogestão estava presente em várias de suas tendências, não só nos grupos políticos e suas produções culturais citadas, mas em autores como Guérin (1969), que buscava unir marxismo e anarquismo, André Gorz, que inclusive previu em 1967 a rebelião estudantil no ano seguinte (GORZ, 1969) e outros que pregavam a revolução total (LEFEBVRE, 1992; MARCUSE, 1999; DEBORD, 1997).
Obviamente que a rebelião de 1968 não foi homogênea. Após sua eclosão, ainda havia no mesmo momento histórico setores com lutas mais moderadas (estilistas, institucionais, etc.), mas o hegemônico passou a serem as lutas autônomas e revolucionárias, criando duas tendências principais dentro do processo de luta. Uma das tendências se encaixa no que chamamos “lutas autônomas”, e outra no que chamamos “lutas revolucionárias”, tendências que foram analisadas por Touraine (1970). Essa ala do movimento estudantil uniu ocupação das universidades com busca de apoio dos trabalhadores e ocupação de fábricas. É nesse contexto que a palavra de ordem “autogestão” ecoou e junto com ela uma aliança entre estudantes e proletariado que gerou não só ocupação de universidades e manifestações estudantis, entre outras ações, como um amplo movimento grevista que atingiu cerca de 10 milhões de operários na França.
Daí a revolta estudantil que, lançando mão da cultura contestadora da época, lança, em seus setores mais radicais e que tiveram hegemonia por algum tempo, a ideia da autogestão. A palavra autogestão tem duas origens, a origem iugoslava, ligada ao regime capitalista estatal (vulgo “socialismo real”) do Marechal Tito na Iugoslávia (QUEIROZ, 1980) e a dos estudantes franceses em rebelião (GUILLERM e BOURDET, 1976). Os estudantes franceses buscaram – tal como se pode ver na cultura contestadora existente na época, principalmente na Internacional Situacionista e Guy Debord, a transformação total da sociedade, buscando aliar-se com o proletariado, que, por sua vez, emergiu com um forte movimento grevista que aglutinou milhões de trabalhadores. A ideia de autogestão significa, portanto, criação de uma sociedade radicalmente diferente e assim une-se a ideia da juventude como rebelde e ligada ao novo e o movimento político geral que aponta para sua concretização. Segundo uma testemunha ocular do acontecimento e integrante do grupo autonomista inglês Solidarity:
“Não é acidental que a “revolução” tenha começado nas faculdades de Sociologia e Psicologia de Nanterre. Os estudantes viram que a sociologia que lhes era ensinada era um meio de controle e manipulação da sociedade, e não um meio de compreendê-la de modo a transformá-la. No decorrer, eles descobriram a sociologia revolucionária. Rejeitaram o nicho reservado para eles na grande pirâmide da burocracia, o de “especialistas” a serviço do poder tecnocrático, especialistas do “fator humano” na equação industrial moderna. Descobriram também a importância da classe trabalhadora. O impressionante é que, pelo menos entre os estudantes ativos, estes “sectários” subitamente pareceram ter se tornado a maioria: seguramente esta é a melhor definição de qualquer revolução” (BRINTON, 2002, p. 19-20).
Nesse contexto, a rebelião tem suas origens em lutas institucionais hegemônicas que acabam se tornando cada vez mais autônomas até se tornarem revolucionárias[21]. Nesse processo emerge a ideia de contestação total. Marcuse apresenta uma síntese desse processo:
“É um protesto total, não só porque certamente foi deflagrado por um protesto contra males específicos, contra falhas específicas, mas ao mesmo tempo por um protesto contra todo o sistema de valores, contra todo o sistema de objetivos, todo o sistema de desempenhos exigidos e praticados na sociedade estabelecida. Em outras palavras, é uma recusa a continuar aceitando e a se conformar com a cultura da sociedade estabelecida, não só com as condições econômicas, não só com as instituições políticas, mas com todo o sistema de valores que eles sentem estar apodrecido no âmago. Penso que a esse respeito pode-se de fato falar também de uma revolução cultural. Revolução cultural porque é dirigida contra todo o establishment cultural, incluindo a moralidade da sociedade existente” (MARCUSE, 1999, p. 64).
Esse processo constitui uma aproximação crescente entre estudantes e proletários que culmina com um projeto autogestionário de sociedade. A contestação total gera um projeto de transformação total. Assim, o lema de Ribaud é retomado e a ideia de auto-organização ganha terreno, tal como se vê na entrevista de Cohn-Bendit concedida a Sartre:
“A força do nosso movimento está, justamente no fato de que ele se apoia em uma espontaneidade ‘incontrolável’, de que provoca o ardor, sem procurar canalizar, sem utilizar em seu proveito a ação que ele desencadeou. Hoje, para nós, há, evidentemente duas soluções. A primeira consiste em reunir cinco pessoas com boa formação política e pedir-lhes para redigir um programa, formular reivindicações imediatas que parecerão sólidas e dizer: “eis aqui a posição do movimento estudantil, façam o que vocês quiserem!’ É a má solução. A segunda consiste em procurar tornar compreensível a situação não à totalidade dos estudantes, nem mesmo à totalidade dos manifestantes, mas a um grande número deles. Para isso, é preciso evitar que se crie imediatamente uma organização, definir um programa, que seria inevitavelmente paralisantes. A única chance do movimento é, justamente, esta desordem que permite a todos falar livremente e que poder levar a uma certa forma de auto-organização. Por exemplo, é preciso, agora, renunciar às reuniões monumentais e chegar à formação de grupos de trabalho e de ação. É isto que nós tentamos fazer em Nanterre” (COHN-BENDIT, 1968, p. 36-37).
As reivindicações estudantis se radicalizaram e passaram a questionar determinadas ciências particulares e a ciência em geral, a universidade e seu papel na sociedade, as relações cotidianas no processo de ensino, o sentido da produção capitalista, o consumismo, etc. Nesse sentido, tal como Marcuse colocou, o movimento acabou colocando em questão a totalidade do sistema de valores estabelecidos e o conjunto das relações sociais. A solução apresentada é a transformação radical da sociedade e a palavra de ordem que expressava tal desejo foi autogestão. Já não se trata de solicitar reformas (embora minoritária, a tendência reformista no meio dos estudantes não deixou de existir e também nos meios operários, representados justamente pelas organizações burocráticas, especialmente o Partido Comunista Francês e a Central Geral do Trabalho)[22] e sim revolução.
Nesse sentido, o movimento de maio de 1968 significou a fusão do movimento estudantil revolucionário e o projeto autogestionário, que, encontrou, pelo caminho não apenas uma parte da sociedade buscando manter a sociedade estabelecida, o aparato estatal, os meios oligopolistas de comunicação e outras forças partidárias do poder, mas também setores que se afirmam do lado dos estudantes e trabalhadores, organizações burocráticas como partidos e sindicatos. Somando-se a isso as debilidades do próprio movimento (e a entrevista de Cohn-Bendit a Sartre revela alguns aspectos dessa debilidade entre muitos dos ativistas do maio de 1968), a derrota era algo possível e que ocorreu efetivamente.
A derrota do movimento de maio de 1968 foi marcada pela busca de resolução dos problemas de acumulação capitalista e tentativa de integração da juventude nas estruturas existentes, através de mudanças culturais, novas ideologias que buscavam amenizar o caráter contestador, e soluções político-econômicas para superar a situação de crise (as receitas da Comissão Trilateral). Porém, o sucesso dessa empreitada não ocorreu e a nova solução foi a mudança no regime de acumulação, que se caracterizou pela reestruturação produtiva, neoliberalismo e neoimperialismo (VIANA, 2009). Nesse contexto, ocorrem mutações culturais que buscam assimilar aspectos da luta juvenil dos anos 1960, buscando novas diretrizes para o movimento, e ao mesmo tempo assimilar a ideia de autogestão, integrando no capitalismo e lhe retirando a radicalidade. Uma nova ideia de autogestão emerge, ligada ao neoliberalismo (GROPPO, 2006) e o pensamento crítico é despolitizado com a tese da recusa da totalidade (ou “metanarrativas”) pela ideologia pós-estruturalista, criando uma contrarrevolução cultural preventiva (VIANA, 2009). Assim, o atual movimento juvenil vive entre a radicalidade das lutas juvenis dos anos 1960 e a moderação imposta pelas ideologias e políticas estatais da sociedade contemporânea.
Conclusão
A conclusão geral do trabalho é a de que existem elementos no interior do atual movimento juvenil que aponta para a autogestão social, mas, ao mesmo tempo, este assume um caráter regressivo em comparação com o movimento de maio de 1968, devido influência tanto do pós-estruturalismo quanto do neoliberalismo, sendo que o primeiro resgata e despolitiza as bases intelectuais do movimento e o segundo deforma a ideia de autogestão. Assim, o projeto autogestionário hoje mantém relações com o movimento da juventude e estudantil, mais especificamente, mas de forma bastante restrita e numa concepção bastante moderada.
Além da situação atual, o que se nota no processo da contestação juvenil é que ela tem um forte potencial revolucionário, mas a sua passagem de potência ao ato depende de outras lutas e situações favoráveis.
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[1] Aqui não há espaço para discutir o conceito marxista de ideologia, que possui várias interpretações e refutações. Sinteticamente, podemos dizer que para Marx, ideologia é um sistema de pensamento ilusório, falsa consciência sistematizada (MARX e ENGELS, 2002; VIANA, 2010).
[2] Essa expressão ficou mais famosa a partir do filme de mesmo nome estrelado por James Dean, ícone da juventude produzido pelo capital comunicacional. Esse filme, no Brasil, foi intitulado “juventude transviada”.
[3] Sem dúvida, na época de maior ascensão das lutas estudantis e juvenis, representações cotidianas opostas criavam um contradiscurso, uma contestação discursiva, tal como o ditado do final dos anos 1960: “não confie em ninguém com mais de 30 anos”.
[4] Não é possível aprofundar aqui, por questão de tempo e espaço, a questão da distinção entre o empírico e o concreto. Na verdade, trata-se de uma distinção entre duas concepções distintas do real, a expressa pelo método dialético que compreende o real como sendo o concreto (MARX, 1983, VIANA, 2007) e a que o compreende como sendo o empírico (VIANA, 2007), que é o aparente, o que é visto em sua imediaticidade, a pseudoconcreticidade de que trata Kosik (1986).
[5] Esse processo se reproduz nas ciências sociais: “não é necessário recordar aqui todas as orientações em que se encaminham as inúmeras tentativas de interpretação das atuações dos ‘inconformados’. Conforme as manifestações do comportamento desses jovens (conflitos com os pais e mestres, delinquência, beatitude, radicalismo político, etc.), os especialistas encontram explicações psicológicas, morais, institucionais, etc., o que, afinal, se reduz a afirmações do que é dado à observação imediata sem que seja atingido um nível mais complexo de explanação” (IANNI, 1968, p. 227).
[6] A concepção de Groppo, segundo a qual a juventude é uma “construção cultural da modernidade” é próxima, mas possui algumas diferenças, pois sua ênfase é na cultura e a nossa é nas relações sociais, a base real da qual emerge uma determinada cultura que a reforça, legitima e reproduz, mas não a produz. Ou seja, a juventude existe graças a relações sociais concretas, reais, e não devido a produções culturais, que interpretam reforçando uma determinada imagem, mas não criando tal imagem. Isto se deve, em parte, à influência de Mannheim (1982) em sua abordagem, pois segundo este sociólogo não é um grupo social concreto, o que possibilita a ênfase cultural.
[7] A violência disciplinar é uma imposição de disciplina realizada pela instituição escolar (VIANA, 2002), entre outras (FOUCAULT, 1983) que, no caso da juventude, visa preparar uma força de trabalho dócil, enquanto que a violência cultural (VIANA, 2002) ou “simbólica” (BOURDIEU E PASSERON, 1982), visa repassar ideologias, valores, concepções, saber técnico, para o exercício de atividades profissionais e sociais em geral, reproduzindo e legitimando a sociedade atual.
[8] Obviamente existem as condições específicas de cada indivíduo e sua reação também específica diante do processo de ressocialização. Essa especificidade individual é oriunda de sua singularidade psíquica (VIANA, 2011a), constituída no seu processo histórico de vida marcada por relações sociais que travou durante sua existência e também por sua situação social concreta em determinada momento (o que inclui relações familiares, situação financeira, etc.) ou permanente (pertencimento de classe, por exemplo). A singularidade psíquica se expressa nos sentimentos, valores, concepções, inconsciente, etc. que o indivíduo possui e que o torna mais ou menos resistente ao processo de ressocialização ou alguma de suas formas de manifestação específica (o ensino numa instituição tradicional é distinto do realizado numa considerada progressista, para citar apenas um exemplo).
[9] Trata-se dos valores dominantes e isso mostra a base axiológica de sua análise. Sobre o conceito de valores e axiologia, cf. VIANA, 2007b.
[10] Sem dúvida, é necessária também uma compreensão dos aspectos psíquicos coletivos da juventude, o que, no entanto, não podemos introduzir aqui e já foi objeto da psicologia e psicanálise, sob formas geralmente problemáticas, mas possibilitando algumas contribuições para se pensar aspectos psíquicos da juventude (DAVIS, 1968; SPRANGER, 1970; ERIKCSON, 1987).
[11] Entenda-se por instituições as organizações burocráticas existentes na nossa sociedade, desde o Estado passando por diversas outras, até chegar àquelas que são consideradas da população ou de setores dela, como partidos e sindicatos.
[12] Sem dúvida, alguns partidos políticos mais extremistas pregam a revolução social. Porém, sua concepção de revolução é burguesa e institucional, se caracterizando pela tomada do poder estatal segundo a concepção insurrecionalista de Lênin.
[13] Assim, num quadro comparativo com as fases apresentadas por Amaral Vieira, podemos fazer as seguintes observações: as lutas imediatistas são próximas da que Amaral Vieira denominou “delinquência”; as lutas estilistas são próximas ao que ele colocou como fase cultural e citou Beatles e Hippies; as lutas institucionais, autônomas e revolucionárias são próximas ao que ele denominou “protesto político”.
[14] Segundo conceitos de Ernst Bloch, a utopia abstrata é aquela que não apresenta suas formas de concretização e portanto se aproxima do significado comum da palavra, um sonho irrealizável, e a utopia concreta é aquela que supera essa lacuna e se constitui como uma consciência antecipadora do futuro (BICCA, 1987).
[15] A concepção de Marx nada tem a ver com a concepção leninista, pois no primeiro caso a ditadura é da classe que era a maioria da população, o que significa a realização mais perfeita daquilo que se convencionou chamar “democracia”, e no segundo uma ditadura de um partido que toma o poder estatal.
[16] Outra fonte das concepções autogestionárias no interior do marxismo foi Rosa Luxemburgo e outras tendências, como a esquerda extraparlamentar na Inglaterra, de Sylvia Pankhurst e Guy Aldred, que exercerá influência sobre o grupo Solidarity nos anos 1960/1970.
[17] Nessa revista e momento, sociólogos como Gurvitch, Gorz e Lefebvre (que tinha sido expulso do Partido Comunista), sem ligações com grupos políticos ou acadêmicos, grupos acadêmicos, como os representantes da Análise Institucional (Lapassade, Lourau, Lobrot, entre vários outros), e pequenos grupos políticos se articulavam na defesa teórica da autogestão social e nesse processo realizavam uma releitura de Marx (GUILLERM e BOURDET, 1976; BOURDET, 1972; BOURDET, 1974) sem a mediação leninista, propuseram propostas práticas como a da autogestão pedagógica (Lapassade, Lourau, Lobrot), análises das experiências históricas de autogestão, o problema educacional, etc.
[18] Ratgeb é pseudônimo de Raol Vaneigen, um dos principais representantes intelectuais da Internacional Situacionista ao lado de Guy Debord.
[19] Existe uma extensa e ampla bibliografia (NIETO, 1971; DEL VAL, 1971; PRÉVOST, 1973) sobre esse acontecimento histórico, partindo de perspectivas teórico-metodológicas e também políticas distintas e não poderemos, por questão de espaço e tempo, apresentar estas diversas análises deste fenômeno e por isso nos limitares a apresentar uma breve síntese do mesmo. A bibliografia sobre esse acontecimento histórico pode ser consultada com relativa facilidade no caso francês, já no caso alemão, que também assumiu forte radicalidade, a bibliografia é mais restrita, e mais ainda nos demais casos, como o italiano e espanhol;
[20] Sem dúvida, muitas outras formas de classificar essa fase do capitalismo foram produzidas, desde a tese clássica do “capitalismo monopolista de Estado”, do Partido Comunista Francês e expresso no manual de Paul Boccara, passando pela tese do “capitalismo tardio”, de Ernest Mandel (1985), até chegar às concepções que abordam o fordismo. A base de nossa qualificação se encontra fundamentada em Viana, 2009.
[21] Apesar de seus limites, a evolução dos acontecimentos apresentada por Garaudy reflete aproximadamente o que ocorreu naquele contexto (GARAUDY, 1970).
[22] “A greve geral paralisa a França completamente. A CGT se esforça para decantar, separar, isolar a ‘realista reivindicação salarial’ da ‘utópica, brumosa e provocadora’ aspiração autogestionária. Que se recorde que a autogestão permanece condenada por todos os PCs com exceção do iugoslavo” (MATTOS, 1981, p. 72).
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Publicado em:
VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios Sobre a Condição Juvenil. São Paulo: Giostri, 2015.