Nietzsche, Vontade de Potência e Irracionalismo
Resumo:
O artigo apresenta
as ideias fundamentais de Nietzsche, reconstituindo o seu pensamento como uma
totalidade coerente, apesar da falta de sistematicidade, que é oriunda de sua
filosofia. O texto aponta para a hipótese de que sua concepção é irracionalista
e que a ideia fundamental de toda sua filosofia e que fornece coerência ao seu
pensamento é a da “vontade de potência”, o que é complementado com algumas
considerações críticas sobre o se pensamento.
Palavras-chave:
irracionalismo, Nietzsche, vontade de poder.
Abstract:
The article presents the ideas basic of Nietzsche, reconstituting its
thought as a coherent totality, although the lack of systematic organization,
that is deriving of its philosophy. The text points with respect to the
hypothesis of that its conception is irrationalist and that the basic idea of
all its philosophy and that supplies coherence to its thought is of the “will
of power”, what is complemented with some critical considerations on if the
thought.
Key-words: irrationalism, Nietzsche, will of power.
A filosofia de Nietzsche é uma das mais difíceis de
compreensão. Isto é derivado tanto de sua forma de exposição (aforismos, por
exemplo), quanto pelas diversas mudanças ocorridas em seu pensamento e da falta
de clareza típico das especulações filosóficas, o que é reforçado pela
diversidade de interpretações de sua obra. Para alguns, Nietzsche é o precursor
do nazismo; para outros, é um autor próximo ao anarquismo. Hoje, ele é
resgatado pelo pós-estruturalismo. Outras interpretações existem e muitas vezes
antagônicas.
Partimos de uma perspectiva determinada, como não
poderia deixar de ser. Toda interpretação parte de uma determinada perspectiva.
O nosso ponto de partida é a perspectiva geral que possuímos aliada a uma
determinada forma de leitura derivada desta perspectiva. Porém, a forma como
compreendemos a perspectiva é bem diferente daquela apresentada por Nietzsche
com seu perspectivismo (Viana, 2007a; Viana, 2007b), que discutiremos adiante.
Assim, analisaremos a obra de Nietzsche buscando
compreender a sua essência e o seu processo de formação. Não se trata, como
diversos comentaristas fizeram, de comentar suas diversas obras
cronologicamente. Este procedimento, além de ser pouco didático para o leitor e
pouco claro, talvez revelando não compreensão da totalidade do pensamento do
autor em questão, é muito pouco útil para apresentar a concepção de um
pensador, gerando, inclusive, diversas repetições. Pretendemos aqui sintetizar
em poucas páginas os elementos fundamentais de seu pensamento. As repetições,
no entanto, ocorrerão, já que o pensamento de Nietzsche é bastante circular,
voltando sempre ao mesmo ponto. Mas não somente devido a isso, já que a
repetição está presente em toda sua obra, juntamente com a falta de uma maior
organização do pensamento deste filósofo, o que faz ele ir e voltar ao mesmo
tema e problema, retomar e ir adiante retomando mais uma vez.
Sendo assim, não apresentaremos, como alguns fazem, o
seu pensamento em três fases (Marton, 1993) e sim expor suas idéias
fundamentais, tomando como fundamental a sua última fase, e, as obras das demais
fases são percebidas como forma rudimentar de algumas teses desenvolvidas ali
ou problemas que não recebiam ainda a solução posterior. Em tal processo – por
questão de espaço, que limita a possibilidade de uma análise mais extensa da
obra deste filósofo –, alguns temas relativamente importantes no conjunto do
pensamento de Nietzsche e outros diversos sem grande importância terão que ser
deixados de lado. Neste sentido, nossa leitura parte da concepção de que a obra
de Nietzsche forma um todo coerente, embora sua coerência seja sui generis, isto é, marcada pela falta
de sistematicidade e organização, oriunda de sua própria filosofia, tal como
colocaremos no decorrer deste texto.
A Vontade de Potência
A base da filosofia nietzschiana é o irracionalismo.
Apesar de alguns contestarem esta interpretação, o conjunto da obra deste
filósofo e suas teses fundamentais apontam para isso. O ponto de partida de
Nietzsche é a crítica da metafísica, identificado com o platonismo e outras
expressões filosóficas que partem da razão como elemento fundamental da reflexão
filosófica. A chamada primeira fase de seu pensamento expressa um filósofo
iniciante buscando na filosofia e cultura existentes manifestar suas idéias ainda
em elaboração. A ligação com Richard Wagner, a influência de Kant e
principalmente Schopenhauer, expressam esta procura. A fase da procura é
desdobrada na fase seguinte, marcada pela influência positivista e pela
preocupação metodológica. No entanto, não se deve iludir com tal influência.
Nietzsche não era um positivista neste período, como alguns dizem, pois era apenas
um pensador que, durante sua busca, teve influências que, no entanto, não eram
a forma do seu pensamento e sim uma apropriação indecisa e eclética. A terceira
fase é a fase da síntese e organização do seu pensamento, embora de forma pouco
organizada e sistemática, ao contrário de outros sistemas filosóficos
produzidos por outros filósofos.
Os aforismos são não apenas exemplo de estilo, mas de produto de uma
determinada perspectiva.
A grande questão para o pensamento de Nietzsche e que
é a base de sua construção filosófica é a chamada “vontade de potência”. A
origem da concepção nietzschiana de vontade de potência remonta sua visão da Grécia
antiga. A oposição entre o dionisíaco e o socrático está na base de sua
formulação de vontade de potência. Nietzsche parte da crítica de Sócrates e da
filosofia grega posterior a ele, socrática, tal como em Platão e Aristóteles,
colocando que este filósofo iniciou a longa carreira da metafísica e originou a
separação entre pensamento e vida. Neste sentido, Sócrates e Platão são
“pseudo-gregos” ou “antigregos”.
Essa irreverência de considerar os
grandes sábios como tipos de decadência nasce em mim precisamente num caso em
que o preconceito letrado e iletrado se opõem com maior força: reconheci em
Sócrates e em Platão sintomas de decadência, instrumentos da decomposição
grega, pseudo-gregos, anti-gregos (Nietzsche, 1984a, p. 18).
Isto significou uma decadência da filosofia. O
filósofo-legislador, aquele que manifestava a vida ativa e o pensamento
afirmativo, o filósofo pré-socrático, é substituído pelo filósofo metafísico. O
primeiro realizava a crítica de todos os valores estabelecidos e era um criador
de novos valores, enquanto que o metafísico passou a enquadrar a vida e opor a
ela valores considerados superiores. Sócrates – o mais sábio dos tagarelas,
segundo Nietzsche – é o fundador da metafísica, pois ele foi o responsável pela
separação entre a essência e a aparência, a verdade e a falsidade, o
inteligível e o sensível.
Assim, surge o filósofo metafísico em oposição ao
filósofo dionisíaco e trágico que o antecedeu. O trágico, ligado a vida, é
substituído pelo metafísico, o pensamento separado da vida. Surge uma era da
razão, no qual os valores superiores passam a ser o Verdadeiro, o Belo, o Bem,
entre outros. A concepção anterior, expressa na tragédia grega, revela a
unidade da vida e da morte, pensamento e vida. Para Nietzsche, “em todos os
tempos os sábios fizeram o mesmo juízo da vida: ela não vale nada” (Nietzsche,
1984a, p. 17). Sócrates, que pertencia ao populacho, era feio, e a feiúra é o
sinal de uma evolução descendente, tal como os criminólogos dizem que o tipo
criminoso é feio (Nietzsche, 1984a). Assim, o pensamento socrático e
metafísico, doravante hegemônico, substitui a unidade de pensamento e vida presente
na visão de mundo dionisíaca e realiza a decadência da filosofia, e isto vai
ter continuidade no platonismo.
A partir da oposição entre homem teórico e homem
trágico, Nietzsche considera toda a filosofia grega posterior, identificada por
ele com o platonismo, como manifestação da metafísica e do predomínio do
primeiro sobre o segundo. Daí sua crítica e negação da metafísica. Porém, o
cristianismo também passa a ser alvo do filósofo e, no entanto, não significa
nada mais do que a continuação da metafísica, segundo sua concepção. Para
Nietzsche, o cristianismo é um platonismo popular, ou, em outras palavras, um
platonismo de escravos. A relação entre cristianismo e moral dos escravos é um
dos pontos básicos da filosofia nietzschiana:
A rebelião dos escravos na moral
começou quando o ódio começou a produzir valores, o ódio que tinha a
contentar-se com uma vingança imaginária. Enquanto toda a moral aristocrática
nasce de uma triunfante afirmação de si mesma, a moral dos escravos opõe um
‘não’ a tudo o que não é seu; este ‘não’ é o seu ato criador. Esta mudança
total do ponto de vista é a própria do ódio: a moral dos escravos necessitou
sempre de estimulantes externos para entrar em ação; a sua ação é uma reação. O
contrário acontece na moral aristocrática: opera e cresce espontaneamente e não
procura o seu antípoda senão para se afirmar a si mesma com maior alegria; o
seu conceito negativo ‘baixo’, ‘vulgar’, ‘mau’, não é senão um pálido contraste
e muito tardio, se se comparar com o seu conceito fundamental impregnado de
vida e de paixão, ‘nós os aristocratas, nós os bons, os formosos, os felizes’.
Quando o sistema aristocrático erra e peca contra a realidade, está numa esfera
que desconhece e desdenha, é a esfera do povo baixo. Mas por muito que falseie
a imagem percebida, este costume de orgulhoso desdém e de superioridade, não é
tanto como a desfiguração violenta que o rancor e o ódio, põem na imagem do
adversário. No desdém aristocrático há muita negligencia e descuido, muita
alegria íntima e pessoal, para que o objeto possa transformar-se numa
caricatura, num mostro (Nietzsche, 1990, p. 28-29).
A moral dos escravos
surge do ódio e esta é a origem do cristianismo. Os fracos querem um dia ser
fortes. Um dia chegará o seu reino, afirma Nietzsche, e eles humildemente o
chamam de “o Reino de Deus”. Segundo
Nietzsche, “por cima da porta do paraíso cristão da ‘bem-aventurança eterna’
poder-se-ia escrever com maior razão: ‘também a mim o ódio eterno me criou’
(...)” (Nietzsche, 1990, p. 38).
O que a metafísica da
filosofia e a moral dos escravos produziram foi uma perversão dos instintos. Os
valores cristãos são valores de escravos. Ela se forma a partir de uma moral do
ressentimento. Esta moral do ressentimento tem como pilares a culpabilização do
outro pela própria fraqueza, o sentimento de culpa e o ideal ascético (aliás, é
aqui que muitos irão ver semelhanças entre a filosofia nietzschiana e a
psicanálise) (Nietzsche, 1990).
Na minha Genealogia da Moral apresentei, pela primeira vez,
psicologicamente, a idéia de contraste entre uma moral nobre e uma moral de
ressentimento, a última nascida do ‘não’ respeito da primeira: é a moral
judaico-cristã por inteiro. Para poder dizer ‘não’ em resposta a tudo o que
representa o movimento ascendente da vida, o bem nascido, o poder, a beleza, a
afirmação de si sobre a terra, foi preciso que o instinto de ressentimento
convertido em gênio, inventasse ‘outro’ mundo, por onde aquela ‘afirmação’ da
vida nos aparecesse como o mal, como a coisa reprovável em si (Nietzsche, 2000b,
p. 38).
Em oposição a esta
decadência da filosofia e ao domínio da metafísica, Nietzsche contrapõe a
vontade de potência. A vontade de potência é um dos termos fundamentais da
filosofia nietzschiana, mas é um dos menos compreendidos e um dos menos
abordados por alguns dos especialistas em seu pensamento. É na vontade de
potência que reside a base da concepção nietzschiana da filosofia e de sua
crítica da metafísica e do cristianismo, bem como de sua concepção
perspectivista e seu imoralismo, tal como colocaremos adiante.
O que é a vontade de
potência? Este termo, como alguns já colocaram, é geralmente mal interpretado.
Devido à concepção de Descartes, segundo a qual a vontade é uma faculdade,
muitos (Karl Jaspers, Martim Heidegger) interpretaram equivocadamente este
conceito nietzschiano (Moura, 2005). O próprio Nietzsche fez questão de
distinguir sua concepção e a concepção cartesiana (Nietzsche, 2004). Para
Nietzsche, a vontade de potência não é uma faculdade, não é produto da
consciência. A consciência foi transformada em algo em si que, no fundo, não
existe. A filosofia passou a buscar um mundo-verdade, criando e evocando um
valor sublime que não passa de uma criação de uma ficção útil ao seu criador.
Assim, Nietzsche busca destruir as bases desta concepção metafísica, e
questiona também a idéia de causa e o mecanicismo. Nietzsche também contesta o
hedonismo ao colocar que o homem não busca o prazer e não se esquiva do desprazer.
Em substituição a tudo isso, Nietzsche irá erguer um novo edifício ideológico
que terá como base a vontade de potência.
A vontade de potência não
é a mesma coisa que luta pela sobrevivência. Aqui reside um dos motivos da
crítica de Nietzsche a Darwin. Darwin postula algumas teses que entrarão em
desacordo com a filosofia nietzschiana. Para Darwin, distinguindo-se de
Lamarck, o meio cumpre um papel fundamental no processo da evolução (Viana,
2003). Nietzsche irá questionar a “influência das circunstâncias exteriores”,
bem como o papel do que é útil ser preservado. Além disso, para Nietzsche, não
são os mais aptos que sobrevivem, pois estes são uma minoria que é suplantada
pela maioria dos menos aptos. A crítica nietzschiana de Darwin tem sua razão de
ser a sua própria definição de vontade de potência. Para ele, o organismo não
luta pela vida, simplesmente, não busca a mera sobrevivência. Ele quer mais. É
este querer mais que é a base da vontade de potência. Ele fornece um exemplo
que ajuda a entender sua concepção:
Tomemos o caso mais simples, o da
nutrição primitiva: o protoplasma estende seus pseudópodes para buscar algo que
lhe resista; – não porque tenha fome, mas para pôr em ação sua vontade de
potência. Depois tenta suplantar esse algo, apropriá-lo, incorporá-lo. O que
chamamos nutrição é simplesmente a conseqüência, a aplicação dessa vontade
primitiva de tornar-se mais forte (Nietzsche, 2004, p. 265).
Assim, notamos a
diferença entre a concepção nietzschiana e a darwinista, pois apesar das
semelhanças, inclusive conseqüências convergentes, tal como na idéia da luta
pela sobrevivência e a sobrevivência dos mais aptos que pode, tal como na
doutrina da vontade de potência, resultar na defesa dos fortes contra os
fracos, o que se pode perceber em certos momentos na obra nietzschiana, as
bases das duas concepções são bem diferentes.
O desprazer pode ser
tanto um estímulo para superar obstáculos quanto pode, no caso do esgotamento,
ser um processo que representa a diminuição e enfraquecimento da vontade de potência.
O desprazer, portanto, ao contrário do que pensa a filosofia hedonista, pode
tanto fortalecer como enfraquecer a vontade de potência. O prazer, da mesma
forma, pode também executar os dois papéis. Para Nietzsche, existem duas
espécies de prazer. A primeira espécie é a do adormecer. Os seres esgotados
querem justamente a primeira espécie, querem o repouso, a paz, a tranqüilidade.
Este é o ideal de felicidade das religiões e das filosofias niilistas, e é a
preferência dos fracos. Ao contrário, “os ricos e os vivos querem a vitória, os
adversários suplantados, o transbordar do sentimento de potência sobre domínios
novos” (Nietzsche, 2004, p. 265). Segundo Nietzsche, as funções sadias de um
organismo apontam todas para a luta pelo crescimento dos sentimentos de
potência.
O homem não aspira à
felicidade, como coloca a psicologia, também amplamente criticada por
Nietzsche. Assim, Nietzsche diz que a planta não aspira à felicidade e as
árvores em uma floresta não lutam entre si pela felicidade e sim pela potência.
Daí o seu postulado fundamental:
Meu postulado – é necessário
recolocar o agente na ação, depois que o retiraram de uma forma abstrata, tendo
sido a ação assim esvaziada de seu conteúdo; é necessário retomar na ação o
objeto da ação, o ‘escopo’, a ‘intenção’, o ‘fim’ após tê-los retirado de forma
superficial, tendo sido a ação destarte esvaziada de seu conteúdo; todos os
‘escopos’, todos os ‘fins’, todos os ‘sentidos’, não são mais que meios de
expressão e metamorfose de uma única vontade, inerente a tudo que acontece, a
vontade de potência; ter fins, escopos, intenções, numa palavra querer,
equivale a querer tornar-se mais forte, querer crescer – e querer também os
meios para isso: o instinto mais geral e mais profundo em toda ação, na
prática, obedecemos sempre à sua ordem, porque nós somos essa ordem (Nietzsche,
2004, p. 268).
A vontade de potência é
um pathos que gera um devir e uma
ação. A vontade de potência é sempre a busca de “ser mais”. É o desejo de
tornar-ser mais forte, é “desejo de se apropriar, de se tornar senhor, de
aumentar, de se converter em mais forte” (Nietzsche, 2004). É um constante
superar a si mesmo (Nietzsche, 1984). Porém, pode se perguntar, isto ocorre na
esfera individual? Sendo assim, não haveria uma luta de todos contra todos? Já
que a vontade de potência não é uma característica apenas do ser humano, mas um
princípio vital de todos os organismos e seres vivos, então a natureza não
seria palco de uma eterna e infinita luta entre os seres existentes? Segundo
Nietzsche: na natureza, existe uma diversidade de quanta de forças em ação, que tem como essência exercer a potência
sobre outras quanta de forças. A vida
é vontade de acumular força, nenhuma quer tão-somente conservar-se, mas sim
ampliar-se. A vida aspira a um máximo de potência, aspirando a um excedente de
potências. Assim, para Nietzsche, a vontade de potência é a busca de mais
força.
Irracionalismo e Crítica da
Metafísica
A base da concepção nietzschiana é a idéia de
vontade de potência. A crítica que ele faz ao racionalismo e a metafísica tem
sua origem em tal idéia. Já colocamos alguns elementos desta tese. É por partir
da idéia de uma “vontade de potência” que ele irá recuperar o que pode ser
chamado “visão dionisíaca do mundo”.
É por isso que o mundo grego e sua tragédia serão abordados em várias obras de
Nietzsche. A base do irracionalismo nietzschiano reside na vontade de potência.
É por isso que Nietzsche
irá questionar a verdade, a metafísica, a religião. Elas seriam nada mais que
ilusões. Ou, em suas palavras, “aparências úteis”. Sua crítica da verdade é
bastante ampla e já realizamos alguns apontamentos sobre ela. “Todas as
hipóteses do mecanicismo, a matéria, o átomo, a pressão, o choque não são fatos
em si, mas interpretações com auxílio de ficções psíquicas” (Nietzsche, 2004,
p. 259). Mas o seu fundamento reside na idéia de que a vontade de potência é o
princípio vital determinante e que a realidade é um caos. Ela é, tal como já
foi colocado, um processo de forças em luta para adquirir mais força.
Em sua crítica à lógica
aristotélica, ele desenvolve alguns aspectos de sua concepção da realidade. O
princípio da não-contradição é o aspecto basilar de toda e qualquer
demonstração. Este princípio, no entanto, afirma algo sobre a realidade, o que
pressupõe um conhecimento deste por outro meio, e assim tal princípio quer
dizer que não podemos atribuir princípios contrários à realidade. No entanto,
também pode significar que não devemos atribuir princípios contrários à
realidade. No primeiro caso, os axiomas lógicos correspondem à realidade; no
segundo caso, são medidas para criar o conceito de realidade como se fosse
coisa real, de acordo com sua utilidade. “Ora, para poder afirmar a primeira,
impunha-se, como já indiquei, o prévio conhecimento do ser – o que, em
absoluto, não é o caso. O princípio não contém, portanto, um critério de
verdade, mas um imperativo ao tema do que deve passar por verdadeiro”
(Nietzsche, 2004, p. 239). Assim, a lógica aristotélica é reduzida a uma
construção ficcional e útil, nada mais do que isso.
A verdade, por
conseguinte, é também uma ficção útil. Não se trata de buscar uma nova verdade,
pois ela é tão-somente disfarce da vontade de potência.
A reflexão nietzschiana sobre a
ciência, quando confrontada com a problemática da arte em seus primeiros
escritos, tem como tema central uma crítica da verdade. O mesmo acontece quando
a relação é estabelecida com a moral. Em Nietzsche, a crítica nunca é uma
teoria do conhecimento que tenha por objetivo denunciar os pseudoconhecimentos,
suas ilusões, seus erros e estabelecer as condições de possibilidade da
verdade, o ideal do conhecimento verdadeiro. A novidade e a importância do
projeto nietzschiano em todas as fases de sua realização é a crítica, não dos
maus usos do conhecimento, mas do próprio ideal de verdade; é a questão, não da
verdade ou falsidade de um conhecimento, mas do valor que se atribui à verdade,
ou da verdade como valor superior; é a negação da prevalência da verdade sobre
a falsidade (Machado, 2002, p. 51).
Para Nietzsche, o
conceito é uma criação de algo igual em coisas desiguais, tal como no exemplo
da folha. O conceito de folha é algo impensável. Só se pode pensar em tal
conceito abolindo as diferenças individuais existentes. É um processo no qual
se deixa de lado o que é distintivo e cria-se uma igualação inexistente na
realidade. A verdade, assim, é uma criação de um conjunto de construções que se
tornam, após longo uso, canônicas, obrigatórias. “as verdades são ilusões, das
quais se esqueceu o que são (...)” (Nietzsche, 1991, p. 34). A sua definição de
verdade lhe retira qualquer caráter de valor superior:
A ‘verdade’ não é, conseqüentemente,
algo que exista e que devamos encontrar e descobrir – mas algo que é preciso
criar, que dá seu nome a uma operação, melhor ainda, à vontade de alcançar uma
vitória, vontade que, por si mesma, é sem finalidade: introduzir a verdade é um
processus in infinitum, uma
determinação ativa – e não a manifestação na consciência de algo que seja em si
fixo e determinado. É uma palavra para a ‘vontade de potência’ (Nietzsche,
2004, p. 245).
Se não existe uma verdade
ou a verdade, se ela é apenas uma ficção útil, um meio que se utiliza para
manifestar a vontade de potência, então como se percebe as formas de conceber o
mundo, a realidade? Ao lado da concepção da realidade como um encontro de
forças caóticas buscando ficar ainda mais fortes e da crítica da verdade, temos
o complemento que é a concepção nietzschiana das interpretações, o chamado
perspectivismo.
A consciência produz uma
imagem subjetiva do mundo. Este é o perspectivismo da consciência. O homem, e
não só ele, constrói, partindo de si mesmo, um mundo. Este mundo construído, é
assim feito por cada um de acordo com sua vontade de potência. Todo corpo específico
aspira a tornar-se mais forte e repelir o que impede sua expansão. Ele se
choca, assim, com os outros corpos que possuem a mesma aspiração. Neste
processo, ele acaba por criar um arranjo com outros corpos que são semelhantes
e realizam uma conspiração para conquistar a potência. As teses do
perspectivismo podem ser assim resumidas:
1) As categorias pelas quais todo o
conhecimento é possível são constructa,
ficções úteis, à primeira vista, ao serviço de uma fundamental força de
autopreservação ou vontade de viver.
2) Existe algo como coisa em si que
é referido sob várias denominações – caos, quantidade pura, diferença absoluta,
devir contínuo, etc. – a que não há acesso direto e é sempre ‘traduzível’ em
formas subjetivas ou, mais corretamente, interpretadas.
3) Toda perspectiva é interpretação
e ficção reguladora.
4) As ficções reguladoras,
categorias, não serão usadas num programa de inversão dos valores, isto é de
seu uso pela ‘grande razão’, como instrumentos de objetivação e sistematização,
mas seu uso visará sobretudo a descoberta da singularidade e a constituição de
complexidades não abstratas (Marques, 2003, p. 71).
Embora a interpretação de
Marques referente à Nietzsche seja excessivamente racionalista e a forma de
exposição acima tenha, devido a isso, elementos questionáveis, podemos dizer
que temos um resumo útil do significado do perspectivismo nietzschiano.
Realmente, para Nietzsche, as categorias e o conhecimento são ficções úteis e
reguladoras que estão a serviço da vontade de potência, elemento que Marques
coloca posteriormente em sua análise em substituição a autopreservação e
vontade de viver. A realidade é o caos e é interpretada a partir de uma
perspectiva, que é uma ficção reguladora criado por um corpo ou, no caso dos
seres humanos, por um indivíduo (que pode, como vimos, realizar “arranjos” com
outros indivíduos a partir de determinadas semelhanças). A perspectiva ideal
visa não constituir leis ou sistemas e sim descobrir singularidades e
complexidades não-abstratas.
Assim, a própria
existência é perspectivista, essencialmente interpretativa. É possível pensar
diferente, pois o espírito humano, durante tal análise, partirá de sua
perspectiva e unicamente dela, o que significa negar as demais perspectivas.
Isto é exemplificado na metáfora: “só podemos ver com nossos olhos” (Nietzsche,
2006, p. 251). Assim, o mundo é palco de uma infinidade de interpretações. A
realidade é o caos e as interpretações dela também.
Crítica da Moral e Imoralismo
Assim como a razão, a
ciência, a idéia de verdade, a moral também é analisada por Nietzsche como
sendo manifestação da vontade de potência. Nietzsche começa por demolir a
concepção de moral a partir de sua genealogia e etimologia. A palavra bom
deriva, em toda as línguas, de uma mesma mutação de sentido. Ela, em sua
origem, significava nobreza e distinção. Assim, a palavra bom revela a matriz
principal segundo a qual os nobres se consideravam superiores. Também
significou o “puro”, ariano, “de cabelos loiros”, etc. Nietzsche questiona se o
anarquismo, o socialismo e a tendência para a Comuna, “não são essencialmente senão
um monstruoso efeito de atavismo, de tal modo que a raça dos conquistadores e
senhores, a raça ariana esteja a caminho de sucumbir por completo?” (Nietzsche,
1990, p. 23). No fundo, segundo Nietzsche, a palavra bom pode ser derivada de
“guerreiro” e bonus seria o homem de luta.
Em alemão, gut significaria der Goettlhich, isto é, “divino”.
Nietzsche afasta a possível contradição que haveria entre o guerreiro e o
divino:
Se a transformação do conceito
político da proeminência num conceito psicológico é a regra, não constitui uma exceção
o que a casta mais elevada forma ao mesmo tempo da casta sacerdotal e prefira
um título que designe as suas funções. Deste modo a oposição ‘puro’ e ‘impuro’
serviu primeiramente para distinguir as castas e ali se desenvolveu mais tarde
uma diferença entre ‘bom’ e ‘mau’ num sentido já não limitado à casta. Evitemos
atribuir à idéia de ‘puro’ e ‘impuro’ um sentido demasiado rigoroso, demasiado
lato, e menos ainda um sentido simbólico. A palavra ‘puro’ designa simplesmente
‘um homem que se lava’, que se abstém de certos alimentos insalubres, que não
coabita com as mulheres sujas da plebe e que tem horror ao sangue e nada mais
(Nietzsche, 1990, p. 23-24).
Além disso, a
aristocracia sacerdotal tende a espiritualizar as oposições de valores, tal
como esta entre puro e impuro. No entanto, as castas começam a invejar-se
mutuamente e querer o domínio. A aristocracia guerreira e a aristocracia
sacerdotal passam a disputar o poder. A aristocracia guerreira valoriza a
musculatura, a saúde, enquanto que a aristocracia sacerdotal é o contrário. A
classe sacerdotal é a mais maligna, pois é a mais impotente e isto faz crescer
nela um ódio monstruoso, sinistro, intelectual e venenoso. É desta classe que
nasce os maiores vingativos da história. O exemplo mais notável é o dos
judeus.
Os judeus vingaram-se dos seus dominadores
por uma radical mudança dos valores morais, isto é, com uma vingança
essencialmente espiritual. Só um povo de sacerdotes podia obrar assim. Os
judeus, com uma lógica formidável, atiraram por terra a aristocrática equação
dos valores ‘bom’, ‘nobre’, ‘poderoso’, ‘formoso’, ‘feliz’, ‘amado de Deus’. E,
com o encarniçamento do ódio afirmaram: ‘só os desgraçados são bons; os pobres,
os impotentes, os pequenos, sãos os bons; os que sofrem, os necessitados, os
enfermos, sãos os piedosos, são os benditos de Deus; só a eles pertencerá a
bem-aventurança; pelo contrário, vós, que sois nobres e poderosos, sereis por
toda a eternidade os maus, os cruéis, os cobiçosos, os insaciáveis, os ímpios,
os réprobos, os malditos, os condenados...’ Todos sabem quem foi que recolheu a
herança destas apreciações judaicas... E recordo aqui o que noutro lugar (Para além do Bem e do Mal) disse: que
com os judeus começou a emancipação dos escravos na moral, esta emancipação que
tem já vinte séculos de história e que já hoje perdemos de vista por ter
triunfado completamente (Nietzsche, 1990, p. 25-26).
O ódio judaico,
transmutador de todos os valores, gerou um “amor novo”. Da mais sublime e
profunda forma de ódio surge a mais sublime forma de amor. Jesus de Nazaré era
a sedução mais irresistível que levaria aos valores judaicos. Assim, graças aos judeus, triunfou a moral do
povo, dos escravos, do populacho, do rebanho. A moral aristocrática foi
derrotada pela moral dos escravos. A moral fundada na auto-afirmação é
substituída pela moral negativa. A moral dos escravos diz não a tudo que não é
seu, ao contrário da moral aristocrática, que realiza um crescimento espontâneo
e só tardiamente irá criar o conceito negativo de “baixo”, “vulgar”, “mau”, em
contraste com a moral dos escravos.
O mau dos aristocratas é
distinto do mau dos escravos. O maligno para os escravos rancorosos é a idéia
original, fundadora, a base formadora da moral dos escravos. O mau para os
aristocratas é uma criação posterior, um acessório, algo complementar. A moral
dos escravos é, portanto, uma moral do ressentimento e é daí que aparecem suas
noções de bom e mau. A culpabilização do outro é uma das fontes da moral do ressentimento,
a moral dos escravos.
A moral dos escravos
também manifesta a questão da má consciência. O esquecimento é mais do que
geralmente se pensa, é um poder ativo, uma faculdade moderadora, é uma proteção
que permite a realização das demais funções, tal como governar. O esquecimento
é uma força, expressão de robusta saúde. No entanto, há também a memória, que
permite um equilíbrio com o esquecimento. O homem é um fazedor de promessas e
precisa ser educado, necessita de disciplina, e isto está na origem da
responsabilidade. Este processo educacional é a moralização dos costumes. Mas o
homem livre, aquele que pode fazer promessas, seria autônomo e supermoral. Mas
a consciência rompe com esta autonomia e além da moralidade. Antes do
cristianismo, fazer sofrer o outro causava um enorme prazer, era uma
“verdadeira festa”. “Ver sofrer, alegra; fazer sofrer, alegra mais ainda”
(Nietzsche, 1990, p. 55).
Estas reflexões não são para levar
água ao moinho do pessimismo, antes pelo contrário, e tanto que naquele tempo
em que a humanidade se não envergonhava ainda da sua crueldade, a vida sobre a
Terra era mais serena e feliz do que nesta época de pessimismo. O sombrio da
abóboda celeste cresceu em proporção da vergonha que o homem experimentou à
vista de outro homem. O olhar pessimista e fatigado, a desconfiança no enigma
da vida, a glacial negação ditada pelo enfado, não são os sinais
característicos daquela infância da humanidade; pelo contrário, verdadeiras
plantas dos pântanos necessitavam que se formasse o pântano, em que haviam de
viver; refiro-me ao doentio moralismo que ensinou o homem a envergonhar-se de
todos os seus instintos. Na sua porfia por ser converter em anjo (para não
empregarmos uma palavra mais dura), o homem conseguiu esta fraqueza do estomago
e esta linguagem mentirosa, que lhe tornam insípida e dolorosa a vida (...)
(Nietzsche, 1990, p. 55-56).
A crueldade não foi
extinta, apenas se revestiu com novas cores, se espiritualizou. A origem da “má
consciência” (remorso, “sentimento de culpa”) foi resultado do movimento
histórico que engendrou uma transformação contra a qual não se poderia lutar. A
organização das aves de rapina, de uma raça de conquistadores e senhores, que
exercia uma tirania, através de um estado primitivo que funcionava como uma máquina
sangrenta e desapiedada. A origem do sentimento de culpa pode ser encontrada na
consciência de ter uma dívida para com a divindade. Este sentimento não cessou
crescer e com a evolução do conceito humano de Deus até chegar ao Deus cristão,
a mais alta expressão do divino, fortaleceu cada vez mais. O homem interioriza
a consciência da dívida com seu credor, Deus.
Assim, o homem passa a torturar-se a si mesmo. Assim, o torturado é
vítima de sua própria obrigação para com Deus, o instrumento da tortura. Essa
crueldade psíquica de se achar culpado revela uma espécie de demência da
vontade.
O terceiro elemento da
moral dos escravos é o ideal ascético. Os artistas, os sacerdotes, os
filósofos, são propensos ao ascetismo? O ideal ascético está presente nos
filósofos de forma mais exemplar. Eles consideram necessário se libertar das
obrigações, dos deveres, dos cuidados, da desordem, do ruído. Eles defendem as
três palavras mágicas do ascetismo: pobreza, humildade e castidade. “O filósofo
distingue-se em evitar três coisas brilhantes e ruidosas: a glória, os
príncipes e as mulheres” (Nietzsche, 1990, p. 98). “O artista sabe quão
prejudicial é o comércio com a mulher nos dias de grande tensão de espírito e
preocupação intelectual” (Nietzsche, 1990, p. 99). A renúncia radical expressa
pelo ascetismo contribui com o desenvolvimento de uma espiritualidade superior
e é, ao mesmo tempo, sua conseqüência.
A finalidade do ideal
ascético, no entanto, é mais clara no sacerdote do que no artista ou no
filósofo. O sacerdote é o representante
do espírito sério. “O sacerdote tirou do seu ideal ascético não só a sua fé,
mas também a sua vontade, o seu poder, o seu interesse” (Nietzsche, 1990, p.
104). Esta espécie inimiga da vida é contraditória, mas deve ser a própria vida
que cria, por algum interesse, este tipo contraditório. Porém, esta negação da
vida é aparente. O ascetismo tem sua origem em um instinto profilático de uma
vida em estado de degeneração. A vida procura se conservar sob todas as formas
possíveis. Ela inventa sempre novos artifícios e o ascetismo é um destes
artifícios. O sacerdote é a encarnação da luta pela sobrevivência, garantidor
da vida. Ele conserva a vida dos defeituosos, extraviados, enfermos,
desgraçados. Não são os maus o maior perigo para a humanidade e sim os doentes.
“Os desgraçados, os vencidos, os impotentes, os fracos são os que minam a vida
e envenenam e destroem a nossa confiança” (Nietzsche, 1990, p. 109). É deste
terreno que brota a erva venenosa, de onde nasce a conjuração dos doentes
contra os robustos e os triunfantes. É de onde brotam o ódio e o rancor. Esses
incuráveis monopolizam a virtude e se declaram os únicos bons. Entre eles,
muitos vingativos, clamando por justiça e usando a máscara de juízes.
Veja-se o que se passa no recôndito
de todas as famílias, de todas as corporações e comunidades; por toda a parte a
luta dos doentes contra os sãos; uma luta quase sempre secreta. Cita de pós
envenenados, de alfinetes, de semblantes astutamente resignados e às vezes
revestidos de uma hipócrita ‘nobre indignação’. Até nos sacrossantos domínios
da ciência, se houvem os ladridos destes cães doentes, o raivoso rancor, o
espírito de mentira destes nobres fariseus (por exemplo, aquele berlinense
apóstolo da vingança, Eugenio Duhring), o charlatão-mor destes reinos,
incluindo entre os seus amigos os antigos semitas). Há nestes homens
rancorosos, nestes degenerados, uma sede de vingança subterrânea, insaciável,
inesgotável contra os bons, engenhosa em máscaras e pretextos. Quando
alcançarão o triunfo sublime e definitivo desta vingança? Indubitavelmente
quando conseguirem infundir na consciência dos felizes a sua própria miséria
(Nietzsche, 1990, p. 110-111).
O sacerdote ao pregar o
amor ao próximo reforça o instinto da vontade de potência. O cristianismo
primitivo se fundava em associações para proteger os pobres, sociedades de
ajuda mútua, etc. Os doentes possuem o instinto de se organizar em rebanho. O
sacerdote os organiza tendo por base este instinto. Os fracos buscam se unir,
os fortes se separar. Os fracos se unem por prazer, os fortes para uma ação
comum mesmo que isto lhes contrariem. A ciência moderna se revela o melhor
auxiliar do ideal ascético, por isso seria vão buscar nela um antídoto para tal
doença. O ideal ascético foi purificado, espiritualizado, polido.
A moral, portanto, é
sinal da decadência. Nietzsche, ao negar a moral produz um imoralismo. A
crítica da moral que se vê em diversas obras de Nietzsche, e que se manifesta
principalmente como crítica do cristianismo (Nietzsche, 2004b; Nietzsche,
2000a; Nietzsche, 2000b), busca revelar suas origens nas classes inferiores. A
moral e os seus valores considerados “superiores” são negados e em seu lugar
Nietzsche propõe a transmutação de todos os valores. Isso significa abandonar a
moral e os valores que ela prega, tal como o amor ao próximo, e em seu lugar
instaurar o imoralismo, a recusa da moral enquanto valor e novos valores, os do
homem nobre, ou melhor, o do super-homem.
A idéia de super-homem é
o desfecho final da filosofia nietzschiana. O super-homem é aquele que está
além do bem e do mal (Nietzsche, 2000b), é o que assume a vontade de potência e
busca realizá-la abandonando qualquer moral. O homem superior nega a moral do
populacho e decreta a morte de Deus. Quando se diz “somos todos iguais perante
a Deus”, ele retruca: Deus está morto. Quando se diz: “somos todos iguais
diante do populacho”, ele retruca: “perante o populacho não queremos ser
iguais” (Nietzsche, 1984b, p. 217). A idéia de super-homem é a idéia da
aristocracia que não se envergonha de si, de seu poder, de sua vontade de
potência, que não quer a paz, mas a guerra. Assim, o imoralismo abre espaço
para a defesa do super-homem, o homem além do bem e do mal, que exerce
conscientemente sua vontade de potência. Assim falava Nietzsche.
Considerações finais
A obra de Nietzsche é
extensa, apresentando uma diversidade de livros. Porém, tal obra é perpassada
pela mesma idéia chave que é a da vontade de potência. A base de toda a
filosofia nietzschiana é a vontade de potência. Sem dúvida, poderíamos colocar
que os problemas psíquicos deste pensador tenha sido a fonte de sua filosofia,
mas isto apenas explicaria a motivação de tal filosofia, mas não suas teses
fundamentais, seus desdobramentos, suas limitações. A loucura pode explicar
Nietzsche e a motivação de sua filosofia, mas não é suficiente para a sua
análise enquanto filosofia.
A vontade de potência,
idéia chave de Nietzsche, é uma cosmologia que não tem nenhuma fundamentação
além das próprias palavras do pensador que a produziu. Sem dúvida, em certo sentido,
existem elementos na realidade que coincidem com a tese nietzschiana. Porém,
enquanto doutrina universal da vida, a concepção de Nietzsche se revela
infundada e muito pobre. Trata-se de mera especulação que não dá conta da
realidade que busca expressar. E é com base nesta filosofia especulativa da
vida que ele irá produzir sua concepção irracionalista e imoralista.
O irracionalismo nietzschiano
possui dois problemas fundamentais. O primeiro é a sua recusa da verdade, que é
em si uma contradição. Ao afirmar que não existe a verdade e ela sendo apenas
manifestação de uma ficção útil, então o seu postulado não é verdadeiro, é tão
fictício quanto qualquer outro postulado. Poder-se-ia dizer que isto não é uma
contradição, pois é uma confirmação do seu postulado, a da inexistência da
verdade. Assim como todas as demais pretensas verdades, a idéia nietzschiana é
uma ficção útil e nada mais. Porém, aqui se mantém a tese da veracidade do seu
ponto de partida.
A idéia nietzschiana da
inexistência da verdade seria verdadeira, ou seja, isto é uma contradição
insolúvel. Também é possível se argumentar, em defesa de Nietzsche, que ele
condena a lógica aristotélica e o postulado da não-contradição. Sem dúvida, mas
isto não anula a contradição de seu discurso e que dizer que não pode haver
contradição na realidade é uma coisa, e dizer que não pode haver contradição no
discurso é outra coisa. Caso pudesse haver contradição nos discursos, a
comunicação humana estaria inviabilizada. Nietzsche cai em contradição e isso mostra
a fragilidade de suas bases filosóficas.
Mas a idéia de ficção
útil deve atingir também o seu postulado de vontade de potência. Se a idéia de
uma “vontade de potência” é uma ficção útil, então ela não é verdade e logo não
pode ser base para a existência de diversas outras ficções. Sendo assim, o seu
discurso é autofágico, destrói a si mesmo. Ao mesmo tempo é revelador, no
sentido de que ele mostra que ele criou ficções úteis para ele, de acordo com a
vontade de potência que ele, enquanto indivíduo, possuía, para justificar e
legitimar o seu irracionalismo e imoralismo.
O segundo problema
fundamental da filosofia nietzschiana é a sua teoria da realidade como caos de
forças em busca de mais força, que não é comprovada em lugar algum, combinada
com a recusa do conceito. Não se pode dizer “a folha”. Sem dúvida, Nietzsche
comete o equívoco de considerar uma palavra qualquer com um conceito, o que
significa desconhecer a diferença entre linguagem comum e linguagem complexa
(científica, filosófica, etc.).
Mas deixando isto de lado e partindo para sua afirmação, ela tem como postulado
fundamental a diferença absoluta entre os seres. Tal diferença absoluta é
apenas uma invenção nietzschiana. As folhas, concretas, são diferentes, sem
dúvida. Porém, não possuem apenas diferenças. Também possuem semelhanças. É
devido a estas semelhanças que se torna possível chamar de folha um conjunto de
folhas diferentes. Os macacos são seres singulares, diferentes, mas que possuem
semelhanças e por isso podemos qualificá-los como macacos.
Além disso, Nietzsche cai
em nova contradição, pois, ao declarar a impossibilidade do conceito, ele
demonstra que sua própria filosofia é uma impossibilidade, pois os termos que
ele utiliza e generalizações que realiza através deles, tal como moral,
aristocracia, escravos, vontade de potência, judeus, mulheres, bem, mal,
perspectiva, etc., é exatamente o processo de igualação que ele havia
criticado. A realidade não é o caos. Este suposto caos é uma atribuição que
Nietzsche lhe dá.
Neste sentido, se o
postulado da vontade de potência é uma filosofia especulativa da vida sem base
concreta e se o irracionalismo que lhe é derivado não se sustenta, então o seu
imoralismo também cai por terra, bem como os seus corolários, tal como a transmutação
de todos os valores e o super-homem. A moral não é uma produção apenas dos
escravos. Nietzsche forçou a história para dizer o que queria dizer. A sua tese
se fundamenta na origem etimológica da palavra bom, o que não se sustenta, pois
a mutação do sentido de uma palavra nunca ocorre isoladamente, o que significa
que ele deveria ter analisado a mutação social e lingüística mais ampla para
entender o real significado da mudança.
A falta de senso
histórico em Nietzsche, apesar de tentar realizar uma genealogia e uma história
natural da moral, é visível.
Ele nunca se dispôs a ir até a realidade concreta, preferiu se refugiar, como a
filosofia em geral faz, em especulações. Sua suposição de uma classe
aristocrática e de escravos não possui historicidade, não apresenta o seu
momento de surgimento e nem sua superação na sociedade moderna e nas mudanças
que ocorreram devido a isso. Sua concepção é a-histórica. Mas além de
a-histórica, não é fundamentada, pois sua genealogia é apenas uma atribuição
bastante superficial de significados a alguns poucos acontecimentos históricos
selecionados por ele. O seu imoralismo se fundamenta numa crítica da moral que
é limitada e que não se sustenta.
Apesar de todas estas
limitações e problemas,
a filosofia de Nietzsche tem algum valor. Sem dúvida, sua genealogia da moral
serve como elemento de contribuição para uma história da moral e suas bases
sociais, desde que ganhando precisão e historicidade e abandonando os
preconceitos do filósofo. O mesmo se pode dizer de seu perspectivismo, que é
uma contribuição para se pensar as bases do pensamento e suas fontes sociais,
algo que ele não desenvolveu devido o seu apego a sua tese metafísica da
diferença absoluta e da vontade de potência. Desta forma, tal como Scheler e
outros filósofos, Nietzsche oferece uma certa contribuição para o que alguns
chamam “sociologia do saber”, ou, mais exatamente, para uma história da
consciência social.
Porém, no conjunto, a
obra de Nietzsche é bastante limitada, apesar do seu sucesso. A razão de tal
sucesso tendo em vistas as referidas limitações seria um outro tema para
estudo, o que não nos propomos aqui. Em síntese, a filosofia de Nietzsche é uma
concepção metafísica da vida que quis dar conta da totalidade das manifestações
culturais e que fracassou por partir de bases equivocadas.
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Publicado
originalmente em:
VIANA, Nildo. Nietzsche: Vontade
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