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segunda-feira, 31 de julho de 2017

Materialismo Histórico e História do Cinema



Materialismo Histórico e História do Cinema

Nildo Viana

Resumo:  A historiografia tradicional do cinema é descritiva e pouco contribui para um entendimento das mutações do processo de produção dos filmes e dos conteúdos veiculados por eles. Os poucos estudos de orientação marxista sobre o cinema padecem de problemas metodológicos e teóricos devido a influência da teoria do reflexo de Lênin e da estética realista derivada dela. O materialismo histórico assume, portanto, um papel fundamental para ultrapassar tantos os limites da historiografia tradicional do cinema quanto as contribuições pretensamente marxistas nesta área. As categorias de totalidade e determinação fundamental e os conceitos de capitalismo, luta de classes, ideologia, entre outros, são a chave para a produção de uma reconstituição histórica do cinema tendo por base o materialismo histórico.
Palavras-Chave: História do Cinema, Materialismo Histórico, Filme, Totalidade, Ideologia.

Abstract: The traditional historiography of the movies is descriptive and little contributes to an understanding of the mutations of the process of production of the films and of the contents transmitted by them. The few studies of Marxist orientation on the movies suffer of methodological and theoretical problems due to influence of the theory of the reflex of Lênin and of her derived realistic aesthetics. The historical materialism assumes, therefore, a fundamental paper to surpass so many the limits of the traditional historiography of the movies as the contributions supposedly Marxists in this area. The totality categories and fundamental determination and the concepts of capitalism, fight of classes, capital accumulation, ideology, among other, they are the key for the production of a rebuilding history of the movies tends for base the historical materialism. 
Word-keys: History of the Movies, Historical Materialism, film, totality, Ideology. 

O presente texto visa discutir, do ponto de vista teórico-metodológico, a história do cinema numa abordagem marxista. Isto significa, em primeiro lugar, que não se trata de re-apresentar uma história do cinema, mas sim discutir, por um lado, a historiografia tradicional do cinema e, por outro, as contribuições de pesquisadores influenciados pelo marxismo e a contribuição teórico-metodológica do materialismo histórico-dialético para a análise do cinema. Iniciaremos apresentando uma breve reflexão sobre a relação entre história e cinema, para depois introduzir a questão da historiografia tradicional do cinema e seus limites. Após esta parte mais geral, iremos apresentar as concepções ditas marxistas e sua análise do cinema, para, posteriormente, apresentar uma reflexão sobre a contribuição do materialismo histórico ao estudo da história do cinema. Assim, o percurso deste trabalho aponta para a necessidade de uma revisão da historiografia do cinema e de se produzir um arcabouço teórico-metodológico para tal, cuja base é o materialismo histórico, possibilitando assim a produção de uma nova perspectiva para a história do cinema.
História e Cinema
A relação entre história e cinema pode ser abordada sob variadas formas. O historiador Marc Ferro (1992), autor de vários artigos sobre cinema que depois se tornou cineasta-documentarista, discute as formas de se entender a relação entre cinema e história. Segundo este autor, é possível compreender esta relação a partir de três prismas: o do cinema como agente da história, o da leitura cinematográfica da história e o da leitura histórica do cinema. O cinema como agente da história busca abordar a influência social do cinema, destacando o momento quando se torna instrumento de propaganda política, tal como ocorreu durante o nazismo na Alemanha e o Stalinismo na Rússia. A leitura histórica do filme, que, segundo Ferro, permite “atingir zonas não visíveis do passado das sociedades”, pois pode revelar “as autocensuras e lapsos de uma sociedade, de uma criação artística”, ou “o conteúdo social da prática burocrática na época stalinista”. Já a leitura cinematográfica da história “coloca para o historiador o problema de sua própria leitura do passado” (Ferro, 1992, p. 19). Embora coloque estas questões, Ferro não as desenvolve, apenas exemplifica com suas análises de filmes. No entanto, o que observamos em Ferro é a visão do cinema enquanto documento histórico, isto é, como fonte para se repensar a história social, bem como o papel do cinema enquanto interventor no processo histórico.
Antônio Costa já coloca a relação entre história e cinema de forma diferente, embora inspirado em Marc Ferro. Para ele, as relações entre história e cinema podem ser resumidas em três formas: a) a história do cinema, que é abordada pela historiografia cinematográfica, que é uma “disciplina com metodologia própria e um objeto de investigação, como outras histórias setoriais” (Costa, 1989, p. 29); b) a história no cinema, que significa conceber os filmes como documentos históricos, útil para os historiadores que o consulta junto com outras fontes; c) O cinema na história, que toma os filmes enquanto agentes de propaganda política e difusão de ideologia, isto é, enquanto instrumentos capazes de intervenção social.
As observações de Ferro e Costa são interessantes, pois colocam em evidência o processo no qual o filme exerce influência social e seu caráter de documento histórico. Mas o terceiro elemento colocado por Costa, a da disciplina “história do cinema”, acaba sendo de fundamental importância, inclusive para o tratamento do cinema na história. É aqui que devemos colocar em questão o processo de pesquisa do cinema e ao fazê-lo, passamos a conceber qual é o papel social do cinema, bem como o seu processo de constituição.
No entanto, o processo de produção social do filme aparece relativamente ausente na abordagem dos dois autores citados. De nossa parte, o nosso interesse, no presente texto, é a história do cinema, isto é, o processo histórico de constituição e evolução dos filmes e os modos de se buscar reconstituir esta história. Isto traz diversas problemáticas, entre as quais a questão da historiografia do cinema e suas limitações; a questão metodológica; a própria concepção do que seja cinema e suas determinações e características. O filme como documento histórico é importante, bem como a influência social do filme e dedicaremos alguns apontamentos sobre isso no final do presente texto, pois consideramos que somente através da percepção da produção social do filme é que podemos avaliar adequadamente estes aspectos.
A historiografia do cinema deveria ter refletido e avançado nas questões de caráter teórico-metodológico, o que, no entanto, não ocorreu. Os historiadores do cinema são inúmeros. Temos as histórias clássicas do cinema de Sadoul e outros, bem como autores menos conhecidos que trabalharam a história do cinema. Alguns se dedicaram à história geral do cinema, outros a história nacional (história do cinema norte-americano, italiano, espanhol, etc.), ou em aspectos ainda mais particulares (história do cinema mudo, história dos filmes de faroeste, história do expressionismo alemão, etc.). No entanto, a grande maioria dos livros sobre história do cinema não foi produzida por historiadores e sim por profissionais da área de cinema e de outras áreas. Isto talvez explique parcialmente o estado rudimentar, do ponto de vista teórico e metodológico, da historiografia do cinema.
Se tomarmos a História do Cinema Mundial, de Georges Sadoul (1963), teremos o exemplar típico da historiografia do cinema e de seus limites. Nesta obra, considerada clássica, apenas temos a sucessão cronológica dos filmes, algumas breves informações sobre o contexto de sua produção e descrições sucintas dos conteúdos dos mesmos. O mesmo se pode dizer do pequeno livro de Gérard Betton (1989), História do Cinema, mais resumido, devido ao seu caráter de livro de bolso em apenas um volume, ao contrário do extenso livro de Sadoul. A lista poderia ser ampliada com o livro de Román Gubern (1982), História del Cine; Athur Knight (1970), Uma História Panorâmica do Cinema; passando também por obras que apresentaram aspectos mais específicos da história do cinema, tal como História Social do Cinema Americano, de Robert Sklar (1978), um livro mais ousado, no sentido de estabelecer conexões extra-cinematográficas de forma estrutural, mas que não consegue ir muito longe, por deficiências teórico-metodológicas.
Além destes, poderíamos citar as obras sobre cineastas, movimentos, gêneros ou épocas. No entanto, as limitações para uma abordagem histórica do cinema já se colocam ao escolher um determinado cineasta para análise (Chaplin, Griffith, Eisenstein, Orson Welles, etc.), inclusive cai na ilusão da autoria da produção cinematográfica pelo cineasta. Aliás, aqui se revela um dos maiores problemas da historiografia do cinema feita por não historiadores ou demais cientistas sociais: a sua submissão a uma ideologia cinematográfica, da qual trataremos adiante. Os livros sobre movimentos e tendências cinematográficas (expressionismo alemão, neo-realismo italiano, etc.) também apresentam os mesmos problemas de falta de base teórico-metodológica. Os livros sobre determinadas épocas do cinema também padecem da mesma limitação, tal como podemos observar no exemplo dos livros de Veillon sobre história do cinema americano. O que se vê em O Cinema Americano dos Anos Trinta (1992) e O Cinema Americano dos Anos Cinqüenta (1993) é um desfile descritivo tomando como parâmetro os cineastas. O mesmo ocorre nas obras dedicadas a determinados gêneros cinematográficos, como o Western, o Noir, etc., que não ultrapassam o caráter descritivo e/ou apologético, com raras exceções, que deixaremos para adiante.
Assim, o grande problema da historiografia tradicional do cinema é o fetichismo do cinema. A concepção fetichista do cinema se revela na idolatria: o cinema, um produto humano (e, portanto, social e histórico, o que traz inúmeras outras implicações) aparece como algo com vida própria, autônomo, independente. O criador se rende à sua criatura, que passa a ter uma “beleza própria”, uma “essência”, uma qualidade mágica. Na verdade, o fetichismo do cinema é nada mais do que o fetichismo da arte em uma forma particular. Segundo Bourdieu:
“O produtor do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de produção enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas necessárias para a conhecer e reconhecer como tal, a ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também a produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da obra” (Bourdieu, 1996, p. 259).
Assim, temos a criação do fetichismo, ou illusio, para usar linguagem de Bourdieu:
“Cada campo (religioso, artístico, científico, econômico, etc.), através da forma particular de regulação das práticas e das representações que impõe, oferece aos agentes uma forma legítima de realização de seus desejos, baseada em uma forma particular de illusio. É na relação entre o sistema de disposições, produzido na totalidade ou em parte pela estrutura e o funcionamento do campo, e os sistemas das potencialidades objetivas oferecidas pelo campo que se define em cada caso o sistema das satisfações (realmente desejáveis) e se engendram as estratégias razoáveis exigidas pela lógica imanente do jogo (que podem estar acompanhadas ou não de uma representação explícita do jogo)” (Bourdieu, 1996, p. 259).
Estas colocações de Bourdieu nos ajudam a entender o fetichismo do cinema. São os agentes envolvidos no processo de produção e reprodução de determinada forma artística, que criam o valor da obra de arte, e, mais que isso, criam a adesão, as crenças, o interesse, os critérios de análise de “competência estética”, etc. Esta religião laica, secular, se fundamenta muito mais em crenças do que em algo dotado de racionalidade, cristalizando e canonizando valores culturais que passam a ser tidos como naturais, essenciais, e, na maioria das vezes, inacessíveis aos não-iniciados, demasiadamente “brutos” e “ignorantes” para entender a magnitude de uma obra de arte, ou de um filme, para ser mais específico.
Depois dos especialistas e entendidos colocarem os meros mortais em seu devido lugar, estes se recolhem modestamente ao seu lugar, e assume sua ignorância e sua vontade de sair do mundo das trevas e um dia chegar ao mundo das luzes do saber artístico, ou, mais especificamente, do saber cinematográfico. Claro que os agentes de produção e reprodução do cinema compartilham e reproduzem tudo isso e mesmo alguns meros mortais e não-iniciados que, bastando ter um pouquinho de leitura sobre a arte em questão, já se sentem do seleto clube dos competentes para falar para seus oponentes “ignorantes” que seu gosto artístico é tão rude e ruim, “por que não entendem disso”, transformando em questão de “entendimento” o que é da esfera dos valores (Viana, 2002a).
O fetichismo do cinema transforma o filme em algo valoroso, grandioso, espetacular. Este processo de produção de idolatria é realizado pelos agentes de produção e reprodução do cinema. No entanto, uma vez que estes agentes produzem suas representações ilusórias sobre sua própria prática, eles abrem espaço para os ideólogos sistematizarem estas representações cotidianas e transformá-las em ideologias, isto é, uma falsa consciência sistematizada, sob linguagem científica (ou filosófica). Este é o mesmo processo que Marx analisou no que se refere ao processo de produção capitalista:
“É (...) igualmente natural que os agentes reais da produção se sintam completamente à vontade nessas formas alienadas e irracionais de capital – juros, terra – renda, trabalho – salário, pois elas são exatamente as configurações da aparência em que eles se movimentam e com as quais lidam cada dia. Por isso é igualmente natural que a Economia vulgar, que não é nada mais do que uma tradução didática, mais ou menos doutrinária, das concepções cotidianas dos agentes reais da produção, nas quais introduz certa ordem compreensível, encontre, exatamente nessa trindade em que todo o nexo interno está desfeito, a base natural e sublime, acima de toda e qualquer dúvida, de sua jactância superficial. Ao mesmo tempo, essa fórmula corresponde ao interesse da classe dominante, à medida que ela proclama e eleva a dogma a necessidade natural e legitimação eterna de suas fontes e rendimentos” (Marx, 1988, p. 262).
Assim, devemos distinguir entre as representações cotidianas que os agentes de produção e reprodução do cinema produzem, e a transformação destas representações em ideologia. A partir dos agentes de produção e reprodução do cinema e de suas representações ilusórias, se erigiu um conjunto de ideologias cinematográficas que, no seu período de formação, foram produzidas principalmente por alguns dos próprios agentes de produção do cinema. Posteriormente, também ideologicamente, estas concepções passaram a ser denominadas “teorias do cinema”, sendo, inclusive, título de várias obras (Stam, 2003; Tudor, 1985; Andrew, 2002; Kracauer, 1989; Aristarco, 1961). Tendo em vista que o número de ideologias cinematográficas é bastante extenso, iremos abordar apenas algumas delas – algumas sendo apenas citadas, outras sendo analisadas – e depois faremos uma avaliação geral destas ideologias.
As ideologias cinematográficas nascem com a própria origem do cinema. A partir do aparecimento do cinema os próprios envolvidos no seu processo de produção passam a elaborar teses formalistas, tecnicistas e normativas sobre o cinema. O nascimento do cinema provoca as primeiras observações sobre este novo fenômeno, mas as reflexões mais sistemáticas surgem com os próprios agentes da produção cinematográfica.
Segundo Aristarco, “o primeiro e verdadeiro iniciador da teoria cinematográfica é um italiano: Ricciotto Canudo” (1961, p. 101). O seu “Manifesto da Sétima Arte”, na qual afirma que o cinema é o resumo de todas as artes, é uma das primeiras manifestações de uma ideologia cinematográfica. Além dele, Louis Delluc e Germaine Dulac, não somente pioneiros na chamada “crítica cinematográfica” como cineastas experimentais do movimento do cinema impressionista francês, fizeram várias reflexões técnicas sobre a “nova arte”, e também fizeram parte da primeira safra de ideólogos do cinema na França.
Temos ainda a vertente russa de Vertov-Kulechov com a ideologia do cine-olho. Estes dois pioneiros do cinema russo, juntamente com outros cineastas russos, produziram uma das mais influentes ideologias cinematográficas, que recebe vários nomes, tal como cine-verdade, cine-câmara, cine-olho ou, de forma mais conhecida, “realismo socialista”. A idéia básica do movimento é a de reproduzir “a vida como ela é”. Todas essas ideologias cinematográficas, e outras do período, eram, entretanto, bastante incipientes e não tiveram grande influência posterior, com exceção do “realismo socialista”, que, no entanto, terá mais influência a partir da tendência de Eisenstein, que irá se diferenciar da tendência de Vertov.
Entre os mais destacados deste período de nascimento das ideologias cinematográficas temos Sergei Eisenstein e por isso iremos abordar sua concepção de forma mais detalhada. Ele se destaca como um artífice do cinema-montagem. Embora fazendo parte do conjunto de cineastas e ideólogos sobre cinema da URSS, ele se distinguia dos demais na sua concepção que posteriormente foi, ideologicamente, denominada “realismo socialista”. Por um lado, tínhamos a ideologia do cinema-verdade, ou cinema-olho. Esta concepção se fundamentava num realismo pobre, partindo do pressuposto de que o cinema deve simplesmente manifestar a realidade. Eisenstein, ao contrário, partia de uma visão diferente de realismo. Ele defendia o cine-punho em contraposição ao cine-olho. Ele escreveu o seguinte sobre a concepção de Vertov:
“O Kinoglaz [cine-olho – NV] é não só o símbolo de uma visão, mas também o de uma contemplação. Mas nós não devemos contemplar, mas agir. Não nos é necessário um ‘cine-olho’ mas um ‘cine-punho’. O cinema soviético deve rachar cabeças! E não é ‘pelo olhar reunido de milhões de olhos que nós lutaremos contra o mundo burguês (Vertov) – plantar-nos-ão a seguir milhões de lampiões sob esses milhões de olhos! Rachar cabeças com um cine-punho, nelas penetrar até à vitória final, e agora, diante da ameaça de contaminação da revolução pelo espírito ‘cotidiano’ e pequeno-burguês, rachar, mais que nunca! Viva o cinema-punho” (apud. Ramos, 1981, p. 69).
A base da concepção eisensteiniana é a ideologia leninista do reflexo, segundo a qual o conhecimento é um reflexo da realidade, concepção compartilhada por Vertov e os outros ideólogos cinematográficos russos do período. É por isso que a idéia do cine-olho foi desenvolvida por Vertov. Segundo este,
“A objetiva é exata, infalível e deve ser colocada no centro dos acontecimentos, dos fatos reais, rodados fora do estúdio, sem intervenção de atores, sem cenários, argumentos ou planificações. Eu sou o olho cinematográfico” (apud. Aristarco, 1961, p. 160).
Sua concepção nega o drama, considerado arma do capitalismo:
“O drama cinematográfico e a religião são armas mortais nas mãos dos capitalistas. O argumento é uma fábula acerca de nós inventada pela literatura. Abaixo a fábula-argumento! Viva a vida tal como é! O ‘Kino-glaz’ é ‘Kino-Pravda’, ‘cine-verdade’”(apud. Aristarco, 1961, p. 160-161).
Apesar da base ideológica ser a mesma, a ideologia leninista do reflexo, existia uma forte diferença entre as duas visões. A visão de Vertov é contemplativa, o cine-olho, tal como denunciado por Eisenstein, enquanto que este pensava na intervenção, o cine-punho. A raiz da diferença está na influência de Pavlov sobre Eisenstein. O psicólogo russo Pavlov produziu a ideologia dos reflexos condicionados, um derivado da ideologia leninista do reflexo e ficou famoso por suas experiências com cachorros.
“(..) a importância fulcral da montagem em Eisenstein (...) tem também a ver com as concepções que, então, a psicologia experimental fazia do psiquismo humano. Quando Eisenstein afirmava que ‘na obra de arte (...) é, antes de tudo, um trator que trabalha a fundo o psiquismo’, ele baseava-se numa visão de homem que era, essencialmente, a da escola russa de Pavlov, então considerada ‘oficial’ pelo poder soviético. A Pavlov se devem algumas descobertas fundamentais em torno da ‘teoria dos reflexos condicionados’. Segundo ele seria possível controlar e mesmo determinar reações consciente e, à primeira vista, voluntárias, mercê de estímulos e condicionamentos nervosos apropriados” (Ramos, 1981, p. 23).
É por isso que Eisenstein considera que “uma obra de arte, entendida dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador” (Eisenstein, 2001, p. 21). A montagem proposta por Eisenstein, nas suas variadas formas, busca justamente provocar reações emocionais no público, intervindo, sendo um cine-punho e não apenas um cine-olho.
A concepção eisensteiniana possui limitações tanto no nível técnico-formal no qual move seu pensamento quanto em suas bases ideológicas. Sem dúvida, a idéia de reflexos condicionados pode ter alguma eficácia, mas isto depende do público e das associações que este faz e não apenas da montagem do filme e não se pode supor uma homogeneidade do público. Em seu filme A Greve, por exemplo, temos uma montagem que relaciona os espiões da polícia czarista com determinados nomes e significados, tal como “macaco” e “coruja”. Ora, dependendo do público, da cultura, etc., um macaco ou uma coruja podem simbolizar coisas diferentes do que o cineasta esperava e por isso a mensagem de sua montagem pode ser não compreendida (a mensagem fica incompreensível) ou mal compreendido (uma diferença simbólica pode gerar uma interpretação contrária ao que o cineasta pretendia passar). Embora Eisenstein tivesse a percepção disso, isto não fez com que ele alterasse sua concepção estética.
Mas tais aspectos não são os mais importantes para nossa análise. Aqui o que nos interessa é demonstrar que a concepção de cinema de Eisenstein é, fundamentalmente, não uma explicação do filme e sim uma determinada concepção normativa do que deve ser um filme, segundo suas convicções políticas e bases ideológicas. Assim, ao invés de expressar o que é o filme, ele ofusca uma percepção do que ele significa e ao mesmo tempo produz uma falsa consciência sistemática sobre o cinema.
Uma outra ideologia cinematográfica que surge a partir dos anos 50, é a que Prokop (1986) denominou “teoria do reflexo”, cujo grande ideólogo é Siegfried Kracauer (1989). Prokop afirma que a partir dos anos 50-60 houve uma reformulação na sociologia do filme tendo por base a desconsideração das “coerções externas”, sem analisar as “condições estruturais”.
“De fato, a Sociologia das décadas de 1950 e 1960, na medida em que se ocupou com o cinema, satisfez-se em investigar as conseqüências funcionais de um fenômeno dado, do meio de entretenimento filme. Em virtude de não inserir este fato no pano de fundo das condições estruturais do contexto, ela tornou-se necessariamente ultraconservadora” (Prokop, 1986, p. 43).
Prokop cita a escola “kracaueriana” e sua análise sociológica inspirada no “espelho”. As teses básicas são: 1) A indústria cinematográfica é um meio neutro na formação das preferências do público; 2) o público é unitário, é “o povo”. Um exemplo desta forma de encarar o público é o livro de Karl-Heintz Gotte, O Filme e o Caráter Nacional nos EUA. O filme é um espelho do público (inconsciente coletivo, valores, neuroses, caráter, etc.).
Prokop questiona esta ideologia e coloca-se contra o ponto de vista sobre a indústria cultural que subjaz esta concepção, especialmente a afirmação de que ela seja um meio neutro que reproduz as preferências do público. “Em vez disso, a indústria cinematográfica incide sobre as preferências dos consumidores de forma somente seletiva; ela assimila apenas preferências difundidas globalmente de camadas altamente participantes” (Prokop, 1986, p. 46). A indústria cinematográfica, afirma Prokop, produz o gosto do público.
Nesta escola, principalmente por meio da revista Filmkritik, se reproduziu a teoria do reflexo de Kracauer com sua exclusão dos fatores estruturais, que acabou conduzindo “à tentativa de explicar os conteúdos fílmicos discutidos a partir de um inconsciente coletivo apenas obscuramente palpável” (Prokop, 1986, p. 47), pulsões secretas, desejos secretos, arquétipos nacionais, preconceitos pequeno-burgueses, etc.
Da denúncia da ideologia à apologia é um passo, tal como ocorreu com o gênero faroeste, exaltado pela revista. Prokop questiona este ponto de vista dizendo que o faroeste foi rejeitado em 40 e 60 “por todas as camadas sociais”, não se tratando de “sonho da alma”, tal como coloca seus apologistas, mas de “produções secundárias, que eram vendidas no monopólio com a ajuda da ‘vendas em bloco’, na medida em que produzidas no monopólio internacional, até mesmo independentemente das preferências do público” (Prokop, 1986, p. 48). Esta tendência buscava um filme “livre de ideologia” (no sentido positivista do termo, isto é, como pensamento valorativo). A base da concepção kracaueriana é um realismo ingênuo. Segundo ele,
“As películas podem expor a realidade física tal como se lhe aparecer aos sujeitos que se encontram em estados mentais extremos, gerados por sucessos como os mencionados, por um transtorno psíquico ou por qualquer outra causa interna ou externa” (Kracauer, 1989, p. 87).
A ideologia cinematográfica do reflexo acaba tendo uma recaída na concepção conservadora da “aura”, no qual são os especialistas que devem julgar o filme (Prokop, 1986). Isto é derivado da concepção de Kracauer, e nisso tal como André Bazin, segundo a qual, é a natureza do meio e não indivíduos particulares que serve de critério para os juízos estéticos. Desta forma, a pergunta não gira mais em torno do gosto dos avaliadores e sim se um filme é “genuinamente cinemático”, se “realiza as potencialidades próprias do medium” (Tudor, p. 84). Tudor critica esta posição afirmando que não possui um caráter de maior objetividade simplesmente por se basear nas características centrais do meio, já que este é um critério que tem um pressuposto, que o meio é a “essência” do cinema, que, para outros, é apenas questão periférica e, por conseguinte, continua na esfera da subjetividade. No fundo, Kracauer, e também Bazin, se fundamentam num realismo ingênuo, que vai ser constante na história das ideologias cinematográficas, desde Eisenstein e o “realismo socialista”, passando pelo realismo e neo-realismo italiano e diversas manifestações da ideologia “realista”.
Porém, inúmeras outras ideologias cinematográficas sucederam a estas discutidas aqui (sobre isso existe uma bibliografia relativamente abundante e já citada, embora nem sempre crítica: Tudor, Aristarco, Stam, Andrew), mas por questão de tempo e espaço não poderemos expor outras (e mereceria atenção algumas ideologias, como o autorismo, o estruturalismo, etc.) e por isso faremos um balanço geral para encerrar este tópico de nossa discussão.
As ideologias cinematográficas traduzem as representações cotidianas ilusórias dos agentes da produção cinematográfica em linguagem técnica-científica e as transformam, assim, em ideologias. Um dos pontos comuns e básicos deste procedimento reside em promover um fetichismo do cinema. Tais ideologias, como não poderia deixar de ser, estão ligadas ao processo de mudança social, o que gera mudanças no seu interior. A sucessão de ideologias cinematográficas reproduz, por um lado, as mudanças sociais gerais (depois da Segunda Guerra Mundial, a “política dos autores” e o estruturalismo são expressões da nova situação social da Europa) e as mudanças no processo de produção e reprodução cinematográficas, e que se reforçam reciprocamente.
As ideologias cinematográficas invertem a realidade, sistematizam as representações ilusórias dos agentes do processo de produção e reprodução do cinema e legitimam e justificam, com discurso científico, os valores produzidos nesta esfera. Uma vez produzidas e divulgadas, estas ideologias passam por um processo de difusão social, atingindo principalmente as camadas mais intelectualizadas da população, mesmo que de forma fragmentária e superficial, que acabam reproduzindo os valores e ilusões dos produtores e reprodutores do cinema e criando os chamados “cinéfilos”, os amantes do cinema. Isto vai, inclusive, gerar os preconceitos intelectualistas e uma classificação social que se pretende “objetiva” que acaba sendo dominante na sociedade. Assim, as expressões “filmes B”, “trash”, “cult”, entre outras, não são descrições objetivas ou classificações técnicas ou ingênuas. São, na verdade, parte do processo de dominação cultural e da hegemonia dos valores burgueses e de suas classes auxiliares.
Marxismo e História do Cinema
A influência do marxismo na historiografia é amplamente conhecida. Porém, o mesmo não se pode dizer no que se refere à historiografia do cinema, o que em parte é justificado pelo pouco desenvolvimento desta no interior da produção historiográfica. Infelizmente, não conhecemos nenhuma obra marxista de história geral do cinema. Além disso, os pesquisadores do cinema que se dizem marxistas são, na maioria das vezes, reprodutores das ideologias cinematográficas, não possuindo o postulado da autonomia metodológica do marxismo defendida por Korsch (1977) e Lukács (1989). É por isso que estes pesquisadores caem geralmente numa visão esteticista e elitista do cinema.
A origem desta postura esteticista e elitista do cinema por parte de pesquisadores que se dizem marxistas se encontra na ideologia leninista. A derrota do movimento operário na Rússia com a ascensão do bolchevismo promoveu a transformação do marxismo de teoria em ideologia (Korsch, 1979). Este “marxismo” transformado em ideologia é deformado e seus conceitos se transformam em construtos, falsos conceitos. Isto ocorre com o próprio conceito marxista de ideologia. Para Marx, a ideologia era uma forma de falsa consciência, produzida pelos ideólogos e originada da divisão entre trabalho manual e intelectual (Marx e Engels, 2002). Assim, a concepção de ideologia em Marx possui, pois, um conteúdo crítico-negativo. Na visão leninista, a forma ideológica do “marxismo” russo, a ideologia passa a ser concebida como visão de mundo e é por isso que Lênin e seus seguidores podem postular a existência de uma ideologia proletária, bem como ideologia burguesa e pequeno-burguesa, assumindo caráter neutro-positivo. A partir de sua ideologia do reflexo, tese que afirma que a realidade objetiva é refletida na consciência, Lênin apresenta uma concepção ideológica (falsa) de ideologia:
“Numa palavra, toda a ideologia é historicamente relativa, mas é certo que a cada ideologia científica (contrariamente ao que acontece, por exemplo, com a ideologia religiosa) corresponde a uma verdade objetiva, uma natureza absoluta” (Lênin apud. Moura, 1978, p. 233).
Assim, temos a ideologia como visão de mundo que pode ser científica, religiosa, etc. A ideologia científica possui um caráter verdadeiro. Sem dúvida, temos aqui uma ideologia que é justificativa de outra ideologia, a da vanguarda. Lênin postula que o proletariado não desenvolve sua consciência de classe socialista espontaneamente, pois para chegar até a ideologia socialista é necessário ter acesso à ciência e quem tem acesso a esta são os intelectuais burgueses e pequeno-burgueses do partido (Lênin, 1978).
O caráter de classe desta concepção é por demais evidente: trata-se de uma ideologia (no sentido marxista do termo, isto é, falsa consciência) da burocracia. Daí a crítica de Pannekoek a Lênin, na qual ele afirma que sua visão de materialismo é semi-burguesa (Pannekoek, 1973). A burocracia é uma classe auxiliar da burguesia (Viana, 1997) e por isso ao mesmo tempo em que busca se autonomizar e se tornar a nova classe dominante não ultrapassa certos limites, expressando uma visão burguesa do mundo. Esta classe auxiliar compartilha determinados valores e interesses com a burguesia e por isso a visão cientificista e elitista dos ideólogos leninistas.
Esta concepção de ideologia vai ser homóloga à concepção de arte do leninismo. Mas neste caso a questão é mais nebulosa, pois uma teoria da arte não foi produzida pelos teóricos marxistas. Embora Marx e Engels tenham feito apontamentos sobre a questão da arte e muitos outros escreveram sobre arte sob influência do marxismo, não ocorreu nenhuma síntese que produzisse uma verdadeira teoria da arte. Esta situação fica mais precária ainda, quando notamos que o leninismo acabou se tornando a corrente hegemônica na disputa pela “ortodoxia” em matéria de marxismo e a maior parte das teses sobre arte, bem como interpretação dos textos de Marx sobre arte, ocorreu sob a visão leninista.
A visão leninista da arte carregou esta, da mesma forma que havia feito com a ciência, de um caráter neutro-positivo e assim se aproximou (tal como já havia feito no que se refere à ciência) das concepções burguesas (elitistas e esteticistas), concordando com a tese ideológica da autonomia da arte. De acordo com um ideólogo leninista:
“A base filosófica da teoria da imagem artística radica na teoria marxista-leninista do conhecimento. Ao investigar a essência da imagem artística, tomo como ponto de partida a teoria do reflexo, que considera a consciência humana em seu conjunto como uma imagem da realidade circundante, com um quadro subjetivo do mundo objetivo. A teoria leninista do reflexo ao descobrir as leis de toda a esfera da consciência humana em seu conjunto, fundamenta as leis específicas da reprodução artística da sociedade” (Zis, 1976, p. 72).
Por conseguinte, tendo por base a ideologia leninista do reflexo, é possível descobrir as “leis específicas da reprodução artística da sociedade”. O sistema de representação por imagens é a forma específica da arte refletir a realidade (o que mostra sua especificidade e seu caráter universal) e isto é diferente do “método de criação artística”. Se a ideologia leninista do reflexo coloca em evidência, no que se refere à ciência, um universal (o conhecimento como reflexo da realidade) e um particular (as diversas ideologias), um absoluto (o leninismo) e um relativo (as ideologias burguesas e pequeno-burguesas), temos o mesmo na esfera da arte: ela é um reflexo da realidade (universal) mas possui várias manifestações (particular), é um absoluto (o realismo socialista) e um relativo (os demais métodos de criação artística). Assim, o método artístico do realismo socialista está “organicamente vinculado ao marxismo-leninismo”.
Esta concepção se tornou hegemônica no interior do “marxismo”, tanto do especificamente leninista, quanto em suas versões em escolas acadêmicas. Assim, criou-se uma interpretação neutro-positiva de arte, o que reforça o fetichismo da arte e a visão elitista e preconceituosa, derivadas dela. Esta aproximação entre a concepção burguesa e a concepção leninista também é a posição da maioria dos agentes da produção e reprodução da arte, já que está de acordo com seus interesses. Assim, todas estas concepções irão distinguir entre a “alta” e a “baixa” cultura, as grandes obras de arte e mera produção popular ou de “massas”. Sem dúvida, alguns colocam outras camadas de produção artística além da visão bipolar entre boa e má arte, mas mesmo os que assim procedem fazem apenas uma pequena concessão. A arte popular e a arte comercial não possuem um valor tão elevado para se comparar a arte de elite e, no caso do leninismo, a arte engajada (engajamento no sentido restrito, político-partidário, e não no sentido amplo, isto é, comprometido com a emancipação humana).
Isto vai se refletir nas análises marxistas do cinema, que irá partir de uma concepção neutro-positiva de cinema[1] e, muitas vezes, se aliar às teses básicas das ideologias cinematográficas. Ao lado disso, o elitismo e preconceito complementam grande parte de tais análises. Um exemplo deste tipo de posicionamento pode ser visto no caso do cineasta e crítico de cinema, Eduardo Geada. Tomemos a análise deste autor sobre o chamado western-spaghetti para exemplificar este tipo de discurso.
Para Geada, o western-spaghetti é, como o resto do western europeu, um cinema de estereótipos, um “cinema industrial de protótipos que são todos do mesmo tipo”. O seu sucesso se fundamenta na repetição sistemática dos códigos, bem como pelo uso exaustivo da mesma retórica sonora e visual. Este autor acrescenta que as indústrias cinematográficas italianas e espanholas, tal como no resto da Europa, não são mais que sucursais de Hollywood, com suas receitas mecânicas que proporciona alta rentabilidade.
“A produção em série de filmes estereotipados, como é o caso do western-spaghetti, condiciona o mercado consumidor até as fronteiras da saturação partindo do princípio, empiricamente aceite, de que o espectador médio procura no cinema um divertimento digestivo que obedece a uma operação de reconhecimento (ver aquilo que já se conhece empresta uma falsa sensação de inteligência) e nunca se organiza segundo um trabalho produtivo de conhecimento (reflexão ativa e crítica sobre o material fílmico proposto). Para que tal operação de reconhecimento seja extremamente acessível a qualquer espectador, o cinema ‘popular’ utiliza todo um arsenal de chavões típicos que cristalizam, ao nível da imagem e do som, por um lado, e ao nível da proposta ideológica, por outro, num tecido iconográfico e mitológico que constitui o verdadeiro suporte e a matéria-prima dos filmes” (Geada, 1978, p. 21).
Embora Geada reconheça que sua análise seguinte será “esquemática”, podemos observar vários problemas tanto na citação acima quanto em sua análise posterior. A acusação de maniqueísmo, esquematismo, formalismo, é complementada por observações a respeito do uso de “armas e acontecimentos” não pertenciam à “mitologia clássica do filme do Oeste americano”. Para Geada, a violência no faroeste americano era justificada pelo contexto histórico preciso e isto estaria ausente no western-spaghetti, que teria como característica o anacronismo, tal como no exemplo do uso de metralhadoras. Aliás, o preconceito contra o western-spaghetti não é apenas de Geada, pois Hennebelle (1978) o chama de “gênero bastardo” com “heróis medíocres” (Ringo e Django) no único parágrafo de cinco linhas dedicado a ele no capítulo de 9 páginas sobre o cinema italiano. Obviamente, 7 páginas foram dedicadas ao neo-realismo italiano, pois, afinal, os filmes neo-realistas são considerados “superiores”, “cult”.
O preconceito de Geada (e outros) nasce da própria visão de cinema, cuja origem podemos remontar ao “realismo socialista”, inspirado em Eisenstein. A posição elitista nasce da idéia de que o cinema comercial é um cinema de massas e que estas não possuem capacidade crítica. Logo, massas ignorantes assistem filmes ruins e estes atraem aquelas, um é o complemento natural de outro. Assim, segundo a ideologia leninista, as massas não possuem uma consciência de classe e chegam no máximo a uma consciência sindicalista. Falta a capacidade de “reflexão ativa e crítica” que deve ser produzida pelos intelectuais que possuem acesso à ciência. Da mesma forma, temos o seu contrario, que é o cinema reflexivo e crítico, aquele produz filmes intelectualizados e representados pelos grandes cineastas ou inspirados no realismo.
A análise do western-spaghetti é não só “esquemática”, como admite Geada, mas é também superficial e carrega em si vários equívocos. O primeiro equívoco está em colocar todos os filmes do western-spaghetti no mesmo nível. Não distinguir os filmes de Sérgio Leone, Sérgio Corbucci, Damiano Damiani, por um lado, e de Lucio Fulci e os copiadores desses, por outro, é uma falta de percepção das diferenças existentes. A repetição é uma característica não apenas do western-spaghetti, mas de quase toda produção filmica existente. A proposta “ideológica” (no sentido positivista do termo, isto é, como significando algo valorativo) do western-spaghetti tão pouco é homogênea e entre aqueles que os produziram se encontram diretores, atores, etc., que se colocam à esquerda no espectro político. O espectador médio não é destituído de capacidade crítica, pelo menos não mais do que espectadores como Geada e outros mais intelectualizados do que a “média”, pois o que diferencia um de outro são as bases (culturais, valorativas, políticas) e objetivos quando assistem um filme, e não sua “capacidade”.
O maniqueísmo que Geada vê no western-spaghetti pode ser visto de igual forma na maioria absoluta dos filmes existentes e, além disso, não pode ser atribuído indistintamente a todos os filmes do faroeste italiano, principalmente nos personagens presentes nos filmes dirigidos por Leone e Corbucci, no qual mostra, muitas vezes, as ambigüidades dos heróis. A crítica ao uso de armas e acontecimentos não comuns na “mitologia clássica do oeste americano” é sem sentido, pois, em primeiro lugar, os faroestes americanos não são modelos exemplares a serem seguidos e a maior parte deles poderiam (e deveriam) ter sido objeto de críticas bem mais fortes por parte de Geada. A metralhadora e outras armas podem não ter sido de uso comum no Oeste americano ou nos filmes americanos de faroeste, mas já existia. O fato de não ser comum o seu uso, seja na realidade ou em sua representação fílmica holywoodiana, em nada compromete o seu uso no western-spaghetti, já que um filme é uma ficção e nesta tudo é permitido, a não ser que o critério de julgamento seja o modelo realista. Além disso, em vários western-spaghetti o contexto histórico está presente, como o próprio Geada observa em algumas passagens, inclusive os diversos filmes ambientados durante a revolução mexicana.
Por fim, a idéia de que os filmes comerciais são todos, por natureza, ruins e os espectadores são incapazes de reflexão crítica e ativa mostra apenas os preconceitos de Geada e seu elitismo cultural. Os filmes comerciais podem ser objetos de reflexão crítica e ativa, tanto quanto qualquer outro. Isto não depende do filme em si e sim do espectador e da problematização que ele pode fazer em torno do material que se coloca diante dele. Existem alguns filmes do western-spaghetti que são realmente ruins, mas não se pode generalizar. Geada não percebe a existência de contradições na indústria cinematográfica e por isso não percebe que é possível a produção de filmes comerciais que não são mero lixo cultural. Um filme como Django ou Era uma Vez no Oeste possuem uma profundidade que a análise superficial de Geada não pode perceber. Não deixa de ser interessante como Geada quase desconhece o contexto histórico no qual se produzem os filmes que ele comenta, com raras exceções, tal como no caso de Eisenstein. O quadro analítico de Geada é não-marxista, por mais que tente ser, pois é a-histórico e desconhece as suas bases sociais.
História do Cinema na Perspectiva do Materialismo Histórico
A história do cinema só pode ser compreendida se inserida na totalidade das relações sociais. O cinema possui uma historicidade, mas se trata de uma historicidade dependente da história da sociedade. E não apenas a história dos filmes, mas também dos gêneros, da tecnologia, dos temas, das mudanças, da crítica cinematográfica, etc. Assim, a categoria de totalidade é fundamental para uma análise da produção cinematográfica, bem como a percepção de seu caráter social e histórico. É claro que aqui, por cinema, se entende os filmes, produtos culturais específicos.
Desta forma, o ponto de partida é o reconhecimento da produção social do filme. Isto quer dizer não somente que um filme é um produto de uma coletividade (os agentes de sua produção, a equipe de produção) mas também que é um fenômeno constituído socialmente. Porém, é preciso ir além desta observação geral e buscar descobrir as determinações do cinema.
A determinação fundamental da produção cinematográfica é, sem dúvida, a indústria cinematográfica. Os estudos de Prokop (1986) apontam para o papel proeminente da indústria cinematográfica. O filme é uma mercadoria e por isso requer investimento. O investimento é realizado não por artistas e sim por empresários (na melhor das hipóteses, por um artista-empresário, que deve ser um empresário como qualquer outro, isto é, deve estar submetido aos ditames do mercado, senão a falência é resultado inevitável).
“Para pintar, escrever, compor uma partitura, não é necessário dispor de um capital; as questões financeiras se colocam depois do término do trabalho, quando se pensa no público. Porém, não existe cinema sem dinheiro; a mais modesta realização supõe um gasto mínimo, impossível de reduzir, para conseguir os aparatos, comprar a película e dispor de laboratório. Quando a equipe termina de escrever seu argumento, deve lançar-se na busca de um sócio capitalista” (Sorlin, 1992, p. 72).
Os custos da produção de um filme vão se tornando cada vez maiores e, quanto mais ocorre o desenvolvimento tecnológico, maiores são os custos. É claro que se realiza uma hierarquia no processo de produção cinematográfica, e as produções de maiores custos serão os de maior investimento publicitário, maior divulgação e distribuição e com mecanismos complementares de aquisição de lucro (indústria de brinquedos, bonecos, roupas, etc.). A indústria cinematográfica segue a lógica capitalista da concentração e centralização do capital e, por conseguinte, a produção cinematográfica é concentrada e centralizada. Sem dúvida, existem as exceções, mas elas dificilmente conseguem competir em igualdade de condições e ter a mesma ressonância em matéria de lucro, divulgação, público. O setor marginal da produção cinematográfica é compatível com um público marginal, divulgação marginal e lucro menor.
A hegemonia mundial de Hollywood é produto desta concentração e centralização do “capital cinematográfico”. A sua hegemonia que já se iniciava na época do cinema mudo, se consolidou a partir da Segunda Guerra Mundial. As demais indústrias cinematográficas nacionais buscaram resistir e tiveram um novo fôlego com o advento do som, devido ao problema da tradução, inexistente em território nacional (Turner, 1997). Assim, o processo evolutivo da produção de filmes precisa, para ser apreendida, ser analisada com a percepção do desenvolvimento da indústria cinematográfica e também do desenvolvimento tecnológico. A lógica da indústria cinematográfica é a lógica do lucro e por isso existem contradições entre a produção cinematográfica e determinados interesses e valores, pois um filme contestador, se for um possível sucesso, tem tudo para ser produzido e distribuído, enquanto que um filme conservador, mas sem possibilidades de sucesso, dificilmente será produzido e distribuído, embora a tendência seja que os filmes de maior sucesso sejam os mais conservadores, mas existem brechas e situações que permitem as exceções.
As mudanças sociais (econômicas, políticas, culturais, etc.) também são fundamentais para explicar a produção fílmica. Na verdade, o filme é um produto histórico e social e a visão deste processo é ofuscada mas ganha visibilidade em certos momentos históricos nos quais o Estado, as ideologias políticas, etc. se manifestam de forma mais visível. Os filmes norte-americanos passaram de pacifistas para abertamente favoráveis à entrada dos EUA na guerra nos anos posteriores a 1915 (Furkhammar e Isaksson, 1976). O cinema inglês, russo, entre outros, mostravam claramente o uso do cinema para representar os interesses nacionais e bélicos. O cinema fascista (Itália) e nazista (Alemanha) são outros exemplos.
“Quando os Estados Unidos entraram na II Guerra Mundial, já se havia dado forma ao filme de guerra, só precisa ser firmemente ancorado nos acontecimentos correntes e receber maior ênfase patriótica. Mas havia outros gêneros, como a comédia, que eram facilmente encaminhados para a propaganda, e vários musicais tocaram uma nota política sem comprometer suas credenciais como divertimento nem sua tradição estilítisca. O Homem Invisível tornou-se o inimigo número um da Gestapo em Invisible Agent (O Agente Invisível, 1942). O Pato Donald foi exposto ao terror nazista em Der Fuehrer’s Face (A Cara do Füher, 1943). Tarzan luta contra soldados alemães em Tarzan Triumphs (O Triunfo de Tarzan, 1943). As aventuras de Sherlock Holmes o levaram ao nível da política internacional numa série de filmes dos anos de guerra (Sherlock Holmes and the Secret Weapon – A Arma Secreta), e quando, em 1943 foi filmado Desert Song (Canção do Deserto), uma pequena plástica transformou os vilões em nazistas. Na mesma época, os homens-maus dos filmes de aventuras tornaram-se agentes alemães, e os gangsteres dos policiais eram quinta-colunas nazistas. Os atores característicos, que antes haviam se especializado em vilões, adquiriram um sotaque alemão e começaram a trabalhar para Hitler, na medida em que desejavam continuar interpretando papéis semelhantes, mas trocaram de uniforme quando os vilões da Gestapo, com a guerra fria, viraram comunistas” (Furhammar e Isaksson, 1976, p. 53).
A intervenção estatal também adquire grande importância, não apenas por meio da censura, mas também pelo financiamento (tal como no caso de alguns países, que é uma das principais fontes de recursos para o cinema nacional), entre outras formas de intervir na produção cinematográfica.
A equipe de produção, se destacando o diretor e os roteiristas, é outro elemento importante para se observar o processo de produção dos filmes. Outros agentes (atores, técnicos, assistentes, etc.) também são importantes neste processo e, em certos casos, o diretor terá maior ou menor autonomia, dependendo de um conjunto de elementos (desde atributos individuais a processos sociais). Estes produtores e reprodutores produzem representações sobre a produção do filme e, em alguns casos, como já colocamos, produzem ideologias sobre o cinema, que, uma vez existindo, acaba influenciando na produção dos filmes. Além de representações e ideologias, valores e sentimentos são produzidos pelos agentes do processo de produção e reprodução do cinema e isto gera um processo de especialização e racionalização acompanhada de uma difusão de idéias, valores e sentimentos que criam o fetichismo do cinema. No interior de uma base valorativa, ideológica e sentimental comum, existem divergências e diferenças, criando formas diferenciadas de se produzir e pensar o cinema.
Todo este processo social se condensa no filme, embora a força relativa de cada um destes elementos varie dependendo do caso. Os filmes da chamada “produção independente” diferem do circuito hollywoodiano em aspectos de suas determinações, bem como em período de guerra o cinema se torna mais “militante” em favor dos interesses representados pela indústria cinematográfica e de seu Estado Nacional. Os diretores, que muitos consideram ideologicamente como “autores”, possuem maior ou menor autonomia, dependendo de quem são os produtores, dos recursos, condições de trabalho, equipe de produção, etc. Os roteiristas produzem os roteiros mas não possuem controle sobre o seu processo de filmagem. Os atores iniciantes ou sem renome são mais passivos enquanto que os mais renomados são mais influentes. Isto significa que no processo de produção de um filme existe um conjunto de relações sociais e que em muitos casos gera conflitos e visões diferenciadas (é muito comum certos atores e membros da equipe nem sequer entender o que queria dizer o roteiro do filme, o que faz eles fazerem as interpretações mais divergentes da intenção seja do diretor ou do roteirista, bem como conflitos entre estes últimos).
De todas estas observações, podemos colocar que o materialismo histórico apresenta uma contribuição fundamental para a produção de uma história do cinema. As categorias de totalidade, determinação fundamental, entre outras, são a chave para uma história do cinema que ultrapasse a mera descrição, seja a simples ou a “descrição contextualizada”, isto é, aquela versão que descreve a sucessão de filmes e apresentam o contexto histórico-social sem fazer nenhuma relação entre ambas. O materialismo histórico também contribui com a teoria do capitalismo e de suas transformações, bem como da luta de classes que está na sua base e é o que explica a produção cinematográfica, que manifesta valores, concepções, sentimentos, cuja explicação não pode ser fornecida em si mesma, mas através do seu processo social de constituição.
Um filme é uma produção coletiva, de caráter ficcional, que passa uma mensagem através de meios de reprodução mecânica. Os meios de reprodução mecânica (desde o cinematógrafo em seus primórdios e os desenvolvimentos tecnológicos posteriores, imprimindo o som, a cor, etc.) são a base material e tecnológica do filme. A equipe de produção, manuseando esta base material e tecnológica, produz o filme. O elemento fundamental na análise do filme é sua mensagem, pois é nesta esfera que se manifestam os valores, as concepções, os sentimentos dos responsáveis pela sua produção, que são seres sociais e são parte da totalidade da vida social e cultural existente. O filme, neste sentido, é um produto social e histórico e, por conseguinte, possui uma historicidade que é dependente da historicidade da sociedade. Os filmes são criações coletivas que são manifestação social e do social. Por conseguinte, a mensagem de um filme é constituída socialmente, através das determinações anteriormente colocadas. O filme realiza uma reprodução da realidade social e o faz de uma forma determinada. A compreensão desta forma remete ao contexto histórico e social que estão na base de sua produção e os agentes que a realizam.
No entanto, colocar que um filme é uma reprodução da realidade social não significa cair na ideologia leninista do reflexo e nem optar por uma concepção estética realista. Esta reprodução fílmica da realidade social é perpassada por conflitos sociais, pelo efeito da luta de classes no seu processo de constituição e, além disso, é feita de forma diferenciada dependendo dos agentes de produção, podendo expressar a perspectiva de uma ou outra classe social existente, ou outros grupos sociais existentes no interior da sociedade. Por isso, no filme se encontra expresso um conjunto de valores, concepções, sentimentos, que são diferentes em momentos históricos diferentes, em países diferentes e agentes de produção diferentes. Esta reprodução pode reforçar ou reproduzir ideologias ou representações ilusórias da realidade, que são parte dessa mesma realidade, ou podem reproduzir teorias ou representações reais, assim como valores e sentimentos distintos.
A partir desta concepção não é possível se deduzir uma concepção estética realista, pois sendo o filme uma ficção, o que interessa não é garantir uma reprodução fiel ou mecânica da realidade, e sim quais valores, concepções e sentimentos ele manifesta, qual sua posição diante da realidade estabelecida. A crítica da realidade estabelecida pode ser feita sob as mais variadas formas e quando ela atinge a radicalidade de partir da perspectiva do proletariado, assume um papel de contestação e negação da realidade da sociedade capitalista, o que significa se “desprender” da realidade estabelecida.
A reprodução fílmica da realidade é passível de inúmeras interpretações, algumas bastante arbitrárias. O problema da interpretação e análise do filme remete ao problema do relativismo. Neste sentido, E. H. Hirsch Jr. oferece uma excelente contribuição ao refutar o que ele denominou “relativismo dogmático” e “ateísmo cognitivo” e colocar a possibilidade de uma “interpretação válida”, pois, embora focalizando a questão da literatura, sua análise se torna aplicável ao caso do filme:
“E. D. Hirsch Jr. argumenta vigorosamente em favor da possibilidade da interpretação válida. Com particular referência aos textos literários, ele reconhece haver sempre problemas de interpretação provocados pela não-familiaridade dos leitores com o gênero, ou com o repertório lingüístico do autor, ou com o período de que data o texto, não obstante, sua opinião é a de que há uma interpretação ‘correta’, cabendo à erudição literária chegar a ela. Trata-se do significado original do autor. Embora reconhecendo que os novos leitores podem deduzir sempre significações novas e não-intencionais do texto, Hirsch sustenta que isso não é o mesmo que descobrir a significação original e intencional. Hirsch investe contra os ‘relativistas dogmáticos’ e os ‘ateístas cognitivos’ que acreditam que o significado se modifica necessariamente com todo leitor e que não há determinação ou prioridade de significado autoral” (apud, Wolf, 1982, p. 112-113).
Segundo Hirsch,
“Embora não possamos nunca certificar-nos de que nossas suposições interpretativas são corretas, sabemos que podem ser corretas e que a meta da interpretação como disciplina é aumentar constantemente a probabilidade de que sejam corretas (...). Só um problema interpretativo pode ser respondido com objetividade: ‘o que, com toda probabilidade, o autor pretendeu transmitir?” (apud. Wolf, 1982, p. 113).
Portanto, a partir destas colocações, podemos buscar apontar alguns elementos que contribuem para a compreensão de uma obra de arte. O elemento principal é descobrir o significado original do autor. Claro que a interpretação tem outros obstáculos, inclusive os valores, sentimentos e concepções do intérprete que, dependendo de quais são, podem dificultar ou facilitar a descoberta do significado original do autor. As diversas interpretações são outro aspecto que merece análise e, no caso do filme, seria necessário, inclusive, observar como determinados filmes são extremamente mal compreendidos, enquanto que alguns recebem interpretações bastante negativas em um momento histórico e isto se altera em outra época, demonstrando que a recepção e interpretação são constituídas socialmente e demonstram o seu caráter social. Desta forma, para analisar as interpretações é preciso pesquisar qual contexto social e histórico surge a interpretação, quais são os valores, concepções e gostos do intérprete, etc. A análise que fizemos anteriormente da interpretação de Geada sobre o western-spaghetti se fundamentou mais na concepção estética do autor, mas que tem por detrás de si um conjunto de valores, concepções, etc. que fornecem um quadro mais amplo de análise de sua interpretação.
O principal foco da análise deve incidir sobre o significado original do autor, buscando assim descobrir o significado autêntico da obra. A intencionalidade do autor adquire uma importância fundamental. Descobrir a intencionalidade do autor requer pesquisar o contexto histórico-social e a biografia do autor. No caso do filme, como ele é uma produção coletiva (ao contrário de outras manifestações artísticas em que se pode falar na existência de autoria individual), então a pesquisa é mais complexa, pois deve analisar o grau de autonomia do diretor, a intencionalidade dos roteiristas, a relação de forças da equipe de produção, a influência da indústria cinematográfica, etc. Assim, o significado original, neste caso, é do conjunto de autores e não de um indivíduo e, neste caso, o papel principal na constituição deste significa cabe aos roteiristas e diretor do filme.
No entanto, existe numa obra de arte, além da intencionalidade, manifestações não-intencionais do autor, a saber: a manifestação do inconsciente do autor e a manifestação de uma historiografia inintencional. A manifestação do inconsciente do autor é bastante difícil de se analisar, pois pressupõe um conjunto de informações e detalhes sobre a vida do autor. Na ausência disto, é possível lançar hipóteses e até fazer algumas descobertas a partir de uma análise do inconsciente coletivo17 ou então a partir das relações sociais, mas o que deve ser feito com cautela para se evitar conclusões apressadas e generalizações abusivas. No caso do cinema, a questão do inconsciente do autor é ainda mais complicada, pois como se trata de uma produção coletiva, com indivíduos diferentes e inconscientes diferentes, a situação é mais complexa e assim o inconsciente coletivo é o elemento fundamental para uma psicanálise (marxista) do filme.
Outra manifestação não-intencional, de mais fácil percepção, é a que Walter Benjamim chamou de Historiografia Inconsciente:
“Benjamin insiste também muitas vezes na idéia de que a literatura é uma historiografia inconsciente. As obras literárias, mesmo não pretendendo ser e não sendo um mero registro histórico, acabam sendo também uma historiografia inoficial. Na medida em que não querem ser documento, seu caráter autônomo lhes permite uma liberdade de registro e transmissão que escapa à historiografia oficial, comprometida com as omissões, cortes e deformações que as relações de produção lhe impõem” (Kothe, 1976, p. 79).
Porém, a expressão historiografia inconsciente pode dar margem a interpretações equivocadas que podem confundir a palavra inconsciente com o sentido que Freud deu a ela e por isso preferimos utilizar a expressão alternativa Historiografia inintencional. As manifestações inintencionais na obra de arte podem ajudar na sua explicação, principalmente em pontos obscuros, bem como possui um papel importante para a história da obra de arte e também do contexto social no qual ela emerge. No caso do cinema, estas manifestações inintencionais são importantes não somente para a reconstituição da história do cinema, mas também para a reconstituição da história da sociedade, do qual o filme é expressão.
Um filme, sendo uma produção coletiva no qual não se pode atribuir a autoria a apenas um indivíduo, tal como pretendiam os adeptos da “política dos autores” (Truffaut, Chabrond, Godard, etc.), é produto de diversos autores. Estes diversos autores devem possuir algo em comum, o que forma uma equipe de produção, apesar das diversas diferenças de valores, sentimentos, concepções, posições políticas, que os indivíduos que fazem parte dela podem ter. Todo o filme passa uma mensagem, inclusive os filmes mais banais e comerciais. Porém, devido ao caráter coletivo da produção do filme, o significado original dos autores é de mais difícil percepção, inclusive devido ao fato de podem co-existir distintos significados. Apesar desta dificuldade, não é impossível descobrir a significação original.
Em um filme existe o significado original da equipe de produção, mas também existem significados adjudicados (atribuídos) pelos diversos intérpretes. Uma precaução básica é buscar não confundir significado adjudicado e significado original. O significado adjudicado é bastante importante para a análise do filme, inclusive tendo em vista a dificuldade de descobrir o significado original. A reprodução fílmica da realidade tem como referencial esta realidade que é reproduzida e isto é independente da intenção original da equipe de produção. Devido a isto, a análise de um filme é beneficiada com o reconhecimento do significado adjudicado, desde que esse seja explicitado. Assim, a reprodução fílmica da realidade é realizada de forma muitas vezes inintencional. Esta reprodução inintencional pode ser recuperada por uma significação adjudicada explícita do intérprete.
A história do cinema é, portanto, inseparável da história do capitalismo. O preceito metodológico da historicidade dependente dos seres e objetos sociais em relação à historicidade da sociedade (Viana, 1997) é um ponto fundamental para uma concepção de história do cinema sob orientação do materialismo histórico e para a superação da história descritiva do cinema. Os diversos problemas colocados por uma história do cinema, com seus inúmeros aspectos (tecnológico, político, fílmico, etc.) ganham no uso do método dialético as categorias fundamentais (totalidade, determinação fundamental, etc.) para sua reconstituição histórica, e os conceitos do materialismo histórico (luta de classes, capitalismo, ideologia, divisão social do trabalho, etc.) fornecem a base teórico-metodológica para sua realização.
Por conseguinte, a partir do esclarecimento desta base teórico-metodológica, é possível se iniciar um programa de pesquisa voltado para a reconstituição histórica da história do cinema com base no materialismo histórico. Assim, a tarefa hoje é aprofundar este esclarecimento teórico-metodológico e análise da especificidade do cinema enquanto fenômeno social e construir um programa de pesquisa sobre a história do cinema. É uma tarefa nada fácil, mas necessária e fundamental para fazer avançar a história do cinema, que deve sair do seu estágio descritivo e passar para o estágio teórico.



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[1] Podemos citar aqui até mesmo autores bem distantes do leninismo que apresentam concepções ideológicas do cinema, tal como Walter Benjamin, que fez uma verdadeira “apologia do cinema” (Benjamin, 1996).
[2] O conceito de inconsciente coletivo que trabalhamos aqui não tem nada a ver com a concepção junguiana ou com a da historia das mentalidades. Na verdade, ela se baseia numa definição inspirada no materialismo histórico que considera o inconsciente coletivo como o locus de manifestação das necessidades e potencialidade humanas reprimidas em um grupo social particular ou na sociedade em seu conjunto (Cf. Viana, 2002b).
__________________________________________________________
Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Materialismo Histórico e História do Cinema. História Revista - Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás. Vol. 11, num. 02, 2006.

Este artigo foi desenvolvido e aprofundado, dando origem ao livro A Concepção Materialista da História do Cinema (Porto Alegre: Asterisco, 2009).

Veja resenha sobre este livro: Resenha de A Concepção Materialista da História do Cinema, de Nildo Viana - Alan Ricardo Duarte Pereira (Clique aqui).

Veja prefácio deste livro: Para Compreender as Produções Cinematográficas - Jean Isídio dos Santos (clique aqui).

domingo, 30 de julho de 2017

Lacan e o Situacionismo


Jacques Lacan, psicanalista mundialmente conhecido, foi um dos principais representantes da ideologia estruturalista, hegemônica na França desde 1950 e que começa a perder espaço a partir de 1968. O estruturalismo, uma das manifestações do paradigma reprodutivista hegemônico, ao lado de outras ideologias (funcionalismo, teoria dos sistemas, etc.), perdia espaço e logo seria substituído pelo pós-estruturalismo (pós-modernismo), manifestação do novo paradigma hegemônico que vai se constituindo, o paradigma subjetivista. 

No vídeo, ele apresenta uma aula televisionada e é interrompido por um militante situacionista. O militante desorganiza e joga água em sua mesa, um forma de ação típica dos situacionistas, e depois inicia um debate com Lacan.

Lacan dava aula sobre psicanálise e tratava da questão da linguagem, elemento fundamental da ideologia estruturalista, a partir de suas abstratificações e formalismo. Na versão estruturalista da psicanálise, "o inconsciente é a linguagem". 

A intervenção do situacionista aponta para uma crítica a Lacan, por ser um justificador da "miséria cotidiana". A partir da concepção de "sociedade do espetáculo" (desenvolvida no livro de Guy Debord com o mesmo título), ele questiona e critica Lacan. Este diz que vai responder e acaba realizando uma pergunta, gerando nova resposta e no final, sem palavras, se limita a mudar de assunto dizendo que o discurso do situacionista era apenas um chamado para uma nova organização e que esta não está totalmente excluída. A ideia de a suposta nova organização não está totalmente excluída é oriunda da concepção holista do estruturalismo e que, portanto, ela não seria uma refutação concreta desa ideologia.

Leia mais sobre linguagem e situacionismo:

Veja o livro Linguagem, Discurso e Poder (http://2012.nildoviana.com/wp/wp-content/uploads/2015/09/Linguagem-Discurso-e-Poder.pdf).

Veja artigo sobre Guy Debord, principal representante do situacionismo (http://informecritica.blogspot.com.br/2011/09/debord-fetichismo-espetaculo-e.html).

Veja o vídeo "Loco Linguagem", Linguagem, Competição e Dominação em As Meninas Superpoderosas (https://www.youtube.com/watch?v=1ceDaERGl8g).