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quinta-feira, 30 de maio de 2013

VIOLÊNCIA ESTATAL E MANIFESTAÇÃO ESTUDANTIL



VIOLÊNCIA ESTATAL E MANIFESTAÇÃO ESTUDANTIL
Nildo Viana
A manifestação estudantil no dia 28 de maio em Goiânia, contra o aumento do preço da passagem do transporte coletivo resultou numa forte repressão policial aos manifestantes. A truculência dos policiais ocorreu com uma operação repressiva em alta escala, como se a manifestação fosse uma ação criminosa. É necessário compreender melhor essa situação e o seu significado político no contexto atual. Para isso, é preciso saber do processo que gerou a manifestação e a repressão violenta por parte do Estado, via polícia militar.

Esse foi o quarto protesto contra o aumento dos preços das passagens.  O transporte coletivo em Goiânia, como em todo o país, é controlado por um conjunto de empresas oligopolistas que lucram com o serviço prestado. Como o objetivo é o lucro, então, obviamente, que a ampliação e reforma da frota, o salário dos motoristas, é algo que atinge a lucratividade. Por isso, ônibus lotados significa lucro maior, pois a relação motorista-passageiros é maior, assim como o número de ônibus, as despesas com combustível, são menores. Nesse sentido, os usuários possuem interesses antagônicos aos dos capitalistas do transporte. O Estado, que supostamente é o “arbitro” neutro desse processo, defende os interesses capitalistas e, portanto, também se encontra em oposição à população (não apenas nessa questão, e o crescimento do voto nulo é apenas expressão da desilusão de parte cada vez maior da população). O aumento do preço da passagem é algo que pesa no bolso dos setores mais pobres da população, bem como enche ainda mais os cofres das empresas capitalistas de transporte coletivo.

O capitalismo contemporâneo é marcado por uma busca de ampliar o processo de exploração em escala global, um processo que se iniciou nos anos 1980 e a emergência dos governos neoliberais e da reestruturação produtiva, bem como das novas investidas visando aumentar a exploração internacional, criaram um quadro de miséria e pobreza crescentes. Os 80 milhões de pessoas passando fome no mundo transformaram-se em 500 milhões e em poucas décadas foi aumentando até chegar a um bilhão de pessoas, ou seja, de cada 7 pessoas uma passa fome. O desemprego cresceu mundialmente, bem como diversos problemas sociais se avolumam.

O Estado neoliberal realiza a política do “mínimo” (em gastos e políticas sociais) e “forte” (altamente repressivo), e por isso foi chamado pelo sociólogo Löic Wacquant como “estado penal”. O capitalismo atual se fundamenta no regime de acumulação integral, cujo objetivo é aumentar a exploração dos trabalhadores sob inúmeras formas e conter os gastos estatais com a população trabalhadora, pois desde meados de 1960, quando a estabilidade conquistada nos países imperialistas é abalada com diversas manifestações culturais, protestos, movimentos sociais, que culminaram com as lutas sociais radicalizadas em diversos países, principalmente pelo movimento operário e movimento estudantil. O exemplo máximo e mais radical foi o do Maio de 1968 em Paris, num processo que gerou uma diversidade de ações estudantis, ocupação de universidades, etc., aliado a uma greve de mais de 10 milhões de operários. A crise do final dos anos 1960 e meados de 1970 gerou o novo regime de acumulação que visava resolver o problema da acumulação capitalista e o papel do Estado foi fundamental nesse processo e por isso até os partidos ditos de “esquerda” quando eleitos realizaram (e continuam realizando) políticas neoliberais. A estabilidade acabou, o Estado de bem estar social desabou na Europa e nos demais países imperialistas, o tema da “exclusão social” aparece com a nova onda de desemprego nestes países. Por outro, a pobreza e miséria avançam no resto do mundo, onde seu índice já era elevado. Contudo, os anos 1980 foram o da formação desse novo estágio do capitalismo e os anos 1990 a época de sua consolidação e foi por isso que se cunhou a expressão “pensamento único” para se referir à hegemonia neoliberal. Apesar de aumentar a exploração dos trabalhadores, o desemprego, a miséria, e diversas consequências disso tudo (tal como o retorno de doenças superadas desde a Segunda Guerra Mundial), se conquistou uma certa estabilidade, garantida com a conversão da suposta esquerda ao regime neoliberal, com um alto grau de repressão, e com a retomada da acumulação capitalista.

Esse mundo, no entanto, começou a ruir em 1999. Foi nesse ano que surgiu o chamado “movimento antiglobalização”, onde o “pensamento único” perdeu sua hegemonia quase absoluta e novas formas de protestos e lutas se desenvolveram. O ressurgimento do anarquismo, inclusive graças ao fim do capitalismo estatal da União Soviética e outros países e a capitulação das “esquerdas” partidárias em todo o mundo, bem como novas concepções e formas organizacionais e políticas, teve um início nesse período. As lutas sociais no México, onde a superexploração dos EUA gerou um empobrecimento extremo, como na Argentina, são apenas mais um capítulo dessa história e que não terminou (ainda persiste o movimento piquetero, entre outras formas de luta nesse país e em diversos outros). Os protestos e revoltas de jovens, imigrantes, entre outros, passam a fazer parte da história política de uma sociedade que anunciou sua eternidade inúmeras vezes, desde Augusto Comte no século 19 até Francis Fukuyama, em 1992, com seu livro célebre na época de seu lançamento e já esquecido nos dias de hoje por não poder ser levado a sério: O Fim da História, pois a única história que teve fim foi a do sucesso desse livro que dizia que a democracia liberal era a última etapa da historia da humanidade. No plano cultural, a redescoberta do anarquismo, situacionismo, conselhismo, ofereceu a possibilidade de novas formas de pensar a realidade social e sua transformação, não mais através dos velhos, conservadores e burocráticos partidos políticos de “esquerda”, sempre aliados ao poder e dispostos a se vender por quem pagar mais ou por um maior número de cargos. As lutas espontâneas aumentam e se tornam cada vez mais intensas e assumindo várias formas em vários países e cidades.

Nesse contexto, temos uma característica fundamental do Estado Neoliberal: a repressão. Uma vez que não vai realizar gastos com políticas sociais, com educação, saúde, emprego, etc., então a repressão é a única solução tendo em vista o aumento da exploração, da pobreza, etc., que, obviamente, tende a gerar mais violência, criminalidade e protestos, revoltas, revoluções. O Estado neoliberal é repressivo por natureza, ou “penal”, e isto está no seu próprio discurso, sendo que a política de “tolerância zero”, surgida em Nova York, é a sua expressão mais acabada e diretriz para todas as ações estatais no mundo inteiro.

Contudo, assim como em meados dos anos 1960 a situação do capitalismo começou a deteriorar e a contracultura, os movimentos estudantis, o movimento operário, o movimento negro, entre outros, começaram a se avolumar e radicalizar, e nada se fez até a explosão ocorrer no final dessa década, o mesmo ocorre hoje. Os problemas da acumulação capitalista retornam (e por isso é necessário ampliar mais ainda a superexploração já existente), a crise financeira de 2008 reforçou essa tendência e as constantes quedas nas bolsas de valores, embora oscilando entre quedas e altas, a diminuição do crescimento econômico, são apenas sintomas desse processo que tende a se acirrar. Isso traz a necessidade de aumentar ainda mais a exploração, e a inflação é sempre um bom remédio para aumentar o lucro e foi a receita fundamental dos anos 1970 (e até anos 1980, no caso de alguns países como o Brasil). O problema é que algumas pessoas suportam viver comendo um pão por dia. Elas vivem conformadas e não protestam, mas, se tirarmos metade do seu pão, aí elas tendem a se revoltar. A situação hoje é a de que estão prestes a retirar a metade do pão do conjunto da população.

O aumento dos preços das passagens é uma expressão de todo este processo. O problema do transporte coletivo e os protestos estão ocorrendo em várias cidades do Brasil. O protesto em Goiânia foi marcado por uma forte e truculenta repressão. Essa é a prática neoliberal comum. Contudo, houve um diferencial na intensidade e truculência utilizada. A tática é a de aterrorizar a população, espalhar o terror e impedir protestos. Espalhar o medo pela população para evitar que ela reaja, proteste, faça reinvindicações. A ação policial no dia 28 de maio de 2013 foi nitidamente com tal intenção. A truculência é para mostrar que todos correm risco e que portanto é melhor ficar em casa. A humilhação (e agressão física) é para que as pessoas recuem. Ora, mas para fazer isso e não criar uma situação de maior insatisfação geral é preciso justificar e legitimar a ação truculenta. E a forma de se fazer isso é, obviamente, criminalizar os manifestantes e o protesto. Obviamente que sair pelas ruas, com cartazes na mão, não é crime. A liberdade de opinião, reunião e expressão, entre outras, são garantidas no que alguns chamam de “Estado de direito”, então isso não pode ser criminalizado. É por isso que é preciso apelar para “agência bancária incendiada”. Curioso é que os manifestantes não colocaram fogo só em ônibus, mas até em agência bancária... Tão curioso quanto estúpido. Obviamente que em todos os protestos que aglutinam multidões, existem indivíduos de todos os tipos e isso é possível de ocorrer. E realizar uma repressão intensiva e extensiva sobre o conjunto dos manifestantes é algo sem o menor sentido. E um estudante conta o caso de que um policial teria tentado colocar maconha em sua mochila para incriminá-lo. A questão é se tal incêndio de agência bancária também não está dentro da mesma lógica. Queimar ônibus é uma tradição da sociedade brasileira, desde o final dos anos 1970 e nunca houve reação tão truculenta quanto a desta vez, nem na época da ditadura militar. Os meios oligopolistas de comunicação, por sua vez, aparecem para reforçar o processo de criminalização do protesto.

Essa tática do terror e do medo é eficaz apenas parcialmente e mais em um curto período de tempo. Em curto prazo, pode inibir indivíduos e diminuir o número de pessoas nas próximas manifestações. Contudo, mesmo nesse caso há contradições, pois a violência estatal pode inibir participação de pessoas, mas o medo gera mais um motivo para insatisfação e tende a ampliar a consciência da população sobre de qual lado o Estado capitalista está e reforçar uma cultura contestadora. A longo prazo, a persistência dessa tática tende a produzir novas formas de resistência e luta, maior preparo dos manifestantes e novas estratégias além da mera manifestação. Outras formas de manifestações, desconcentradas e em vários lugares simultâneos, também podem ocorrer. Elas devem ser combinadas com outros processos de luta e devem ter outros alvos além das sedes governamentais, tais como as sedes dos meios oligopolistas de comunicação. Apesar da importância das manifestações, elas concentram os manifestantes num mesmo lugar e possibilita uma repressão intensiva.

No entanto, o elemento fundamental da luta ocorre nos locais de trabalho, estudo, moradia e consumo. Da mesma forma, o apoio e integração de outros setores da população se tornam fundamentais, inclusive a pressão sob certos setores da sociedade que estão cooptados e não realizam essa luta que deveria ser deles também, tais como as associações de bairros, de usuários, etc. A longo prazo, a luta tende a se transformar e se tornar mais forte e eficaz, e se a situação segue a tendência de deterioração das condições de vida, tende a aglutinar cada vez mais pessoas e a se reforçar. Portanto, a repressão policial e sua truculência não irá deter um processo que é a tendência da sociedade contemporânea, será apenas um obstáculo que noutro momento pode ser um incentivador. Pode, inclusive, ser o “detonador” de uma revolução, tal como no caso russo do “Domingo Sangrento”, no qual o massacre fez explodir a insatisfação reinante na sociedade. Dessa forma, não é uma boa tática o terrorismo estatal e a luta dos estudantes, trabalhadores e outros setores da sociedade deve e vai continuar independente dela.


quarta-feira, 15 de maio de 2013

OS CARROS ASSASSINOS NO BRASIL


OS CARROS ASSASSINOS NO BRASIL

Nildo Viana

Os dados mostram que o índice de motes por acidentes de carro no Brasil é superior em torno de 4 vezes aos Estados Unidos, apesar deste ter uma frota 5 vezes maior. Sem dúvida, esta é uma razão para se refletir. Depois do filme Christine, O Carro Assassino, um filme de terror de John Carpenter, que mostra o fetichismo do carro, no Brasil se poderia produzir um novo filme de horror: Os carros assassinos no Brasil.
A determinação imediata deste fenômeno é a maior fragilidade dos carros produzidos no Brasil. Maria Inês Dolci, da Associação de Consumidores Proteste, afirma que “Os fabricantes fazem isso porque os carros se tornam mais baratos de fazer e as exigências dos consumidores brasileiros são menores; seu conhecimento dos problemas de segurança são menores do que na Europa e nos Estados Unidos" (http://g1.globo.com/carros/noticia/2013/05/indice-de-mortes-por-acidentes-de-carro-no-brasil-e-4-vezes-o-dos-eua.html acessado em 15 de maio de 2013). “Segundo a AP, com base em informações obtidas com engenheiros e especialistas dentro da indústria, estas fragilidades dos carros brasileiros são ocasionadas por soldas fracas na estrutura, dispositivos de segurança escassos e materiais de qualidade inferior, em comparação com modelos similares fabricados para os EUA e Europa” (http://g1.globo.com/carros/noticia/2013/05/indice-de-mortes-por-acidentes-de-carro-no-brasil-e-4-vezes-o-dos-eua.html acessado em 15 de maio de 2013).

Mas é preciso ir além da determinação imediata para chegar à determinação fundamental. Nesse caso, é preciso descobrir por qual motivo tais carros são mais frágeis. A IHS Automotive oferece a resposta: “as fabricantes tem 10% de lucro sobre carros fabricados no Brasil, enquanto nos Estados Unidos este número é de 3% e a média global de 5%” (http://g1.globo.com/carros/noticia/2013/05/indice-de-mortes-por-acidentes-de-carro-no-brasil-e-4-vezes-o-dos-eua.html acessado em 15 de maio de 2013).

É claro que isso envolve relações internacionais, acoes do aparato estatal brasileiro, entre diversos outros elementos que são responsáveis por permitir que tais carros sejam mais frágeis, mas é o capital automobilístico que é o agente do processo e outros poderiam minimizar ou impedir e, por seu atrelamento ao capital oligopolista transnacional, não executam o que deveriam executar. As desculpas são a falta de laboratórios para realizar testes e ver a eficácia dos automóveis por parte do governo.

Uma visita no site citado acima, de onde retiramos as nossas informações, mostra alguns equívocos, como na expressão usada: “carros brasileiros”. Eles são produzidos no Brasil, mas não são brasileiros, como os antigos Gordinis e Fenemês. São produtos do capital oligopolista transnacional e o lucro não fica em território nacional. O mérito é tornar mais conhecido o que já se sabe há muito tempo e não se propõe nenhuma solução drástica, como, por exemplo, no caso dos menores infratores, que querem reduzir a maioridade penal. A notícia se encontra em outros sites (http://www.pautas.incorporativa.com.br/a-mostra-release.php?id=18679 acessado em 15 de maio de 2013), bem como em sites de outros países (http://www.foxnews.com/leisure/2013/05/13/cars-made-in-brazil-are-deadly/ acessado em 15 de maio de 2013).

Obviamente que a fragilidade dos carros em circulação no Brasil não é a única determinação dos acidentes, a própria expansão ininterrupta da frota de veículos e a incapacidade do sistema viário suportar a mesma é outra determinação dos mesmos. No entanto, por detrás de tudo isso há algo mais profundo, a dinâmica do modo de produção capitalista e o seu desenvolvimento sob a forma de regimes de acumulação, desde o fordismo e o início do “apocalipse motorizado”, para recordar título de livro (LUDD, Ned (org.). Apolalipse Motorizado. Rio de Janeiro: Conrad, 2005) com a instauração do regime de acumulação conjugado cujo grande símbolo de consumo foi o automóvel, que perdeu o trono para o computador mas que ainda é um dos principais itens no consumo mundial e na reprodução ampliada do capital no novo regime de acumulação que o substitui, o regime de acumulação integral, marcado pela supremacia do toyotismo como forma de organização do trabalho, pelo Estado neoliberal e neoimperialismo.

Os carros assassinos no brasil é apenas uma parte de uma história mais longa e que envolve inúmeros outras mercadorias assassinas, seja sob forma instantânea ou lenta, vagarosamente. Claro está que os carros não são os verdadeiros assassinos, nem as outras mercadorias, mas aqueles que controlam e lucram com o seu processo de produção, a classe capitalista sempre avida de lucro. Logo, a solução está na transformação radical da totalidade das relações sociais, mas enquanto isso as mercadorias ideológicas e culturais dizem que isso é impossível e que nada de substancial irá mudar. Quem financia, produz e lucra com estas últimas mercadorias? Sempre são seres humanos em relações sociais, que produzem a miséria e a legitimação da miséria e os responsáveis são aqueles que lucram ou ganham algo com isso, vencendo a competição social, custe o que custar.