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Historiografia, Totalidade e Fragmentação


Abaixo artigo "Historiografia, Totalidade e Fragmentação".


Resumo: o presente texto faz um balanço geral da força metodo lógica da categoria totalidade e de sua abdicação pela nova historiografia, mostrando a razão de ser deste acontecimento e do seu significado metodológico, marcado por um empobrecimento teórico e pela subs- tituição de elementos fundamentais do saber, tal como a explicação, a visão crítica, a percepção da totalidade, em favor da descrição, da neu- tralidade e da fragmentação.

Palavras-chave: totalidade, dialética, fragmentação, historiogra-




VIANA, Nildo. Historiografia, Totalidade e Fragmentação. in: Fragmentos de Cultura. Goiânia, v. 17, n. 9/10, p. 865-879, set./out. 2007.

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quarta-feira, 30 de março de 2011

Conto: A Viagem


A VIAGEM
NILDO VIANA

Às 08 horas entrei no ônibus. Sentei e logo a viagem começou. Na minha frente, dois olhos verdes me fitavam. Pareciam perguntar: “quem é você?”. Me voltei para a janela e olhei a paisagem. A paisagem ia passando e parecia ir, a cada momento da viagem, se despedindo de mim: adeus, adeus, adeus...

A cada etapa da viagem parecia que um pedaço de mim ficava para trás. Olhei para frente e tive que enfrentar novamente os olhos verdes. Eles me disseram:

¾ Você admite que é o culpado? Se não confessar será torturado!

Havia uma luz intensa em cima de mim e a cena que eu vivia parecia ter sido retirada de um interrogatório de filme policial. O tom de voz se tornava cada vez mais ameaçador. A faca anunciava a tortura. Eu não agüentei e me voltei imediatamente para a janela e o meu confronto com a paisagem.

A paisagem ia passando. Mansões e casebres, morros, montanhas, árvores, coisas e pessoas, pessoas e coisas. O barulho do vento parecia me dizer: estou ficando para trás, estou ficando para trás, estou ficando para trás...

Resolvi olhar novamente para a frente. Diante de mim havia um juiz, de olhos verdes e roupas tradicionais, atrás de mim um conjunto de pessoas que parecia ser um jurado ou então marionetes. O juiz, com voz grave, falou:

¾ Vamos dar o veredicto!

Imediatamente olhei para a paisagem. As horas tinham passado e eu nem percebi, pois já era noite e eu nem tinha percebido. A escuridão do lado de fora era total. Estava chovendo e a chuva batia na janela. O som deste encontro entre água e janela parecia me dizer: não se esqueça de mim, não se esqueça de mim, não se esqueça de mim...

A escuridão aumentava e tomava conta de tudo. O silêncio reinava absoluto. Eu não sentia mais meus membros. O pavor tomou conta de mim. Só quando isto aconteceu que resolvi olhar novamente para frente. Lá, o juiz sentenciou:

¾ O réu é considerado culpado e a sua sentença é a morte!

Fiquei novamente apavorado. O meu fim parecia chegar e eu nada podia fazer. Mas, não sei como, arranquei forças dentro de mim e desafiei a autoridade:

¾ Por que tanta crueldade?

Me calei. Pensei muito sobre isto. Logo eu mesmo lhe respondi:

¾ É a maldade!

O silêncio foi interrompido por uma gargalhada tão sonora que parecia que eu estava dentro de um sino gigantesco que se movia de um lado para o outro com o seu barulho estrondoso a cada batida. Mas o silêncio ressurgiu e pouco depois ouvi:

¾ Vou lhe dar uma última chance: o que é o ódio?

Novamente me calei. Novamente pensei. Tinha a sensação de que a resposta certa poderia me salvar da pena de morte. Era como se fosse uma versão moderna do “decifra-me, ou devoro-te”. Hesitei. Pensei. Achei uma resposta que parecia satisfatória e arrisquei:

¾ O ódio é o contrário do amor!

Novamente um sorriso sarcástico brotava daqueles lábios. Eles se movimentaram e logo ouvi uma voz que dizia:

¾ O contrário do amor não é o ódio e sim o desprezo e não é preciso ser filósofo para saber disto. Repito a pergunta: o que é o ódio?

Pensei alguns minutos. Tentei arrancar a resposta a partir de minha própria experiência de vida. Se não precisava ser filósofo, então a resposta não precisaria surgir de elucubrações racionais. Busquei me lembrar das pessoas que odiei durante a minha vida. A primeira pessoa que me veio a mente foi Esther, minha madrasta. Ela fez da minha infância um inferno. Me batia, me obrigava a estudar e a rezar, me impedia de ter amigos. Eu não podia fazer nada e tinha que aceitar tudo, pois não tinha outra saída, a não ser fugir de casa e passar fome e frio. Depois me lembrei do doutor Robert, meu antigo patrão. Vivia reclamando de meu trabalho e me agredindo verbalmente. Cometia erros e jogava a culpa em mim. Como eu precisava do emprego para sobreviver, não podia fazer nada a não ser aceitar tudo calado. Neste momento, renasceu minha esperança. A resposta estava bem próxima. Pensei um pouco e, frente a frente com o meu interlocutor de olhos verdes, afirmei:

¾ O ódio é produto da maldade!

As minhas esperanças se dissiparam quando via a expressão facial do juiz que parecia ser uma mistura de tristeza e raiva. Ele disse:

¾ Dizer que o calor é efeito do fogo ou que o fogo é a causa do calor não é mesmo que dizer o que é o fogo ou o que é o calor...

Vi que cometi mais um erro. Mas como o silêncio dominava o ambiente então pensei que se fosse rápido e quebrasse o silêncio antes de ser decretado o meu fim ainda tinha uma chance. Arrisquei:

¾ Mas saber que o calor é produto do fogo ajuda a descobrir o que ele é.

Meu interlocutor me fitou e disse:

¾ Sem dúvida, a maldade pode provocar o ódio, mas somente em determinadas circunstâncias. Descobrindo-se estas, descobre-se a resposta. O seu ex-amigo George lhe fez muitas maldades e nem por isso você o odeia.

Vi que tinha uma nova ¾ e talvez última ¾ chance. Poderia também tentar retornar à janela, mas parece que o destino era o mesmo. A única saída parecia ser ir para a frente e enfrentar meu interlocutor até o fim. Por que não odiava George? Ele me roubou, me caluniou... e eu tinha era pena dele. Por que pena e não ódio? Depois de pensar muito descobri: ele era um mau caráter mas também era um pobre coitado, apenas mais um infeliz sofredor deste mundo. Daí ter pena e não ódio. Mas o Doutor Robert, no final das contas, também era um pobre coitado, medíocre e mesquinho. Mas deste eu tinha ódio. Por mais que eu pensava não conseguia chegar a uma conclusão. De repente, me veio a mente uma recordação: o Doutor Robert certa vez afirmou:

¾ Todos os meus empregados parecem me odiar, mas por qual razão, se eu sou tão generoso?

Esther certa vez me disse:

¾ Você pode estar me odiando pelo que fiz, mas é para o seu bem!

George, certa vez, afirmou:

¾ Me desculpe! Juro que isto não se repetirá!

Ora, por qual motivo estas recordações me ocorreram? Continuei pensando até ser interrompido pela voz do juiz que disse:

¾ Assim como a paisagem, o tempo passa, e cada minuto aproxima o seu fim. Somente a velocidade do seu pensamento poderá lhe dar tempo de vida, pois a vida não é outra coisa senão a ação enquanto que a passividade e a imobilidade são a morte.

Estas palavras pareciam sábias e pareciam expressar um rico conteúdo, mas o meu tempo estava se esgotando e a pressa me fazia centrar minha atenção na questão mais importante, pelo menos naquele momento: o que é o ódio? Talvez a resposta estivesse na minha reação contra as pessoas que me fizeram maldades. George pagou caro por tudo que me fez e hoje se encontra na prisão. Mas o Doutor Robert e Esther estão livres como passarinhos e contra eles nada pude fazer. De repente, percebi que tinha descoberto o segredo do ódio: o sentimento de impotência. As pessoas que me maltratavam e eu não podia fazer nada, eu odiava, e as que eu podia me vingar, eu sentia pena. Os fortes são odiados e os fracos são dignos de pena. Fortaleza e fraqueza são produtos, na maioria das vezes, das circunstâncias. O ódio agora podia ser entendido. Confiante, me dirigi ao meu interlocutor:

¾ O ódio é uma manifestação do sentimento de impotência sob forma de agressividade.

Meu interlocutor sorriu e disse:

¾ Chegamos ao fim da viagem.

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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. O Doutor e Outros Contos Incorretos. Rio de Janeiro, Booklink, 2004.

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terça-feira, 29 de março de 2011

Memória e Sociedade - Uma Breve Discussão Teórica sobre Memória Social




MEMÓRIA E SOCIEDADE
Uma Breve Discussão Teórica sobre Memória Social


Nildo Viana*


O presente artigo visa repensar o problema da memória em sua relação com a sociedade. Esta questão, no campo sociológico, foi abordada a partir do estudo clássico de Maurice Halbwachs (1990) e foi desenvolvida por alguns outros autores. A psicologia, por sua vez, desenvolveu vários estudos sobre memória, mas em poucos casos enfatizando suas relações com a sociedade. Alguns filósofos, onde se destaca Bergson (apud. Bosi, 1995), também abordaram o problema da memória. Não pretendemos, aqui, fazer uma apresentação das várias concepções de memória mas tão-somente apresentar nossa visão deste fenômeno, o que nos levará, inevitavelmente, a discutir aspectos, utilizar elementos ou criticar outras abordagens.
A motivação deste trabalho reside na necessidade de rever a questão da memória a partir de uma perspectiva dialética, pois grande parte da produção teórica se fundamenta em postulados teórico-metodológicos positivistas. A necessidade de repensar a relação entre memória social e classes sociais também se faz presente, principalmente quando se busca produzir pesquisas que trabalham com a memória social e não se encontra uma referencial teórico que desenvolva, num sentido dialético, esta questão. A pesquisa sobre a realidade concreta necessita da teoria e esta, por sua vez, se enriquece com aquela. No presente artigo estaremos enfatizando um esclarecimento conceitual e uma discussão teórica sobre a memória social, o que contribui com o desenvolvimento de futuras pesquisas sobre casos concretos.
O Que é a Memória?
O primeiro problema na discussão da temática da memória é sua definição. O conceito de memória ainda não adquiriu uma sistematicidade, nem mesmo na esfera da psicologia, a ciência que mais se dedica a esta temática. Em primeiro lugar, caberia delimitar o campo fenomenal que consiste o que chamamos memória. A contribuição já clássica de Henri Bergson, ao descartar a memória-hábito do conceito é o primeiro elemento que devemos utilizar para realizar tal delimitação (Bosi, 1995; Halbwachs, 1990;  Filloux; 1966). A memória-hábito é uma não memória, pois quando alguém aprende a andar de bicicleta, dirigir carro, digitar no computador, ele está realizando uma repetição mecânica que não o faz apelar para as lembranças e para a mente, nem para a reflexão. Filloux coloca que o hábito é todo comportamento adquirido por aprendizado, sendo movimentos que não requerem a participação da atenção (Filloux, 1966). No entanto, consideramos uma imprecisão de Bergson a expressão memória-hábito, pois trata-se, no caso, de tão-somente hábito. Também o psicólogo Vigotski distingue esta forma de memória, que ele chama de “natural”, da memória que ele denomina “mediada” ou “indireta” (Vigotski, 1994), caindo na mesma imprecisão que Bergson, com a desvantagem de não questionar a atribuição de caráter de memória ao hábito. Filloux reconhece uma certa “colaboração” entre hábito e memória, que é a que ocorre quando se decora texto, a linguagem, etc., o que ele denomina “memória mecânica” (Filloux, 1966).
A idéia de que a memória é um “sistema vivo”, um sistema funcional geral que comanda o conjunto de atividades perceptivas, motoras e intelectuais do indivíduo”, tal como coloca Piaget, segundo Ehrlich (1979, p. 233), também é questionável. Esta concepção apresenta uma visão fetichista da memória, com um “sistema vivo” e “regulador”, o que significa transformar as lembranças e o seu processo de evocação em algo auto-suficiente, dando vida ao que pode ser considerado uma categoria, um instrumento mental, muito mais do que uma realidade concreta. No entanto, até aqui colocamos o que não é memória. Mas qual é o campo fenomenal do que chamamos memória? Segundo Filloux,
“Nosso primeiro trabalho consistirá, pois, em indicar os limites do domínio próprio da memória, que definiremos caracteristicamente por sua propriedade de unir em si o atual e o inatual e, por conseguinte, de realizar um modo ‘intemporal’ de consciência (ellenberger), uma experiência ‘em contratempo’ (Gusdorf). Poder que possui a consciência de se abstrair do presente para voltar-se para o passado, de fazer-se consciência do passado num movimento que transcende o tempo. Procuraremos tipos de lembrança que nos parecem verdadeiramente relacionados com a memória” (Filloux, 1966, p. 14).
Outra definição de memória é fornecida por Halbwachs: a memória é um conhecimento atual do passado (Halbwachs, 1990; Stoetzel, 1976). Isto significa que é, ao mesmo tempo, um saber e uma lembrança. No entanto, tanto esta quanto as demais definições são problemáticas. A memória não pode ser vista como uma cópia cronológica da história. Assim, a afirmação de Halbwachs, derivada de sua concepção de memória, se revela equivocada: “o passado não se conserva; é, sim, reconstruído a partir do presente” (apud. Filloux, 1966, p. 129). Sem dúvida, o passado não se conserva, pois já passou. É preciso distinguir entre a realidade passada e a consciência presente da realidade passada. Assim, não é o passado que é reconstruído a partir do presente e sim a consciência do passado. A memória deve ser redefinida e compreendida como consciência virtual, isto é, é uma possibilidade suscetível de se realizar, uma potencialidade existente. A memória, consciência virtual, é recuperada, restituída e interpretada pela consciência ativa, real, concreta. Desta forma, podemos dizer que na mente humana só existe o presente, só que em estado virtual ou manifesto, inativo ou ativo. A realidade passada é uma coisa, a consciência presente da realidade passada é outra coisa.
Logo, a concepção de Filloux também é problemática. Na memória não se une o atual e o inatual, mas tão-somente o atual. A consciência do passado é uma consciência atual, que recupera e trabalha a consciência virtual. O inatual existe concretamente no processo histórico mas não na mente humana, pois a consciência virtual é tão atual quanto a consciência concreta ativa. Assim, a concepção de H. Bergson também é equivocada:
“O mal da psicologia clássica, racionalista, segundo Bergson, é o de não reconhecer a existência de tudo o que está fora da consciência presente, imediata e ativa. No entanto, o papel da consciência, quando solicitada, é sobretudo o de colher e escolher, dentro do processo psíquico, justamente o que não é a consciência atual, trazendo-o à sua luz. Logo, a própria ação da consciência supõe o ‘outro’, ou seja, a existência de fenômenos e estados infraconscientes que costumam ficar à sombra. É precisamente nesse reino das sombras que se deposita o tesouro da memória” (Bosi, 1995, p. 52)
Bergson confunde os fenômenos psíquicos com os fenômenos reais. O que a consciência faz não é escolher em um depósito que seria o passado o que quer e sim uma recuperação de algo presente na mente humana. A categoria “inatual” se aplica ao passado da realidade concreta mas não à mente humana. Até mesmo a categoria “atual” é problemática e seria mais adequado utilizar a expressão “ativa” em seu lugar.
A memória sendo uma consciência virtual possui como conteúdo as lembranças e a ativação dela significa evocação de lembranças. Na mente humana existe um conjunto de lembranças guardadas na consciência virtual e somente através de sua ativação é que se tornam recordações, o que significa que muitas delas não emergem e que o processo de recordação é seletivo. Neste sentido, se torna inteligível a idéia de que a memória é seletiva (Halbwachs, 1990; Stoetzel, 1976) desde que se perceba que é o processo de recordação ou evocação de lembranças é que é seletivo e não a memória em si. No entanto, quais são os mecanismos de ativação da memória? Quais são as determinações desta seleção?
A Evocação Social das Lembranças
Os mecanismos de seleção se encontram nos valores e sentimentos dos indivíduos, bem como na pressão social e na associação de idéias. Os valores dos indivíduos são constituídos socialmente, e são o que eles consideram importante, relevante, significativo (Viana, 2002). A importância do caráter significativo foi ressaltada por Halbwachs (1990) e por Stoetzel (1976). Os valores não são atributos das coisas e sim atribuições que fornecemos a elas. Assim, nada é, intrinsecamente, feio ou belo, importante ou inútil, pois são os valores dos indivíduos ou grupos que fornecem estas atribuições. Os valores não são, por conseguinte, produtos naturais, já que não são propriedades das coisas e sim atribuições que os indivíduos e grupos fornecem às coisas. Este processo é constituído socialmente. No caso do indivíduo, é através de seu processo histórico de vida, desde de sua socialização, que ele vai produzindo os seus valores e colocando alguns como fundamentais em sua escala, que pode, inclusive, ser contraditória.
Os sentimentos também são fundamentais para a ativação da memória. O amor, o ódio, o ciúme, a inveja, a solidão, entre outros sentimentos, são elementos que constrangem os indivíduos a realizarem recordações. Os sentimentos são potencialidades que também possuem uma formação social. Eles não podem ser confundidos com emoções, pois os sentimentos não são reações momentâneas, mas sim formações mentais duradouras que caracterizam a relação afetiva do indivíduo com outros indivíduos ou coisas. Sendo uma relação, a sua fonte só pode ser social, pois só se pode amar ou odiar, para citar dois exemplos, através da relação. Com aqueles que não relacionamos, ou simplesmente desconhecemos e ignoramos ou então desprezamos. A psicanálise, embora muitas vezes de forma inintencional, apresenta a importância dos sentimentos no processo de constituição da ação humana (Viana, 2004a) e, podemos acrescentar, da ativação da memória.
Mas a memória também pode ser ativada por pressão social (necessidades profissionais, entrevistas, etc.) quando a motivação é externa ao indivíduo. Existem alguns exemplos de pressão social que são bastante comuns. Blondel coloca, por exemplo, a importância que as datas de acontecimentos históricos e políticos para as datas de ordem pessoal.
“Essas datas, que dependem da história, nos servem todas de pontos-de-referência mais ou menos seguros para situar os pormenores de nosso passado, mas algumas dentre elas, pela profundidade da repercussão que tiveram sobre nossas vidas, fazem um corte tão claro entre o que fomos antes e o que passamos a ser, que, ao primeiro lance de vista, verificamos se um acontecimento de nosso passado lhe foi ou não anterior: por exemplo, o 2 de outubro de 1914 e o 11 de novembro de 1918. No que diz respeito aos incidentes e acontecimentos de nossa própria vida, como sempre sabemos em que dia estamos, datam-se eles maquinalmente à medida que são vividos, mas a maior parte perde sua data logo em seguida ou, ao menos, muito rapidamente: guardamos raramente por mais de uma semana a lembrança da data precisa de nosso último jantar na cidade. Somente, ou quase, escapa a esse esquecimento a data dos acontecimentos que significação e valor sociais (Blondel, 1960, p. 177).
Blondel também ressalta que as datas pessoais são recordadas pela sua importância social, tal como ocorre com o aniversário, o casamento, etc. É justamente a pressão social, manifestada seja pelas exigências profissionais, civis, políticas, ou qualquer outra, ou pela importância socialmente atribuída aos fatos políticos, históricos ou acontecimentos na história de vida do indivíduo, que produz a lembrança de datas, que se tornam referências para outras lembranças. Isto revela o mecanismo da pressão social, tal como no caso do nascimento, lembrado por todos, mas apenas no que se refere a data e não ao acontecimento em si. As pessoas não lembram do seu nascimento, mas lembram da data de nascimento. A razão disso é social:
“Sabemos estas datas, nem tanto porque vivemos esses acontecimentos ou fomos deles contemporâneos, mas porque a importância a eles consagrada por nosso meio exigiu que as fixássemos definitivamente. Nada mais característico a esse propósito que a data de nosso nascimento, que é talvez, dentre todas de nossa biografia, a que conhecemos melhor, embora seja de toda evidência que não temos de nosso nascimento, absolutamente nenhuma lembrança, e, a encarar exatamente as coisas, bem seria essa data, antes que a de um acontecimento pessoal, a de um acontecimento histórico. Afinal de contas, e aqui é essencial, a maneira pela qual sabemos a data de nosso casamento, a do armistício, a de nosso nascimento e a de Waterloo, faz com que se identifiquem praticamente, para nós, e o que determina a escolha destas datas dentre todas, a quaisquer acontecimentos que se refiram, é, sempre, a importância que a coletividade lhes empresta e nos sugere ou obriga a lhes emprestar com ela” (Blondel, 1960, p. 177-178).
Também a associação de idéias acaba levando o indivíduo de uma lembrança a outra, já que a busca de reconstituição de algo acontecimento acaba gerando a recordação de outros, assim como necessidades práticas também cumprem este papel de evocação de lembranças. Neste sentido, podemos concordar com Bosi: “lembrança puxa lembrança” (Bosi, 1995, p. 39).
No entanto, abordar a memória leva, naturalmente, a discutir o problema do esquecimento. Quando a consciência ativa busca na consciência virtual algo que não consegue encontrar (um nome, uma idéia, um acontecimento) nós temos o esquecimento. A questão do esquecimento foi desenvolvida por Freud (1978), que a relacionou com a repressão. O esquecimento, em sua abordagem, seria produto da repressão. Podemos, a partir daí, pensar que o recalcamento, enquanto processo mental, produza esquecimento, isto é, dificulte a evocação de lembranças. O recalcamento é produto da repressão social, introjetada pelo indivíduo. Em casos psíquicos mais extremos, tal como em um trauma, o esquecimento pode ser um mecanismo de defesa, uma forma de evitar a lembrança do trauma. Embora Freud tenha utilizado e depois abandonado a idéia de mecanismo de defesa, substituindo-o por repressão, voltou a utilizá-lo e passou a considerar a repressão (recalcamento) como um entre vários mecanismos de defesa. A definição freudiana dos mecanismos de defesa é a luta do ego contra afetos e idéias consideradas “dolorosas” (Freud, 1982).
Sendo assim, temos aqui uma determinada relação entre memória e sociedade. A memória individual é constituída socialmente, pois os mecanismos de evocação de lembranças são de origem social. A memória individual possui sua singularidade a partir do processo histórico de vida do indivíduo que, a partir de sua inserção nas relações sociais e sua posição social, realiza a evocação de lembranças que estão em sua consciência virtual. Tanto as lembranças quanto os mecanismos de evocação são de caráter social, e isto significa que a memória individual é social. Além disso, o material que dá vida à memória também é de caráter social, tal como os signos – o que foi ressaltado por Vigotski (Vigotski, 1994; Braga, 2000) e com a mentalidade ou “formas sociais de padronização da cognição”, segundo expressão de Bartlett (apud. Santos, 2003).
A Memória Social
No entanto, este é apenas um aspecto da relação entre memória e sociedade. O outro aspecto se encontra na discussão apresentada pioneiramente por Maurice Halbwachs a respeito da memória coletiva. O caráter social da memória deixa entrever que a memória é coletiva. No entanto, a memória individual é uma manifestação singular do coletivo. É preciso perceber a singularidade da memória individual, mesmo que sua constituição tenha origem social. A memória coletiva pode se referir tanto à memória de todos os membros de uma determinada sociedade quanto à grupos sociais no seu interior. No primeiro caso, temos uma abordagem que ultrapassa a visão de Halbwachs (1990), pois ele focaliza os grupos sociais. No entanto, as lembranças coletivas, quando são evocadas, possuem os mecanismos de seleção que são de caráter social: valores, sentimentos, pressão social, etc. e, por conseguinte, sua constituição é social, tal como ocorre com o indivíduo, e possuem elementos que são constitutivos de toda uma sociedade. Assim, podemos falar de uma memória social, compreendendo por este termo a consciência social virtual em uma determinada sociedade. Assim, a evocação da origem do mundo nos mitos das sociedades simples revela esta memória social.
Porém, nas sociedades divididas em classes sociais, a memória social acaba se manifestando de forma muito mais reduzida. As classes sociais, entre outros grupos sociais, acabam criando o seu processo seletivo derivado de sua constituição própria de valores, sentimentos, etc. Assim, quando grupos oprimidos recordam Spartacus, o gladiador que liberou a rebelião escrava na Idade Antiga, isto se deve aos valores destes grupos sociais. Outros grupos sociais também acabam manifestando lembranças coletivas, expressão de sua memória social. Os grupos religiosos zelam pelo seu passado através de um conjunto de lembranças, e o mesmo ocorre com os artistas e inúmeros outros grupos sociais. Segundo Halbwachs:
“No mais, se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns e que se apóiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios. Não é de admirar que, do instrumento comum, explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas, de natureza social” (Halbwachs, 1990, p. 51).
Assim, Halbwachs desenvolve alguns pontos interessantes que nos ajudam a pensar a memória social. A memória individual é uma memória constituída socialmente e a memória social é a manifestação coletiva da memória de uma sociedade ou um grupo. Mas isto não deve nos fazer perder de vista que existem uma multiplicidade de memórias, e não apenas uma “memória oficial” e uma “memória comunitária”, pois existem mais grupos sociais e um mesmo grupo social pode manifestar lembranças diferenciadas. Portelli acaba se referindo a este processo e demonstra que a memória não-oficial, no caso o da resistência ao nazismo, pode, em outro momento, se tornar oficial (Portelli, 1998). Além disso, é preciso evitar cair no romantismo, pensando que a memória dos grupos oprimidos é uma memória “não-oficial”, pois ela é perpassada pelas idéias dominantes, pela pressão social, pela contradição (Viana, 2004b)
Um dos grandes problemas da concepção de Halbwachs se encontra no peso exagerado que ele fornece para a questão do lugar e do solo em sua análise da memória coletiva. Segundo Stoetzel, “a demarcação das lembranças no solo é, seguramente, elemento capital da memória coletiva” (1976, p. 137). Muito mais importante do que o solo, são os valores, os vínculos tradicionais e sentimentais, a pressão social.
Outro problema da abordagem de Halbwachs está em sua concepção de memória como conhecimento e lembranças. A memória pode ser considerada uma parte, virtual, da consciência que é constituída por lembranças, mas não da forma como concebe Halbwachs, enquanto “o conhecimento atual do passado, isto é, enquanto consiste ao mesmo tempo num saber e em lembrança” (Stoetzel, 1976, p. 133). A memória é uma consciência virtual do passado, mas não pode ser compreendida como “conhecimento”, isto é, como saber objetivo, pois ela é sempre a consciência de um determinado indivíduo ou grupo social concreto. Neste sentido, cabe recordar Marx, para quem a “consciência não é nada mais do que o ser consciente” (Marx e Engels, 2002). A divisão social do trabalho produz classes e grupos sociais distintos que possuem sua consciência derivada das relações sociais em que são constituídos e de tudo que deriva de tais relações (valores, sentimentos, concepções, ideais, etc.). Assim, o que é “selecionado” pela memória é, predominantemente, o que é determinado pelos interesses da classe dominante e suas classes auxiliares, já que ela possui a hegemonia cultural na sociedade civil. As recordações de atos heróicos do passado são retomadas em momentos de lutas e combates, relembrando figuras heróicas, indivíduos, símbolos, etc. e utilizando-os a partir dos interesses atuais (Marx, 1986).
Outro elemento problemático da concepção de Halbwachs se encontra na suas “leis de regulação da memória coletiva”, o que revela suas raízes deitadas no solo do positivismo clássico. Estas leis são, segundo a abordagem de Halbwachs, a “lei de concentração” (na qual se localiza em um mesmo lugar acontecimentos que não possuem relação necessária); as leis de desmembramento (processo inverso ao anterior, fragmentação de lembranças por diversos lugares) e as leis de dualidade (no qual apresenta duas localizações para o mesmo fato) (Stoetzel, 1976, p. 137). Esta concepção apresenta enquanto problema a idéia de lei, o que acaba provocando uma concepção naturalizante do processo social. Mas, além disso, as leis apresentadas por Halbwachs remetem, sempre, à questão da localização, como se a memória social fosse necessariamente vinculada a um lugar. Esta vinculação existe e ocorre em muitos casos, mas não em todos e existem manifestações da memória social que não remetem a nenhuma localização, tal como uma data de nascimento (o foco é a data e é esta que é lembrada, e não o local onde o nascimento ocorreu, a não ser em casos especiais) e muitas vezes a localização é apresentada mas não possui grande importância. Por conseguinte, as leis da memória coletiva de Halbwachs são invenções científicas e não realidades concretas.
A memória social das classes e grupos sociais é seletiva, da mesma forma que a memória individual e os mecanismos de ativação, tal como já colocamos, também são os mesmos. Porém, como as classes e grupos são diferentes, os seus valores, sentimentos, etc., também são diferentes. Por conseguinte, as lembranças são diferentes. O grau de diferenciação depende de vários aspectos, mas ela existe, seja maior ou menor. A diferenciação mais ampla ocorre na esfera da divisão social de classes. As classes sociais só existem em relação uma com a outra e o antagonismo se encontra nesta relação. Por conseguinte, esta diferença assume uma diferenciação que é perpassada por interesses e por lutas. No entanto, nesta luta, a classe dominante, devido sua posição social e hegemonia cultural, vence normalmente e consegue impor as lembranças coletivas que são do seu interesse. Mas existe a resistência, que pode se manifestar de forma individual ou esporádica e que assume grandes proporções em épocas de acirramento de conflitos sociais. Este aspecto está ausente da análise de Halbwachs, simplesmente por causa de sua concepção de classes sociais. Para Halbwachs:
“As classes sociais são agrupamentos hierarquizados por excelência, que possuem uma consciência coletiva específica, apresentam graus distintos de participação no ideal comum da sociedade em que estão integradas e nas atividades que lhes correspondem, são diferenciadas pelo nível das suas necessidades, e portanto pelo gênero de vida que lhes é próprio, assim como pela matéria em que incide o seu trabalho, a sua atividade econômica, e bem assim pela intensidade da sua memória histórica tradicional” (Gurvitch, 1982, p. 149).
Assim, a concepção de classes sociais de Halbwachs é, ao contrário da marxista, não-relacional e ao abolir a relação entre as classes sociais, se apaga também a exploração, a dominação, os conflitos, os interesses antagônicos, etc., criando em lugar do antagonismo a diferença. Sem dúvida, outras críticas podem ser endereçadas à concepção de classes sociais em Halbwachs, tais como as apresentadas por Gurvitch (1982), mas devido a questão de espaço iremos nos limitar a este elemento fundamental e que esclarece a visão de memória coletiva de Halbwachs e suas limitações.
Desta forma, para concluir nosso trabalho, devemos ressaltar que existe uma luta pela memória e os principais agentes desta luta são as classes sociais e os seus representantes intelectuais. Tanto na esfera das representações cotidianas (“senso comum”) quanto na do pensamento complexo, esta luta se faz presente. Tal como colocou certa vez Adorno, o esquecimento facilita a reprodução (Adorno, 1982), ou seja, ele defende a recordação do holocausto enquanto forma de evitar sua repetição. As diversas abordagens do passado (tanto das representações cotidianas quanto do pensamento complexo, principalmente a historiografia) estão envolvidas neste processo. Mas esta luta não termina aí e ocorre também em torno da definição de memória e suas determinações. A luta pela memória é, portanto, simultaneamente, teórica e prática.


Referências Bibliográficas

Adorno, Theodor. Educação Após Auschwitz. In: Cohn, G. (org.). Adorno. São Paulo, Ática, 1986.
Blondel, Charles. Introdução à Psicologia Coletiva. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1960.
Bosi, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos. 4ª edição, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
Braga, Elizabeth. S. A Constituição Social da Memória. Uma Perspectiva Histórico-Cultural. Ijuí, Ed. Unijuí, 2000.
Ehrlich, Stéphane. Aprendizagem e Memória Humanas. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
Filloux, Jean-Claude. A Memória. 2ª edição, São Paulo, Difel, 1966.
Freud, Anna. O Ego e os Mecanismos de Defesa. 6ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982.
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Stoetzel, Jean. Psicologia Social. 3ª edição, São Paulo, Nacional, 1976.
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* Professor da UEG – Universidade Estadual de Goiás e Doutor em Sociologia/UnB – Universidade de Brasília. E-mail: nildoviana@terra.com.br Endereço: Rua Firmina, s/n, Condomínio Monte Verde, Casa 04, Sítio Recreio dos Ipês. Goiânia-Goiás. CEP: 74681-450. Tel. (062) 3522-5204/9291-1779.



Trecho:"Os mecanismos de seleção se encontram nos valores e sentimentos dos indivíduos, bem como na pressão social e na associação de idéias. Os valores dos indivíduos são constituídos socialmente, e são o que eles consideram importante, relevante, significati- vo.12 A importância do caráter significativo foi ressaltada por Halbwachs e por Stoetzel. Os valores não são atributos das coisas e sim atribuições que fornecemos a elas. Assim, nada é, intrinsecamente, feio ou belo, importante ou inútil, pois são os valores dos indivíduos ou grupos que fornecem estas atribuições. Os valores não são, por conseguinte, produtos naturais, já que não são propriedades das coisas e sim atribuições que os indivíduos e grupos fornecem às coisas. Este processo é constituído socialmente. No caso do indivíduo, é através de seu processo histórico de vida, desde de sua socialização, que ele vai produzin- do os seus valores e colocando alguns como fundamentais em sua escala, que pode, inclu- sive, ser contraditória.

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segunda-feira, 28 de março de 2011

Keith Jenkins: Historiografia e Poder


Keith Jenkins:
Historiografia e Poder

Nildo Viana

A historiografia, como toda ciência, está intimamente ligada ao poder. A percepção disto é importante para se compreender obras como a de Keith Jenkins, A História Repensada[1]. Trata-se de um livro introdutório, dedicado principalmente a estudantes, e que discute o que é a história, alguns de seus principais debates (verdade, fatos e interpretação, empatia, fontes primárias e secundárias, causalidade, a história como ciência ou arte) e a sua própria abordagem, derivada do contexto sócio-cultural atual, chamado pelo autor de “pós-moderno”. O autor discorre sobre todas estas temáticas partindo do ponto de vista assumidamente “pós-moderno” e para isso refuta outras concepções e defende a tese de que a história é um discurso, tal como outros discursos, e nada mais do que isso.

Apesar de ser um livro dedicado a estudantes, ele padece de muitos equívocos que não deveria estar presente em qualquer livro. O fato de ser dedicado ao público iniciante ainda torna mais grave os seus equívocos, pois falta àqueles que fazem a leitura o necessário arsenal informativo e saber teórico que possibilitaria perceber com facilidade as falhas e equívocos do texto. Por isso nos dedicamos a tarefa de realizar uma análise crítica desta pequena obra que vem sendo utilizada ingenuamente por professores e alunos. Obviamente que, em muitos casos, a ingenuidade revela valores, interesses, compromissos. Iremos tratar disso apenas quando formos analisar a obra de Jenkins, mas alertamos para que a concordância com um autor pressupõe ter valores, interesses e compromissos semelhantes aos dele, o que faz com que o desvendar de um autor significa uma grande possibilidade de desvendar aqueles que concordam com ele.

A história, para Jenkins, é um “discurso sobre o mundo”, ou, mais exatamente, sobre o passado. Assim, o autor aponta para a necessidade de distinguir entre história e passado. O passado é constituído pelos acontecimentos ocorridos e a história é o discurso sobre estes acontecimentos. Sendo assim, a história está na biblioteca, é um “construto lingüístico intertextual”. Quando um aluno presta um exame sobre história inglesa do século 16 através da leitura de um historiador específico (G. Elton), ele se torna apto não no conhecimento deste período histórico e sim na obra de Elton. Isto ocorre, segundo Jenkins, devido ao fato de que o objeto de investigação, o passado, “é passível de diferentes interpretações por diferentes discursos” (p. 27).

Até mesmo em um mesmo discurso (historiográfico, sociológico, geográfico) existem interpretações variadas. Uma paisagem, por exemplo, será interpretada de forma diferente por um geógrafo, um historiador, um sociólogo. Mas os próprios historiadores, sociólogos e geógrafos apresentarão interpretações diferentes de outros pesquisadores de sua própria área. O pesquisador não inventa a paisagem, pois ela “parece estar lá”, mas elabora ferramentas analíticas e metodologias para extrair da paisagem, sua “matéria-prima”, as formas específicas de fazer sua leitura, que é o discurso. O autor complementa: “é neste sentido que lemos o mundo como um texto, e tais leituras são, pela lógica, infinitas. Não quero dizer com isso que nós simplesmente inventamos histórias sobre o mundo ou sobre o passado (ou seja, que travamos conhecimento do mundo ou do passado e então inventamos narrativas sobre ele), mas sim que a afirmação é muito mais forte: que o mundo ou o passado sempre nos chegam como narrativas e que não podemos sair dessas narrativas para verificar se correspondem ao mundo ou ao passado reais, pois elas constituem ‘a realidade’” (p. 28).

A distinção entre a produção do historiador e o objeto de investigação é útil e necessária. Porém, da forma como faz Jenkins temos sérios problemas. Em primeiro lugar, a distinção entre história e passado é, em si, problemática. Mais correto seria a distinção entre historiografia e história. A historiografia é a ciência particular que tem como objeto de investigação a história e isto requer aprofundamentos, definindo adequadamente ambos os conceitos. No entanto, não é nosso propósito apresentar definições alternativas às fornecidas por Jenkins. O procedimento dele aponta para a discussão sobre a história e não sobre o passado, abordado superficialmente. O passado, tal como existiu efetivamente, não é acessível. O que temos acesso é as narrativas sobre o passado. A história é produzida em cima de tais narrativas, nas quais nenhuma é derivação imediata do passado, mas tão-somente um discurso elaborado a partir de outro discurso.

Assim, a tese de Jenkins aponta para uma concepção equivocada da história e do “passado”. A separação entre passado e história é anunciada para depois ser destruída, já que o passado nos é inacessível e o que o historiador trabalha são narrativas sobre narrativas, isto é, o passado, em si, foi abolido. A história, por sua vez, definida como “discurso”, “jogo de linguagem”, “construto lingüístico intertextual”, “narrativa”, não tem mais relação com o passado, pois este foi abolido, e assim é uma construção que tem por detrás de si apenas outras construções. Sendo assim, ao contrário do empiricismo, que abole a teoria e se aquartela no “fato”, o culturalismo de Jenkins abole a realidade concreta e se aquartela no discurso. A distinção é feita para abolir um dos termos distinguidos.

Uma vez realizado este malabarismo intelectual, Jenkins coloca que a distinção entre passado e história coloca o problema de sua conciliação. Isto cria a pretensão de verdade/conhecimento que gera o que o autor denomina “três campos teóricos problemáticos”: epistemologia, metodologia e ideologia. Ele considera que a história possui quatro fragilidades epistemológicas: 1) é impossível abarcar a totalidade dos acontecimentos passados; 2) não é possível nenhum relato recuperar o passado tal como ele era, pois o passado é composto por acontecimentos, não sendo um relato, e como já passou, os relatos só podem ser confrontados com outros relatos, e não com o passado; 3) a história é um construto pessoal do historiador enquanto narrador; 4) a história “dá feição às coisas”, cria “estruturas narrativas” (p. 34).

Jenkins acerta no primeiro ponto, mas confunde “o todo” com “o tudo”. Ora, nenhum historiador pode abarcar tudo num determinado momento histórico. Porém, isto não é necessário, não precisamos saber, por exemplo, o que Robespierre pensava sobre a Inglaterra e o que Danton gostava de comer para analisar a Revolução Francesa... Agora, saber sobre a totalidade da sociedade francesa, quais eram as forças políticas, as relações de produção, as ideologias, as classes sociais, a cultura popular, o regime político, a concepção política de Robespierre, Danton e Herbert, entre outros aspectos, seria necessário para tal análise. Não é possível abarcar tudo, mas isto não é necessário, por isso Jenkins atira bem, mas no alvo errado. O segundo ponto só pode ser levado a sério se concordarmos com as definições de passado e história de Jenkins. No entanto, a dicotomia entre acontecimentos (passado) e relato (história) não tem nenhuma fundamentação, muito menos a inacessibilidade dos acontecimentos pelo “relato”. O terceiro ponto afirma que a história é um construto pessoal do historiador como narrador, algo que também não foi fundamentado, a não ser o exemplo sobre as discordâncias entre os historiadores Trevor-Roper e Taylor, o que apenas mostra existirem divergências entre dois historiadores mas não que isso é derivado do fato de serem “construto pessoal” deles. O quarto e último ponto afirma que a história cria estruturas narrativas e dá feição às coisas, o que é mais uma afirmação arbitrária do que uma assertiva fundamentada. Mas podemos dizer que Jenkins está certo quando fala de seu próprio discurso: é uma criação de uma estrutura narrativa e por isso é impossível Jenkins recuperar o passado tal como ele era...

Jenkins passa para a metodologia e diz que existe uma arbitrariedade na interpretação e justifica isso dizendo que o rigor do método não é suficiente para aboli-la, e a existência de vários métodos comprova isto. Ele cita vários métodos e diz que seus defensores consideram que o conhecimento produzido por eles possui legitimidade por partirem de “regras e procedimentos metodológicos”. No entanto, coloca Jenkins, o que determina a interpretação é a ideologia, pois é esta que faz com que o historiador escolha entre os diversos métodos ou os critérios para sua escolha. Sem dúvida, isto é verdadeiro. A escolha do método ou dos critérios que servem para legitimar esta opção é produto dos valores, interesses, sentimentos, do historiador. Isto, entretanto, não demonstra que os métodos sejam todos deficientes.

Outro problema metodológico colocado por Jenkins é o dos “conceitos básicos da história”, que, segundo ele, não são universais e sim localizados e particulares. Seus alicerces são pedagógicos e ideológicos, isto é, são formados através do sistema educacional e das ideologias. Apesar da imprecisão do autor no que se refere ao conceito de ideologia, mas que fica subentendido a visão positivista, concebendo-a como um pensamento valorativo, a análise é correta, desde que limitada à historiografia dominante.

A história, assim, é um “construto ideológico”, marcada pelo conflito entre dominantes e dominados, etc.  Segundo Jenkins, “as diferenças que vemos estão lá porque a história é basicamente um discurso em litígio, um campo de batalha onde pessoas, classes e grupos elaboram autobiograficamente suas interpretações do passado para agradarem a si mesmas” (p. 43). Sem dúvida, a interpretação da história é um campo de lutas sociais, mas não se trata meramente de ser autobiográfica e para agradar a si mesmo, existe muito mais em jogo, e isto é ocultado no livro de Jenkins, tal como colocaremos mais adiante.

Ao falar da prática do historiador Jenkins coloca as pressões sociais (familiares, acadêmicas, editoriais) sobre o trabalho do historiador, o que traz diversas dificuldades e influencia a obra historiográfica. Retomaremos este ponto no final deste texto.

Jenkins defende o relativismo e diz que a desconstrução das historias das outras pessoas é pré-requisito para a produção da própria história e esta é sempre história destinada a alguém e reafirma sua tese da história como discurso.

Na segunda parte de seu livro, Jenkins discute algumas questões epistemológicas. A primeira é a questão da verdade. Para Jenkins, a verdade é impossível. Ela é mera figura de retórica cujo quadro de referências não ultrapassa seus próprios limites, sendo incapaz de apreender o mundo dos fenômenos. A palavra e o mundo estão separados. Jenkins cita o positivista pragmatista norte-americano Richard Rorty: a verdade é sempre criada, nunca descoberta. Então por qual motivo ela é “procurada”, se busca “descobri-la”? Jenkins explica isso pela “longa tradição dominante” (platonismo, cristianismo, razão, ciência, hábitos cotidianos) e por existir relações de poder: a verdade fica na dependência de alguém ter o poder para torná-la verdadeira. A história é um jogo de linguagem, sendo que a verdade (e expressões correlatas) são meros expedientes para “iniciar, regular e findar interpretações” (p. 59).

Esta concepção utilitarista de verdade se funda em mais um equívoco de Jenkins. Ele toma por verdade a concepção dominante e oficial de verdade e generaliza, tornando todas as supostas verdades como tendo o seu mesmo mecanismo utilitarista de produção. Assim, não existe a verdade ou existem verdades que são meros jogos na luta pelo poder. A verdade fica reduzida a mera retórica. Sem dúvida, a lei da gravidade não é uma verdade, é apenas retórica. Portanto, qualquer indivíduo que tenha vontade de pular do 10º andar de um prédio, pode fazê-lo, pois se não o fizer por causa da lei da gravidade, isto significa que ele está sendo ludibriado pela retórica de alguns físicos tão-somente interessados em deter o poder. Também não devemos pensar que o nazismo provocou o massacre de milhões de pessoas, tal como dizem muitos historiadores, pois eles fazem isto apenas devido à necessidade de uma retórica para disputar o poder. Assim, ao abolir o passado e a verdade, Jenkins presta um grande serviço ao poder.

Jenkins também discute a questão dos fatos históricos. Para ele, os fatos são construídos pelas “leituras interpretativas”. Isto também é correto. O problema está em ir disso até a abolição dos fatos, o que é apenas complemento da abolição do passado realizada no início do seu discurso. A reificação dos fatos é costumeira, mas a abolição da realidade concreta a partir da percepção de que tais fatos não são coisas objetivas e dadas, temos uma distância bem grande. Jenkins também critica aqueles que criticam a parcialidade, pois não ser parcial é algo impossível, o que é correto, mas não da forma como ele coloca, tal como retomaremos adiante. A crítica da idéia de empatia também é correta, pois é impossível alguém pensar com uma pessoa pensava em épocas passadas, o que não significa, porém, que não seja possível a reconstituição histórica por outros meios. Jenkins também abole a distinção entre fontes primárias e secundárias, o que é mero complemento de sua abolição do passado e dos fatos e carrega os mesmos equívocos das afirmações anteriores. A questão da causalidade é descartada com a mesma facilidade e simplicidade, pois se a história é discurso, então não há causalidade, o que existe é mera “cópia do que os outros disseram”.

Por fim, o debate sobre se a história é ciência ou arte é, segundo Jenkins, ultrapassada, pois ela “não é arte nem ciência, mas uma coisa diferente – uma coisa sui generis, um jogo de linguagem que não está para brincadeiras, que está localizada no tempo e no espaço e no qual as metáforas da história como ciência, ou da história como arte, refletem justamente a distribuição de poder que põe estas metáforas no jogo” (p. 90).

O discurso de Jenkins é fácil e pode até convencer os leitores desatentos. A quase completa falta de fundamentação da maioria de suas afirmações salta aos olhos dos mais atentos. Ora, para dizer se a história é ciência, arte, jogo de linguagem ou qualquer outra coisa é necessário, anteriormente, definir ciência, arte, jogo de linguagem... e história e posteriormente observar se há correspondência ou não. Jenkins não fez nada disso, apenas cita Hayden White e observações pouco convincentes sobre a produção historiográfica realizada a partir de outra produção historiográfica.

Ele encerra o segundo capítulo de seu livro com uma afirmação reveladora: “pelas mesmas razões de Hayden White, considero que o relativismo moral e o ceticismo epistemológico constituem a base da tolerância social e do reconhecimento positivo das diferenças”. Aqui temos a explicitação de um discurso ideológico. A “tolerância social”, como já ensinava Marcuse, significa que os explorados e oprimidos devem tolerar os dominantes, a exploração e a opressão; o reconhecimento das diferenças significa transformar as relações de opressão em mera “diferença” e buscar sua conservação (“reconhecimento”) ao invés de buscar sua abolição. O discurso de Jenkins assume todo o seu conservadorismo, que se complementa no último capítulo, quando ele coloca as bases de seu pensamento.

Jenkins revela sua base ideológica: o pós-modernismo. Segundo Jenkins, vivemos num mundo pós-moderno. Para ele, a melhor definição de pós-moderno foi a de Jean-François Lyotard, o filósofo francês que a pedido da UNESCO fez uma intervenção que impressionou pela lista extensa de cientistas naturais citados e que ele admitiu, posteriormente, nunca  ter lido... Lyotard coloca que o mundo pós-moderno vê nascer o “fim dos centros e das metanarrativas”. Isto significa o fim de um conjunto de concepções, desde o iluminismo passando pelo liberalismo, humanismo, marxismo. O marxismo, a expressão otimista destas concepções, com a experiência do “socialismo real” (mesmo considerando as diferenças entre a proposta original e a deformação soviética) também fracassou. A crítica do marxismo ocidental e feminista ao capitalismo fez com que ele buscasse uma forma de se valorizar e a forma encontrada foi a ênfase nas forças do mercado. As mudanças históricas, principalmente após os anos 50, marcariam uma nova era marcada pelo ceticismo, pragmatismo e relativismo. O pós-modernismo é a expressão desta situação, embora não tenha unidade e tenha diversas produções no seu interior. Assim, a morte dos centros e das metanarrativas abre espaço para uma multiplicidade e isto também ocorre na história. O proletariado é substituído por diversos grupos, tais como de jovens, desempregados, mulheres, etc. Surge também uma multiplicidade de discursos e, por conseguinte, uma multiplicidade de relatos históricos, além da história profissional, aparece a história feminista, ambiental, etc. e não só existem simultaneamente como um perpassa o outro, possuindo fronteiras irregulares e sobrepostas, sendo marcados pela intertextualidade. Esta explosão de relatos históricos é uma característica da era pós-moderna.

Obviamente que, neste caso, Jenkins tem o modismo do seu lado. No entanto, Lyotard é uma base muito pobre para qualquer discussão sobre pós-modernismo, principalmente levando-se em conta o número de obras que abarrotaram o mercado editorial sobre esta temática, bem como por obras importantes que ele cita mas não leva na devida conta. David Harvey e Terry Eagleton, por exemplo, realizam uma crítica das bases da ideologia postulada por Lyotard. A idéia de que vivemos numa sociedade pós-moderna não se sustenta. Os ideólogos que inspiram Lyotard, o sociólogo norte-americano Daniel Bell e o sociólogo francês Alain Touraine, não ultrapassam o discurso ideológico e, tal como Jenkins, não passam de um passeio superficial sobre a sociedade contemporânea. A idéia de substituição do proletariado é também apenas anunciada mas nunca comprovada, nem por Jenkins nem pelos ideólogos que ele se baseia. Mas deixando de lado as bases sociais postuladas por Jenkins, não deixa de ser cômico ele tomar o que existe em si, sem nenhuma análise crítica. Obviamente que isto é bastante útil para os seus objetivos, tal como colocaremos adiante.

Jenkins diz que a diversidade de relatos históricos traz consigo a relativização e historicização, juntamente com o ceticismo atual. Assim, a “redescrição irônica” proposta por Rorty passa a explicar a nova situação. Segundo este ideólogo, basta redescrever para se dizer o que é bom e o que é mau. O passado pode ser redescrito infinitamente, coloca Jenkins, de acordo com o que cada um quer. Assim, se instaura a “absoluta imprevisibilidade das leituras” e as interpretações que estão no centro não estão por serem “verdadeiras” mas por que estão alinhadas com o discurso dominante. O que Jenkins esquece de dizer é que o discurso dominante hoje é o que ele está lançando mão...

Desta forma se cria um fluxo interpretativo, se questiona a verdade, os fatos, o passado. A liberdade de se criar “interpretações alternativas” é subversiva. O discurso dominante busca censurar as leituras indesejáveis, recuperando, incorporando ou redescrevendo-as para adaptá-las aos seus interesses. Mas este procedimento também pode ser realizado pelas narrativas alternativas e tais tentativas do discurso dominante, segundo Jenkins, dificilmente terão sucesso. Jenkins coloca a necessidade de produzir “percepções novas” na história. Uma nova abordagem necessitaria de uma “metodologia reflexiva” e de uma tomada de posição. A metodologia reflexiva deveria trabalhar a distinção entre história e passado e analisar como são construídas as diversas narrativas historiográficas. A escolha de uma posição não significa que se pode deixar de escolher mas sim que deve estar consciente de sua tomada de posição, o que significa se alinhar com determinadas interpretações e negar outras. Enfim, ele conclui dizendo que partindo de uma metodologia reflexiva (pós-moderna) se deve analisar a produção historiográfica no contexto de um mundo pós-moderno.

Não deixa de ser curioso como Jenkins se alinha com a historiografia dominante e ao mesmo tempo a condena... As interpretações alternativas são apenas interpretações alternativas. A sua receita é a sua própria concepção, auto-intitulada pós-moderna, adequada ao mundo pós-moderno. Porém, como este mundo pós-moderno é uma ficção, então a abordagem de Jenkins também é mera ficção. Neste sentido se torna compreensível sua idéia de a historiografia não passa de relatos construídos... Ao afirmar que todo discurso do historiador é mera narrativa e que a “verdade” é mera retórica, Jenkins fala de si mesmo. Ou seu discurso é mera narrativa, sem fundamentação na realidade (isto, segundo ele, não existe... ou se existe é inacessível...) e a verdade que ele propõe é mera retórica. No entanto, ele não afirma isto, pois se o fizesse destruiria o seu edifício ideológico pela base.

Agora, depois desta exposição geral do texto de Jenkins, podemos fazer uma avaliação global dela. O pequeno livro de Jenkins é muito fraco, mesmo sendo um livro introdutório para estudantes, pois além das lacunas e falta de fundamentação de grande parte do que foi afirmado, o texto simplesmente não diz nada de realmente significativo e não consegue fazer uma verdadeira introdução à historiografia. Mas livros fracos existem aos montes nas livrarias, sendo sua maioria absoluta. Por isso, o maior problema não está nas debilidades mas sim no seu caráter ideológico. Mas não usamos o conceito positivista de ideologia, tal como faz Jenkins, isto é, significando um pensamento valorativo, pois, para nós, todo pensamento é valorativo. Por ideologia compreendemos uma falsa consciência sistemática da realidade, mesmo que sua sistematicidade seja débil, como no caso de Jenkins.

Ao colocarmos a ideologia como falsa consciência, fica subentendido a existência de uma consciência verdadeira e, por conseguinte, da verdade. A verdade não é algo inacessível, embora seja ofuscada pelos interesses, valores, sentimentos, das classes sociais privilegiadas e seja marginal devido as relações de poder existentes em nossa sociedade, já que são tais classes que o detém. O discurso de Jenkins é ideológico por sua ligação com tais interesses, devido seu descompromisso com a libertação humana, em que pese faça afirmações superficiais e soltas sobre “emancipação democrática”, expressão incompreensível. Ele aconselha a  todos os historiadores escolherem sua posição e assumi-la, mas ele mesmo não o fez explicitamente. O que fez foi tão-somente se filiar à ideologia pós-estruturalista mas não apresentou qual é a base social, de qual classe ou grupo social ela é expressão.

Ao dizer que o passado é inacessível então ele se torna algo em disputa. Porém, a base da disputa nunca é colocada. O que parece é que se trata de mero passatempo, já que não se explicita quem são estes grupos em disputa, por qual motivo existe a disputa e diversas questões que esclareceriam o sentido desta luta em torno do passado. Ao fazer reflexão sobre o discurso historiográfico, não temos reflexões sobre quem são os que fazem tal discurso, quais são seus interesses e valores, isto tudo porque, no final da contas, se defende a tese oculta de que tais valores e interesses são equivalentes. Todas as “narrativas” são equivalentes, embora ligadas as relações de poder. Assim, a crítica aos adeptos da imparcialidade é aparentemente uma postura questionadora, mas ao colocar que é tudo parcial e não ultrapassar tal afirmativa, temos um processo de relativização. O relativismo numa sociedade que o próprio autor reconhece como sendo marcada pela opressão, por relações de poder, etc., beneficia a quem? E dizer que a historiografia revisionista do fenômeno nazista é parcial, legítima e “verdadeira” como qualquer outra leva a que conclusão?

Enfim, Jenkins relaciona historiografia e poder, mas ao mesmo tempo que revela, esconde suas relações. Assim, quando ele fala das pressões familiares, acadêmicas e editoriais sobre a produção historiográfica, deixa entrever que ele se submete tranqüilamente e comodamente a isto. No entanto, o seu argumento é apenas para mostrar a fragilidade da produção historiográfica, mas revela também relações de poder. A academia pressiona com suas exigências, tal como servir ao sistema educacional e suas diretrizes. Ora, por que ele não luta contra isto? Pelo contrário, ele reproduz esta pressão, ao citar e acatar a expressão “historicizar sempre” (p. 106), tal como consta, segundo ele mesmo diz, no currículo escolar britânico. O excesso de aulas é uma pressão? Por que não pede licença, mata aula, usa monitor ou qualquer outra estratégia? Também aponta a pressão editorial que interfere no número de páginas, nas sugestões, etc. Ora, isto interfere no conteúdo? No caso dele, certamente não... E por qual motivo não publica autonomamente ou forma um coletivo de profissionais que compartilham as mesmas teses e faz suas próprias publicações como muitos fazem? Sem dúvida, por não precisar e estar muito bem aquartelado nas instituições existentes. Derivado disto, temos sua adesão ao modismo pós-estruturalista (“pós-moderno”) e sua defesa do relativismo que beneficia quem detém o poder. É por isso que o conteúdo de seu livro aponta para uma suposta abordagem crítica que se revela apenas o conservadorismo contemporâneo, recheado de pragmatismo, de acordo com os interesses dominantes.

A maior astúcia do discurso ideológico é falar do poder e ao mesmo tempo ocultá-lo. A maior astúcia de Jenkins é falar do poder, do passado, da historiografia dominante, e, ao mesmo tempo, esconder tudo isso. No entanto, seu discurso ardiloso esconde não só a realidade concreta, mas também a si mesmo, e suas ligações com o poder, seu descompromisso com aqueles que ele cita (mulheres, negros, operários, etc.), que são mera figura de retórica para ele posar de progressista. Jenkins, no fundo, se revela um historiador a serviço do poder.
Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Keith Jenkins: Historiografia e Poder. Revista Possibilidades, Goiânia-GO, v. 02, n. 05, p. 62-68, 2005.




[1] Jenkins, Keith. A História Repensada. 2ª edição, São Paulo, Contexto, 2004.

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