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segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O FETICHISMO ELEITORAL



O FETICHISMO ELEITORAL
Nildo Viana

Os períodos eleitorais são momentos de ilusões. A questão é que quando há um acirramento na disputa eleitoral, essas ilusões, que tendem, geralmente, a mover apenas votos, começa a extrapolar e virar fanatismo, violência, agressividade, etc. O fetichismo toma conta e a racionalidade desaba. Ao lado do fetichismo, crenças, interesses, desejos, entre outros processos, atuam de forma que muitas pessoas não consigam mais ver o mundo como ele realmente é ou mesmo como via normalmente e sim através do maniqueísmo, a mistificação da luta do bem contra o mal.

O fetichismo eleitoral é uma das fontes desse processo. O fetichismo é um processo mental que Marx (1988) utilizou para analisar a mercadoria. A mercadoria enfeitiça a consciência humana, que passa a pensar que ela tem “vida própria”, que ela é um agente, que é um ser de vontade e ação, ou seja, que é algo como um ser humano e, ao mesmo tempo, transforma o ser humano em “coisa”, em mero “objeto”. É a inversão entre o reino dos homens e o reino das coisas, gerando a coisificação do humano e a humanização das coisas. Erich Fromm (1983) tratou do fenômeno análogo da idolatria, no qual o criador acaba se rendendo à sua criatura.

O fetichismo eleitoral é um processo semelhante. O que é o fetichismo eleitoral? Ele é um processo no qual os candidatos e os partidos ganham autonomia, se tornam agentes e seres poderosos (quase mágicos) que podem decidir o destino e o futuro[1] da sociedade. E isso vale para o bem e para o mal, ou seja, para o lado A, o partido e candidato defendido, e para o lado B, o partido e candidato que é adversário. Ambos ganham propriedades mágicas de resolver ou aprofundar os problemas a partir de sua mera vontade. Assim, a crença no discurso eleitoral (sobre discurso eleitoral clique aqui) se torna irracional, pois todos, por experiência, sabe que as promessas raramente são cumpridas, que as soluções mágicas não funcionam, que não depende apenas do candidato[2], que é discurso condicionado para ganhar votos e as eleições.

Isso cria o isolamento das eleições, dos candidatos e dos partidos. A fonte disso está no discurso dos candidatos e partidos, que, apesar de seu caráter mentiroso e oportunista, autodeclaram sua sinceridade. Candidato A e candidato B juram ser sinceros. Uma parte do eleitorado, ingenuamente, acredita nisso. E assim fica uma disputa eleitoral que gera adesões apaixonadas a um ou outro lado. Porém, isso se agrava no caso de processos eleitorais que possuem segundo turno, pois a disputa se reduz a apenas dois lados. No caso brasileiro atual, a polarização entre duas forças políticas, já no primeiro turno (e que se retroalimentam), atinge um grau elevado e extremado no segundo turno. Quando o discurso eleitoral dos competidores passa a realizar o discurso maniqueísta da luta entre o “bem” e o “mal” (o que é reforçado por outros e no final quase todo mundo cai nesse discurso falso e útil para ambos os lados em disputa), a irracionalidade toma conta e quem não fica do lado A vira inimigo e apoiador do lado B e vice-versa, inclusive para aqueles que não se posicionam de nenhum lado e para aqueles que são contra ambos os lados[3].

A disputa pelos votos fazem os candidatos apoiarem essa forma de constrangimento eleitoral (se você não vota em A, você apoia ou é “fascista”; se você não vota em B, você é ou apoia “comunista”). O constrangimento eleitoral tem um elemento que é “escandalizar”, tornar “vergonhoso” a decisão de não apoiar A ou B. No discurso, o constrangimento aparece não como apoio ao candidato que se defende e sim por votar no outro, no “fascista” ou no “comunista”, entendidos como o “mal”, o inaceitável, etc. Ao transformar o adversário na personificação do mal, então resta para o eleitor votar no seu concorrente, mesmo que não goste, não concorde ou não queira ele. Essa é uma mágica eleitoral: vote no que não quer para evitar o que não quer. O constrangimento eleitoral é execrável, e é típico de políticos profissionais, projetos de ditadores, que querem apoio por transformar o outro em personificação do mal. A irracionalidade toma conta, pois a disputa não é mais de candidatos, propostas, partidos, projetos, e, o que é mais comum, promessas irrealizáveis e algumas poucas ações realizáveis, e sim entre o bem e o mal. O debate não é mais de ideias, propostas, projetos, posições políticas, e sim entre quem está do lado do  bem e quem está do lado do mal, caindo na irracionalidade.

Uma vez criado esse clima, reina o fetichismo eleitoral. Mas o mais interessante disso tudo é que isso é alimentado e reforçado por ambos os lados. Da mesma forma, eles se retroalimentam. Quanto mais A ataca B e o coloca como a personificação do mal, e quanto mais B reproduz o processo de forma idêntica, mais temos a polarização e um reforça o outro. No casos das eleições presidenciais no Brasil desse ano, é isso que ocorreu e que contribuiu drasticamente para um segundo turno ocorresse justamente com as duas tendências que os setores mais conscientes queriam evitar. O problema é que no segundo turno isso se torna “plebiscitário” e a ânsia pelo poder faz os dois lados ficarem cada vez mais ansiosos pelo poder e seus adeptos cada vez mais desesperados, agressivos, violentos.

Isso, por sua vez, gera um clima eleitoral de polarização, irracionalidade e agressividade. Os mais fervorosos defensores da democracia, ironicamente, não respeitam as decisões eleitorais dos demais, o que proporciona o constrangimento eleitoral. Inclusive emergem discursos contraditórios (o que faz parte da irracionalidade) tal como aquele que afirma que é preciso defender a democracia e para isso é preciso votar contra determinado candidato. Ora, isso é uma mistificação da democracia, a criação de uma democracia fictícia em lugar de uma democracia real e, além disso, transforma o ato democrático em ato antidemocrático. Votar no candidato A é ser contra a democracia. Ora, a democracia representativa e burguesa se institui justamente na existência de diversas posições, partidos, candidatos. O veto a um dos candidatos é, em si mesmo, antidemocrático, mesmo que falando em nome da democracia. Se candidato A é autoritário e tem muitos votos, podendo ser eleito, isso é algo que foi permitido (e legitimado e legalizado, ou seja, isso ocorre tanto no plano da legitimidade quando da legalidade democrática) pela própria democracia, a que se está, supostamente, defendendo. Segundo essa versão, o candidato A é um monstro e é contra a democracia e por isso é preciso votar no candidato B e se esquece que esse candidato monstruoso é produto e só foi possível por causa da democracia (e do candidato B, que, no caso brasileiro, gerou esse monstro que agora combate e que o reforça ao transformá-lo na personificação do mal).

Esse clima eleitoral vai gerar, por exemplo, brigas familiares, amizades perdidas, antipatia generalizada ao lado contrário e, novamente uma manifestação fetichista: a coisificação dos outros seres humanos, que, por mero motivo eleitoral, deixam de ser uma totalidade (um ser humano completo, com suas grandezas e pequenezas, com seus méritos e deméritos, que pode falhar, se equivocar, etc.) e passam a ser reduzidos (novamente o reducionismo) a eleitor de X ou apoiador ou que tem a “inaceitável” neutralidade ou recusa de ambos os candidatos. Assim, viraram “inimigos”. Isso daria até um novo ditado popular: “quem não é contra o meu inimigo é meu inimigo”. Obviamente que, na sociedade brasileira, esse é um processo que vem de algum tempo e se acirrou nos últimos anos, especialmente 2014, após a derrota das manifestações de 2013 e a crise de legitimidade e financeira que se desenvolveu com mais força a partir de 2015.

Em síntese, o fetichismo eleitoral gera um clima eleitoral que o reforça e que gera um processo de exasperação política, num contexto de crise financeira e outros problemas sociais, que podem gerar aquilo que se quer combater. Ao se isolar o processo eleitoral, os candidatos, os partidos, perde-se de vista o humano, a sociedade, as relações sociais. O partido A não vai fazer o que promete, nem o B. Isso não depende da vontade do futuro presidente, pois precisará de apoio parlamentar, apoio empresarial, apoio internacional. Precisará de recursos financeiros, administradores competentes, quadros técnicos, etc. (que, aliás, nenhum dos dois partidos em disputa no segundo turno nas atuais eleições brasileiras possuem)[4]. Dependerá da situação internacional, da ação dos demais países, etc. Dependerá também das disputas entre os aliados e internamente. Dependerá, também, da ação da população, especialmente das classes trabalhadoras. A lista é infinita, com pesos distintos para cada caso. Mas quem for eleito precisará do apoio da classe capitalista para governar, especialmente a estrangeira e, secundariamente, a fraca burguesia brasileira (o que inclui o capital comunicacional, tal como as grandes redes de rádio e televisão). Mas, pior do que tudo isso, é que entre candidato A e candidato B não há grandes diferenças. Nenhum dos dois traz grandes diferenças em relação ao que já está sendo produzido pelo Governo Temer, as diferenças de detalhes não geram soluções diferentes, são apenas variação de uma única solução. As maiores diferenças são discursos que ninguém pretende realmente colocar em prática posteriormente. É fácil dizer que vai oferecer um 13º “salário” (não é salário...) para quem recebe bolsa família ou então que vai expandir o ensino superior federal gratuito, como se isso não dependesse de recursos e outros processos sociais (como a situação fosse a mesma que há dez anos atrás).

O fetichismo eleitoral traz a ilusão eleitoral, a crença irracional nos partidos e candidatos. Ele cria falsas esperanças e falsas desesperanças. Ele reforça a mediocridade e desmobilização das classes trabalhadoras. Por isso o fetichismo eleitoral precisa ser combatido, bem como as falsas soluções eleitorais. Enquanto as pessoas se fiarem no processo eleitoral estarão escolhendo os seus carrascos, seja de “direita” ou de “esquerda”. O menos ruim é o discurso de quem quer se iludir com o voto que poderia significar algo menos prejudicial, o que não tem nenhum fundamento real e a história já provou isso. Assim, é preciso criticar o fetichismo eleitoral, lutar contra a ilusão eleitoral e a participação nesse processo de legitimação e reprodução do poder e do capitalismo. A única opção para quem não quer reproduzir o que existe – uma sociedade fundada na exploração, dominação e tudo que é derivado disso, bem como competição, miséria, etc. – e não fortalecer o barbarismo potencial dentro do capitalismo, é recusar a democracia burguesa votando nulo e colaborar com a produção cultural e lutas dos trabalhadores para gerar um desenvolvimento intelectual e organizacional da população, meio necessário para a transformação radical e total das relações sociais.

Referências

FROMM, Erich. O Conceito Marxista do Homem. 8ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 1, 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

VIANA, Nildo. A Pesquisa em Representações cotidianas. Lisboa: Chiado, 2015.

VIANA, Nildo. O Modo de Pensar Burguês. Episteme Burguesa e Episteme Marxista. Curitiba: CRV, 2018.



[1] O fetichismo eleitoral é o processo que reproduz elementos das representações cotidianas (uma de suas características: a simplificação, embora também o processo de naturalização também apareça) e da episteme (modo de pensar) burguesa: o reducionismo. Sobre representações cotidianas, veja Viana, 2015 e sobre episteme burguesa, veja Viana, 2018.
[2] O que vai ser efetivado depois das eleições pelo futuro governo é outra coisa, pois dependerá das alianças, das pressões de setores do capital, da governabilidade, dos recursos financeiros existentes, da dinâmica da acumulação de capital (crescimento econômico), das lutas dos trabalhadores, entre inúmeras outras determinações.
[3] Num caso temos a “neutralidade”, tal como alguns partidos definiram, o que não passa de oportunismo para permitir aos integrantes do partido apoiar aqueles nos quais terá algum retorno, e noutro a recusa. A neutralidade (de setores da população e não dos partidos políticos oportunistas) é gerada por não gostar, não confiar, não acreditar nos candidatos ou não ter interesse ou ilusão com o processo eleitoral. A recusa é uma posição política clara de crítica a ambos os lados. A recusa se manifesta no voto nulo politizado (de autogestionários, anarquistas e autonomistas, claro que aqui se trata daqueles que não cedem aos encantos fetichistas do processo eleitoral, e aqueles que cedem são encontrados em um número considerável de adeptos das duas últimas posições ou que pelos menos se dizem adeptos delas e contradizem o que dizem acreditar e defender). Quem vota nulo de forma politizada, ou seja, sob forma consciente e com outro projeto político que se contrapõe aos concorrentes eleitorais, questiona ambos os lados em disputa e discorda deles radicalmente.
[4] Obviamente eles podem “chamar o Meirelles” ou alguém semelhante.

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