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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

ANÁLISE MARXISTA DE CONJUNTURA


ANÁLISE MARXISTA DE CONJUNTURA

Nildo Viana

Um dos temas recorrentes para os militantes políticos é o da análise de conjuntura. Em movimentos grevistas nas universidades, há quem reivindique um responsável para realizar tal análise. Os congressos partidários, estudantis e sindicais são sempre permeados por supostas análises de conjuntura. Estes, quando possuem as famosas “teses”, são sempre precedidos de pretensas (e muitas vezes extensas) “análises de conjuntura”. Nessas, proliferam dados estatísticos, geralmente sobre economia, e/ou considerações sobre o governo e suas políticas estatais.
É possível realizar diversos questionamentos a tais procedimentos. Deixaremos isso para o final, quando apresentarmos a crítica ao conjunturalismo. Essa é uma parte complementar do presente trabalho, cujo objetivo é muito mais apresentar a concepção marxista de análise da conjuntura do que os usos e abusos, bem como equívocos, dos supostos “analistas da conjuntura”.
O ponto de partida da concepção marxista de análise de conjuntura é esclarecer o que significa isso. Em outras palavras, o primeiro elemento que deve ser tratado é: o que é análise de conjuntura? E derivado desta questão inicial, emergem inúmeras outras. Porém, não iniciaremos respondendo tal questão. Vamos iniciar apresentando os pressupostos da análise marxista da conjuntura e somente após tal apresentação é que abordaremos a questão do que significa isso e como é o seu procedimento, bem como outros elementos derivados.
Pressupostos da análise marxista da conjuntura
A análise marxista da conjuntura tem alguns pressupostos. Seremos breves na exposição desses pressupostos, que são, fundamentalmente, quatro: o método dialético, o materialismo histórico, a teoria do capitalismo e a perspectiva do proletariado. Esses quatro elementos são inseparáveis e por isso estão presentes em toda e qualquer análise de conjuntura que se pretenda marxista.
O método dialético é um elemento indispensável para qualquer análise marxista da conjuntura. Obviamente que um indivíduo concreto pode utilizá-lo de forma refletida ou irrefletida. Para quem tem domínio do método e faz parte do seu modo de pensar[1], então é algo realizado espontaneamente, mas para quem não tem, é preciso estar atento para conseguir realizar uma análise dialética. Aqui não será possível realizar uma discussão sobre o método dialético, mas tão somente destacar sua importância e apontar quais elementos do referido método são importantes para uma análise da conjuntura.
Algumas categorias da dialética são fundamentais, pois permitem ultrapassar o imaginário (representações cotidianas ilusórias) e a ideologia. As categorias de totalidade, determinação fundamental e múltiplas determinações são fundamentais em uma análise de conjuntura, pois consegue estabelecer uma percepção de conjunto que, ao mesmo tempo, expressa o que é fundamental e os demais aspectos da realidade, sem tomar estes como o principal. A percepção da essência (determinação fundamental) é condição para a compreensão da existência (múltiplas determinações) e para evitar a mera reprodução mental da aparência (tal como faz o imaginário e as ideologias)[2].
O método dialético é inseparável do materialismo histórico, da perspectiva do proletariado e da teoria do capitalismo. O materialismo histórico é uma teoria da história e da sociedade que traz a percepção de diversos aspectos da realidade, tais como os conceitos de sociedade, modo de produção capitalista, relações de produção, Estado, classes sociais, luta de classes, cultura, consciência, etc. No entanto, não se trata de conceitos separados ou separáveis. Esses conceitos, em si, apontam para uma determinada percepção da realidade, mas remetem para outros conceitos e apresentam uma explicação da realidade social. O materialismo histórico estabelece uma reflexão sobre a relação entre modo de produção e formas sociais, a compreensão das formas de consciência e seu significado na luta de classes, etc.
O materialismo histórico apresenta a primazia do modo de produção e das relações de classes que emergem a partir dele, como elemento fundamental para a compreensão da dinâmica social. Essas relações de classes são relações de exploração, luta de classes. O conceito de luta de classes é o que revela a determinação fundamental de uma sociedade e não pode estar ausente de nenhuma análise. A conjuntura fica incompreensível sem o conceito de luta de classes e de sociedade[3]. Em termos de método dialético, a luta de classes é equivalente à determinação fundamental e a sociedade à categoria de totalidade, que reúne as múltiplas determinações num caso concreto.
A teoria do capitalismo é expressão do materialismo histórico no caso concreto da sociedade atual. O conceito de sociedade é importante e pressuposto, mas é preciso chegar a um nível maior de concreticidade e isso nos leva a uma análise da sociedade capitalista e do modo de produção capitalista que é sua determinação fundamental, constituindo as classes fundamentais, burguesia e proletariado, o que pressupõe compreender a forma específica de exploração capitalista (produção de mais-valor) e suas consequências (acumulação de capital, etc.).
Assim, é importante a compreensão do modo de produção capitalista, da acumulação de capital, essência e dinâmica do estado capitalista, classes sociais do capitalismo (burguesia, proletariado, burocracia, etc.), regimes de acumulação, blocos sociais, etc. O conceito de classes sociais acaba se tornando fundamental, pois é através da análise da dinâmica da luta de classes no capitalismo é que se pode superar a aparência e os equívocos analíticos. As classes sociais e os interesses vinculados a elas são elementos fundamentais para entender a dinâmica social e os processos sociais mais concretos, incluindo as subdivisões (frações de classes) e elementos derivados (blocos sociais, hegemonia, etc.), tais como as ações estatais, partidárias, movimentos sociais, etc. Assim, o conceito de classes sociais (elemento do materialismo histórico) no caso histórico e concreto do capitalismo, o que pressupõe compreender quais são as classes existentes na sociedade capitalista (em determinado momento de sua história), permite avançar na análise ao entender seus interesses, conflitos, etc. e assim ter uma percepção mais ampla do processo ao invés de se perder no mundo das aparências (que pode se limitar, por exemplo, a luta de partidos, como se isso fosse o fundamental).
Por fim, o conjunto destas categorias (da dialética) e conceitos (do materialismo histórico e da teoria do capitalismo) constituiria um amontoado de termos vazios se estiver fora da perspectiva do proletariado. A perspectiva do proletariado constitui um campo axiomático que é pressuposto de uma real compreensão da dialética, do materialismo histórico e do capitalismo. A perspectiva do proletariado constitui um conjunto de valores, sentimentos e interesses que apontam para a necessidade da transformação radical e total do conjunto das relações sociais e uma determinada relação com a verdade. A perspectiva do proletariado requer o compromisso com a verdade, pois este é um interesse do proletariado, se tornando um valor e compromisso daqueles que a adotam.
Nesse momento é preciso destacar que os indivíduos concretos podem pretender realizar, conscientemente, uma análise marxista da conjuntura, mas, devido a múltiplas determinações, podem possuir ambiguidades, contradições, etc., em relação à perspectiva do proletariado. Essas ambiguidades e contradições tendem a se reproduzir em sua relação com o método dialético, materialismo histórico e análise de conjuntura, Sem dúvida, a incompreensão do método dialético, do materialismo histórico e da teoria do capitalismo também promove equívocos, mesmo se partindo da perspectiva do proletariado. Isso ocorre pelo motivo de que o campo axiomático constituído pela perspectiva do proletariado é fonte de geração de saberes verdadeiros, mas as dificuldades intelectuais podem impedir o avanço desse processo, gerando dogmatismo, cristalizações, etc. Da mesma forma, um indivíduo com grande capacidade de abstração e trabalho intelectual, sem tal campo axiomático, tende a nunca chegar à verdade. A unidade entre perspectiva do proletariado e formação intelectual é condição para uma consciência correta da realidade e alguns se perdem pela falta de perspectiva do proletariado e outros por formação intelectual limitada.
Isso é mais grave em alguns casos. Tal como quando um indivíduo, apesar de se pretender “marxista”, realiza adesão a um determinado governo ou então aceitação do discurso de legitimação deste, o que, obviamente, gera uma análise equivocada da conjuntura. Assim, uma análise de conjuntura a partir da concepção marxista pressupõe esses elementos e através deles é possível superar o mundo das aparências e o conjunturalismo.
O que é análise marxista da conjuntura?
Após o esclarecimento dos pressupostos, passemos para as questões fundamentais em relação ao nosso tema de análise. O que é análise de conjuntura? Ou, mais especificamente, o que é análise marxista de conjuntura? A análise de conjuntura é vista, simplificadamente, como uma reflexão sobre os acontecimentos mais recentes, especialmente nos âmbitos econômicos e/ou políticos. Isso é bem simples e muito distante da análise marxista da conjuntura, embora a delimitação seja geralmente semelhante.
Para entender o que é a análise marxista da conjuntura é importante entender o significado dos seus elementos componentes (análise e conjuntura) na abordagem dialética. A análise é um processo no qual se realiza a focalização teórica em um aspecto da realidade sem perder de vista a totalidade e historicidade. Isso já distingue a análise marxista de inúmeras outras, bem como possibilita a percepção de que há um foco, mas este não pode ser retirado da história (o seu processo de constituição, o seu vínculo com a história da sociedade, no caso, capitalista) e da totalidade (sua inserção no interior de um conjunto de relações sociais, suas relações, etc.). Observando que se trata de uma sociedade de classes e que por isso não é possível desconsiderar as lutas de classes e os interesses antagônicos entre as classes fundamentais e os diversos interesses das demais classes e das frações de classes, etc.
Trata-se, no entanto, de análise de conjunto. Portanto, o que é analisado é a conjuntura. Daí a necessidade de esclarecer o significado desse termo. A análise dialética, nesse caso, realiza a focalização na conjuntura. O foco na conjuntura não significa abandonar os elementos essenciais da episteme marxista (totalidade, historicidade, radicalidade) e seus pressupostos. O abandono destes elementos significa que a análise não é marxista. Ela pode até se dizer análise da conjuntura, mas não uma análise marxista.
Assim, o foco analítico na conjuntura traz a necessidade de explicitar o que é conjuntura. A conjuntura, no sentido comum da palavra tal como usada na linguagem cotidiana, remete para as “circunstâncias, quadro geral, conjunto de acontecimentos” ou então “circunstâncias desfavoráveis”. No primeiro significado, temos algo que remete a uma visão de conjunto e acontecimentos recentes que podem ser entendidos como condicionadores da situação atual. As “circunstâncias” são constituídas social e historicamente pelos seres humanos e não algo “dado”. Embora tenha elementos verdadeiros, é muito impreciso e pouco esclarecedor. No segundo significado, é mais uma constatação de uma situação desfavorável, pois “diante da conjuntura” não há muito o que fazer, como diriam alguns. Esse significado não tem valor analítico.
Outro uso comum do termo é quando a palavra “conjuntura” é usada por alguns cientistas sociais, especialmente economistas e cientistas políticos. Nesse contexto, emerge um termo impreciso, sem definição ou conceituação, na maioria dos casos. O que não deixa de ser curioso, por se tratar de “cientistas”. Outros apresentam definições vagas, que geralmente reproduzem a linguagem cotidiana: “conjunto”; “conjunto de acontecimentos”. Assim, não é difícil ficar sabendo, que, nesses casos, análise de conjuntura é entendida como uma “análise de conjunto”. Isso, sem dúvida, não esclarece muita coisa.
Passemos, então, para a concepção marxista de conjuntura. Uma reflexão sobre isso ainda não foi elaborada de forma desenvolvida por nenhum pensador marxista, pelo que sabemos. No máximo, algum pseudomarxista pode ter tentado fazer discussão a esse respeito, mas como não ultrapassam a episteme burguesa, então dificilmente poderiam oferecer uma contribuição mais significativa para o desenvolvimento da análise marxista sobre conjuntura.
Iniciemos com uma definição preliminar de conjuntura, que servirá de base para a posterior constituição de um conceito. Podemos definir conjuntura como um conjunto de acontecimentos que ocorre em uma contemporalidade e é decorrente de um processo histórico (que constitui suas determinações) e no interior de determinado conjunto de relações sociais (a sociedade, o capitalismo). A partir dessa definição preliminar podemos avançar e entender mais o que significa uma análise marxista de conjuntura.  
Um conjunto de acontecimentos significa que a conjuntura remete a um conjunto, um contexto mais amplo, de acontecimentos. Os acontecimentos podem ser interpretados sob várias formas: atos imprevisíveis ou aleatórios, tudo que ocorre na sociedade, o extraordinário, etc. No sentido marxista, os acontecimentos são ações sociais e, ocasionalmente, fenômenos naturais[4], que se desenvolvem em determinada sociedade.
O conjunto de acontecimentos que caracterizam a conjuntura é constituído pelos processos sociais que são delimitados e se desenvolvem no âmbito mais concreto da contemporalidade. O fundamental é compreender que toda conjuntura é um conjunto de acontecimentos, mas nem todo conjunto de acontecimentos é uma conjuntura. Trata-se de um conjunto de acontecimentos delimitados por uma contemporalidade. O que é contemporalidade? Geralmente o termo “contemporalidade” é apresentado como sinônimo de contemporaneidade. Aqui, no entanto, assume outro significado. A contemporalidade é um neologismo para explicitar que se trata de um conjunto de acontecimentos que ocorrem num mesmo momento (período de tempo) marcado por seu caráter recente ou atual. A contemporalidade é um momento histórico determinado, que constitui um conjunto articulado e integrado de acontecimentos, que é o atual. Essa articulação e integração é temporal, espacial e social.
E isso não é a mesma coisa que contemporaneidade? Não no sentido que trabalhos com os dois termos. A contemporalidade se distingue da contemporaneidade, sendo esta um momento do capitalismo vinculado ao regime de acumulação vigente. Assim, a contemporaneidade pode ser entendida em sentido amplo, sendo compreendida como sinônimo de modernidade. Nesse sentido, sociedade moderna e sociedade contemporânea seriam a mesma coisa, duas formas diferentes de expressar que vivemos na sociedade capitalista, que é a sociedade atual. O uso do termo sociedade contemporânea, nesse sentido amplo, expressa a temporalidade social de uma época, a do capitalismo. No sentido restrito, e que utilizamos mais constantemente, a contemporaneidade é a fase atual do capitalismo. Como a história do capitalismo se constitui como uma sucessão de regimes de acumulação, a contemporaneidade expressa o momento do regime de acumulação vigente. Assim, a contemporaneidade para quem viveu nos anos após 1945 até aproximadamente 1980, era a do regime de acumulação conjugado. Para os que vivem hoje, a contemporaneidade se inicia, aproximadamente, em 1980, quando há a formação do regime de acumulação integral.
A contemporalidade é um termo mais abstrato e cuja delimitação é do analista, que escolhe um momento histórico delimitado por ele para analisar. Assim, a contemporalidade abarcada por uma análise marxista da conjuntura pode ser de um ano, dez anos, etc. e pode ser 2013, de 2013 a 2015, de 2010 a 2016, etc.[5] A delimitação é temporal, mas não é algo arbitrário. Ou seja, o analista delimita uma contemporalidade e sua duração, mas isso geralmente é realizado para explicar algum fenômeno concreto, como uma radicalização das lutas de classes, ascensão de movimento grevista, queda de governos, crescimento do conservadorismo, etc. Outra diferença é que a contemporaneidade, no sentido mais restrito, expressa um processo temporal bem mais longo, pois a contemporalidade é delimitada para explicar acontecimentos específicos mais restritos temporalmente e atuais para o analista. Se a delimitação for muito extensa, então se trata de análise histórica e não análise de conjuntura.
Da mesma forma, a análise de conjuntura trata da época atual e não acontecimentos do passado distante. Marx analisou a contemporalidade que vai de 1848 a 1950 na França por ter escrito nessa mesma época. Se hoje alguém escreve a respeito desse período, trata-se de análise histórica e não análise de conjuntura. A contemporalidade é a que vivemos e que por isso a análise se justifica e é mais difícil, pois há falta de informações, maior envolvimento pessoal, os resultados não estão definidos, etc.
Essa contemporalidade não é um ato inaugural na história, ela é constituída social e historicamente, o que remete à necessidade de entender sua constituição[6]. Desta forma, se um marxista quer analisar a conjuntura que culminou com o impeachment de Fernando Collor de Melo, então ele precisa entender a constituição social e histórica de uma contemporalidade, o que significa delimitá-la (e poderia, por exemplo, começar com o processo eleitoral de 1989 até a concretização do impedimento). Essa delimitação inicial é provisória, pois no momento da análise, ela pode ser redefinida, pois as informações e reflexões podem apontar para elementos que ocorreram antes ou depois do início anteriormente delimitado. Esse acontecimento histórico, o impeachment do governo Collor, pode remeter para uma extensão de tempo que pode ser alterada, como, por exemplo, a análise da correlação de forças, hegemonia, etc., antes de 1989 e que poderia trazer informações que explicaria o fracasso dos políticos tradicionais que não conseguiram chegar ao segundo turno[7].
A contemporalidade é constituída socialmente, o que pressupõe entender não apenas sua constituição histórica, mas também social. Sem dúvida, para a análise marxista o social e o histórico são inseparáveis. Mas geralmente as análises de conjuntura realizadas caem no descritivismo histórico, no qual os processos históricos não são visto como sociais e explicativos e sim como mera sucessão de fatos, como se isso fosse suficiente ou autossuficiente.
A contemporalidade existe em um conjunto de relações sociais que lhe determina, o que significa que ela não pode ser compreendida fora da compreensão da sociedade. O impeachment de Fernando Collor se torna incompreensível, tal como o impeachment de Dilma Roussef, sem uma compreensão mais profunda da sociedade, das classes sociais, dos interesses, dos processos em desenvolvimento (situação financeira, disputas partidárias, interesses mais restritos de setores da sociedade, etc.). Sem entender os aspectos fundamentais da sociedade não é possível realizar tal análise, e, devido sua delimitação, também é preciso entender os acontecimentos particulares, pois a análise de conjuntura pressupõe um grau maior de concreção, já que se trata de acontecimentos específicos. E mais ainda dependendo de que acontecimentos se trata.
A análise de conjuntura é realizada para compreender um fenômeno concreto e a contemporalidade é quando se une o processo histórico mais profundo com um determinado conjunto de acontecimentos para explicar tal fenômeno, o que significa que não é possível desvincular ambos. A compreensão de um fenômeno concreto só pode ocorrer a partir de seu vínculo com a contemporalidade esta ocorre no interior de processos sociais mais amplos, longos e profundos. Isso é uma obviedade para um marxista, mas quando se lê inúmeras análises de conjuntura que colocam diversos acontecimentos recentes e depois apresenta o fenômeno concreto (uma greve, uma eleição, etc.) sem realizar tal vínculo, observa-se que nem sempre o óbvio é percebido. A contemporalidade e sua constituição aparecem, nesses casos, como mero “pano de fundo”, não vinculado ou relacionado mecanicamente ou arbitrariamente com o fenômeno que ser quer explicar. Isso, sem dúvida, nada tem a ver com uma análise marxista de conjuntura, que temo como pressuposto explicar através das relações concretamente instituídas e não se iludir com as aparências, nem fragmentar a realidade.


O objetivo da análise marxista de conjuntura
Uma questão complementar surge nesse momento. Qual é o objetivo de uma análise marxista de conjuntura? Para aqueles que foram formados a partir do pseudomarxismo ou na militância partidária, estudantil e sindical, ela aparece como fundamental. Para a perspectiva do proletariado, ela possui, do jeito que é geralmente realizada, sem importância. A motivação para a análise de conjuntura nos congressos partidários, estudantis e sindicais vai além da busca de compreensão da conjuntura: o seu objetivo final visa a atuação prática, pois envolve a disputa interna. Assim cada tendência realiza determinada interpretação da conjuntura e isso justifica os embates internos a respeito da tática, pois geralmente é nesse âmbito que emergem as divergências. A tendência mais extremista de um partido ou do movimento estudantil pode analisar a conjuntura a partir da ideia de “crise estrutural” (ou mesmo “crise final do capitalismo”) e assim justificar sua política mais extremista, bem como a tendência mais moderada pode trabalhar com a ideia de uma ofensiva da burguesia no plano eleitoral visando corroer suas bases eleitorais e isso justifica sua tática eleitoralista. As duas interpretações diferentes da conjuntura servem para conquistar adesões e é uma forma de disputa interna, o que ocorre também nas disputas partidárias, sindicais, etc.
Para o marxismo, a análise da conjuntura não é e nunca foi fundamental. Ela é apenas um complemento de uma análise histórica mais geral e tem um significado político de compreender as divisões da classe dominante e seus efeitos sobre a luta proletária, num curto espaço de tempo, o que pode ajudar nas decisões táticas e estratégicas dos militantes e organizações revolucionárias ou então compreender um fenômeno concreto visando se posicionar diante dele. A sua importância é relativa e por isso não pode ser supervalorada, pois não altera questões mais importantes. Sem dúvida, essa é uma posição do marxismo, cujo objetivo final é a revolução social e a instauração da autogestão social, pouco importando as lutas políticas institucionais e outros aspectos relacionados. A sua estratégia, luta, etc., não se alteram em sua linha geral diante da conjuntura.
O conjunto de acontecimentos que formam a contemporalidade, numa análise marxista, não é delimitado arbitrariamente pelo analista. A delimitação de uma contemporalidade tem como pressuposto a necessidade de explicar um determinado conjunto de acontecimentos ou um acontecimento específico no seu interior. Ou seja, a delimitação tem como determinação o significado dos acontecimentos e sua importância para a luta política do proletariado e do bloco revolucionário. A importância ou falta de importância de determinado acontecimento específico ou conjunto de acontecimentos remete a este significado social e político do mesmo. Dependendo do acontecimento específico, ele pode ser delimitado por aspectos mais específicos da inserção do militante ou grupo revolucionário.
O foco analítico pode ser a contemporalidade como um todo ou então um acontecimento específico (fenômeno concreto). Ou seja, pode ser na totalidade da contemporalidade ou em uma de suas partes. A contemporalidade como um todo remete para um conjunto de acontecimentos que se desdobram em determinado período de tempo (a conjuntura nos Estados Unidos de 2008 a 2011, por exemplo) e um acontecimento específico pode ser a participação brasileira na copa do mundo de 1970 (para quem vivia nessa época) ou de 2014, sendo que este remete, necessariamente, para a contemporalidade como um todo, pois fora dela é incompreensível. Sem entender o regime ditatorial no Brasil ou as manifestações de 2013 e a desaceleração da acumulação de capital a partir de 2012, esses dois fenômenos futebolísticos passam a ter uma compreensão muito limitada.
O objetivo da análise de conjuntura é explicar um destes elementos (a contemporalidade em geral – um determinado período de tempo – ou um acontecimento específico no seu interior, um fenômeno concreto que é parte dela) e que tem um objetivo extra-analítico que é a tomada de decisões, elaboração de estratégias, para a luta política. A análise da contemporalidade em geral pode ser as lutas de classes num determinado momento e lugar, como, por exemplo, na França de 1848 a 1850 (MARX, 1986) ou então no Brasil, de 2013 a 2015 (VIANA, 2015). Nesse caso, o objetivo analítico é compreender as lutas de classes com o objetivo extra-analítico de se posicionar e intervir em tal contexto.
A análise de conjuntura pode ser realizada para explicar um acontecimento específico, um fenômeno concreto, como, por exemplo, o impeachment de Dilma Roussef, ou a derrota eleitoral do PT em 2016. O objetivo dessa análise é compreender a constituição do fenômeno específico e lhe explicar, pois isso tem importância na compreensão do conjunto dos acontecimentos (a contemporalidade) e também contribui para se posicionar diante do acontecimento.
Assim, há um duplo objetivo na análise marxista da conjuntura: o analítico, que visa entender determinado fenômeno ou contemporalidade e o extra-analítico, que é o posicionamento gerado a partir dessa compreensão. Esse duplo objetivo forma um único objetivo, pois eles são inseparáveis e essa dualidade é apenas uma forma de dividir a práxis no sentido de mostrar a necessidade de um momento analítico mais profundo e um momento de luta mais consciente posterior. A compreensão que não gera posicionamento é inútil e o posicionamento sem compreensão é nocivo e não-marxista.
Análises Marxistas da Conjuntura
As análises marxistas de conjuntura são relativamente poucas. No fundo, proliferam inúmeras análises de conjuntura a partir de uma concepção não-marxista ou pseudomarxista. Entre as análises autenticamente marxistas, se destacam as realizadas por Karl Marx a respeito das Lutas de Classes na França (em algumas obras), embora também tenha feita sobre a conjuntura na Alemanha e Espanha[8]. Em A Luta de Classes na França: 1848-1850, originalmente publicada como artigos em Neue Rheinische Zeitung, Marx aborda as lutas que se desenrolam entre 1848-1850 nesse país. Nela, ele apresenta tanto os acontecimentos políticos e ações individuais, de classe, etc., sempre tendo como pressuposto as relações de produção e sua dinâmica, bem como os interesses de classes, etc. Em outras obras é perceptível o mesmo processo analítico.
Uma análise de conjuntura que merece destaque e por isso analisaremos mais detidamente é a obra O Dezoito do Brumário, originalmente uma série de artigos para jornal, na qual Marx oferece uma magistral análise de conjuntura. Da mesma forma, Marx mostra as lutas de classes e os interesses por detrás das ações individuais e explica o bonapartismo a partir de relações sociais reais: a burocracia estatal, seu crescimento, seus interesses, sua busca de autonomização. A análise demonstra como a burocracia estatal (bonapartista) manipulou as classes sociais para se manter no poder (campesinato, lumpemproletariado, etc.), bem como mostrou a ação dos blocos sociais (sem utilizar tal termo) ao ver a aglutinação de interesses de determinadas organizações, grupos, veículos de comunicação e expressão ideológica, os representantes intelectuais de cada bloco, etc. É nesse contexto que ele mostra as três tendências políticas que se digladiaram nesse contexto: a da classe dominante e suas classes auxiliares; a da “pequena-burguesia” (social-democracia) e do proletariado. Expressamos isso na atualidade através do conceito de blocos sociais e estes seriam o bloco dominante, o bloco progressista e o bloco revolucionário, respectivamente.
Outro elemento importante nessa obra é que Marx analisa as lutas de classes no contexto do desenvolvimento capitalista, das relações de produção, das relações de distribuição, etc. Porém, ele não faz uma descrição ou aprofundamento nestes elementos, pois isso não seria uma análise de conjuntura[9].       Ele também realiza uma periodização e coloca os acontecimentos mais particulares e como eles fazem parte do processo, mas ao mesmo tempo não se limitar a eles ou os toma como determinantes. Marx não caiu nessa forma de equívoco analítico. Ou seja, a obra como um todo apresenta todos os elementos que anteriormente apontamos como pressupostos do modo de análise marxista da conjuntura.
Um trecho do Dezoito Brumário ilustra o modo de análise marxista de conjuntura:
Os legitimistas e os orleanistas, como dissemos, formavam as duas grandes facções do partido da ordem. O que ligava estas facções aos seus pretendentes e as opunha uma à outra seriam apenas as flores-de-lis e a bandeira tricolor, a Casa dos Bourbons e a Casa dos Orléans, diferentes matizes do monarquismo? Sob os Bourbons governara a grande propriedade territorial, com seus padres e lacaios; sob os Orléans, a alta finança, a grande indústria, o alto comércio, ou seja, o capital, com seu séquito de advogados, professores e oradores melífluos. A Monarquia Legitimista foi apenas a expressão política do domínio hereditário dos senhores de terra, como a Monarquia de Julho fora apenas a expressão política do usurpado domínio dos burgueses arrivistas. O que separava as duas facções, portanto, não era nenhuma questão de princípio, eram suas condições materiais de existência, duas diferentes espécies de propriedade, era o velho contraste entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e o latifúndio. Que havia, ao mesmo tempo, velhas recordações, inimizades pessoais, temores e esperanças, preconceitos e ilusões, simpatias e antipatias, convicções, questões de fé e de princípio que as mantinham ligadas a uma ou a outra casa real – quem o nega? Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condições sociais, se elevam maneiras de pensar e concepções de vida distintas e peculiarmente constituídas. A classe inteira os cria e os forma sobre a base de suas condições materiais e das relações sociais correspondentes. O indivíduo isolado, que as adquire através da tradição e da educação, poderá imaginar que constituem os motivos reais e o ponto de partida de sua conduta. Embora orleanistas e legitimistas, embora cada facção se esforçasse por convencer-se e convencer os outros de que o que as separava era sua lealdade às duas casas reais, os fatos provaram mais tarde que o que impedia a união de ambas era mais a divergência de seus interesses. E assim como na vida privada se diferencia o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as fantasias dos partidos de sua formação real e de seus interesses reais, o conceito que fazem de si do que são na realidade (MARX, 1989, p. 45-46).
Nesse trecho Marx coloca as duas alas do bloco dominante apresentando os símbolos (as flores-de-lis e a bandeira tricolor) que expressavam sua oposição e depois as subdivisões de classe, com seus interesses e representantes intelectuais (de um lado, a “grande propriedade territorial, com seus padres e lacaios”; de outro, “a alta finança, a grande indústria, o alto comércio, ou seja, o capital, com seu séquito de advogados, professores e oradores melífluos”). Uma ala era a “expressão política do domínio hereditário dos senhores de terra” e a outra “a expressão política do usurpado domínio dos burgueses arrivistas”. Em síntese, Marx apresenta as classes sociais que detinham a hegemonia em cada um dos dois lados: “O que separava as duas facções, portanto, não era nenhuma questão de princípio, eram suas condições materiais de existência, duas diferentes espécies de propriedade, era o velho contraste entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e o latifúndio”.
Marx aponta para questões mais concretas: “velhas recordações, inimizades pessoais, temores e esperanças, preconceitos e ilusões, simpatias e antipatias, convicções, questões de fé e de princípio” e reconhece sua existência. Mas ele não toma isso como um “dado”, não se ilude com a aparência. Esses elementos existem, mas são explicados e remetidos às suas bases reais: as diferentes formas de propriedade e as distintas condições sociais geram “maneiras de pensar e concepções de vida distintas e peculiarmente constituídas”. Por fim, retoma um dos princípios do materialismo histórico: “a classe inteira os cria e os forma sobre a base de suas condições materiais e das relações sociais correspondentes”. E retoma outro elemento do materialismo histórico: a questão da autoilusão e como o analista não deve compartilhar com o iludido a sua ilusão: “O indivíduo isolado, que as adquire através da tradição e da educação, poderá imaginar que constituem os motivos reais e o ponto de partida de sua conduta”. As duas alas se esforçavam para convencer a si mesmas e aos outros que o que as separavam era “era sua lealdade às duas casas reais”, mas, “os fatos provaram mais tarde que o que impedia a união de ambas era mais a divergência de seus interesses”. Os interesses são muito mais importantes para explicar as disputas políticas do que os discursos. E, por fim, faz uma afirmação que já estava no Prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política a respeito da autoilusão individual e coletiva: “E assim como na vida privada se diferencia o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as fantasias dos partidos de sua formação real e de seus interesses reais, o conceito que fazem de si do que são na realidade”.
Esse pequeno trecho de Marx mostra que a análise de conjuntura que ele faz remete ao método dialético (totalidade, pois não isola e no resto da obra aparece os outros blocos sociais e classes sociais, o aparato estatal, etc., a historicidade, a radicalidade, etc.), o materialismo histórico (as classes e seus interesses e lutas, as formas de consciência e seu processo de constituição, etc.), a teoria do capitalismo (a oposição entre classe latifundiária e classe capitalista, etc., o que é mais desenvolvido no conjunto do livro, aparecendo as demais classes, o Estado capitalista, etc.), a perspectiva do proletariado: crítica radical, desvendamento dos interesses de classe, etc., e no resto da obra aparece outras classes e o proletariado buscando se autonomizar, mostrando um conjunto de valores e outros elementos que expressam tal perspectiva.
Assim, para entender a análise marxista de conjuntura é fundamental realizar a leitura das obras de Marx em que ele efetivou esse processo analítico, especialmente A Luta de Classes na França: 1848-1950 e o Dezoito do Brumário, bem como outras deste autor e algumas outras, que são mais raras e nem sempre com a mesma qualidade e profundidade da realizada pelo fundador do marxismo.
Como fazer análise marxista de conjuntura?
Assim, a partir da compreensão do que é a análise marxista da conjuntura, o próximo passo é iniciar a discussão sobre como efetivar tal análise. O primeiro passo é definir qual contemporalidade se trata, ou seja, qual período de tempo que será analisado e, este, por sua vez, depende de qual conjunto de acontecimentos ou acontecimento específico se busca compreender. Se o que se quer compreender é o governo Temer, então período de tempo delimitado será de 2016 até 2018. Se for o governo de Donald Trump, nos Estados Unidos, será, se for realizado no final de 2018, o período de 2017-2018.
O segundo passo é buscar compreender a dinâmica do capitalismo e sua configuração contemporânea. Assim, se houver um certo domínio dos pressupostos já aludidos anteriormente, é necessário entender a dinâmica capitalista e seu atual estágio (desenvolvimento capitalista, regime de acumulação atual, etc.). A compreensão da dinâmica do capitalismo é um elemento teórico que precede a análise de conjuntura. Sem tal compreensão, a análise de conjuntura não é marxista. A compreensão teórica da dinâmica do capitalismo remete ao problema da evolução do capitalismo, fundamentalmente da luta de classes e da acumulação de capital e sua situação na contemporalidade analisada.
Nesse contexto, alguns conceitos assumem importância analítica: regime de acumulação, luta de classes e blocos sociais, aparato estatal, classes sociais, hegemonia, renovação hegemônica, entre outros. A compreensão da configuração atual do capitalismo remete a uma análise e entendimento do regime de acumulação vigente, pois isso é fundamental para entender as classes sociais, os interesses, as tendências, as ideologias, etc.
O terceiro passo é compreender como que os seres humanos agem nesse contexto, especialmente as classes sociais e os blocos sociais. A análise da luta de classes e dos blocos sociais pressupõe sair do mundo das aparências e apenas dos discursos de seus agentes, buscando compreender, fundamentalmente, os interesses, motivações, derivados da posição social dos indivíduos, grupos, organizações, classes, envolvidos. O trecho de Marx serve para ilustrar esse processo analítico, pois o discurso é analisado, mas inserido na totalidade e que não é tido como verdade, algo dado, pois é necessário ultrapassar as ilusões e autoilusões.
Nesse sentido, a análise marxista de conjuntura é um processo de concreção e de superação do concreto-aparente, descobrindo as determinações das ações, que passam pelos elementos analíticos do capitalismo e sua dinâmica, chegando ao regime de acumulação e sua historicidade (modificações, pois ele também não é estático), as lutas de classes, os interesses, as expressões políticas e intelectuais organizadas das classes (blocos sociais), etc.      A análise de conjuntura é um processo de concreção e, como tal, trata das questões mais concretas e isso pode promover o equívoco de se limitar ao concreto-aparente, ficando no mundo da pseudoconcreticidade. A análise leva em consideração a contemporalidade, mas não se limita a ela, pois observa as suas determinações e a totalidade. Essa possibilidade, para quem parte do método dialético e do materialismo histórico, é pouco provável, mas como se trata de indivíduos concretos, os equívocos são possíveis nesse âmbito.
Por conseguinte, deixar de lado esses elementos significa realizar uma análise não-marxista e cair no conjunturalismo. Por isso é necessária uma análise crítica do conjunturalismo, mostrando suas diferenças em relação à análise marxista da conjuntura.
Crítica ao Conjunturalismo
As análises de conjuntura geralmente realizadas são expressões do conjunturalismo. O conjunturalismo é explicado por diversos motivos, mas o principal é o predomínio do modo de pensar burguês na sociedade moderna, gerando os problemas analíticos que são comuns nesse caso. Sem dúvida, as idiossincrasias (tal como a formação intelectual limitada, a inexperiência, etc.), as pressões sociais, a tradição de análise de conjuntura, presentismo, entre outros problemas, também contribuem com esse processo.
O conjunturalismo é uma espécie de fetichismo da conjuntura. Ele se manifesta sob várias formas. A “análise” conjunturalista realiza um dos seguintes procedimentos: a) descrição de acontecimentos; b) reflexões sobre o determinado sem referências ao determinante; c) o abandono da historicidade, totalidade e radicalidade (perspectiva do proletariado). A descrição de acontecimentos é uma das formas mais comuns de conjunturalismo, no qual apenas se elenca um conjunto de acontecimentos, sem efetivar uma verdadeira análise, ou seja, reflexão sobre a contemporalidade. As reflexões sobre o determinado sem a consideração sobre o determinante já pode ser realizado com embasamento em ideologias, embora isso nem sempre aconteça. Esse é o caso de quando se fica preso aos discursos dos agentes ou representações ou ações políticas desligadas de suas bases reais (modo de produção, regime de acumulação, classes sociais, blocos sociais, interesses, etc.). O abandono da historicidade, totalidade e radicalidade é comum para quem parte do modo de pensar burguês e não compartilha a perspectiva do proletariado e isso pode ocorrer sob diversas formas. Esse processo ocorre nos dois casos anteriores e é típica de análises superficiais, descritivas, impressionistas. Nesse caso, a aparência toma conta e não há explicação ou compreensão do momento histórico em questão (contemporalidade) e nem das tarefas políticas imediatas.
O conjunturalismo pode ser reproduzido até mesmo no caso de pessoas sinceramente engajadas na luta revolucionária por falta de método e teoria ou outras determinações. Este, no entanto, é mais uma exceção do que a regra. As raízes sociais do conjunturalismo quando realizado por representantes intelectuais da burguesia ou de suas classes auxiliares, são os interesses que os movem. Os interesses são determinantes na escolha de aspectos da realidade, interpretações, etc. Assim como a análise marxista de conjuntura centra sua atenção nas motivações, interesses, etc., dos agentes do processo real para compreender seus discursos e representações, a análise marxista do conjunturalismo realiza o mesmo processo ao analisar os conjunturalistas. A supervaloração da conjuntura, por exemplo, pode ser promovida por oportunismo. Existem milhares de casos que servem para demonstrar isso: “voto crítico”; apoio a partidos para evitar o “fascismo”, etc. Ou seja, o conjunturalismo, ao criar o fantasma do fascismo, pressiona os setores “democráticos”, “humanistas”, de “esquerda” para se unir numa “frente” para impedir a ascensão fascista.
O conjunturalismo se fundamenta numa concepção não-marxista ou pseudomarxista. É por isso que ele pode reproduzir a “doutrina dos fatores” e abordar “conjuntura econômica”, separada de “conjuntura política”, etc. Nesse caso, temos um recorte da realidade que reproduz o modo de pensar burguês, isolando um aspecto da realidade e reduzindo esta a ele. Outro elemento comum é o uso de dados estatísticos como se eles, em si mesmos, explicassem determinada realidade[10]. Os dados estatísticos necessitam ser explicados ao invés de explicarem algo. Dados sobre aumento da inflação é apenas uma informação (e, obviamente, esse fenômeno real, desde que a informação seja verdadeira, tem efeitos sobre realidade), mas isso é superficial se não se explica o que a produz e saber de suas tendências. Sem a compreensão do que gera a dinâmica inflacionária, não se consegue entender o fenômeno adequadamente e nem sua tendência futura que pode alterar a conjuntura.
Considerações Finais: Marxismo e Conjuntura
A excessiva preocupação com a conjuntura pode ser um problema para os militantes e organizações revolucionárias. A análise marxista da conjuntura não substitui a análise da sociedade capitalista e de suas tendências e nem pode se desligar disso.  A conjuntura tem importância relativa para o marxismo, que é entender a correlação de forças na luta de classes, a necessidade da ação e definição de estratégias, mas é algo secundário. A formação intelectual mais ampla (que inclusive fornece as bases para quem quer realizar uma análise marxista de conjuntura) é muito mais importante do que longas discussões sobre conjuntura. Sem as ferramentas fornecidas pelo método dialético e materialismo histórico, as eternas discussões sobre conjuntura tendem a ser realizadas tendo por base o modo de pensar burguês, o que leva, fatalmente, ao conjunturalismo.
Somente numa situação revolucionária a análise de conjuntura se unifica com a análise marxista do capitalismo e suas tendências. Quando ocorre o processo de autonomização do proletariado e avanço das lutas sociais, a contemporalidade analisada ganha importância no sentido de se colocar a possibilidade de transformação radical e total da sociedade, momento no qual o essencial se revela na própria existência concreta dos indivíduos no capitalismo.
A excessiva ênfase ou preocupação com a conjuntura promove o risco do conjunturalismo e do reformismo e o do confundir o essencial com o momentâneo. Assim, a luta de partidos ou a preocupação com o “avanço do conservadorismo” ou do “fascismo” pode jogar indivíduos revolucionários nos braços do progressismo e no apoio ao reformismo, ao invés de continuar a luta cultural e a luta pela constituição de organizações autárquicas (formas de auto-organização) pelo proletariado e classes desprivilegiadas, formação de centros de contrapoder e hegemonia proletária (parcial, ou seja, em certos setores da sociedade, pois no conjunto isso só é possível em momentos revolucionários).
Assim, a conclusão é a de que ficar na análise mais teórica e abstrata é menos prejudicial do que cair no conjunturalismo. Uma análise mais ampla do capitalismo e suas características tem um significado formativo muito mais amplo do que o entendimento das disputas eleitorais e partidárias ou as subdivisões da classe dominante[11]. A análise marxista da conjuntura pode esclarecer o que ocorre na contemporalidade, mas os indivíduos reais e concretos que tem acesso a ela pode simplesmente tomar partido e decisões equivocadas sem uma percepção histórica, radical e totalizante, tal como optar pelo “menos ruim”, o que pode ocorrer por não partir da perspectiva do proletariado ou por ter uma formação intelectual limitada.
A análise marxista da conjuntura, por outro lado, é fundamental para não se cair no jogo das forças políticas existentes por ignorância do processo, como, por exemplo, apoiar a social-democracia por causa de um suposto risco de “fascismo”. Mas para isso é preciso que tal análise deixe claro que o problema não é apenas o bloco dominante e o conservadorismo e sim ele e o bloco progressista e seu reformismo, ou seja, a direita e a esquerda, pois ambos são elementos de reprodução da sociedade capitalista e isso ocorre à custa do proletariado e demais classes desprivilegiadas. Para a perspectiva do proletariado, conservadorismo e progressismo, direita e esquerda, são diferentes, mas são iguais. A diferença não é essencial, pois nesse âmbito todos eles são reprodutores do capitalismo. A longa história do capitalismo já comprovou isso. Obviamente que isso não é um julgamento dos indivíduos que, devido múltiplas determinações, assumem uma ou outra dessas posições, e sim da concepção política em si. Os indivíduos podem mudar de concepção política, mas a concepção política não pode deixar de ser o que é. Se o fizer, se torna outra concepção política. Da mesma forma, isso é diferente em indivíduos diferentes: alguns dificilmente mudam (dependendo da classe, história de vida, etc.) e outros podem mudar com um pouco mais de facilidade.
Assim, a crítica ao conjunturalismo deve ser constante e a análise marxista da conjuntura deve sempre explicitar que ao tratar de coisas mais concretas não abandona seu projeto, sua perspectiva, seu método, etc. Se o vizinho da direita começa a brigar com o vizinho da esquerda por causa do som alto da festa de um deles e da música brega que tocava, eu posso até analisar isso e compreender esse processo mais profundamente. Só não posso achar que isso é mais importante do que entender o capital comunicacional e a mercantilização da música popular, bem como a formação social dos indivíduos, seus desequilíbrios psíquicos, etc. Esses fenômenos sociais mais gerais ajudam a explicar os fenômenos sociais mais particulares e por isso mesmo a totalidade é mais importante do que ficar preso no imediato e momentâneo. Assim, uma coisa é ter ferramentas intelectuais para analisar os processos sociais, outra coisa é ficar preso na imediaticidade desses processos.
Assim, a análise marxista da conjuntura às vezes se torna mais necessária para esclarecer as lutas políticas, os jogos de interesses, etc., mas é mais importante que o analista e o leitor do analista saibam distinguir entre o essencial e o superficial, pois essa distinção é fundamental para a estratégia e ação e para que essas sejam cada vez mais conscientes e eficazes no sentido de contribuir com a luta pela transformação social radical e total.

Referências

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.

MARX, Karl Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª Edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983.

MARX, Karl. As Lutas de Classes na França (1848 - 1850). São Paulo, Global, 1986.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 1, 3a Edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas A Kugelmann. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

VIANA, Nildo. A Luta de Classes no Brasil (2013-2015). Revista Espaço Livre, vol. 10, num. 20, 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/343/349 acessado em: 12/12/2015.

VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. 3a edição, Goiânia: Alternativa, 2007.




[1] Os indivíduos na sociedade capitalista, mesmo os autointitulados “marxistas”, geralmente reproduzem o modo de pensar dominante, que é o burguês. O modo de pensar burguês é problemático e criador de ilusões, sendo radicalmente diferente do modo de pensar marxista. Os indivíduos são socializados, ressocializados, etc., para reproduzir o modo de pensar burguês e por isso há uma dificuldade em compreender, aceitar e utilizar a episteme marxista, o que só pode ser conquistado através de um esforço intelectual em superar o modo de pensar burguês. Isso foi desenvolvido na obra O Modo de Pensar Burguês. Episteme Burguesa e Episteme Marxista, que em breve será publicada.
[2] Aqui não poderemos realizar um aprofundamento sobre o método dialético, o que pode ser visto em outras obras (MARX, 1983; MARX, 1988; KORSCH, 1977; VIANA, 2007a; VIANA, 2007b).
[3] Claro que aqui se trata do conceito de classes sociais tal como desenvolvido por Marx e não apenas o uso do termo com outro significado. Por exemplo, alguns analisam conjuntura abordando uma tal “classe média”, o que é um termo não-marxista (VIANA, 2018) e que ao invés de ajudar a explicar a realidade, o que faz é obscurecê-la.
[4] Quando estes atingem a sociedade. Por exemplo, um furacão pode promover uma calamidade em alguma região de algum país e isso tem efeitos sociais diversos (mortalidade, destruição de bens coletivos, problemas financeiros, etc.) ou uma praga pode prejudicar a produção de determinados alimentos, gerando seu encarecimento, empobrecimento, mudanças nas exportações e importações de alguns países, etc.
[5] Marx, por exemplo, analisou a luta de classes na França de 1848 até 1850 (MARX, 1986) e, no nosso caso, analisamos a luta de classes no Brasil de 2013 até 2015 (VIANA, 2015).
[6] E ter a consciência de que ela se constitui no interior da história do capitalismo.
[7] As eleições de 1989 foi a que reuniu, num pleito só, o maior número de medalhões da política institucional na história eleitoral do país: Ulisses Guimarães, Aureliano Chaves, Lula, Leonel Brizola, Mário Covas, Paulo Maluf, Ronaldo Caiado e outras figuras não tão conhecidas, mas que se destacaram nesse processo eleitoral ou nos seguintes (Enéas Camargo e Guilherme Afif Domingos), tinham certa tradição política (Roberto Freire e Fernando Gabeira), não concorreram (Silvio Santos teve sua candidatura impugnada e Jânio Quadros abdicou) e ainda teve vários outros candidatos pouco conhecidos e com poucos votos. Isso torna ainda mais curioso o fato de Collor ter conseguido chegar ao segundo turno e explicar a pouca preocupação de setores da burguesia com Lula, que na época tinha um discurso mais contundente.
[8] Rosa Luxemburgo também realizou algumas análises de conjuntura interessantes, embora com limites derivados de problemas teórico-metodológicos e idiossincráticos, bem como alguns outros marxistas.
[9] Não que ele estivesse pensando nesses termos, mas para os objetivos que ele se propunha, não cabia uma análise teórica mais ampla nesse contexto discursivo.
[10] Isso sem falar nas formas de uso dos dados estatísticos. Muitos não compreendem estes dados de forma mais ampla. Alguns tomam os dados estatísticos como sendo um ato inaugurador da conjuntura, sem analisar sua historicidade. Em casos mais graves, que é quando faltam elementos rudimentares para uma interpretação mais ampla ou criticidade (o processo de produção dos dados estatísticos pode ser manipulado, pode ser tecnicamente problemático, pode tratar de um período muito curto e que está envolvido com acontecimentos momentâneos, pode ser mais adequado a certas regiões do que para a totalidade de um país, pode ter embasamento ideológico, etc.), o seu uso é um obstáculo para uma análise concreta da conjuntura, caindo em abstratificações que nada ajudam na compreensão de uma contemporalidade.
[11] Por exemplo, entender as várias formas do liberalismo tem uma importância reduzida diante da compreensão da dinâmica da acumulação capitalista. as formas do liberalismo são subdivisões dentro de uma ideologia burguesa e ajuda apenas a entender por qual motivo os liberais progressistas se aproximam do bloco progressista e de sua moral, e por qual motivo os liberais conservantistas se afastam dele e se aproxima mais do reacionarismo. Esse é o risco já alertado por Hegel: ver a árvore (ou as árvores) e perder de vista a floresta. Esse risco pode ser adaptado para o processo histórico: corre-se o risco de ver o momento presente e perder de vista as tendências históricas mais profundas. 

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