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domingo, 26 de novembro de 2017

Regimes de Acumulação e Épocas Literárias

Capa do Ebook.
VIANA, Nildo. Regimes de Acumulação e Épocas Literárias. Goiânia: Edições Redelp, 2017.
(livreto em ebook e impresso, disponível na Amazon.com).
Disponível em:

A obra "Regimes de Acumulação e Épocas Literárias" aborda a história da literatura, mais especificamente do que ficou conhecido com "períodos literários", a partir do desenvolvimento histórico do capitalismo. As épocas literárias não emergem aleatoriamente, pois elas estão intimamente ligadas com o processo histórico e social. O autor mostra como que a história do capitalismo é marcada por sucessivos regimes de acumulação e como estes promovem paradigmas hegemônicos que mostram uma convergência cultural com as épocas literárias. Para concretizar esse processo analítico, o autor aponta para a contribuição do marxismo e da sociologia da literatura e aponta para uma análise crítica das contribuições de Lucien Goldmann e Georg Lukács e, após isto, desenvolve os conceitos de regimes de acumulação e épocas literárias, bem como conceitos correlatos, para, por fim, analisar a sucessão de regimes de acumulação e evolução das épocas literárias, apontando a relação dos principais cânones literários e o paradigma hegemônico em cada um dos regimes de acumulação. Nesse contexto, o autor desenvolve uma discussão sobre naturalismo, romantismo, realismo, etc.

Capa do livro impresso.
Contracapa do livro impresso.

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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Fim do SUS? Corte de gastos no Sistema Único de Saúde

Fim do SUS?
Corte de gastos no Sistema Único de Saúde


Nildo Viana

O SUS – Sistema Único de Saúde – é a face mais visível e concreta das políticas estatais de saúde no Brasil. No entanto, a sua situação vem piorando paulatinamente com o passar do tempo. Hoje, o SUS se encontra precarizado e cada vez mais surgem reclamações e reivindicações, apontando para diversos tipos de problemas, como qualidade do atendimento, longas filas de espera, falta de equipamentos, má remuneração dos trabalhadores de saúde, entre inúmeras outras. A explicação dessa situação do SUS remete às mudanças sociais, especialmente a instauração do neoliberalismo em nosso país e suas consequências, tais como a intensificação da mercantilização e precarização que atinge principalmente os setores da saúde e educação.
O SUS foi produto de um longo processo histórico, desde as reivindicações e pressões sociais para a melhoria das políticas de saúde, incluindo propostas mais concretas, até a constituição dos seus princípios fundamentais na Constituição Federal de 1988 e sua implementação ocorreu através da Lei nº 8.080, de 1990 (chamada “Lei Orgânica da Saúde”) e da Lei nº 8.142, de 1990. A constituição do SUS remete a um determinado contexto político e social. O contexto era marcado pelo processo de redemocratização e pela existência de movimentos sociais populares e outros atuantes, além de forças políticas, e outros processos sociais que apontavam para uma proeminência das concepções progressistas, apesar da tendência mundial apontar para um sentido contrário.
 A situação do SUS, no entanto, começa a se alterar com a nova modalidade de política estatal que surge a partir da instauração do Estado neoliberal no Brasil. Esse processo se inicia como governo Collor, em 1990, e se prolonga pelos governos seguintes (Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma). Para entender esse processo é necessário, portanto, entender o que é o neoliberalismo e qual é a modalidade de política estatal que lhe corresponde, para entender o seu processo de precarização e situação atual.
O neoliberalismo é uma forma assumida pelo Estado, caracterizado por atender as novas necessidades da acumulação de capital. O contexto explicativo é o do final dos anos 1960, com o processo de crise da acumulação capitalista e ascensão das lutas sociais, tal como no caso dos países europeus e Estados Unidos. As lutas operárias e estudantis, radicalizadas nos EUA, França, Itália, Alemanha, entre outros países, expressaram um momento de crise que não se resolveu nesse período. As lutas sociais não geraram transformação social e acabaram se enfraquecendo. Os anos 1970 foram marcados pela continuidade da crise e por alguns processos de radicalização, como na Revolução Portuguesa de 1974 e a Revolução Polonesa de 1980. A crise do petróleo de 1974 promoveu um reforço da crise que perdurou durante um bom tempo, caracterizado por altos índices inflacionários, salários defasados, desemprego, etc. Essa crise atingiu mais fortemente os países capitalistas subordinado, mas foi generalizada.
É nesse contexto que ocorrem mudanças no que é denominado regime de acumulação. Um regime de acumulação é uma forma pela qual o capitalismo organiza a acumulação de capital, sendo que seus elementos fundamentais são: a) uma determinada organização do trabalho; b) uma determinada forma de Estado; c) uma determinada forma de relações internacionais (VIANA, 2009; VIANA, 2003). Derivado disso há mutações culturais e gerais na sociedade. O regime de acumulação anterior, o regime de acumulação conjugado, mantinha o fordismo como forma de organização do trabalho, a expansão do capital oligopolista transnacional no plano das relações internacionais, e uma forma estatal integracionista, denominado ideologicamente como do “bem estar social”, providencial, keynesiano, entre outros nomes. Esse regime de acumulação entrou em crise e as lutas sociais acabaram reforçando a tendência por sua substituição por um novo regime de acumulação. 
A partir dos anos 1980 começa a se instituir os elementos constitutivos desse novo regime de acumulação. É a partir desse momento que se inicia, em alguns países, a chamada “reestruturação produtiva”, promovendo a substituição da hegemonia do fordismo pela hegemonia do toyotismo. O fordismo era voltado para a produção massiva e o consumo correspondente, enquanto que o toyotismo para as necessidades do mercado (produção por demanda, personalizada, etc.). Muitos autores vão constatar a “rigidez” do fordismo com a “flexibilidade” do toyotismo. Da mesma forma, as relações internacionais passam a mudar, com a formação de blocos regionais, ampliação do intervencionismo norte-americano, intensificação da exploração internacional (Iraque, México, etc.).
A mudança fundamental para entender as políticas estatais é a da forma estatal. O Estado intervencionista vai sendo, paulatinamente, substituído pelo chamado Estado neoliberal, em todo o mundo. No início dos anos 1980, inicia-se o Governo de Margareth Thatcher na Inglaterra, de Ronald Reagan e de Helmutt Kohl, na Alemanha. No final dessa década, o neoliberalismo já havia se generalizado na Europa e avança para diversos outros países. No Brasil, o governo Collor foi o primeiro que implementa políticas neoliberais, ainda que moderadamente, devido, em parte, à fragilidade de suas bases de apoio, e, em parte, por causa da resistência de setores da sociedade. O governo Itamar Franco dá continuidade às políticas neoliberais, especialmente na política financeira, e o governo FHC consolida o neoliberalismo, sendo que este permanece nos governos posteriores (Lula e Dilma), com algumas variações formais.
O que interessa destacar é que o neoliberalismo não é um modelo e sim uma forma de organização estatal que implementa determinadas políticas estatais, sob formas que variam de acordo com a época, país, situação, partidos no governo, etc. As ideologias neoliberais, que foram produzidas por diversas escolas de pensamento econômico, não são aplicadas e sim são retomadas quando é de interesse dos governos. O neoliberalismo também não é estático. Ele assume formas distintas de acordo com o desenvolvimento da acumulação capitalista (o que aparece na imprensa geralmente como “crescimento econômico”). O neoliberalismo em seu período inicial busca realizar privatizações, desregulamentar as relações de trabalho, efetivar uma política financeira determinada (busca estabilidade financeira e combater a inflação, por exemplo), diminuir os gastos estatais, aumentar a política repressiva. Após sua consolidação, o seu foco é manter a política de estabilidade financeira, evitar gastos estatais, manter a política repressiva. Em épocas de desestabilização econômica e política, a tendência é adotar políticas de austeridade. Esse processo varia de acordo com a relação de forças no bloco dominante (conjunto de forças e partidos que predominam na sociedade), especialmente quem detém o aparato governamental, bem como a capacidade de pressão de setores da população.
A compreensão do SUS e sua situação atual pressupõe a compreensão desse processo. O SUS foi criado numa conjuntura política determinada, no qual os movimentos sociais populares, os profissionais da área da saúde, a conjuntura política brasileira, entra outras determinações, permitiu sua criação, tal como colocamos anteriormente.
A criação do SUS não correspondia à modalidade de política estatal neoliberal. A sua existência correspondia ao Estado integracionista, ligado ao regime de acumulação anterior. A modalidade de política estatal de assistência social durante o regime de acumulação conjugado era a de políticas estruturais e universais, enquanto que a modalidade neoliberal trabalha com políticas paliativas e segmentares, entre outras diferenças. A conjuntura da época permitiu a criação do SUS, mas a sua implementação não foi efetivada de acordo com o que seria esperado, pois ocorreu já sob o signo do neoliberalismo. Os princípios fundamentais presentes na Constituição Federal de 1988 (a universalidade, a integralidade, a equidade, a descentralização e a participação social) foram quase todos abandonados (VIANA, 2017).
A implementação do SUS ocorreu através de um embate de concepções variadas a seu respeito, sendo que predominou a concepção neoliberal, aproveitando alguns aspectos do projeto original (como a descentralização). O SUS surge, portanto, não como política universal e estrutural, como no projeto original, mas sim como política paliativa e segmentar. O segmento social focalizado pelo SUS pode ser localizado pelos programas implementados: PSF (Programa Saúde da Família), depois denominado ESF (Estratégia Saúde da Família). Esse segmento social é composto por aqueles que usam exclusivamente o SUS como serviço de saúde, considerado “prioritário” pelo Ministério da Saúde.
A política estatal de saúde de cunho neoliberal promove um processo de hipermercantilização. Ou seja, os serviços de saúde se tornam cada vez mais mercantilizados. Por isso se institui um processo de redução de gastos (ao delimitar seu foco com apenas o segmento que realmente necessita do SUS) e se estabelece um vínculo cada vez maior com o capital privado. Isso justifica o foco naqueles que usam exclusivamente o mesmo, pois os que possuem acesso a serviços de saúde particulares, podem ser excluídos e evitar gastos estatais. Esse processo de intensificação da mercantilização pode ser visto no desinvestimento em equipamentos diagnósticos e terapêuticos e tecnologia ligados aos serviços de assistência à saúde, o que foi acompanhada pelo crescimento dos serviços privados complementares ao SUS, através de contratos e convênios. Esses serviços estatais de saúde já eram mercantilizados, mas isso se intensifica com a remuneração por produção e fortalecimento do serviço privado de saúde.
Ao lado disso, a política de contenção de gastos aponta para precarização das relações de trabalho, bem terceirização dos trabalhadores de saúde, chegando a 60% do total (SANTOS, 2013). Os trabalhadores de saúde em geral possuem relações de trabalho precarizadas e mal remuneradas. Junto com esse processo de hipermercantilização dos serviços estatais de saúde, ocorre também uma intensificação da prevaricação. A prevaricação é o processo no qual há transferência da renda estatal para empresas privadas e indivíduos, seja através da corrupção, convênios, doações, etc. (VIANA, 2016). No âmbito das políticas estatais de saúde, isso se manifesta através da subvenção do setor privado de saúde. Essa é outra forma de prevaricação, que ocorre através de subvenção (renúncia fiscal, isenções, deduções, cofinanciamento de planos privados de saúde, etc.). Os planos privados de saúde recebem cerca de 30% do seu faturamento anual oriundo de tal subvenção (SANTOS, 2013). Reforçando esse processo de hipermercantilização e prevaricação há também a terceirização da gestão dos órgãos estatais de saúde, através das chamadas OS (Organizações Sociais) e OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público).
Nesse contexto, a situação do SUS é dramática, mas agora ela pode se tornar ainda pior. A política estatal de saúde acompanha a dinâmica da acumulação capitalista e da política institucional. A crise financeira de 2008 mostrou algumas fragilidades do neoliberalismo e ainda promoveu um processo de crise que atingiu, sob formas diferentes e em períodos diferentes, gerando insegurança e desestabilização. Esse processo acabou se aprofundando e gerando uma nova fase do neoliberalismo em diversos países (em especial na Grécia, Portugal e Espanha), caracterizado por políticas de austeridade e aprofundamento dos cortes de gastos, responsabilidade fiscal, etc. Neste contexto, a tendência é que o SUS sofra uma precarização ainda maior, inclusive correndo o risco de sua privatização. Esse processo não está definido, pois depende de diversos elementos, desde a situação financeira, as políticas estatais mais gerais, o processo de acumulação de capital, a situação mundial, a pressão da população, a dinâmica governamental, etc.
Contudo, a situação brasileira e seus diversos problemas tornam a tendência principal nada favorável ao SUS. Em curto prazo, pelo menos, a tendência é de maior precarização. Em longo prazo vai depender da situação do país em seus diversos aspectos. Assim, a pressão e organização da população, dos trabalhadores e movimentos sociais populares é um desses aspectos, bem como a dinâmica da acumulação de capital em nível nacional, entre diversos outros. É nesse embate de forças e tendências, no interior de um determinado contexto econômico e social, que se definirá o futuro do SUS

Referências

CAMPOS, C. M. S. Necessidades de saúde como objeto das políticas públicas: as práticas do enfermeiro na Atenção Básica. 2014. Tese (Livre-docência) - Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

CAMPOS, Celia Maria Sivalli; VIANA, Nildo  e  SOARES, Cassia Baldini. Mudanças no capitalismo contemporâneo e seu impacto sobre as políticas estatais: o SUS em debate. Saúde e Sociedade. [online]. 2015, vol.24, suppl.1, pp.82-91. ISSN 0104-1290.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902015S01007.

SANTOS, Nelson Rodrigues. SUS, Política Pública de Estado: Seu desenvolvimento instituído e instituinte e busca de saídas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 273-280, 2013.

VIANA, N. A constituição das políticas públicas. Revista Plurais, Anápolis, v. 1, n. 4, p. 94-112, 2006. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2013.

VIANA, N. Estado, democracia e cidadania. A dinâmica da política institucional no capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.

VIANA, N. O capitalismo na era da acumulação integral. São Paulo: Idéias e Letras, 2009.

VIANA, Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais. Rio de Janeiro: Ar Editora, 2016.

VIANA, Nildo. Representações e valores nas políticas de saúde no Brasil (1990-2012). (tese de pós-doutorado). São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Enfermagem/USP, 2015.

Nildo Viana é Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB, pós-doutor pela Universidade de São Paulo e autor de diversos livros.

sábado, 11 de novembro de 2017

Entrevista sobre a hq "A Revolução dos Ignorantes"

MOVIMENTO ESTUDANTIL, DUALIDADE REIVINDICATÓRIA E ENTRELAÇAMENTO REIVINDICATIVO

MOVIMENTO ESTUDANTIL, DUALIDADE REIVINDICATÓRIA E ENTRELAÇAMENTO REIVINDICATIVO*

Nildo Viana

O movimento estudantil é um dos principais movimentos sociais e é reconhecido por sua combatividade e, em muitos momentos, por sua radicalidade. As ciências humanas em geral e a sociologia em particular, apesar disso, realizou poucas reflexões teóricas sobre esse movimento social. A maioria das pesquisas, geralmente realizadas por historiadores e sociólogos, é descritiva. Nesse sentido, torna-se necessária a reflexão teórica sobre o movimento estudantil e o presente artigo é uma contribuição nesse sentido, focalizando a questão das reivindicações estudantis e seu significado nas lutas estudantis.

Antes de iniciar, no entanto, é importante realizar alguns esclarecimentos conceituais. Os movimentos sociais são aqui considerados movimentos de grupos sociais (JENSEN, 2016; VIANA, 2016a) que, a partir de determinada situação social geradora de insatisfação social e, derivado disso, a criação de um senso de pertencimento e objetivos, efetivam mobilizações (VIANA, 2016a).  Assim, fica claro aqui que movimentos sociais são distintos de manifestações, protestos (COSTA, 2016), bem como partidos, organizações, ideologias, etc. Os movimentos sociais podem gerar manifestações e protestos, podem criar organizações e ideologias, podem ser relacionar com partidos e outras instituições, mas não se confundem com essas ações e organizações. As ideologias, doutrinas, organizações, tendências, etc., de um movimento social constitui as suas ramificações, sendo estas partes do todo que é o movimento de um grupo social em sua totalidade (VIANA, 2016a).

O movimento estudantil é um movimento social e, portanto, possui todas as características definidoras do mesmo. O movimento estudantil é o movimento de um grupo social e este é formado por estudantes. Estes formam um grupo social por sua condição estudantil, sendo um grupo situacional (o que o diferencia dos grupos culturais, unidos por uma causa, ou os grupos corporais, unidos por semelhanças físicas). A situação social dos estudantes é geradora de diversas formas de insatisfação, especialmente com as instituições educacionais que geram todo um processo de violência disciplinar e cultural[1], além das carências educacionais e institucionais que atingem os estudantes. Como os estudantes formam um grupo social policlassista[2], não se limitam a questões especificamente estudantis, há outras situações específicas de cada subgrupo que geram outras formas de insatisfação. Quando essa insatisfação é acompanhada por um senso de pertencimento e determinados objetivos, que geram união, organização e consciência.

O nosso objetivo aqui é focalizar a questão dos objetivos. Os movimentos sociais geram objetivos e estes ou são explicitados ou ficam implícitos. Eles são expressões de determinados interesses oriundos da condição social dos grupos de base dos movimentos sociais. No caso do movimento estudantil, os interesses que geram os objetivos são os derivados de sua condição estudantil, embora os interesses pessoais também estejam presentes e influenciem os objetivos dos movimentos sociais. A constituição dos objetivos é complexa e envolve um conjunto de determinações, sendo que geralmente surge um objetivo hegemônico no movimento social convivendo com objetivos distintos que são predominantes em algumas de suas ramificações[3]. Isso também ocorre no caso do movimento estudantil, no qual encontramos objetivos hegemônicos e objetivos não-hegemônicos. Isso será alvo de análise adiante.

A manifestação concreta dos objetivos é realizada através das reivindicações dos movimentos sociais. As reivindicações são a explicitação dos objetivos que, por sua vez, são expressões de interesses. O movimento estudantil apresenta um conjunto de objetivos e a nossa intenção agora é apresentar uma análise das reivindicações estudantis, buscando explicitar a existência de uma dualidade reivindicatória e a possibilidade de entrelaçamento reivindicativo, e, para isso ficar mais compreensível e expressa uma das formas como isso pode ocorrer, apresentar um caso concreto, o do MPL – Movimento Passe Livre, no qual esse processo se manifesta.

A Burocratização do Movimento Estudantil Oficial

O movimento estudantil tem algumas especificidades como movimento social. Como é um movimento atrelado às instituições educacionais, as suas organizações (e manifestações reconhecidas por elas) são “oficiais” (CAs, DCEs, UNE, Grêmios, “Semana do Calouro”, etc.). Existem outras especificidades do movimento estudantil, mas devido à importância que esta assume para nosso objetivo, então nos limitaremos a esta[4].

Assim, podemos dizer que existe um movimento estudantil oficial e outro extraoficial. O movimento estudantil oficial é reconhecido pelas burocracias educacionais e segue as diretrizes de seus regimentos, ou seja, sofrem um enquadramento burocrático institucional, se submetendo às suas regras, normas, hierarquias, divisão de funções, etc. A burocracia institucional (universitária, escolar) busca burocratizar as chamadas “entidades estudantis”, submetendo elas às exigências burocráticas que apontam para sua própria burocratização, como, por exemplo, exigência de eleições regulares, estatutos, prestação de contas, hierarquia e divisão de funções, que são previstos nos regimentos institucionais.

A burocracia institucional usa as entidades estudantis como mediação burocrática entre ela e o conjunto dos estudantes. As entidades estudantis se tornam “representantes” dos estudantes e isso se expressa nos acessos aos conselhos, reuniões, recursos, etc. Em uma universidade, por exemplo, existe uma cota de participação estudantil nos conselhos da mesma e essa é cedida para as entidades representativas dos estudantes, seguindo a hierarquia institucional (o Diretório Central dos Estudantes possui representantes nos conselhos mais elevados e gerais de uma universidade e os Centros Acadêmicos aos dos cursos em que representam os estudantes).

Isso, por si só, já gera uma burocratização do movimento estudantil oficial. A evolução histórica das instituições educacionais é num sentido de crescente burocratização e o mesmo ocorre com as entidades estudantis. Isso é reforçado, ainda, com o aparelhamento do movimento estudantil oficial por partidos políticos e suas disputas por cada entidade, cargos e votos. No caso brasileiro, a UNE – União Nacional dos Estudantes (universitários), tem sua diretoria eleita a partir das escolhas de delegados que, por sua vez, são eleitos pelas entidades estudantis (DCEs e CAs) e de assembleias gerais estudantis (que escolhem estudantes sem ligação necessária com as entidades, embora seja comum que integrantes das entidades também sejam eleitos pela “base”, ou seja, nas assembleias). Assim, existe uma ampla luta de partidos políticos para ganhar determinado CA, DCE e conquistar a UNE, bem como batalhas por delegados (o partido ou os partidos que conseguirem maior número de delegados ganha a eleição da UNE). Essa disputa também ocorre nos DCEs, quando chapas concorrem e geralmente são atreladas a um ou mais partidos (sempre existindo também os “independentes”, estudantes não vinculados a partidos que conseguem montar uma chapa) e nos CAs, também através de chapas concorrentes, bem como nos grêmios das escolas secundaristas.

O aparelhamento do movimento estudantil pelos partidos políticos reforça sua burocratização. Os partidos políticos são organizações burocráticas que, supostamente, representam a população ou setores dela, mas que no fundo, através dessa ideologia da representação, servem aos próprios interesses, atrelados aos interesses da burocracia partidária e das classes privilegiadas (VIANA, 2014). A força dos partidos políticos no movimento estudantil é relacionada ao seu caráter de organização burocrática, que reúne um conjunto de pessoas promovendo um trabalho coletivo e com os mesmos interesses e práticas burocráticas, no sentido da reprodução da dinâmica partidária, compatíveis com o movimento estudantil oficial. Ao lado disso, os estudantes sem partidos políticos não possuem unidade, força organizacional, ideologias ou doutrinas desenvolvidas e consensuais, entre diversos outros limites, o que reforça o predomínio dos estudantes vinculados a partidos políticos. Quanto maior o partido político, maior o número de filiados e organização burocrática, o que lhe permite maior influência no movimento estudantil. Existem exceções, pois no caso de certos partidos em que existe grande quantidade de filiados, mas pouca organicidade, além de que, quanto maior o partido, mais ampla tende a serem as divisões internas, acabam não conseguindo o controle da maioria das entidades estudantes. No Brasil, nos anos 1980, era isso que ocorria. O PT – Partidos dos Trabalhadores, tinha o maior número de filiados, mas pouca organicidade, enquanto que o PC do B – Partido Comunista do Brasil, com número muito inferior de filiados, mas com maior organicidade, detinha a hegemonia e controlava o movimento estudantil oficial.

O processo de redemocratização aprofundou a burocratização do movimento estudantil ao ampliar o número de partidos e os interesses eleitorais, reduzindo assim a combatividade do mesmo. A democracia representativa é uma forma assumida pelo controle burocrático da sociedade pelo aparato estatal que difere da forma autocrática expressa nos regimes militares. No capitalismo, a democracia é inseparável da burocracia, é uma forma da dominação burocrática[5]. A democracia aumenta a participação das classes sociais no processo político e amplia a burocracia civil (partidos, principalmente, mas não unicamente) e a autocracia aumenta a burocracia estatal e diminui a burocracia civil.

Em escala mundial, a burocratização das relações sociais se aprofunda e, por conseguinte, tende a reforçar a burocratização do movimento estudantil oficial. Isso ocorre também no caso brasileiro. Esse processo promove uma intensificação da burocratização do movimento estudantil oficial, tanto no sentido de crescer sua burocratização organizacional quanto no sentido de aumentar o controle e manipulação burocrática sobre as organizações estudantis e dessas sobre o conjunto dos estudantes, ou seja, o seu grupo social de base.

É preciso deixar claro, no entanto, que o movimento estudantil oficial constitui uma burocracia informal, ou seja, incompleta, já que faltam alguns elementos característicos da burocracia, especialmente o assalariamento (VIANA, 2015) (VIANA, 2016c). Além disso, as entidades de base podem funcionar sob forma autárquica. Um centro acadêmico, por exemplo, pode colocar nominalmente os cargos de acordo com as exigências dos regimentos burocráticos das instituições universitárias, mas funcionar efetivamente sob outra forma, através da auto-organização. Isso depende, obviamente, dos estudantes organizados em torno do Centro Acadêmico, sendo que as disputas partidárias dificultam esse processo e a pouca participação dos estudantes também. A possibilidade da auto-organização nas entidades de base é possível devido a maior proximidade com os estudantes, o que aumenta sua possibilidade de participação direta, maior capacidade de pressão e contato direto com os estudantes organizados, etc. Isso é facilitado com um maior grau de formação intelectual e politização dos estudantes, tanto os organizados, que podem propor e defender a auto-organização, quanto dos desorganizados, que podem apoiar a iniciativa.

As Novas Organizações Estudantis, Interesses Gerais e Interesses Universais

Quanto maior é a burocratização do movimento estudantil oficial, das instituições educacionais, da sociedade, maior tende a ser a recusa e a crítica da burocratização. Essa recusa, no âmbito dos estudantes, assume a forma de luta direta e pela formação de novas organizações estudantis. Essa tendência tende a ser mais forte se houver uma base cultural mais desenvolvida e crítica. A luta direta, também conhecida como “ação direta”, é uma forma de luta na qual os estudantes realizam diretamente ações sem a intermediação de organizações burocráticas. A luta direta aparece tanto na forma de luta espontânea ou autônoma, através de manifestações, protestos, ações de solidariedade, etc. quanto através de formas de auto-organização que são geradas no bojo dessas lutas, podendo também antecedê-las ou sucedê-las. A luta direta muitas vezes gera novas organizações estudantis e muitas vezes estas incentivam diversas formas de luta direta. Nosso foco analítico, no entanto, são as novas organizações estudantis, pois é nestas que as reivindicações tendem a ganhar forma mais sólida e desenvolvida.

As novas organizações estudantis são geralmente organizações autárquicas, ou seja, não-burocráticas. Elas sempre existiram, mesmo que com poucos integrantes e com existência temporária curta, indo desde grupos de estudos políticos (no sentido amplo do termo) até grupos de ação. Esses grupos de ação podem ser vinculados a outras formas de organização (grupos políticos, geralmente anarquistas, autogestionários, autonomistas, independentes, etc.) ou não. Eles também podem surgir envolvidos com outras lutas específicas além das estudantis (juventude católica, estudantes negros, etc.). As novas organizações estudantis geralmente não atuam nos mesmos lugares que o movimento estudantil oficial, pois os espaços oficiais são geralmente representativos e pressupõem processos burocráticos e eleições que geram o monopólio representativo. Em alguns casos, algumas dessas organizações não-oficiais disputam eleições e em certos casos podem até ganhar. Nesses momentos, elas se tornam organizações oficiais, sendo que quando se trata de entidades de base podem desburocratizar as mesmas. Em outros casos, podem manter uma dupla organização, atuando no movimento estudantil oficial e mantendo a organização autárquica anterior.

No entanto, as novas organizações estudantis emergem a partir de determinados interesses. Esses interesses podem ser específicos ou gerais (em certos casos, universais). Os interesses específicos podem ser derivados da situação específica de algum subgrupo estudantil, como no caso dos moradores de casas de estudantes que reivindicam melhorias, etc., do subgrupo feminino, negro, religioso, etc. ou então de situações conjunturais, como atos de violência contra estudantes, problemas entre os próprios estudantes, conflito entre estudantes e professores, etc.

No entanto, os interesses gerais ou universais são mais comuns nas novas organizações estudantis mais politizadas. Esse é o caso das organizações que possuem vínculos com doutrinas ou concepções políticas (anarquismo, autonomismo, marxismo autogestionário, situacionismo, etc.) ou que aglutinam estudantes que possuem essas ou outras concepções como referencial.

Os interesses gerais são os que apontam para questões políticas mais amplas, como a posição diante de governos e políticas educacionais nacionais ou estaduais. No caso do movimento estudantil oficial, quando aparelhado por partidos, segue a dinâmica eleitoral e partidária e seus interesses na política institucional. No movimento estudantil extraoficial, a política institucional pode ser o foco dos interesses gerais, bem como a disputa eleitoral e partidária, quando estão sob hegemonia das tendências conjunturais, ou então podem ser críticas desse processo e seu foco nas políticas institucionais seria marcado pela recusa e crítica e/ou por posicionamento diante das políticas governamentais, especialmente as educacionais. Algumas dessas organizações, por sua posição política, buscam se articular com outros movimentos sociais, organizações, etc., no sentido de conseguir maior eficácia na luta pelos interesses gerais, bem como incluir interesses e reivindicações desses outros setores da sociedade.

Os interesses universais são aqueles voltados para a emancipação humana e transformação radical da sociedade. É nessa perspectiva que se busca articular com o movimento operário e a crítica da sociedade é acompanhada pela critica da universidade e sua função reprodutora do capitalismo. Algumas das novas organizações estudantis colocam os interesses universais como seu objetivo final e realizam ações reivindicativas e lutas específicas simultaneamente. A articulação entre lutas específicas e lutas universais nem sempre ocorre, tal como colocaremos adiante.

Para entender essa dinâmica do movimento estudantil e suas divisões internas é fundamental compreender que em todos os movimentos sociais reformistas convivem três tendências: a conservadora, a reformista e a revolucionária. A tendência reformista é, obviamente, hegemônica. Se não fosse, o movimento não seria denominado reformista. A hegemonia reformista não significa unidade. Parte daqueles que defendem ideias ou ações reformistas não possuem uma consciência mais profunda do significado político disso, enquanto que outros se preocupam apenas com questões imediatas e específicas. Esses dois casos são apenas variações do reformismo e que podem ser complementados pela ala partidária dos partidos progressistas (principalmente aqueles denominados de “esquerda”) e seus projetos eleitorais e de conquista do poder estatal, entre outras possibilidades. Existem também os reformistas extremistas, ligados aos partidos que ainda mantém discurso insurrecionalista de tomada do poder estatal, mas não ultrapassam o nível do progressismo, seja nas questões concretas e imediatas, seja nas próprias propostas de objetivo final.

A tendência conservadora no movimento estudantil é pequena e muitas vezes se esconde tanto em relação ao movimento estudantil oficial quanto às novas organizações estudantis. O conservadorismo é mais fácil em alguns cursos e escolas, sendo que sua base social tende a ser geralmente as classes privilegiadas e alguns poucos setores das classes desprivilegiadas sem maior formação política e que por isso são ludibriados pelo discurso conservador.

A tendência revolucionária também é pequena, mas maior do que a conservadora e é crítica em relação às demais tendências. No que se refere ao movimento estudantil oficial uma parte é crítica e recusa qualquer participação, sendo que outra aceita participação nas entidades de base e alguns aceitam participar de todas as entidades. A tendência revolucionária é mais presente em alguns cursos e escolas, tal como a conservadora, mas em lugares distintos desta. Onde a tendência conservadora é mais forte, a tendência revolucionária é mais fraca e vice-versa. A composição social da tendência revolucionária é policlassista e encontra no seu interior tanto estudantes oriundos das classes privilegiadas quanto das classes desprivilegiadas[6].

A tendência revolucionária não é homogênea, não só pelo efeito da composição de classe, como também pela formação política e intelectual, a difusão de concepções, ideologias, teorias, doutrinas, pelas necessidades imediatas, entre outras questões, incluindo a conjuntura internacional e nacional, lutas de classes, acumulação de capital, etc. No seu interior é possível distinguir alguns setores diferenciados. Alguns são contestadores e rebeldes, sem maior definição política ou formação intelectual. Outros são ativistas ligados a determinadas concepções políticas que expressam tradições revolucionárias, como o anarquismo e o autonomismo. Há um terceiro setor, formado pelos estudantes engajados, que é mais estruturado tanto na formação teórica e política quanto organizacionalmente, embora possa haver dissonância nesse processo e variações individuais que complexificam a situação.

O setor contestador e rebelde e grande parte do setor ativista são marcados por ambiguidades e por uma formação política e intelectual frágil, o que explica a razão de muitas vezes ficarem a reboque das forças progressistas e da tendência reformista ou se iludirem com o movimento estudantil oficial, inclusive disputando as entidades estudantis e alguns se limitam a realizar reivindicações imediatas e culto da auto-organização e do ativismo. Estes formam um setor semiproletário dentro da tendência revolucionária.

Uma pequena parte do setor ativista e o setor engajado já possuem uma formação intelectual e política mais sólida e por isso possui maior autonomia intelectual, bem como maior nitidez estratégica e política, bem como menos influência da hegemonia burguesa e da ideologia progressista, em qualquer uma de suas variantes. Esse setor, numericamente pequeno em épocas de estabilidade social e política, articula reivindicações específicas e universais, os objetivos imediatos e o final, formando uma posição proletária no interior do movimento estudantil.

Movimento estudantil e Dualidade Reivindicatória

A forma de manifestação concreta dos objetivos de um movimento social é através de suas reivindicações. O movimento estudantil não escapa disso. É por isso que Sánchez (2000) pode falar de “dupla demanda” deste movimento. Segundo ele,

as petições do movimento estudantil se caracterizam por incluir dois tipos de reivindicações: as de caráter gremial, relativas à sua situação de estudantes, tal como a gratuidade da educação, os sistemas de ensino, restaurantes estudantis e outros; e aqueles que caráter político, tal como o debate sobre a situação da universidade, ou as possibilidades de participação na condução geral da sociedade, a política universitária e a geral (SÁNCHEZ, 2000, p. 246).

O movimento estudantil, assim como os movimentos sociais em geral, possui uma dualidade reivindicatória (VIANA, 2016b). Sánchez identifica esse processo no caso do movimento estudantil e coloca as reivindicações especificamente estudantis e as reivindicações gerais. É preciso esclarecer que as reivindicações especificamente estudantis são aquelas que são derivadas da condição estudantil, o que constitui o próprio grupo social dos estudantes. As reivindicações especificamente estudantis formam um amplo espectro, que vai desde questões pedagógicas e relações professores-estudantes, envolvendo diversas questões pontuais, passando pelas questões relativas à manutenção dos estudantes (restaurantes universitários, bibliotecas, casas de estudantes, transporte, etc.) até chegar à questão das organizações estudantis (questões de representatividade institucional, suas formas e número de representantes) e políticas institucionais, qualidade de ensino, etc. O movimento estudantil oficial, para evitar conflito e perder espaço institucional, geralmente deixa as questões pedagógicas de lado e secundariza, sendo que muitas vezes apenas faz discursos a respeito, de questões de manutenção de estudantes, focalizando nas questões mais organizacionais e saindo das reivindicações imediatas e indo para as reivindicações gerais, o que tem caráter de envolvimento com a política institucional (eleições, disputas partidárias, etc.), o que é de interesse dos partidos que aparelham as entidades estudantis.

O foco nas reivindicações especificamente estudantis é realizado mais por setores específicos do movimento estudantil, principalmente nos mais diretamente interessados. Os moradores de casas de estudantes, por exemplo, tendem a realizar reivindicações e agir em torno da questão da moradia estudantil e questões correlatas, tal como restaurante universitário (que eles usam constantemente), bibliotecas, etc. O setor de ativistas e contestadores da tendência revolucionária tende a focalizar essas questões especificamente estudantis.

O foco nas questões gerais é realizado, como já foi dito, pelo movimento estudantil oficial, hegemonizado pela tendência reformista. Um caso concreto é, por exemplo, quando houve a campanha “Fora Collor”, em 1992, no Brasil. Essa palavra de ordem era divulgada pelo PC do B (Partido Comunista do Brasil), sem grande ressonância, sendo apenas a estratégia de dizer algo por não ter nada a dizer, além das disputas pelas entidades estudantis (que tinha como adversários o PT – Partido dos Trabalhadores, com suas diversas tendências e divergências internas – e outros pequenos partidos e grupos, como o extinto PLP – Partido da Libertação Proletária, que se uniu à Convergência Socialista, que sendo expulsa do PT se juntou com este e outros e formou o PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado).

A palavra de ordem, no entanto, ganhou força com as denúncias de corrupção e a posição da Rede Globo de Televisão contrária ao presidente que ela ajudou a eleger. O bloco dominante o bloco progressista se uniram em torno da luta pelo impeachment e o movimento estudantil oficial, comandado pelos partidos progressistas, acabou se lançando com tudo nesse processo e conseguiu mobilizar um grande número de estudantes. O clima nacional e o movimento estudantil oficial foram suficientes até para que ativistas sem ou contra partidos se engajassem nas manifestações pelo impeachment.

Além daqueles que focalizam as reivindicações imediatas e especificamente estudantis e aqueles que focalizam as reivindicações gerais, existem uma pequena minoria que articula as reivindicações numa estratégia de luta, que é o setor proletário da tendência revolucionária. As questões especificamente estudantis não são isoladas das questões gerais e nem estas são isoladas daquelas. A política de construção e/ou manutenção de casas de estudantes tem a ver com prioridades institucionais e verbas repassadas pelo Estado, o que depende, portanto, de sua política educacional. A reivindicação de moradia estudantil envolve, portanto, não apenas a instituição onde ocorre a reivindicação, mas as políticas estatais e o atendimento ou não atendimento da reivindicação tem a ver com prioridades e interesses a nível nacional e classes sociais. Desta forma, a reivindicação da moradia estudantil ou de suas demandas derivadas, remete ao processo político nacional e sua constituição e isso promove não somente uma luta específica, mas um momento de luta cultural, gerando formação política e intelectual, bem como mostrando a necessidade de articulação com as lutas gerais e universais, tanto para o atendimento da reivindicação como para a superação da situação que gera sua necessidade.

É por isso que para o setor estratégico da tendência revolucionária as reivindicações imediatas fazem parte da luta, pois podem gerar momento de formação, politização, auto-organização, que pode gerar uma sedimentação fundamental para as lutas posteriores e é o que se pode fazer em épocas de estabilidade da sociedade capitalista. Em momentos de desestabilização[7], o foco passa a ser a transformação radical da sociedade, pois seria a solução definitiva das questões estudantis.

Com a emergência das novas organizações estudantis, externas ao movimento estudantil oficial, o modo de prioritário de ação é via reivindicações específicas, desde as de manutenção de estudantes, composto prioritariamente por estudantes das classes desprivilegiadas, até questões específicas em torno de “identidades” ou reivindicações de subgrupos estudantis específicos (negros, mulheres, etc.).

Algumas dessas reivindicações específicas são também gerais, pois ultrapassam os limites das instituições educacionais. Esse é o caso, por exemplo, das reivindicações identitárias, que ocorrem também fora dessas instituições. Outro caso é o do transporte estudantil. No caso dos estudantes universitários, isso atinge as classes desprivilegiadas e setores das classes privilegiadas, e no caso dos estudantes secundaristas é um problema maior para as classes desprivilegiadas, especialmente no aspecto financeiro. Daí uma das reivindicações constantes dos estudantes universitários e secundaristas pela meia passagem, passe livre, etc.

Movimento estudantil e Entrelaçamento Reivindicativo

A dualidade reivindicatória do movimento estudantil permite o entrelaçamento reivindicativo com outros movimentos sociais, organizações, etc. O entrelaçamento reivindicativo é quando as reivindicações de um movimento social, grupo, organização é compartilhada por outro movimento social, grupo ou organização. Esse processo ocorre em diversos casos, tanto quando a reivindicação está ligada a interesses específicos quanto quando está ligada a interesses gerais ou universais. É mais comum quando ela está ligada a interesses gerais ou universais, mas também ocorre em certos casos em que determinados interesses específicos beneficiam outros.

Assim, quando o movimento estudantil universitário encaminha mobilizações pela qualidade de ensino ou por qualidade e gratuidade do ensino estatal, que é um interesse específico, poderá receber apoio de organizações, grupos, etc., como sindicatos de professores, partidos políticos, etc. Alguns interesses específicos beneficiam ou fazem parte do discurso de outros setores da sociedade, gerando o entrelaçamento reivindicativo.

É mais comum ocorrer o entrelaçamento reivindicativo quando se trata de reivindicações ligadas a interesses gerais. Uma mobilização estudantil contra a implantação de um regime militar é uma reivindicação fundada em interesses gerais que tende a angariar apoio de diversos outros setores da sociedade. Os interesses gerais ou universais são mais amplos e por isso conquistam mais apoio e outros processos de mobilização de outros setores da sociedade.

Uma das reivindicações estudantis que consegue relativo apoio de outros setores da sociedade é o voltado para a questão do transporte coletivo. O transporte coletivo tem a função de proporcionar a locomoção da força de trabalho, consumidores, estudantes e população em geral, sendo um bem coletivo vital para a reprodução da sociedade. No entanto, o transporte coletivo é realizado pelo aparato estatal e por empresas privadas, no interior da sociedade capitalista, o que significa que seu funcionamento está ligado ao cálculo mercantil, às prioridades das políticas estatais e à busca do lucro pelo capital transportador. Esse processo interfere diretamente na qualidade (ou melhor, falta de qualidade) do serviço prestado e dos preços das passagens.

Nesse sentido, é uma questão que envolve grande parte da população. Os usuários mais constantes são os indivíduos das classes desprivilegiadas, que não possuem recursos para usar outro meio de transporte (carro particular, por exemplo) e cujo preço da passagem pesa em seu bolso, inclusive impedindo os mais empobrecidos de locomoção. Uma parte das classes privilegiadas também utiliza, de forma eventual ou permanente, o transporte coletivo[8]. Esse é o caso principalmente dos jovens e mais especificamente dos estudantes. Estes necessitam do transporte coletivo para se locomover até as escolas e universidades. Ao lado deles, os estudantes das classes desprivilegiadas também necessitam do transporte coletivo e possuem maior dificuldade em sustentar este gasto financeiro.

Dessa forma, a luta pela meia passagem, pelo passe livre ou tarifa zero, são lutas estudantis ligadas aos interesses específicos do movimento estudantil e, ao mesmo tempo, interesses gerais da sociedade. A luta pela meia passagem é uma luta especificamente estudantil, pois atinge apenas os estudantes diretamente, embora, indiretamente, atinja suas famílias. A meia passagem pode ser, e efetivamente foi, defendida para outros setores da sociedade. A luta pelo passe livre já reivindica não apenas meia passagem, mas gratuidade no transporte coletivo, o que já existe para certos setores da sociedade, como os indivíduos com mais de 60 anos. O passe livre estudantil é apenas para estudantes. A ideia de tarifa zero, por sua vez, seria a gratuidade do uso do transporte coletivo para toda população.

Assim, a reivindicação do passe livre é uma luta estudantil que está perpassada tanto por interesses específicos quanto gerais, dependendo da reivindicação específica. Da mesma forma, outros setores da sociedade além do estudantil também podem realizar reivindicações sobre transporte coletivo e inclusive exigir passe livre, seja para o segmento seja para o conjunto da população.

Movimento Passe Livre, Dualidade Reivindicatória e Entrelaçamento Reivindicativo

A nossa reflexão sobre o movimento estudantil, a dualidade reivindicatória e o entrelaçamento reivindicativo pode, aqui, ser complementada por uma análise de sua manifestação num caso concreto. Em uma concepção dialética, na qual os conceitos são expressões da realidade (ao contrário do racionalismo em suas várias formas, como o estruturalismo, o funcionalismo, etc.), ou seja, são uma tradução da realidade em uma linguagem nooesférica[9], e não uma criação mental arbitrária e sem fundamentação real. Existem dois procedimentos racionalistas básicos. Um procedimento é o de constituição racional de ideias e geração de seus derivados, quando se cria um princípio geral e depois se aplica ele à realidade concreta, como no cartesianismo, e o outro procedimento é a criação de modelos e depois sua exemplificação na realidade. O primeiro procedimento é mais comum no pensamento filosófico e o segundo é mais comum no pensamento científico. É por isso que o empírico aparece nas análises funcionalistas e estruturalistas, sempre como exemplos que confirmam o modelo.

A análise dialética se distingue de ambos os procedimentos por não ser “racionalista”[10]. É por isso que a análise pode ser realizada sem exemplos e sem chegar ao particular. Isso é possível não por ser uma análise desligada da realidade concreta, mas por expressá-la e ao fazê-lo no nível essencial não necessita remeter ao nível existencial, pois não aparece nele. Quando Marx desenvolveu a teoria do mais-valor, no capítulo 01 de O Capital, ele não realizou entrevistas com trabalhadores ou capitalistas, não citou fábricas X ou Y, nem discutiu as formas de mais-valor e coisas derivadas, o que foi realizado posteriormente. Ao expressar teoricamente uma realidade concreta, ela possui um nível de abstração mais elevado e sua fundamentação é lógica e histórica, sendo que a fundamentação lógica é apenas a tradução da coerência do real na coerência do pensamento e a histórica é o real se manifestando na sua essência e não em sua aparência.

É possível, portanto, numa análise dialética, explicar apenas a essência do fenômeno. A essência, no entanto, se manifesta concretamente na história e na sociedade sob formas diferentes e esse é um segundo momento da análise, na qual se passa da essência para a existência e, neste caso, existem múltiplas determinações e o essencial convive com o inessencial, assumindo formas distintas. Assim, uma teoria do Estado pode ser apresentada em uma obra expressando apenas seus elementos essenciais. Ou pode ser apresentada não só a essência do fenômeno estatal, mas também suas formas assumidas no desenvolvimento histórico. Essas formas são a manifestação concreta da essência. É por isso que a análise dialética não traz a necessidade de exemplos, como nas análises estruturalistas para confirmar o modelo, pois se trata de um modelo criado imaginariamente e não fundamentado na realidade, ou nas análises empiricistas, nas quais só existem exemplos ou conjunto de exemplos para chegar a um modelo provisório. Os exemplos, numa análise dialética, só possuem o sentido didático, de tornar mais facilmente compreensível a teoria do fenômeno.

Dito isto, o nosso texto poderia ter se encerrado no item anterior. No entanto, optamos por avançar para a análise de um caso concreto no sentido de mostrar não um exemplo e sim uma manifestação concreta da relação entre movimento estudantil, dualidade reivindicatória e entrelaçamento reivindicativo. O MPL – Movimento Passe Livre é uma manifestação concreta desse processo e por isso a sua análise mostra como isso se concretiza e, além disso, ainda serve como “exemplo”, no sentido de tornar a relação estabelecida entre movimento estudantil e reivindicações mais facilmente compreensível. Um caso concreto é uma forma de manifestação de um fenômeno e não um mero exemplo, mas assume uma semelhança com este pelo seu caráter didático e por ser uma forma mais desenvolvida e totalizante do mesmo, embora sem a sua pretensão. Isso ocorre porque o mero exemplo, no fundo, desligado da totalidade, não prova nada, como querem empiricistas e estruturalistas. Optamos pela análise de um caso concreto com o objetivo de facilitar a compreensão e tratar de uma ramificação de m movimento social que explicita o que ocorre no interior do mesmo sob várias formas na realidade concreta, mostrando uma delas.

O Movimento Passe Livre é denominado por alguns como um “movimento social”[11]. Esse é um equívoco comum derivado tanto da falta de base teórico-metodológica quanto de um conceito adequado de movimentos sociais, quando ele existe. O MPL pode ser considerado, no máximo, uma ramificação de um movimento social. Ele não é um movimento social e sim uma organização mobilizadora. Uma organização mobilizadora é um grupo organizado cujo objetivo declarado e real[12] é a mobilização em torno de alguma causa, projeto, reivindicação.

O MPL, organização mobilizadora, é ramificação de qual movimento social? A resposta para essa pergunta é muito fácil em diversos casos, mas se torna difícil em outros. Um Centro Acadêmico é uma ramificação do movimento estudantil; uma associação de indivíduos negros que lutam contra o racismo é uma ramificação do movimento negro; um coletivo de mulheres que defendem a legalização do aborto é uma ramificação do movimento feminino. No entanto, existem outros casos em que uma organização mobilizadora apresenta dificuldades na identificação de qual movimento social a organização mobilizadora é ramificação.

Contudo, a resolução desse problema ocorre quando temos alguns critérios para realizar a delimitação. A partir do conceito de movimentos sociais podemos identificar que os elementos básicos do processo de definição de ramificações. Os movimentos sociais são movimentos de grupos sociais e isso remete ao grupo social de base do movimento. Da mesma forma, identificar qual situação social e insatisfação a ramificação se relaciona e qual seu senso de pertencimento e objetivos.

O grupo social de base do MPL é estudantil. Ele é composto, em sua maioria, por estudantes universitários. Há também estudantes secundaristas e com o passar do tempo outros indivíduos aderiram ao MPL. O grupo social de base, no entanto, é formado por estudantes. A situação social que gera a mobilização do MPL é a situação do transporte coletivo. Essa situação atinge aos estudantes universitários, especialmente os estratos mais baixos das classes privilegiadas e os das classes desprivilegiadas, e secundaristas, o que gera a sua insatisfação. Um dos fundadores do MPL coloca isso explicitamente:

Na realidade, temos que voltar um pouco no tempo para entender como se chegou à fundação do MPL. O passe livre é uma reivindicação histórica do movimento estudantil. Desde pelo menos o final dos anos 80 no Rio de Janeiro há movimentos desse tipo, com inclusive uma movimentação histórica quando o Brizola já era governador do estado. Os estudantes conseguiram garantir esse direito no Rio, e até hoje esse direito existe, de forma meio capenga, por conta de liminares de empresas de ônibus – vira e mexe esse direito é contestado. Então, depois da abertura política de 1985, o passe livre passou a fazer parte do ideário do conjunto de reivindicações históricas do movimento estudantil brasileiro, em especial o secundarista. Nós não inventamos essa história (POMAR, 2016, p. 1)[13].

A questão do transporte coletivo e reivindicações em relação a ele é tradição do movimento estudantil, que se fortaleceu nos anos 1980. A razão da intensificação da preocupação com a questão do transporte tem a ver tanto com o momento político do país, em período de redemocratização, quanto do processo de crescimento populacional urbano que tornava a locomoção estudantil um caso cada vez mais grave nas grandes cidades. Nesse sentido, a reivindicação estudantil pelo transporte coletivo é um interesse específico do movimento estudantil e pode se tornar um interesse geral quando ultrapassa as propostas específicas de meia passagem estudantil ou passe livre estudantil, tornando-se proposta de passe livre para outros setores ou geral, ou tarifa zero. Sem dúvida, a ampliação da proposta de meia passagem ou passe livre para estudantes para setores mais amplos ou o conjunto da população não somente aglutina mais apoio e simpatia para a luta, como contempla as necessidades estudantis.

O MPL busca, assim, articular o seu grupo social de base, os estudantes, e o apoio de outros setores da sociedade, no caso, alóctones. Isso é perceptível em seus documentos: “O MPL pautará a luta pelo passe livre universal, o passe livre para desempregados e desempregadas e um transporte livre da iniciativa privada, com controle público” (RESOLUÇÕES, 2006, p. 1)[14]. Aqui o ponto de partida são interesses gerais, o “passe livre universal”, embora complementado, contraditoriamente, com “o passe livre para desempregados e desempregadas” (se é universal, essas categorias já estariam contempladas), e um proposta mais específica que seria considerada um modo de viabilizar e garantir sua efetivação e qualidade, que seria “um transporte livre da iniciativa privada, com controle público”.

No entanto, o aspecto especificamente estudantil reaparece no documento: “Deve também ampliar o debate da mobilidade urbana para além do acesso à educação e ao trabalho, considerando também o acesso à cultura e ao lazer, além de fomentar o debate sobre questões ambientais” (RESOLUÇÕES, 2006, p. 1-2)[15]. Aqui se estabelece que o passe livre ou a mobilidade urbana não deve estar a serviço apenas do “acesso à educação” (interesse estudantil) e ao trabalho, mas também ao lazer e cultura. Esse item, visto abstratamente, pode significar que o passe livre não deve ser apenas para estudantes e trabalhadores, mas o que quer dizer é que não deve ser apenas para as atividades educacionais e laborais, incluindo outras atividades, e isso para estudantes e trabalhadores.
Isso fica mais claro em uma nota do MPL/SP em 2013, quando o senador Renan Calheiros (PMDB), na época das manifestações populares de junho desse ano, apresentou um projeto que concederia o benefício do passe livre para estudantes, usando para isso os recursos de royalties de petróleo destinados à educação.

Mas aprendemos que o passe livre estudantil tem uma série de limitações. A começar por ser um benefício e não um direito. Os beneficiados recebem um número pequeno de viagens e o podem utilizar num itinerário ainda mais restrito, delimitado entre casa e escola. Para ser de fato um investimento em educação o passe livre teria que ser irrestrito, pois a educação não pode se limitar à experiência escolar. Nos educamos indo a espaços culturais, conhecendo bairros diferentes dos nossos e, fundamentalmente, experimentando a liberdade e a responsabilidade de poder ir para onde quisermos. Além disso, existe toda uma burocracia para recarregar os cartões, que levam a filas enormes, o aumento do custo do sistema (cobrar tarifa custa muito dinheiro) e o risco permanente dos governos e empresas cortarem números de viagens caso julguem necessário para manter ou ampliar seus lucros. O passe livre estudantil não modifica a estrutura mercantil do sistema de transporte[16].

A argumentação acima mostra os limites do passe livre estudantil, pois não permite o seu uso para atividade não-estudantil, bem como o seu caráter mercantil que não é modificado[17].

Através de uma reflexão interna e de estudos e diálogos com aqueles e aquelas com quem lutamos, o MPL ampliou sua forma de pensar o transporte. Passamos a enxerga-lo em um contexto mais amplo, dentro da esfera dos direitos (oferecido a todos e todas, sem distinção). O direito ao deslocamento que proporciona o acesso aos outros direitos como saúde, educação e lazer, ou seja, o direito à cidade. E o direito de decidirmos coletivamente como deve ser a cidade. Exigimos que o transporte seja público de verdade. Para isso, defendemos a tarifa zero, o controle público da gestão (fora das mãos dos empresários) e o fim da forma de remuneração do serviço dos ônibus que existe hoje: as empresas de transporte recebem seu dinheiro pela quantidade de pessoas que pagam as passagens. Isso faz com que elas concentrem suas linhas em regiões centrais e é por isso que pegamos ônibus lotados — é mais barato para as empresas ter menos ônibus com mais gente dentro. Essa é a lógica da mercadoria. Não é o lucro dos empresários que deve definir onde e quando existirão ônibus, mas o interesse público! E ao contrário do que afirma o senador Renan Calheiros, não são poucos os que hoje pagam pela tarifa. São muitos, e são os mais pobres. Mas defendemos, sim, que poucos paguem pelos custos do sistema: os setores mais ricos da sociedade, os grandes empresários, a minoria que se beneficia diretamente do deslocamento dos trabalhadores, consumidores e também dos estudantes. Por esse acúmulo de debate, hoje o passe livre estudantil já não nos parece suficiente. Nossos esforços estão voltados para questões maiores[18].

Assim, no bojo das manifestações populares de junho de 2013, o MPL passa a defender a tarifa zero. Esse seria um “direito” tanto de estudantes como da população em geral. Aqui temos os interesses específicos e gerais dos estudantes alinhados a uma proposta de mudança social. No entanto, o MPL sempre articulou a luta relacionada pelo transporte coletivo com a luta pela transformação social, tal como se vê em suas resoluções de 2006:

O norte final da nossa atuação deverá ser construído a partir de pautas que envolvam um amplo conjunto de transformações em diferentes estruturas. A perspectiva é avançar rumo à concreta autogestão social dos transportes e da sociedade. Para que alcancemos esse objetivo de longo prazo, com possibilidade de intervenção direta de todos e todas agentes envolvidos no processo da organização dos transportes desde sua raiz, precisamos, necessariamente, de uma ruptura com as estruturas sociais vigentes. A perspectiva de longo prazo é, então, revolucionária.

Aqui temos uma articulação entre interesses específicos e interesses universais. Por conseguinte, o MPL, pelo menos em 2006, apontava para a revolução e a autogestão social. Nesse processo de luta, defendia os interesses específicos dos estudantes em relação ao passe livre estudantil e, com a ascensão das manifestações populares em 2013, começa a deslocar os interesses específicos para os interesses gerais, a tarifa zero, devido sua força mobilizadora e ampliação de alianças e apoio popular. A dualidade reivindicatória aparece no processo de interesses que são simultaneamente estudantis (passe livre estudantil) e universais (em longo prazo, a “revolução”, a “autogestão social”). Posteriormente, há o entrelaçamento reivindicativo dos interesses estudantis com os interesses de outros setores, que são interesses gerais (a tarifa zero).

As reivindicações concretas do MPL sempre foram em relação ao passe livre estudantil e depois ao tarifa zero, bem como sua mobilização sempre ocorreu em torno desses dois aspectos. O senso de pertencimento é em relação ao grupo de base, estudantil, bem como a situação geradora de insatisfação e a mesma está relacionada à condição estudantil e sua relação com o transporte coletivo, numa percepção de interesses mais amplos, gerais, até mesmo universais (a proposta de revolução autogestionária em longo prazo).

A partir desses elementos podemos avançar na definição do MPL como ramificação de um movimento social. O MPL é uma ramificação do movimento estudantil e, após 2013, vai se autonomizando e tornando o tarifa zero o seu principal alvo. Assim, ele caminha para se tornar uma ramificação de outro movimento, que poderia ser o dos usuários do transporte coletivo. No entanto, a metamorfose não se concretizou, pois não só sua base continua sendo estudantil, como sua expansão para outros setores da sociedade, em matéria de aglutinação, não foi muito longe. A dualidade reivindicatória está presente e posteriormente se mescla como o entrelaçamento reivindicativo.

Considerações finais

O nosso trajeto foi caracterizado por uma análise do movimento estudantil, algumas de suas características, os seus objetivos manifestos concretamente em suas reivindicações, e, por fim, uma análise do MPL como ramificação do movimento estudantil e locus onde se manifesta a dualidade reivindicatória e o entrelaçamento reivindicativo.

A partir desse trajeto, podemos apresentar uma análise do MPL e como ele realiza concretamente o processo de dualidade reivindicatória e entrelaçamento reivindicativo, inclusive como este último se torna mais forte com a ascensão das manifestações populares. No plano discursivo, o MPL se coloca como revolucionário e autogestionário. No entanto, o democratismo que se percebe por suas diretrizes organizacionais[19], aponta para uma limitação nesse caráter. No plano organizacional, há certa crença de que a organização autárquica, não-burocrática, seria suficiente para evitar a burocratização e partidarização, mas apenas os princípios explicitados da organização não permite entender como funciona exatamente a forma organizacional, mesmo porque existem relatos da participação de militantes de partidos políticos.

Assim, o MPL, como ramificação do movimento estudantil, possui uma dinâmica própria e específica das novas organizações estudantis, distante do movimento estudantil oficial e apontando para outras reivindicações, formas organizacionais, etc. Uma análise mais completa do MPL e indo além das questões reivindicativas e com maior material informativo torna-se fundamental para um desenvolvimento de uma análise mais ampla dessa organização.

Para os nossos propósitos, a breve análise do MPL como caso concreto para analisar as reivindicações do movimento estudantil, no caso em uma de suas ramificações, foi suficiente. Os interesses estudantis e os interesses universais, forma radical de manifestação dos interesses gerais, mostra a dualidade reivindicatória que é comum no movimento estudantil em geral. Da mesma forma, o entrelaçamento reivindicativo se encontra no aspecto relativo aos interesses universais e, posteriormente, com a alteração, com os interesses gerais. Nesse caso, as manifestações populares de 2013 promoveram uma maior ênfase no entrelaçamento reivindicativo. O movimento estudantil, incluindo o oficial e as novas organizações estudantis, aponta para a dualidade reivindicatória e o entrelaçamento reivindicativo.

Referências


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[1] Foucault (FOUCAULT, 1989) tratou da disciplina e Bourdieu e Passeron (BOURDIEU, 1982) trataram do que denominaram “violência simbólica”. Apesar dos limites explicativos e do arcabouço ideológico de Foucault e de Bourdieu, este em menor grau, essas abordagens contribuem para compreender a condição estudantil e a violência sofrida pelos estudantes nas instituições educacionais, desde que inseridas numa perspectiva crítica e assimiladora (VIANA, 2002).
[2] Aqui fica claro nossa divergência com a tese de Foracchi (1977), que coloca que os estudantes universitários são geralmente de “classe média”. Em primeiro lugar, o termo “classe média” é apenas uma classificação arbitrária do classificador. Em segundo lugar, na época em que a autora escreveu, no início dos anos 1960, o ensino superior era mais elitizado e o predomínio de estudantes das classes privilegiadas era muito maior que o que ocorreu posteriormente, pois o número de estudantes das classes desprivilegiadas aumentou com o passar do tempo, embora prioritariamente em cursos, instituições, etc., determinados. Em terceiro lugar, não se pode reduzir o movimento estudantil ao movimento dos estudantes universitários e por isso, mesmo na época em que a autora escreveu, nesse nível de ensino, havia uma presença maior de estudantes das classes desprivilegiadas.
[3] Uma análise mais aprofundada dos objetivos dos movimentos sociais e de questões relacionadas pode ser vista em Viana (2016b).
[4] Sanchez (2000) aponta algumas especificidades, embora sem grande aprofundamento, bem como Cohn-Bendit (1969) e Foracchi (1977) também trazem elementos sobre isso, apesar dos equívocos encontrados em ambos.
[5] Para uma análise das organizações burocráticas e autárquicas, cf. Viana (2016c).
[6] É preciso esclarecer que o pertencimento de classe da maioria dos jovens estudantes é através de sua família. Os jovens de família burguesa, por exemplo, pertencem à classe burguesa. É um pertencimento indireto, pois não estão inseridos nas relações sociais e divisão social do trabalho enquanto burgueses. O mesmo vale para os estudantes oriundos de famílias de outras classes sociais. Alguns, aqueles que já estão inseridos em relações de trabalho, geralmente das classes desprivilegiadas, já possuem um pertencimento de classe direto. As universidades, por exemplo, reproduzem, sob certa forma, a divisão de classes através dos cursos e faculdades, onde a origem de classe e o curso andam juntos. O curso de medicina, por exemplo, é frequentado por estudantes das classes privilegiadas em sua maioria esmagadora, bem como nas ciências humanas, especialmente em alguns cursos, há uma grande presença de estudantes das classes desprivilegiadas. Essa divisão também se manifesta em qual instituição se estuda. Os estudantes das classes privilegiadas, que possuem melhores condições de estudo, frequentam as universidades consideradas “melhores” e os estudantes das classes desprivilegiadas geralmente se concentram nas menos renomadas e com estrutura inferior. No plano do ensino secundário, a divisão ocorre através das escolas, tendo as escolas particulares (e a hierarquia entre elas, que repercute inclusive financeiramente) um público quantitativamente superior das classes privilegiadas e as escolas públicas um público quantitativamente superior das classes desprivilegiadas.
[7] Que são geralmente momentos em que o regime de acumulação estabelecido sai de uma situação de estabilidade para uma situação de desestabilização e que pode gerar uma crise do mesmo, que, por sua vez, tende a se tornar uma crise do capitalismo.
[8] Isso depende de qual classe ou estrato se faz parte. Para os jovens da burguesia, o transporte coletivo não é necessário, mas para os jovens oriundos das classes burocrática e intelectual, especialmente seus extratos inferiores, de renda mais baixa do que os estratos superiores, o uso do transporte coletivo é para a locomoção ao local de estudo (e em outros casos fora da necessidade estudantil) é constante.
[9] O conceito de noosfera está desenvolvido na obra intitulada A Dinâmica das Renovações Hegemônicas, em preparação. A noosfera é o conjunto dos saberes complexos que se diferenciam das representações cotidianas. A ciência, a filosofia, a teologia, são saberes noosférico, dotados de complexidade, assim como a teoria. A consciência correta da realidade só é possível, sob forma aprofundada e integral, através do saber noosférico, ou seja, através da teoria, pois este pode se manifestar como ideologia, sistema de pensamento ilusório.
[10] Assim como não é irracionalista ou empiricista. Essas antinomias são típicas da episteme burguesa, ou seja, do modo de pensar burguês, ao contrário da concepção dialética.
[11] O MPL narra sua própria história de formação através de uma linha de evolução que vai da Revolta do Buzu (Salvador, 2003), passando pela Revolta da Catraca (Florianópolis, 2005), até chegar à sua fundação no Fórum Social Mundial (2006). No entanto, embora obviamente esses acontecimentos anteriores tenham influenciado a formação do MPL, bem como outros não narrados (inclusive em outros países, inclusive o mais antigo Movimento Antiglobalização, bem como diversas concepções, indo do anarquismo e autonomismo até o marxismo autogestionário).
[12] As organizações burocráticas geralmente possuem um objetivo declarado, em seu discurso, estatutos, regimentos, etc., que é diferente do seu objetivo real (ETZIONI, 1976) e isso se reproduz no caso de ramificações de movimentos sociais (VIANA, 2016b). No caso das organizações mobilizadoras, há correspondência entre objetivo declarado e objetivo real.
[13] http://antigo.brasildefato.com.br/node/13683
[15] https://mplfloripa.wordpress.com/2006/07/22/resolucoes-do-ii-encontro-nacional-do-movimento-passe-livre/
[16] http://tarifazero.org/2013/08/28/sobre-o-passe-livre-estudantil/
[17] Esse caráter mercantil é impossível de ser removido no capitalismo e é mera ilusão pensar que isso seria possível (VIANA, 2016d).
[18] http://tarifazero.org/2013/08/28/sobre-o-passe-livre-estudantil/
[19] “O Movimento Passe Livre é um movimento horizontal, autônomo, independente e apartidário, mas não antipartidário. A independência do MPL se faz não somente em relação a partidos, mas também a ONGs, instituições religiosas, financeiras etc.” Aqui se observa o democratismo ao enfatizar que é apartidário e não antipartidário. O democratismo se manifesta no processo de não-exclusão de partidos (e outras organizações burocráticas), o que, por sua vez, permite a presença de militantes partidários que, de uma forma ou outra, estarão reproduzindo as concepções e práticas dos seus partidos na organização. O apartidário, assim como a mesma posição diante das demais organizações burocráticas, apenas como “não dependente” (que é o significado da palavra “independente”). Para uma análise sobre democratismo, cf. (HOLLANDER, 2014).
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Publicado originalmente em:
*VIANA, Nildo. Movimento Estudantil, Dualidade Reivindicatória e Entrelaçamento Reivindicativo. Goiânia: Edições Redelp, 2016.

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