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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

CORAGEM E COVARDIA NA ESFERA CIENTÍFICA


CORAGEM E COVARDIA NA ESFERA CIENTÍFICA

Nildo Viana

A dinâmica interna da esfera científica, assim como a de todas as esferas sociais[1], é marcada pela competição, censura, pressão, mas, além disso, forças externas atuam sobre seus integrantes (burocracias: governamental, universitária, etc.; capital: comunicacional, editorial, etc.; aparato estatal e seus diversos aparatos institucionais: educacional, comunicacional, etc.). Nesse contexto, o cientista, o intelectual que atua especificamente na esfera científica, precisa ser corajoso para poder dizer a verdade, para recusar a hegemonia, etc. Por outro lado, os covardes, mesmo que bem intencionados ou pretendendo ser um pensador a serviço da transformação social, acabam realizando ou colaborando com o processo de reprodução social.

Assim, o intelectual engajado, aquele que tem compromisso com a verdade e a com a transformação radical e total das relações sociais, necessita ser corajoso. Um intelectual engajado covarde é um contrassenso. Ele pode até querer ser um intelectual engajado, mas não é no verdadeiro significado do termo. No máximo, consegue ser “revolucionário” em outro lugar ou em outra atividade, mas não em sua produção intelectual. É, portanto, um intelectual ambíguo. Nesse caso, é um intelectual ambíguo com uma ambiguidade mais radical, mas sem força e coragem suficiente para romper com ela.

Isso, no entanto, não é um problema apenas do intelectual engajado. Qualquer intelectual que queira sair das regras do jogo, mesmo sendo um dissidente, sabe que as portas tendem a se fechar para ele, o que significa que somente com muita coragem é que poderia manter sua posição.

Marx e Freud são dois exemplos dos dois casos concretos (intelectual engajado e intelectual dissidente). Marx foi um dos mais corajosos intelectuais de todos os tempos e foi por isso que foi marginalizado na esfera científica desde o início, graças ao seu compromisso com a verdade e com o proletariado (transformação social). Ele foi um crítico radical e desapiedado das representações ilusórias e das ideologias, inclusive as que eram hegemônicas. Marx criticou não apenas os ideólogos burgueses, neohegelianos, etc., mas também os supostos opositores do capitalismo (socialismo utópico, socialismo verdadeiro, Proudhon, etc.). Ele não fez a crítica pela crítica e sim para superar as ilusões e ideologias e assim chegar à verdade, elemento fundamental para o processo de transformação social. É por isso, também, que não se limitou a criticar. Ao lado de sua crítica da economia política, produziu uma teoria do modo de produção capitalista; ao lado da crítica de Hegel, esboçou uma concepção materialista da dialética e da história.

Isso não passou incólume. Originário das classes privilegiadas, acabou não podendo trabalhar em universidade, passou momentos de miséria e precisou de escrever artigos para jornais e solicitar ajuda financeira de amigos e outros para poder sobreviver. Esse efeito na vida pessoal apenas acompanhou o destino da sua produção intelectual, sendo inicialmente vítima de “silêncio” e, posteriormente, de pseudocríticas. Depois, um exército de detratores, deformadores, pseudocríticos, que nem sequer entenderam sua teoria, tentou desacreditá-lo.

O caso de Freud é bem diferente. Freud foi um intelectual de grande coragem, embora suas teses, não sendo de caráter diretamente político e nem contestando o capitalismo e seus defensores, não teve resistência generalizada das classes privilegiadas. No entanto, ao desenvolver suas teses e acreditar que elas eram verdadeiras, as defendeu e não recuou. Algumas de suas teses foram combatidas pelos setores mais conservadores da sociedade, tal como sua problemática concepção da sexualidade infantil. Outros intelectuais o criticaram e atacaram, alguns até o acusando de “charlatão”. No entanto, ele resistiu, manteve e desenvolveu suas teses. Acabou conseguindo um relativo sucesso que foi ampliado com o tempo.

Se Marx tivesse se acovardado, teria se tornado apenas mais um reprodutor das ideias hegemônicas de sua época (um neohegeliano) e Freud seria apenas mais um psiquiatra sem grande brilho. A ousadia intelectual é fundamental para os intelectuais comprometidos com a verdade e a transformação social. Contudo, não basta coragem. Muitos intelectuais são extremamente corajosos e, no entanto, caem no ridículo pela fragilidade de suas ideias. Freud é um caso sui generis, pois uniu coragem e, simultaneamente, ideias verdadeiras e falsas, brilhantes e estapafúrdias. No entanto, por mais que se discorde, mesmo de suas ideias mais extravagantes, é necessário reconhecer que eram fundamentadas e aliadas a outras ideias e descobertas fundamentais a respeito do psiquismo humano. Para que a coragem não seja apenas meio de manifestação de delírios intelectuais, é preciso pesquisa, fundamentação, reflexão crítica[2]. Isso significa que a coragem é uma qualidade humana que é fundamental para a transformação social e a produção intelectual que a reforça, mas que pode ser despropositada, tendo conteúdo/objetivo falso/conservador ou então direcionada a um alvo equivocado, e, assim, pode ser antagônica ao compromisso com a verdade e com o proletariado. A coragem, portanto, não é um objetivo em si mesma e sim um meio para se atingir determinados objetivos. Quando a coragem se torna um fim em si mesma, ou quando seus objetivos são condenáveis, ela se torna prejudicial e tão nociva quando a covardia.

A história da intelectualidade e, mais especificamente, dos cientistas (os agentes da esfera científica) não é uma história de coragem e sim de covardia. Um minoria corajosa convive com uma maioria covarde. Basta observar que existe tão pouca verdade na quase totalidade dos livros, artigos, teses, aulas, palestras, para ver que aqueles que poderiam usar a coragem para expressá-la preferem se acovardar diante das ideologias hegemônicas e correntes predominantes de opinião. Alguns são corajosos na vida privada e pequenos círculos (alguns especificamente no círculo interno), mas jamais publicam ou se manifestam publicamente de forma corajosa para o grande público.

Os intelectuais e cientistas covardes podem até ser hegemônicos e consagrados numa determinada época, mas no decorrer do processo histórico mais longo são esquecidos, da mesma forma como os filmes de besteirol norte-americanos.

A covardia, assim como a inveja, tem um efeito deletério na produção intelectual e na esfera científica. O medo da corrente predominante de opinião (na sociedade ou em setores da mesma, especialmente, nesse caso, nos meios intelectuais ou intelectualizados), a falta de coragem de desafiar as correntes hegemônicas, as concepções da moda, as “autoridades intelectuais” (tanto a daqueles atrelados ao grande capital comunicacional, os intelectuais venais, quanto aqueles que são hegemônicos na esfera científica), as regras do jogo da própria esfera científica, etc. forma intelectuais covardes[3]. Alguns destes, para disfarçar sua covardia crônica, oferece alguma demonstração de coragem ao contestar não os defensores da ordem e sim os críticos radicais da mesma, geralmente por razões mesquinhas, o que apenas deixa a mesquinhez do crítico mais explícita. Alguns buscam demonstrar sua “coragem” chutando “cachorro morto”, o que não deixa de ser cômico.

A história da esfera científica é marcada por um processo de reprodução da inverdade e isso é reforçado pelo fenômeno da covardia intelectual. E isso também ocorre, em graus variados, em outras esferas sociais. Contudo, quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais aumenta o número de covardes e diminui o número de corajosos. Afinal, hoje em dia é difícil encontrar um Giordano Bruno, um Rembrandt, um Thomas Morus, um Karl Marx, um Sigmund Freud, exemplos do passado que raramente encontram similares no presente.

Isso é explicado, em grande parte, pelo desenvolvimento capitalista e pela intensificação do processo de competição, mercantilização e burocratização. Cada vez mais os intelectuais, como todos os indivíduos, estão submetidos ao dinheiro, amarrados em organizações burocráticas e constrangidos à competição social, bem como sob a força da hegemonia burguesa. O capitalismo contemporâneo, sob o regime de acumulação integral, aprofunda e intensifica isso e reforça a “política do descompromisso”, oriunda do paradigma subjetivista e expresso por ideologias como a pós-estruturalista. A formação social dos indivíduos no capitalismo contemporâneo aponta para a criação de seres humanos cada vez mais problemáticos, com uma grande parte justificando isso ao transformar o defeito em virtude.

Nesse contexto, a coragem se torna ainda mais urgente e necessária, pois a covardia de hoje pode gerar a catástrofe do amanhã. A boa coragem, nunca é demais recordar. Ou seja, a coragem que não está a serviço dos interesses pessoais imediatos (mesmo quando estes aparecem disfarçados de outra coisa) e da reprodução do capitalismo, pois são elementos complementares. O dito popular já indagava: “você é um homem ou um rato?”, mas hoje é preciso indagar de forma mais explícita nos meios intelectuais: “você é um intelectual corajoso ou um covarde?”.












[1] Uma análise geral pode ser vista em: VIANA, Nildo. As Esferas Sociais. A Constituição Capitalista da Divisão do Trabalho Intelectual. Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.

[2] Assim, a coragem é necessária, mas é preciso entender que ela, em si, não é nada. Ela só tem sentido articulada com objetivos nobres e não objetivos pobres. Da mesma forma, cabe ao analista de determinada produção intelectual definir, na análise de tal produção em si, se as ideias são delírios intelectuais ou expressão da realidade, o que se consegue através da comparação entre as concepções e os fenômenos que elas buscam expressar e na fundamentação de cada concepção e sua articulação geral no conjunto de concepções que formam o pensamento do intelectual em questão.

[3] Claro que isso não quer dizer que se deva contestar apenas por contestar e sim quando há razões para isso ou então, ingenuamente, recusar certas coisas por que elas são hegemônicas, etc., sem o trabalho de reflexão crítica, fundamentação, pesquisa.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

INVEJA E COMPETIÇÃO NA ESFERA CIENTÍFICA


INVEJA E COMPETIÇÃO NA ESFERA CIENTÍFICA

Nildo Viana

A sociedade capitalista gera uma sociabilidade caracterizada pela competição, mercantilização e burocratização e esta constitui uma mentalidade que introjeta tais características[1]. Aqui nos interessa a questão da competição social e da mentalidade competitiva derivada dela e de sua ressonância na esfera científica, especialmente o seu impacto sobre os sentimentos, ou, mais exatamente, na produção da inveja.

A inveja é um dos sentimentos antipáticos mais condenados e não é a toa que está elencada entre os sete pecados capitais. Para alguns, a inveja é produto da comparação. Fulano tem X e Ciclano não. Ciclano compara e deseja ter X. Logo, inveja Fulano e quer ter o que ele tem. Enquanto descrição da realidade, isto é correto. Porém, falha como explicação. A inveja é, na verdade, produto da competição.

O capitalismo, com sua sociabilidade competitiva, gera uma mentalidade competitiva, que é a principal motivação da inveja[2]. A mera comparação não gera inveja. João tem um carro importado, mas o seu amigo José não o inveja, pois não gosta de carros. No entanto, se o José for uma pessoa de mentalidade competitiva, ela irá invejar João. O desejo de José não é possuir o carro por ele mesmo e sim por que João o possui. José está competindo com o João. A inveja nasce dessa competição. A inveja é um sentimento antipático caracterizado pela necessidade de possuir ou ser o que os outros possuem ou são. É por isso que é um sentimento antipático, pois, ao contrário dos sentimentos simpáticos (como o amor, por exemplo), ele é destrutivo.

A competição se torna generalizada e ocupa todas as relações sociais. os indivíduos estão competindo por lucro, dinheiro, riqueza, emprego, cargos, beleza, força, bens materiais, etc. E aqueles que perdem uma competição (por riqueza, por exemplo) compensam ganhando outra (não é rico, “mas é o mais inteligente”, ou não é tão inteligente, “mas é o torcedor do time campeão”). Assim, a competição é generalizada, sendo, no entanto, distinta em diferentes classes sociais, grupos, instâncias, etc. que possuem uma escala específica de valores convivendo com os valores dominantes na sociedade.

É por isso que a esfera científica gera uma escala de valores que lhe é própria. O mesmo ocorre com outras esferas sociais, mas nosso foco aqui é a esfera científica. Os valores dominantes nesta esfera e o que caráter extremamente competitivo, o que já foi destacado por autores como Mannheim[3] e Bourdieu[4], aponta para uma forma específica de competição. O dinheiro e o poder, fundamentais para a classe capitalista e a para a burocracia, respectivamente, são secundários para a classe intelectual[5] e esfera científica. A exceção mais comum é o caso dos intelectuais venais, que colocam o dinheiro como valor fundamental e por isso são mal vistos – e em alguns casos até invejados – por outros intelectuais. O espólio em disputa na esfera científica é, fundamentalmente, o reconhecimento, especialmente sob a forma de consagração[6]. No entanto, alguns no seu interior, especialmente os intelectuais venais, engajados e amadores podem eleger outros espólios ou contestá-los.

No entanto, nem todos os cientistas (bem como seus semelhantes, os filósofos) conseguem a consagração, fama ou sucesso, ou mesmo uma forma de reconhecimento menos valorada. Isso, no capitalismo, é reservado para poucos. Para os que não conseguem, mas possuem os mesmos valores, resta a inveja. Sem dúvida, se produz uma hierarquia – que vai do internacional e nacional até chegar ao regional ou local – e por isso o derrotado em âmbito internacional pode ser vitorioso em âmbito nacional, etc. Aliás, isso explica, em certos casos, a animosidade local ou regional em relação a um intelectual reconhecido nesse âmbito, ou como existem intelectuais sem reconhecimento em sua instituição, cidade, etc., mas reconhecimento em outros lugares.

Assim, quando a inveja é compartilhada por um número significativo de pessoas[7], a sua ressonância é maior, pois cria uma corrente de opinião desfavorável àquele que é invejado. A inveja (e competição) se manifesta sob as mais variadas formas. A forma mais comum de pseudocrítica[8] é realizada quando o suposto crítico nem sequer leu o que está criticando ou, em outros casos, nem entendeu. Qualquer coisa pode se transformar em pretexto para a pseudocrítica: se escreveu um livro, por mais excepcional que seja, é “criticado” por ter escrito pouco, ou, se escreveu dez livros, é “criticado” por ter escrito muito. A pseudocrítica pode focalizar não a produção intelectual do indivíduo, mas a figura do autor, desde sua aparência física, passando por suas posições políticas, amizades, gosto musical, personalidade, até chegar em questões de sua vida pessoal. Nesses casos, a pseudocrítica não possui nenhuma fundamentação real, pois não se baseia no conteúdo escrito ou em sua totalidade e fidedignidade a ele (como ocorre com a pseudocrítica que realização a simplificação e deformação para parecer convincente).

Isso se reproduz nos detalhes do trabalho intelectual. Este é o caso, por exemplo, das citações. Não é difícil ver orientadores proibindo seus orientandos de citar seus colegas ou haver perseguição de professores sobre alunos por causa disso. Também é relativamente comum a autocensura provocada pela pressão/censura externa, sendo que esta muitas vezes é determinada pela inveja. Ao lado da inveja, na maioria das vezes, as outras motivações (políticas, intelectuais e pessoais) também tendem a gerar esse processo de censura e silêncio sobre a produção intelectual alheia. Marx mesmo colocou, no seu prefácio de O Capital[9], que sua obra foi marcada pelo silêncio e depois pela “crítica” (pseudocrítica).

O procedimento dos pareceres em revistas acadêmicas/científicas e outras instâncias do trabalho intelectual (livros, projetos de pesquisa, concursos, processos seletivos, etc.) também é marcado pela inveja, ao lado das divergências políticas e teórico-metodológicas, bem como, em certos casos, pela ignorância. Muitos pareceristas são movidos por inveja em seus pareceres (e isso revela a falha desse procedimento quando o parecerista não tem domínio, competência ou mesmo capacidade de compreensão equivalente ao do autor submetido a ele. Argumentos de autoridade, afirmações não-fundamentadas, adjetivos pejorativos, são meios comumente utilizados para justificar pareceres injustificáveis, contrários ao artigo ou obra que mereciam publicação.

Até em círculo de intelectuais engajados esse processo pode se reproduzir, embora com mais força no caso dos intelectuais mais inseguros ou por pressão social, ou, ainda, ambas as coisas. No caso dos intelectuais ambíguos, esse processo é tão comum quando no caso dos demais intelectuais. Também ocorre no caso de intelectuais que obtém uma forma de sucesso que questiona, por inveja, outra forma do mesmo. Por exemplo, intelectuais ambíguos podem questionar intelectuais venais e estes os hegemônicos[10], pois invejam o relativo sucesso do outro por também desejá-lo e não consegui-lo[11].

Assim, podemos, após essa breve descrição do significado da inveja na esfera científica, destacar os seus efeitos deletérios na produção intelectual. A existência da inveja e de um exército de invejosos constitui um enorme reforço da hegemonia burguesa nas esferas sociais, bem como, mais especificamente, na esfera científica. Nessa, a inveja reforça o boicote aos intelectuais mais corajosos e produtivos, aos que possuem maior coerência e compromisso com a verdade. Esse boicote impede a circulação de ideias contestadoras e revolucionárias, bem como enfraquece o compromisso com a verdade, que deveria ser um valor fundamental na produção intelectual, pois ela é desvantajosa para os interesses pessoais.

Desta forma, a inveja é um sentimento incentivado e amplificado pelo capitalismo e sua existência e reprodução reforçam, ao lado de diversos outros sentimentos, valores, desejos, interesses, a manutenção da sociedade capitalista. Um dito popular afirma que “a inveja mata”, mas o mais correto seria dizer: “a inveja é mais um obstáculo para a emancipação humana e por isso precisa ser abolida junto com a sociedade que a incentiva e amplifica” ou, ainda, “a inveja, na esfera científica, mata a verdade”.





[1] Isso foi desenvolvido em: VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. Rio de Janeiro: Escuta, 2008.
[2] A inveja é um sentimento anterior ao capitalismo, mas é com essa forma de sociedade que se torna predominante.
[3] MANNHEIM, Karl. Sociologia do Conhecimento. 2 vols. Lisboa: Rés, 1979.
[4] BOURDIEU, Pierre. O Campo Científico. In: ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu. São Paulo: Ática, 1984.
[5] Evidentemente, existem exceções, especialmente no caso de intelectuais ambíguos e que assumem temporariamente cargos burocráticos.
[6] Sobre isso: VIANA, Nildo. As Esferas Sociais. Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.
[7] E isso pode ser reforçado por outras motivações de outras pessoas, como divergências intelectuais ou políticas, ou mesmo antipatia pessoal.
[8] A pseudocrítica pode ser motivada também por divergência política ou teórico-metodológica ou interesses grupais ou pessoais. O nosso foco aqui, no entanto, é quando motivação é a inveja.
[9] MARX, Karl. O Capital. Vol. 1, 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.
[10] Sobre a variedade de posturas intelectuais, veja o livro já citado sobre as esferas sociais.
[11] Não se deve confundir isso com indignação com o desmerecimento alheio, tal como podemos ver em Weber: “Em sã consciência, você acredita que pode aguentar o fato de medíocres atrás de medíocres, anos após anos, ascendam mais que você, sem se tornar amargurado e sem sofrer um colapso?” (apud. JACOBY, Russell. Os Últimos Intelectuais: A Cultura Americana na Era da Academia. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990).

domingo, 29 de janeiro de 2017

O GOVERNO TEMER E O PROBLEMA DA ACUMULAÇÃO DE CAPITAL


O GOVERNO TEMER E O PROBLEMA DA ACUMULAÇÃO DE CAPITAL

Nildo Viana

O Governo Temer tomou posse há alguns meses e não conseguiu resolver o problema das dificuldades do processo de acumulação de capital. Essas dificuldades se esboçaram a partir de 2012 e se intensificaram nos anos seguintes, sendo que se aprofundaram nos anos seguintes. O seu agravamento se iniciou em 2014 e foi reforçado com a inoperância, incompetência e neopopulismo do Governo Dilma. Havia uma expectativa, por certos setores da sociedade, que estes problemas, oriundos da burocracia governamental, seriam removidos e uma nova equipe e política estatal promoveria o chamado retorno do “crescimento econômico”. No entanto, não foi isso que ocorreu efetivamente.

A desestabilização do regime de acumulação integral no Brasil, durante o governo Dilma, se prolonga até hoje. Alguns denominam essa situação como “crise”, mas é apenas uma desestabilização. Um regime de acumulação somente entra em crise quando isso ocorre em escala mundial. Os regimes de acumulação são adotados mundialmente, mesmo tendo um centro irradiador para o resto do mundo. Nos casos nacionais, o que pode ocorrer é uma crise no regime de acumulação, o que pode provocar, em âmbito nacional, sua reconfiguração parcial. Sem dúvida, a desestabilização pode ocorrer em escala mundial, mas, nesse caso, é um prenúncio da crise do regime de acumulação. A desestabilização do regime de acumulação integral, no caso brasileiro, acompanha um ciclo que pode desembocar numa crise e esta é a tendência mais forte no momento. A crise nacional, por sua vez, reforça a desestabilização mundial e, dependendo da importância do país derivada de sua posição na divisão internacional do trabalho e da situação de outros países, pode provocar uma crise no regime de acumulação integral. O caso de Portugal, Espanha e Grécia, por exemplo, não foi suficiente para desencadear tal crise.

A desestabilização, por sua vez, pode ser revertida, ou, mais exatamente, minimizada. A desestabilização pode constituir altos e baixos, subciclos que se sucedem, até ser superada, o que em certas situações é algo raro, ou aprofundada até gerar uma crise. Assim, tanto os otimistas, que são aqueles que pensam que a desestabilização caminha inelutavelmente para a crise, quanto os pessimistas, que são aqueles que pensam que um certo momento de ampliação da acumulação significa sua superação, se enganam. O equívoco dos pessimistas se revela na ideia de que a estabilização não pode ser superada, sendo que, apesar de ser difícil, isso pode ocorrer (é mais difícil no caso de crise e quase impossível no caso de crise mundial) e não perceber que ela tem altos e baixos. O equívoco dos otimistas está em tomar um subciclo ascensional e temporário como se fosse a superação da desestabilização. Enquanto que no caso dos regimes de acumulação a tendência geral é de ascensão e queda, embora a duração desse processo seja de difícil previsão e depende de diversas determinações que podem complexificar a situação (sem falar das peculiaridades nacionais), o processo de desestabilização e crise é mais complexo e em curto prazo, bem como um conjunto de determinações pode promover mudanças que, sendo menos impactantes, atuam mais sobre sua dinâmica.

A desestabilização pode conter vários subciclos e estes podem ser de desaceleração e aceleração de acumulação de capital. Essa é, inclusive, uma tendência, pois toda desaceleração cria alguns elementos que possibilitam uma aceleração posterior, obviamente que não no mesmo grau que num momento de ascensão e consolidação de um regime de acumulação. O que ocorre, no entanto, é que estes subciclos são passageiros e dentro de uma dinâmica geral de desestabilização. Os dois gráficos abaixo apontam para a compreensão desse fenômeno, um apontando apenas a tendência geral de um regime de acumulação e outro apontando uma das tendências dos subciclos da desestabilização (sendo que este último ocorre de forma imperceptível observando apenas o primeiro):




 
 



O quadro mostra a dinâmica geral de um regime de acumulação e o caso específico do processo de desestabilização enquanto parte do ciclo de dissolução de um regime de acumulação e sua dinâmica temporal e tendencial, que é a de subciclos (que podem ser vários e com duração maior ou menor). Assim, ao olhar para a história de um regime de acumulação em âmbito mundial, veremos a dinâmica acima, mas se olharmos apenas o seu ciclo de dissolução, poderemos ver a dinâmica mais específica da desestabilização, com altos e baixos, o que permite o surgimento de uma corrente de opinião otimista. Uns observam apenas a tendência geral e caem no pessimismo, outros, ansiosos pela superação da situação, tendem ao otimismo ao enxergar qualquer breve recuperação. No plano da análise política e conjuntural, ambas são problemáticas e dificultam a compreensão e ação diante dessa situação.

Obviamente, aqueles que apostaram no governo Temer como solução para a desestabilização não analisam a situação nestes termos e por isso esperavam uma rápida e eficaz solução com a mera troca de governo. Isso é ilusório. No entanto, um governo competente e corajoso poderia ter avançado mais, não no sentido de retomar a situação de estabilidade, mas no sentido de enfraquecer e interromper o processo de desestabilização. O governo Temer, até agora, se mostrou frágil, tanto por sua incompetência e inoperância (em parte por se manter preso ao neoliberalismo, que limita a criatividade e a adoção de certas políticas que seriam eficazes nesse contexto), quanto pela situação política (lava-jato, impeachment incompleto, interesses político-partidários e eleitorais, etc.).

O problema foi se agravando e após a concretização do impeachment, o governo Temer, reforçado pelos resultados eleitorais de 2016, resolveu tomar as medidas necessárias de acordo com a continuidade das políticas neoliberais. Assim, várias reformas inflexíveis típicas do neoliberalismo discricionário foram arquitetadas e enviadas para o congresso nacional. A PEC 241/55 foi parte do primeiro ato da peça chamada neoliberalismo discricionário[1].

O neoliberalismo discricionário conseguirá reverter o processo de desestabilização? Se ele for adotado em conjunto e ao lado de uma política pecuniária (financeira, industrial, etc.) tem condições de criar um subciclo de aceleração da acumulação de capital. Isso não significa um retorno ao período de ascensão da acumulação de capital e sim uma situação melhor do que a que existe atualmente, ou seja, um subciclo ascensional.

Durante o governo Dilma, o que existia era, principalmente, uma crise financeira, concomitantemente com o início da desaceleração da acumulação de capital. Se a primeira tivesse sido combatida e revertida, a segunda teria sido adiada por um certo tempo. A crise financeira, no entanto, acabou agilizando e intensificando a crise pecuniária (“econômica” ou “de acumulação”). O mundo das finanças atinge o mundo da produção. A categoria da totalidade ou a compreensão da dinâmica da sociedade (e acumulação) capitalista são fundamentais para entender que tudo está relacionado e que cada elemento do todo age sobre os outros. Isso seria suficiente para entender que o mundo das finanças e o mundo da produção não são “mundos separados”. A crise financeira atinge o processo de produção por diminuir a capacidade de investimentos, realocação de recursos, o poder aquisitivo da população e por gerar, em certos setores da sociedade, desemprego, o que, por sua vez, diminui ainda mais o mercado consumidor. Assim, a diminuição, mesmo que relativa, do consumo, investimento, etc., atinge o capital produtivo e o próprio aparato estatal, que, por sua vez, diminui sua capacidade de intervenção e/ou aumenta a dívida pública.

Porém, a acumulação de capital é caracterizada por ciclos e subciclos. O processo acima descrito, quando gera uma crise pecuniária, promove o aumento do desemprego, redução do mercado consumidor, etc. Esse processo após algum tempo, permite aumentar a taxa de exploração (o desemprego predispõe os trabalhadores a venderem sua força de trabalho por um preço mais baixo, aumentando a taxa de mais-valor, o que pode ser visto na história do capitalismo no caso de empresas em que ocorreram acordos coletivos para redução salarial para não perder o vínculo empregatício), realocação do consumo para o setor produtivo e mais ainda para certos setores deste (na época das vacas magras, o consumo de bens necessários e materiais cresce proporcionalmente em relação aos bens supérfluos e bens culturais e coletivos). Assim, a desestabilização passa por altos e baixos, subciclos de desaceleração e aceleração da acumulação de capital.

Esse desenvolvimento cíclico da acumulação de capital possui múltiplas determinações  e o tempo de duração de cada subciclo também. Uma das determinações desse processo é o aparato estatal, que é o regularizador do processo de reprodução do capitalismo e que atua sobre diversos aspectos que atingem diretamente o regime de acumulação. Assim, o governo pode contribuir com a permanência ou superação de um subciclo (de forma mais decisiva do que no caso de um ciclo), o seu tempo de duração, etc.

É nesse contexto que o governo Temer se encontra. A expectativa de que ele resolvesse imediatamente o problema da desestabilização era ilusória. No entanto, ele, sem dúvida, poderia ter contribuído com o processo de passagem de um subciclo de desaceleração para um de aceleração (relativa). Isso não ocorreu, pelo menos de forma mais ágil e eficaz. A iniciativa em torno do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) foi a única mais eficaz em curto prazo. As políticas de austeridade, como a PEC 241/55, são limitadas e longas (visando o longo prazo), bem como tem efeitos indesejáveis. Em longo prazo elas tendem a surtir o efeito de acelerar a acumulação de capital, mas também tende a aumentar os conflitos sociais e reemergência de lutas operárias radicalizadas. Se elas conseguiram uma nova estabilização relativa, a tendência é que o fim desta seja muito mais brutal (e num contexto muito pior para a maioria da população e acompanhada com um processo tendencial de desestabilização mundial). Logo, “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, como diz o ditado popular e que revela o dilema do capitalismo brasileiro contemporâneo.

O governo Temer tende a se encerrar com um fracasso em curto prazo e talvez com um relativo “sucesso” a médio e longo prazo e, nesse caso, se houver frutos para se colher, a coleta será feita por outro governo (tal como o governo Lula foi beneficiado pelos governos anteriores, apesar de que os frutos do futuro sejam escassos). Evidentemente, qualquer previsão do futuro é mera hipótese que, numa análise dialética, é fundada em tendências mais gerais, que podem ser contrariadas por acontecimentos destoantes da tendência geral. Por exemplo, se nas eleições presidenciais de 2018 for eleito um governo demasiado incompetente e/ou irresponsável, as políticas de austeridade do governo Temer podem ter seus resultados desmanchados como castelos de areia atingidos por um redemoinho. A crise pode substituir a desestabilização e assim se constituir uma situação revolucionária.

Os progressistas, com seu habitual otimismo (com ações governistas) e incompreensão da dinâmica capitalista, podem dizer que isto é “determinismo” e que um bom governo (o deles) pode trazer de volta a “bonança” (que nunca foi para o conjunto da população). Se isso fosse verdade, o governo Dilma e inúmeros outros governos em diversos países (de partidos denominados “trabalhistas”, “social-democratas” ou “socialistas”) teriam evitado crises, desestabilização, etc., e nunca o fizeram. Teriam também ganhado eleições após eleições, o que nunca ocorreu. Eles sempre abrem as portas para os conservadores após decepcionarem a população.

Outros poderão colocar a necessidade dos trabalhadores se organizarem para defender os seus direitos, etc. Assim, segundo estes, os trabalhadores não sofrerão as consequências da desaceleração da acumulação de capital (o que eles chamam de “crise”). Essa é uma posição tragicômica. É trágica pelo simples motivo de que a resistência dos trabalhadores contribui com a desaceleração da acumulação de capital, ou seja, desestabilização e crise, que vai atingir, posteriormente e com mais força, os próprios trabalhadores. Por isso, além de trágica, essa solução é cômica, pois não soluciona nada.

Isso significa não entender que os interesses fundamentais da burguesia, bem como das classes privilegiadas em geral, e os interesses imediatos do proletariado, e das classes desprivilegiadas em geral, no que se refere à acumulação de capital, são os mesmos. O antagonismo reside nos interesses fundamentais das duas classes fundamentais, pois no plano dos interesses imediatos, eles coincidem. A desaceleração da acumulação de capital prejudica a todos, tanto a classe capitalista quanto as classes trabalhadoras, incluindo a classe proletária. Ela gera desemprego, inflação, redução dos recursos estatais, etc. Logo, se o pensamento se move dentro da dinâmica da acumulação capitalista (não busca a superação do capitalismo), não há saída para os trabalhadores. Nesse caso, eles devem pagar a conta, se submetendo aos ditames do capital e aceitar a alienação, o empobrecimento relativo, o desemprego, o aumento da exploração, etc. Se o proletariado fica ao nível dos seus interesses imediatos, deve apoiar a classe capitalista e o aumento de sua própria exploração. Nesse contexto, pode no máximo pressionar o governo para o impacto ser menor, o que seria possível com um subciclo ascensional, que, por sua vez, tende a ter curta duração.

Portanto, é necessário que as classes trabalhadoras em geral e o principalmente o proletariado, em particular, compreendam que, no capitalismo, sempre perderão e jamais ganharão e que uma real solução está muito além de governos e reformas, está além o capitalismo. A libertação dos trabalhadores só é possível com a abolição do capitalismo.






[1] O neoliberalismo discricionário é aquele que surge no momento de desestabilização do regime de acumulação integral, tentando manter o mesmo através de mais políticas neoliberais, agora de caráter ainda mais inflexível (políticas de austeridade, autocracia governamental, etc.) e que pode, dependendo do contexto, buscar uma reconfiguração parcial do regime de acumulação integral.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Movimentos Sociais e Movimentos de Classes: semelhanças e diferenças


Movimentos Sociais e Movimentos de Classes: semelhanças e diferenças

Nildo Viana

Resumo


O artigo visa apresentar as semelhanças e diferenças entre movimentos sociais e movimentos de classes sociais, destacando que são fenômenos distintos. Para tanto, usando as categorias da dialética e análise concreta dos movimentos sociais e movimentos de classes, aponta para a diferença essencial entre ambos.

Palavras-chave


Diferença, Semelhança, Movimentos Sociais, Classes Sociais, Grupos Sociais, Movimento Operário, Movimento de classes

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sábado, 14 de janeiro de 2017

O MODO CAPITALISTA DE EDUCAÇÃO


O MODO CAPITALISTA DE EDUCAÇÃO

Nildo Viana

O processo educacional não ocorre da mesma forma em todas as épocas e sociedades. É preciso entender, partindo do materialismo histórico tal como apresentado por Marx (1986) e enfatizado por Korsch (1983), o princípio da especificidade histórica. Segundo este princípio, cada sociedade é específica, bem como as formas como seus elementos constitutivos existem no seu interior. Desta forma, a sociedade escravista é radicalmente diferente da sociedade capitalista, bem como a sociedade despótica (antigo oriente próximo) da sociedade feudal. Da mesma forma, os seus elementos constitutivos são distintos, mesmo que existam em ambos os casos. O estado, na sociedade capitalista, é radicalmente distinto do Estado na sociedade despótica; a mercadoria da sociedade escravista é fundamentalmente diferente da mercadoria da sociedade capitalista. O mesmo podemos dizer a respeito do modo de educação, que em cada sociedade assume características específicas e distintas das demais formas em que assume em outras sociedades.

Mas antes de prosseguir é necessário um esclarecimento conceitual. Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que modo de produção é um conceito fundamental do materialismo histórico, constituído por determinadas relações de produção e forças produtivas, sendo que toda sociedade possui um modo de produção dominante e pode possuir modos de produção subordinados. O nosso foco aqui é o modo de produção dominante. Esse possui determinadas relações de produção, que possuem relações de distribuição idênticas, e que são relações sociais entre os seres humanos no processo de produção e reprodução dos bens materiais, que é realizado a partir de determinadas forças produtivas existentes e herdadas das gerações passadas. Essas relações de produção, essência de um modo de produção, são fundadas na cooperação ou na exploração, sendo a primeira forma a das sociedades sem classes sociais e a segunda a das sociedades classistas.

Cada modo de produção gera determinadas formas sociais, “jurídicas, políticas e ideológicas”, como coloca Marx (1983), conhecidas como “superestrutura” e também chamadas de formas de regularização das relações sociais (VIANA, 2007). Essas formas sociais possuem autonomia relativa e são compostas por diversas relações, processos, instituições, manifestações. O seu objetivo é reproduzir ou regularizar o conjunto das relações sociais, especialmente as relações de produção dominantes. No entanto, elas são perpassadas por conflitos e lutas, que variam em grau e intensidade.

A educação, aqui, é entendida com o processo de socialização (DURKHEIM, 1978). A socialização é o processo no qual os indivíduos se tornam seres sociais (socialização universal), indivíduos adaptados a uma determinada sociedade (socialização histórico-particular), que, nas sociedades de classes, pode ser dividida em socialização genérica (responsabilidades sociais e civis, cidadania, etc.) e diferencial (classe, profissão, etc.)[1]. Na sociedade capitalista, a educação pode ser entendida como socialização em geral (educação não-formal) ou escolarização (educação ou socialização formal ou escolar).

O conceito de modo de educação expressa a forma como o processo de socialização (formal ou não) se concretiza numa determinada sociedade. O modo de educação é uma das formas sociais burguesas no capitalismo. Nas sociedades rudimentares, sem classes, o modo de educação correspondia ao modo de produção rudimentar existente e às formas sociais, sendo que nesse contexto havia homogeneidade cultural e uma divisão simples do trabalho, não gerando classes ou grupos radicalmente distintos. Nas sociedades classistas, no entanto, há um processo de maior separação entre modo de produção e formas sociais, com a ampliação da divisão social do trabalho, bem como muda o caráter da socialização, que passa a ser envolvida nas relações de exploração e dominação, na luta de classes. A socialização deixa de ser homogênea e vai se tornando heterogênea, bem como começa a existir corporações especializadas nesse processo (como a academia de Platão ou o liceu, de Aristóteles). O processo de socialização se torna diferencial para as distintas classes sociais existentes. Em síntese, em cada sociedade emerge um modo específico de educação que corresponde ao modo de produção dominante e formas sociais correspondentes.

Na sociedade moderna, emerge o modo capitalista de educação, uma forma específica ligada ao modo de produção capitalista e formas sociais burguesas. Para compreender a educação na sociedade burguesa é fundamental analisar o modo capitalista de educação e este é o objetivo do presente artigo. Nesse sentido, a nossa análise expressa uma abordagem marxista do modo de educação na sociedade burguesa. Para tanto, iniciaremos o processo analítico pela socialização não formal, ou seja, a formação social do indivíduo, que convive com a educação escolar, parte integrante dessa formação. Num segundo momento, analisaremos a educação formal e seus processos. Por fim, explicitaremos brevemente algumas das principais críticas, formas de recusa e alternativa ao modo capitalista de educação.

O Modo Capitalista de Educação I: A formação social do indivíduo

O modo de produção capitalista é fundado na extração de mais-valor via exploração do proletariado. As relações de produção capitalistas demonstram o processo de exploração e dominação e de resistência e luta do proletariado no plano da produção de bens materiais e isso tem ressonância no restante da sociedade. Para garantir sua reprodução, o modo de produção capitalista necessita garantir a manutenção das relações de produção capitalistas e a acumulação de capital, sua consequência direta. Para isso engendra um conjunto de formas sociais (“superestrutura”) que visa sua reprodução, através do aparato estatal (incluindo seus aparatos derivados, como o jurídico, cultural, etc.), as formas sociais estatais, e as instituições da sociedade civil, as formas sociais privadas.

No caso específico da socialização não formal, é fundamental para entender o modo capitalista de educação analisar a sociabilidade, ou seja, o processo social que engendra uma determinada forma de educação não formal. A sociabilidade é o conjunto das relações sociais instituídas pelo modo de produção capitalista que formam a vida cotidiana das pessoas e possui três elementos fundamentais: mercantilização, burocratização e competição social. Esses elementos já foram abordados em outras obras e por isso nos limitaremos a um quadro bastante sintético do significado de cada um destes elementos, que existem intimamente relacionados.

A mercantilização. É o processo no qual o modo de produção capitalista se espalha pela sociedade diretamente. A produção de mais-valor, ou seja, a exploração e o lucro oriundo dela, é a razão de ser da produção capitalista de mercadorias. O modo de produção capitalista vai sendo instaurado e começa a produzir determinadas mercadorias (roupas, por exemplo) e com seu desenvolvimento vai ampliando a produção de mercadorias, englobando aquilo que era autoprodução da população ou de outros modos de produção (anteriores ou simultâneos, como o feudal, no primeiro caso, camponês e artesão, no segundo), e assim sucessivamente. Esse processo, por sua vez, gera uma imposição do valor de troca e uso do dinheiro, sendo tudo passa a se submeter ao reino da mercadoria, incluindo as formas sociais.

O Estado capitalista, por exemplo, onde alguns ideólogos enxergam lugar do não-valor, está totalmente submetido ao processo de mercantilização. Ele deve comprar e adquirir mercadorias para existir efetivamente, pois nada escapa do totalitarismo mercantil. Se o Estado capitalista quer construir uma escola, terá que comprar o terreno, mandar construir o prédio (que custará dinheiro), comprar móveis, contratar força de trabalho (professores, funcionários, etc.), ou seja, precisará de milhares de mercadorias para tal, e para tanto precisará de dinheiro. Este, por sua vez, não brota das árvores e nem é impresso no Banco Central ao bel prazer do aparato estatal. Ele extrai sua renda principalmente dos impostos e, secundariamente, do lucro das empresas estatais, quando estas existem, e de taxas e outras formas secundárias. Os impostos tem sua fonte no mais-valor global, o conjunto de mais-valor produzido no conjunto da sociedade e que depois é repartido na sociedade através das relações de distribuição capitalistas. O Estado drena uma parte desse mais-valor, produto da exploração do proletariado, para existir e realizar suas políticas.

Desta forma, a mercantilização ocorre a partir das relações de produção capitalistas que acabam tomando conta da produção em geral e de suas relações de distribuição, que forçam todos a comprarem mercadorias. Além de realizar esse processo de transformação da produção de bens materiais em produção de mercadorias, o modo de produção capitalista vai paulatinamente tomando conta da produção cultural e de serviços, transformando a cultura e os serviços em mercancias[2].  Esse processo de consumação de mercancias vai se generalizando e tudo se torna mercadoria ou mercancia. Isso gera a imposição do cálculo mercantil, pois tudo passa a ser calculado tendo em vista a relação entre gastos e recursos, desde a “economia doméstica” e os indivíduos, até a formação estatal. É preciso garantir que a renda seja superior às despesas, ou então cair no endividamento.

A mercantilização gera um efeito sobre a cultura e mentalidade, pois além de tudo ser transformado em mercadoria, o dinheiro se tornar necessário para a sobrevivência e consumo geral, etc., o indivíduo só existe se tiver dinheiro para consumir, o ter passa a predominar sobre o ser. Assim, a mercantilização passa a ser um componente da mentalidade burguesa, dominante nessa sociedade, instituindo os seus valores fundamentais (ter, dinheiro, riqueza, etc.), sentimentos mais profundos (inveja, ciúme, etc.), concepções mais arraigadas (o ser humano como egoísta por natureza, a naturalização e coisificação do dinheiro, mercado, etc.).

A burocratização. É o processo no qual as necessidades do capitalismo vai gerando uma classe auxiliar da burguesia, a burocracia, como setor dirigente do aparato estatal e das empresas capitalistas, num primeiro momento, e num segundo momento, na sociedade civil, gerando a “sociedade civil organizada”, com novas organizações burocráticas, como partidos, sindicatos, igrejas, etc. A burocratização acompanha a mercantilização, pois esta exige a produção, distribuição e divulgação de mercadorias e mercancias e nesse processo exige a existência de dirigentes em cada empresa e instituição responsável por isso. A mercantilização da educação e do lazer gera sua concomitante burocratização.

A burocracia estatal tem a responsabilidade de garantir a reprodução das relações de produção capitalistas e, ao mesmo tempo, sua própria reprodução ampliada, apesar disso entrar em contradição em algumas oportunidades. A reprodução ampliada da burocracia estatal é complementada com a reprodução ampliada da burocracia civil, cada vez mais numerosa. A burocracia empresarial é fundamental para a efetivação do processo de exploração e valorização do capital e/ou da aquisição de lucro. As burocracias da sociedade civil ou das instituições estatais possui a responsabilidade de controlar diversos processos sociais (educação, cultura, lazer, esporte, política-institucional, etc.) visando garantir a sua reprodução e o processo de reprodução das relações de produção capitalistas.

Esse processo de burocratização crescente das relações sociais gera também uma mutação cultural, promovendo o surgimento de uma mentalidade burocrática. O dirigismo, a busca de controle total, o autoritarismo, o abuso do poder, são apenas aspectos superficiais desse processo. A mentalidade burocrática naturaliza, eterniza e justifica a necessidade de dirigentes, do Estado, de organizações burocráticas. Torna-se um componente da mentalidade burguesa, gerando valores fundamentais (o poder, o controle, a direção, a ordem, a disciplina, etc.), sentimentos profundos (sentimento de superioridade, inveja, etc.), concepções arraigadas (necessidade de “gerência científica”, de normas e regulamentos, formalismo e tecnicismo, etc.).

A competição social. Esse é o processo no qual ocorre uma ampla concorrência entre os trabalhadores em geral, capitalistas, burocratas, etc. A competição social ocorre nas empresas capitalistas, entre os trabalhadores para ter acesso ao trabalho ou para ter melhor posição interna, entre os burocratas pela ascensão nos cargos e entre os capitalistas pelo mercado consumidor, desenvolvimento tecnológico, etc. Isso se reproduz por toda a sociedade, na educação, nas organizações burocráticas em geral, etc. O vestibular, as eleições, os esportes, entre outros, são exemplos de competição social. No caso dos esportes, a competição esportiva ocorre simultaneamente com a competição social. Os jogadores de um time de futebol estão competindo com os jogadores do time adversário, não apenas pelo resultado da partida e campeonato, mas também pelo convite para ir para time maior ou para o exterior, ser convocado para a seleção nacional, além de estar competindo com os próprios colegas, pelos mesmos motivos e é o que explica a existência dos jogadores chamados de “fominha”, pois não passam a bola para outros melhor posicionados para reservar a glória do gol para si mesmo.

A luta pela ascensão social, poder, riqueza, fama, sucesso, status, etc., se torna constante e presente na vida cotidiana. A competição está presente não apenas nas relações de trabalho, nas instituições, no local de estudo, no consumo, mas também nas relações amorosas, familiares, lúdicas, etc. Isso tudo está relacionado com o processo de mercantilização (que gera, inclusive, um dos mais cobiçados objetos de competição: a busca da riqueza) e burocratização (gerando o outro objeto mais cobiçado: o poder).

Esse processo também contribui com mais um elemento da mentalidade burguesa: a mentalidade competitiva. Os indivíduos se tornam competitivos, querem competir e ganhar em tudo e a todo o momento. Nesse processo, que perde a competição social maior, parte para ser vitorioso e ganhar competição menor, mesmo que seja a preferência musical “superior” ou o time campeão, ou qualidades A, B ou C, ou mesmo atributos físicos, gerando uma das motivações do racismo (VIANA, 2009), para citar apenas um exemplo. As pesquisas sociológicas de Mannheim (1972), Bourdieu (1984), entre outros, comprovam isso no próprio interior da produção intelectual.

A mentalidade competitiva tende a reproduzir os mesmos valores, sentimentos e concepções, da mentalidade mercantil e burocrática. Por isso, ela reforça determinados valores mercantis e burocráticos (dinheiro, ter, poder, inveja, etc.), com a diferença de que pode usar outros atributos (a beleza, de acordo com o contexto ou a ideologia, ou a cultura, em outro) para compensar a derrota no plano burocrático e mercantil ou pode gerar desvalor e crítica dos valores vinculados à mercantilização e burocratização (por exemplo, alguém que quer se dar bem na carreira acadêmica e discorda das críticas endereçadas a ela e tão logo se vê prejudicado em algum momento de sua competição, começa a concordar e reproduzir o discurso que antes negava).

Assim, o modo de produção capitalista gera uma sociabilidade e essa é fundamental na formação social do indivíduo. A socialização não-formal é constituída basicamente nesse processo, sendo que, para os indivíduos concretos, existem determinadas relações que são mais importantes e decisivas, tal como a família[3]. Contudo, a família é, também, um produto social e da sociabilidade capitalista, e, por isso, tende a reproduzir, no seu interior, mas possui especificidade e a união familiar, principalmente os laços afetivos (o que diminui o grau de competição e aumenta o de solidariedade, mesmo que grupal), geram uma diferenciação, dependendo da família[4].

A questão mais importante é compreender que existe uma sociabilidade dominante e esta é a principal forma de socialização na sociedade capitalista e que isso é involuntário e não consciente, mas que age da mesma forma, e aos ser naturalizado pelas representações cotidianas e ideologias, se torna ainda mais poderosa. Algumas famílias, grupos, etc., tentam constituir uma sociabilidade alternativa, e algumas conseguem em grau maior ou menor, mas é uma sociabilidade marginal e seria ilusória pensar em torná-la dominante sem a transformação do modo de produção capitalista, sua determinação fundamental, apenas partindo para a vontade e proposta de valores e concepções diferentes.

O Modo Capitalista de Educação II: A educação formal

A educação formal, ou escolar, difere da socialização informal justamente por sua formalidade e concretização em instituições escolares. As escolas, instituições da sociedade moderna, são organizações burocráticas controladas pelo Estado e cujo objetivo é reproduzir as relações de produção capitalistas. As escolas possuem como objetivo a socialização e ressocialização formal das crianças e jovens, visando adequá-las à sociedade capitalista.

A sociedade capitalista, ao contrário das anteriores, exige, mesmo por parte das classes exploradas, um certo desenvolvimento do saber para que se forme a força de trabalho necessária para o capital. As escolas voltadas para a educação formal de crianças fornecem elementos básicos, tanto para o trabalho mais rudimentar e menos exigente, certos setores que exigem baixa qualificação e formação (alfabetização, etc., suficientes para exercício profissional) quanto para a futura ressocialização, na qual se forma força de trabalho especializada.

Além disso, elas buscam, intencionalmente, repassar os valores dominantes, legitimar a sociedade capitalista e o aparato estatal. Seja sob a forma de “moral e civismo”, ou da “cidadania”, o objetivo é legitimar e justificar a sociedade existente, buscando criar, através de valores, concepções e sentimentos (patriotismo, religiosidade, cidadania, moral, bons costumes, ciência, etc.) uma adesão à mesma. No processo de ressocialização formal, comandado pelo ensino técnico ou universitário, o que ocorre é um aprofundamento visando a formação da força de trabalho especializada e para as responsabilidades sociais (adesão ao capitalismo via cidadania, participação eleitoral, unilateralidade através da especialização crescente, etc.).

As instituições escolares são organizações burocráticas, reproduzindo a existência de dirigentes e dirigidos, uma estrutura hierárquica entre os dirigentes e formas de autolegitimação (legislação, regimentos, etc.) e de controle. Elas exercem uma violência disciplinar sobre os estudantes ao lado da violência cultural (imposição do saber escolar e um conjunto de concepções ao lado de valores), o que gera descontentamento e resistência, gerando mais material para revolta e para repressão, num círculo vicioso. A burocratização da escola é reforçada pela mentalidade burocrática dos seus dirigentes e da sociedade como um todo.

As instituições escolares também estão perpassadas pelo processo de mercantilização. As instituições escolares privadas visam lucro e vendem a mercancia educação, submetidas ao cálculo mercantil e um conjunto de relações sociais mercantilizadas (relação entre proprietários e trabalhadores assalariados, proprietários e alunos – pagamento de mensalidade, etc.). As instituições escolares estatais não fogem da regra e a diferença no processo de mercantilização é de forma e grau. No aspecto formal, a diferença está em quem paga pela mercancia educação e, no que se refere ao grau, é que derivado disso e da não necessidade de lucro, então é menos intenso. Esse processo também atinge a educação escolar, pois não somente isso é legitimado e valorado no discurso como é praticado e os alunos são inseridos na necessidade de aquisição de dinheiro para estudos.
As instituições escolares são perpassadas pela competição social em diversos níveis. Entre os proprietários há uma intensa competição pela atração de alunos (onde os outdoors e propagandas sobre a suposta “qualidade”, seus “resultados” – como “aprovação em vestibular ou ENEM”, etc.), os professores estão competindo pelas vagas e por melhores lugares, status, etc.; os alunos por melhores notas, por classificação (vestibular, ENEM, mestrado, doutorado, etc.).

Em síntese, as instituições escolares estão submetidas ao processo de burocratização, mercantilização e competição. Isso se reproduz no processo de ensino e nas práticas cotidianas no seu interior e para se inserir nelas. Desta forma, a educação escolar também reproduz a sociabilidade capitalista e a mentalidade burguesa. No entanto, ela faz isso na própria prática específica da educação escolar, o processo educacional formal. A aula e a sala de aula são manifestações de uma sociabilidade na qual há uma hierarquia entre o professor e os alunos fundada não no saber mais desenvolvido do primeiro e/ou em sua experiência maior, mas nos regimentos, valores, legitimação, relação de poder (tanto explícita tal como nos regimentos, quanto que implícito no sistemas de exames e controle de presença), exigências formais e técnicas. A organização da sala de aula e a supervaloração das aulas ou sua quantidade apenas revela uma mentalidade burocrática. O aulismo, formalismo, o tecnicismo, unilateralismo, são predominantes, pois o objetivo das instituições escolares não é o desenvolvimento do saber, mas o seu controle. As pedagogias tradicionais e também as supostamente “inovadoras” trazem em si esse processo de controle do saber como sua essência e objetivo fundamental[5].

O processo de controle do saber realizada pelas instituições escolares tem sua origem no aparato estatal, com sua legislação educacional, bem como com sua “fiscalização”, etc.[6] Isso é apenas parte do processo de controle estatal sobre a educação. Nas instituições privadas, há também financiamento, convênios, doação de bolsas, etc. Nas instituições estatais é ainda maior, pois há a interferência direta na burocracia escolar, exigências específicas, verbas e processos de definição de financiamento de pesquisa, bolsas, merenda, etc.

As grades curriculares são determinadas, no seu nível mais geral, pelo aparato estatal, e depois vão ganhando forma que segue o modelo geral imposto e assim ganham a aparência de ser produto dos professores (com participação mínima dos estudantes). O conteúdo ministrado tem essa determinação fundamental e vai ganhando contornos e outras determinações, embora geralmente no interior de um processo burocrático e hierárquico. A autonomia dos professores, para o bem ou para o mal, é drasticamente reduzida. Em certas instituições escolares privadas há câmeras filmando até na sala de aula, e nas estatais existem câmeras nos corredores. Os recursos tecnológicos e pedagógicos utilizados dependem dos recursos financeiros disponíveis e das burocracias e suas prioridades. Isso varia de acordo com o nível do ensino, se é estatal ou particular, região, país, etc.

Em conclusão, podemos dizer que a educação escolar reproduz a socialização informal, reforçando a sociabilidade capitalista e a mentalidade burguesa. Há um reforço recíproco entre socialização informal e educação escolar, pois, no fundo, a escola reforça e reproduz o processo de formação social do indivíduo fora dos seus muros. Nesse processo, além do reforço é possível e geralmente há contradição. A contradição ocorre geralmente entre os indivíduos (crianças e jovens) das classes exploradas e escola. As crianças e jovens das classes privilegiadas também entram em confronto com a escola, mas sob forma distinta. Trataremos disso adiante. No entanto, é necessário aqui enfatizar que a educação escolar reforça a socialização informal, mas que também entra em confronto com ela. A educação se distingue da socialização informal por ser relativamente homogênea (a forma do ensino, a grade curricular, a organização burocrática), enquanto que a socialização informal é heterogênea. Apesar de estar submetida à sociabilidade capitalista e mentalidade burguesa, ela possui formas como realiza isso e nas classes exploradas se constitui outros valores, sentimentos, concepções, costumes, ethos, que, em que pese não ser algo radicalmente distinto, mostra uma diferença que entra em contradição com a escolarização.
Esse processo foi apresentando, apesar das limitações dos autores, por Bourdieu e Passeron (1982), bem como por Madam Sarup (1980), apesar de enfatizarem o saber escolar (“arbitrário cultural” ou “conhecimento escolar”), mostrando o problema das classes e das suas lutas no interior da escola, um prolongamento da luta fora das escolas, sem dúvida, sem usar essas palavras. Assim, podemos dizer que há uma unidade e reforço recíproco entre socialização informal e educação escolar, bem como uma diferença e oposição em alguns casos. De qualquer forma, o caráter burocrático da escola tende a gerar resistências não apenas por parte dos indivíduos oriundas das classes exploradas, como mostraremos a seguir.

O Modo Capitalista de Educação III:
Crítica, Recusa e Alternativas

O modo de educação capitalista também foi alvo de críticas, recusas e busca de alternativas. O volume desse processo é tão grande e variado que seriam necessárias várias obras para realizar um apanhado geral desse processo. Por isso, o que apresentamos aqui é apenas uma parte desse processo e encerramos com a proposta de ação possível no atual contexto no sentido de chegar á transformação que permita a superação do modo de educação capitalista.

O modo de educação capitalista recebeu inúmeras críticas desde o seu surgimento. No plano da socialização informal, desde os socialistas utópicos, passando pelo anarquismo até chegar ao marxismo, a sociabilidade e mentalidade burguesas foram questionadas, com maior ou menor radicalidade ou profundidade, mas sempre esteve presente no chamado “movimento socialista”. Um papel de destaque, nesse processo, foi desenvolvido por Marx, apesar de não ter dedicado nenhuma pesquisa específica sobre a questão educacional (VIANA, 2004), mas não só apresentou as bases para uma crítica da sociabilidade capitalista e da mentalidade burguesa (elementos fundamentais tanto no que se refere à socialização informal quando a educação formal) e do conjunto das relações sociais capitalistas, como em várias oportunidades realizou observações críticas sobre a formação escolar (MARX e ENGELS, 1992). Além disso, realizaram apontamentos sobre a necessidade de mudanças na educação no capitalismo e sua nova constituição no pós-capitalismo (MARX e ENGELS, 1992; VIANA, 2004).

Diversos outros pensadores focalizaram a questão da socialização informal (geralmente de forma acrítica, o que deixamos de lado no presente texto), bem como da educação escolar, numa perspectiva crítica. Além dos reprodutivistas (Bourdieu, Althusser, etc.), de supostos “marxistas”, chegando até Ivan Illich (1979), além dos anarquistas e marxistas autênticos, como Otto Rühle (1946) e Maurício Tragtenberg (1990), temos um grande número de obras e análises críticas do fenômeno educacional no capitalismo, que varia em profundidade, bem como algumas abordam aspectos específicos e não a totalidade do fenômeno. O que interessa, no entanto, é que uma volumosa análise crítica da educação capitalista foi produzida e que ela representa uma contribuição para sua compreensão e, ao mesmo tempo, para a elaboração de alternativas. Essa análise crítica da educação capitalista é fundamental para sua superação e constituição de um novo modo de educação, bem como para observar seus vínculos com a reprodução do capitalismo e a luta contra o capital.

A recusa da educação capitalista ocorre cotidianamente. Os estudantes são os principais agentes desse processo. Eles recusam através da alergia à escola, ou seja, através da contraviolência (apatia) ou da violência reativa (conflitos, embates individuais, etc.)[7]. Esse é um estágio de lutas cotidianas, espontâneas, que podem gerar um processo organizativo, gerando ou lutas institucionais, que subordinam os objetivos estritamente estudantis à dinâmica da competição interna pelo poder e objetivos ligados a interesses de outras instituições, especialmente partidos políticos (VIANA, 2015a). Num momento seguinte, com o avanço da luta estudantil, ocorrem as lutas autônomas, nas quais os estudantes se livram das organizações burocráticas e institucionalização e radicalizam suas exigências. O estágio seguinte, caso avance para isso, é o das lutas autogestionárias, nas quais o objetivo da autogestão se torna fundamental e sob forma autogestionária. Aqui temos uma negação mais ampla e profunda do modo de educação capitalista e tem como grande exemplo a rebelião estudantil de Maio de 1968 em Paris, quando a recusa das universidades e da hegemonia burguesa foi acompanhada pelo projeto autogestionário não somente para a escola/universidade, mas para o conjunto da sociedade.

A crítica e a recusa são elementos fundamentais para a existência de projetos alternativos. Uma educação alternativa já existe marginalmente na sociedade capitalista como socialização informal, como colocamos anteriormente. Esse processo de socialização informal ocorre em determinadas famílias proletárias[8] e de outras classes exploradas e são marcadas pela informalidade, comunicação simétrica[9], maior grau de afetividade e solidariedade, multilateralidade, etc. No entanto, ele é perpassado pelo modo de educação capitalista, tanto pela sociabilidade e mentalidade dominantes que atuam, só que em menor grau, e pela educação escolar (que interfere no processo de socialização informal). Alguns grupos alternativos (grupos revolucionários) também buscam formas diferenciadas de socialização, mas geralmente já possuem, anteriormente, um processo de formação. Nos momentos de ascensão das lutas operárias, como a greve, acabam gerando uma sociabilidade alternativa, através da solidariedade (PANNEKOEK, 1977) e união (MARX, 1986; MARX e ENGELS, 1988), o que tem impacto no processo de socialização informal das famílias e pessoas próximas, atingindo, por conseguinte, crianças e jovens. O mesmo ocorre quando as lutas estudantis e de outros setores avançam, abrindo espaço para nova sociabilidade e mentalidade, e, ao mesmo tempo, promovendo sua difusão pela sociedade, gerando uma outra socialização informal.

No plano da educação escolar emerge novas concepções pedagógicas que buscam uma nova forma de realizar o processo de ensino. Não seria possível citar todas as propostas pedagógicas[10] constituídas nesse contexto, além das citadas anteriormente, mas podemos citar mais algumas: Pistrak, Francisco Ferrer, Celestin Freinet, Georges Lapassade, René Lourau, etc. Nesse amplo leque, que muitas vezes possuem elementos em comum e elementos diferenciadores, há toda uma contribuição para se pensar a educação numa sociedade autogerida, pós-capitalista.

Não poderemos comentar essas e outras concepções e por isso nos limitaremos a apontar o que consideramos fundamental a partir dessas contribuições para se pensar uma alternativa ao modo de educação capitalista. O modo de educação capitalista só pode ser efetiva e totalmente superado com a superação da sociedade capitalista, ou seja, da base real em que ela existe e que lhe determina. Um modo de educação totalmente não-capitalista é algo quase impossível e, dentro das instituições escolares, é praticamente impossível. Numa sociedade autogerida, o que ocorre é a autogestão pedagógica, ou seja, a autoformação, individual e coletiva, do ser humano onilateral. Na sociedade capitalista, o que pode existir, nas instituições escolares, é a pedagogia autogestionária e em outros espaços, nos quais a liberdade é efetiva, a autogestão pedagógica, bem como individualmente.

A autogestão pedagógica é impossível nas escolas por causa do processo presente de burocratização, mercantilização e competição social, tanto nas instituições escolares (e o controle que ela exerce, etc.) quanto pela existente no resto da sociedade e que atinge os indivíduos, os estudantes (VIANA, 2011b). A autogestão formal proposta por Lapassade (1989), Lourau (1975), Lobrot (1973) e outros adeptos da pedagogia institucional é problemática, pois muda a forma, supostamente “livre” (pois isso, nas escolas, não ocorre efetivamente, apenas parcialmente), sendo uma caricatura de autogestão pedagógica, e principalmente porque não muda o conteúdo, pois o que é ensinado ou é definido pelas instituições escolares (e elas possuem muitos meios para se garantir isso e é isso que a maioria dos estudantes quer, pois é o que permitiria sua inserção no mercado de trabalho, ascensão social, etc., ou seja, eles estão submetidos à mentalidade burguesa e isso entra em concordância com o conteúdo definido pela instituição) ou pelos alunos, sendo que geralmente estes solicitam o que já é o conteúdo institucional, devido seus valores ou por falta de informações e acesso a outras concepções.

A autogestão pedagógica é algo para a sociedade futura ou que ocorre marginalmente através da autoformação individual ou de pequenos grupos. Ela, como em qualquer caso, encontra fortes obstáculos e dificuldades, desde o tempo, a estrutura, a questão do local de realização, etc. No caso individual isso pode ocorrer em menor grau, dependendo de quem é o indivíduo e suas condições de vida e luta. Sob a forma coletiva, ela tem a vantagem de superar elementos da sociabilidade capitalista e da mentalidade burguesa no interior do próprio grupo. Essa é uma forma que, inclusive, pode existir e sobreviver de forma paralela com a educação escolar, bem como se formada a partir de grupos de estudos produzidos pelos próprios estudantes. Em sua fase mais avançada, pode tornar-se não apenas grupos de estudos, mas também de ação, no sentido de ir além da preocupação com o saber e realizar sua fusão com a preocupação com a transformação social (na escola, sociedade, etc.), sendo que, concretamente, pode ocorrer o processo inverso, um grupo de ação que compreende a necessidade de aprofundamento e desenvolvimento da consciência e por isso busca constituir um grupo de estudos que é sua uma manifestação do mesmo.

A pedagogia autogestionária, por sua vez, sintetiza o conjunto das contribuições críticas e propositivas numa proposta de nova forma de práxis formativa[11]. Ela se distingue da pedagogia institucional (que ilusoriamente pensa que trabalha com autogestão pedagógica) pela relação que ela institui entre forma e conteúdo. A pedagogia institucional propõe uma “autogestão” formal sem preocupação com o conteúdo (que seria definido pelos alunos), enquanto que a pedagogia autogestionária foca no conteúdo, que deve ser crítico (da totalidade da sociedade capitalista e das suas manifestações concretas e específicas) e prospectivo (inseparável da luta pela autogestão social, ou seja, por uma nova sociedade, e dos meios de luta para se contribuir com sua concretização).

O limite de uma mera “autogestão” formal é apenas uma espécie de democratismo que abstrai o que é a instituição escolar e os limites impostos por ela, a existência de uma sociabilidade e mentalidade dominantes, entre diversos outros elementos, que faz com não seja uma autogestão autêntica, pois não define os fins, mas apenas os meios. Os estudantes, sem sua iniciativa e uma formação autônoma e contraditória com a forma dominante apenas reproduziram, sob a forma de participacionismo, os objetivos da escola e da sociedade capitalista. O professor, ao se anular em nome da suposta “autogestão pedagógica”, inexistente, não efetiva uma práxis em sua ação, pois os fins serão definidos por outros (escola, estudantes, etc.). No caso dos estudantes, eles terão um perito para orientar, mas o conteúdo e suas preocupações estão relacionados ao processo de educação escolar e sociedade capitalista. Claro que, dependendo de um conjunto de determinações, é possível maior ou menor efetividade e participação, mas de qualquer forma é uma forma separada de um conteúdo. A autogestão pedagógica é de interesse de quem quer uma transformação radical do conjunto das relações sociais e só tem sentido vinculado ao projeto de autogestão social. Fora disso, é ilusão ou mero democratismo[12].

A pedagogia autogestionária, portanto, foca o conteúdo, mas também deve modificar a forma, pois ela deve se inspirar nas pedagogias que contribuem para uma nova forma de efetivar a autoformação e a crítica das pedagogias tradicionais. Assim, a pedagogia institucional é fundamental, bem como as críticas e propostas marxistas. O conteúdo se manifesta através da critica revolucionária da totalidade do capitalismo e do projeto autogestionário (autogestão pedagógica e autogestão social) e a forma pela ruptura com as formas tradicionais do processo educacional, fundada nos prêmios e castigos, sistema de exames, autoritarismo, controle de presença, especialização (unilateralidade), competição, etc. e a instituição de novas formas de ação no interior das instituições escolares, gerando uma práxis formativa fundada no foco no conteúdo a partir de uma reflexão crítica, bem como em formas de relação entre professor e aluno diferenciada, enfatizando a aprendizagem ao invés das notas, buscando formas de superar os limites impostos pelas burocracias, solidariedade, multilateralidade[13], etc.

Alguns elementos nesse sentido podem ser resgatados da obra de Celéstin Freinet (LOURAU, 1966), como, por exemplo, o Jornal Escolar, para a educação básica ou outras formas de produção/divulgação textual, para o caso do ensino superior. Essa produção da escrita é fundamental para o desenvolvimento da consciência dos indivíduos, pois ela permite uma maior coerência e estruturação do pensamento e produção de um saber mais refletido e aprofundado. Esse é apenas um exemplo de iniciativas que podem e devem ser desenvolvidas numa perspectiva marxista e um pensador que pode contribuir com o desenvolvimento de uma pedagogia autogestionária.


Considerações finais

O modo de educação capitalista é generalizado na sociedade capitalista, tanto em sua forma espontânea e cotidiana (socialização informal), quanto em sua forma direcionada e sistemática (educação formal), o que gera críticas, recusas e projetos alternativos. O nosso objetivo aqui foi apenas apresentar um quadro geral, no sentido de incentivar um processo de negação e superação, tanto no modo de educação como no conjunto da sociedade, elementos inter-relacionados e que se reforçam reciprocamente. Através da proposta de uma “ação possível” (autogestão pedagógica no plano da vida extraescolar e pedagogia autogestionária no interior das instituições escolares) se busca pensar em fortalecimento de uma tendência geral de transformação educacional e geral da sociedade.

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[1] Para maior aprofundamento e detalhamento a respeito do processo de socialização, cf. Viana (2011a; 2015).

[2] As mercancias são “forma mercadoria”, possuem sua forma (valor de uso e valor de troca), mas não sua substância (bens materiais produzidas no processo de produção e reprodução capitalista, ou seja, relações de produção e relações de distribuição capitalistas). Por isso seu valor de uso é imaterial e seu valor de troca artificial (cf. VIANA, 2016).

[3] “Os membros da sociedade e/ou as várias classes ou grupos sociais dentro dela tem de se comportar de modo a funcionar no sentido exigido pelo sistema social. É função do caráter social modelar as energias dos membros da sociedade de modo que seu comportamento não seja questão de decisão consciente sobre a obediência ou não ao padrão social, e sim um desejo de agir tal como tem de agir, e ao mesmo tempo encontrem satisfação em agir de acordo com as exigências de sua determinada cultura” (FROMM, 1979, p. 78).

[4] As famílias não são iguais. Obviamente que as famílias de classes distintas são diferentes. A frieza é mais presente na classe burguesa e nas suas classes auxiliares, enquanto que a afetividade tende a ser maior nas classes exploradas.

[5] E isso ocorre mesmo quando “abre mão” de impor um determinado saber, pois deixa aflorar as concepções burguesas presentes na sociedade e reproduzidas pelos alunos e os reforça, tal como no caso do construtivismo.

[6] É claro que a autonomia das instituições escolares não é muito melhor se for de sua burocracia ou proprietários. A legislação educacional estatal, como é mais planejada, tende a ser mais eficaz e, ao lado disso, mais racional e coerente. Uma instituição escolar privada vai adotar aquilo que seus proprietários definirem, tendo como critério lucro maior ou menor reclamação dos alunos, o que não é nenhuma alternativa. A questão, analisando no interior da sociedade capitalista, é, por um lado, aumentar a autonomia das instituições escolares, mas tal autonomia deve ser exercida por professores e alunos, e sua fiscalização deve ser pela sociedade civil. Afinal, mesmo no caso das instituições privadas, a razão de sua existência é a função social de produzir saber, logo, as “contas” devem ser prestadas para a sociedade civil como população auto-organizada, tendo poder de fiscalização, e cabe aos agentes reais da produção do saber, professores e alunos, decidir sobre as questões da formação, pois além de tudo são os que são mais atingidos e os que possuem maior saber acumulado sobre isso, o que não é o caso das burocracias e capitalistas.

[7] Esse processo de apatia, que demonstra desinteresse, não-aprendizagem, etc., revela uma contraviolência (VIANA, 2002) e não uma “violência banal” (MAFFESOLI, 1981; GUIMARAES, 1996), pois entendemos que violência é uma relação social de imposição, na qual indivíduos ou grupos, impõem, contra a vontade e natureza de outros (VIANA, 1999).

[8] É preciso esclarecer que não se trata de todas as famílias proletárias (ou das classes exploradas), pois isso depende de quem são os pais (seu processo de formação anterior), suas condições de vida e outros elementos concretos e processos sociais mais amplos que envolvem as famílias.

[9] A comunicação simétrica é aquela na qual há igualdade na posição entre os indivíduos que se comunicam, se assemelhando ao que Beltrão (1980) denominou “folkcomunicação”. A forma de comunicação dominante na sociedade capitalista é a assimétrica, fundada na desigualdade de posição daqueles que se comunicam (VIANA, 2015b).

[10] Entenda-se, aqui, por pedagogia, uma concepção de como deve ocorrer o processo educacional.

[11] “A pedagogia autogestionária é algo a ser construída e os marxistas, desde Marx, passando por Rühle, e outros com contribuições mais problemáticas, bem como pedagogos independentes, como Freinet e outros, podem ajudar a constituir uma proposta mais desenvolvida” (RODRIGUEZ, 2014, p. 201).

[12] Para uma crítica ao democratismo e sua relação com a autogestão, confira Hollander (2014).

[13] A multilateralidade é um objetivo de acordo com a ação possível dentro do capitalismo, o que colabora com a busca da onilateralidade, que se concretiza na sociedade autogerida (VIANA, 2004).

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