Rádio Germinal

RÁDIO GERMINAL, onde a música não é mercadoria; é crítica, qualidade e utopia. Para iniciar clique em seta e para pausar clique em quadrado. Para acessar a Rádio Germinal, clique aqui.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Questões teóricas e conceituais sobre os Movimentos Sociais



Dados do Livro:

VIANA, Nildo (org). Movimentos Sociais: Questões Teóricas e Conceituais. Goiânia: Edições Redelp, 2016.



Movimentos Sociais: Questões Teóricas e Conceituais é uma coletânea que desenvolve diversas reflexões e análises sobre os movimentos sociais no sentido de permitir o esclarecimento conceitual e teórico dos mesmos. Assim, seja partindo de uma reflexão teórica ou seu vínculo com casos concretos, os artigos tratam de diversas questões relativas aos movimentos sociais, como a questão de sua distinção em relação a protestos e manifestações, o significado da hegemonia e utopia no seu interior, bem como análises dos movimentos sociais populares e movimentos sociais urbanos, movimento neo-ateísta, MST e Movimento Negro. É uma leitura fundamental para os interessados na temática dos movimentos sociais.


A Coleção Movimentos Sociais, Poder Político e Transformação Social, é uma coedição do NEMOS – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Movimentos Sociais, da Faculdade de Ciências Sociais da UFG (Universidade Federal de Goiás) e Edições Redelp. Ela visa publicar reflexões teóricas e análises concretas sobre os temas que são título desta coleção e da linha de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFG.



Veja o Livro:


sábado, 27 de agosto de 2016

A ESFERA CIENTÍFICA NO CINEMA


A ESFERA CIENTÍFICA NO CINEMA
Nildo Viana
Resumo:
A ciência e a produção científica são objetos de representações por elas mesmas e, de forma mais aprofundada, pela sociologia da ciência, filosofia da ciência e história da ciência. O cinema através de suas produções fílmicas também apresentam aspectos da ciência e de sua produção intelectual. O presente artigo objetiva analisar três filmes (A Fúria pela Honra; Óleo de Lorenzo; O Informante) e observar quais representações eles produzem a respeito da ciência, da esfera científica e da produção que esta realiza. A conclusão é que estes filmes revelam a dinâmica dominante na esfera científica, comandada pelo capital, burocracia e Estado, elementos complementares, além da dinâmica interna da mesma.
Palavras-chave: Esfera Científica, Cinema, Competição, Burocracia, Capital.

Resumé:
Des sciences et de la production scientifique sont des représentations d'objets par eux-mêmes et, plus en profondeur, la sociologie de la science, la philosophie de la science et de l'histoire de la science. Le film à travers ses productions filmiques comportent aussi des aspects de la science et de la production intellectuelle. Cet article vise à analyser trois films (Le Fury par honneur, Huile de Lorenzo, L'informateur.) et observer ce qu'ils produisent des représentations sur la science, la sphère scientifique de la production et que cette porte. La conclusion est que ces films révèlent la dynamique dominante dans le domaine scientifique de ses liens avec la capitale, et la bureaucratie d'Etat, étant complémentaires, puisque chaque concentre sur un aspect de ces relations.
Mots-clés: Sphère Scientifique, Cinéma, Competition, Bureaucratie, Capitale.

A ciência e a produção científica possuem diversas características analisadas pelas ciências humanas, especialmente a sociologia da ciência, e a historiografia, bem como também pela filosofia da ciência, entre outras disciplinas. As obras cinematográficas manifestam, muitas vezes, aspectos da ciência e produção científica. Os filmes de ficção científica são bons exemplos, apesar de geralmente ficarem na superficialidade, pelo menos na maioria dos casos. Alguns filmes de terror também mostram[1] questões sobre a ciência, inclusive os seus resultados mais negativos. Há também outras produções além dos filmes de ficção científica e terror que abordam questões relacionadas à ciência. Este é o caso de vários filmes, mas destacamos três para poder extrair uma análise crítica da esfera científica: A Fúria pela Honra, Shi-Zheng Chen (EUA, 2007); O Óleo de Lorenzo, George Miller (EUA, 1993) e O Informante, Michael Mann (EUA, 1999).

Antes de iniciar nossa análise, no entanto, observamos a necessidade de explicar o que significa o conceito de esfera científica. A esfera científica é uma das esferas sociais constituídas na sociedade capitalista, fruto da ampliação da divisão social do trabalho intelectual, e que possui um conjunto de indivíduos que são os seus agentes diretos, os cientistas, instituições, concepções e valores próprios, que possui um modus operandi próprio, entre outros aspectos[2]. Enfim, a esfera científica é um setor da divisão social do trabalho responsável pela produção da ciência e que é composta, principalmente, pelos cientistas.

Esfera científica, competição e academia em A Fúria pela Honra.

O filme A Fúria pela Honra é importante para compreender um aspecto fundamental da esfera científica: a produção científica e suas determinações. Uma das determinações da produção científica é o espaço onde ela se realiza: universidades, institutos de pesquisa, etc. Aqui temos a relação entre esfera científica e instituições. No caso do filme, a produção científica ocorre no interior de uma universidade. O personagem Liu Xing se transfere da China para os Estados Unidos para trabalhar sob a supervisão do renomado cientista Jacob Reiser. A relação entre ambos é de subserviência. O cientista explora o orientando com diversos trabalhos e devido sua competência vai ganhando espaço, ao lado dos demais orientandos, mas com certo destaque.

Assim, Liu Xing tem uma rápida ascensão. Ele tem uma grande ambição, o que está relacionado com as expectativas dos pais e sua vontade de ajudá-los, além dos seus próprios valores e desejo de reconhecimento na esfera científica, o que se percebe pela ideia de ganhar o prêmio Nobel devido a uma grande descoberta que pretende fazer. Um dos pontos fortes do filme é quando o cientista afirma ao estudante que um artigo famoso que ele publicou foi uma crítica ao seu orientador. O estudante retruca dizendo que na China isso não acontece, pois lá é preciso respeitar o orientador, não podendo criticá-lo. O cientista retruca dizendo que nos Estados Unidos ele pode criticar o orientador, inclusive Liu Xing poderia criticá-lo, embora, acrescenta, “ele sempre estaria certo”. Pouco depois, Jacob Reiser, em uma apresentação pública, é questionado pelo seu antecessor e ex-orientador. Reiser fica sem resposta e é salvo pelo orientando, Liu Xing, que meio atrapalhado e com muitos papéis, acaba lhe fornecendo a resposta.  

A partir daí Liu Xing amplia seus estudos e realiza uma descoberta, o que era sua grande ambição e passo necessário para o tão sonhado prêmio Nobel. O problema é que sua tese, embora seja de certa forma uma continuidade da do seu orientador, ia além e realizava uma crítica parcial da mesma. Isso lhe traz inúmeros problemas com as bancas que passa e a publicação de um artigo, sem a “autorização” do seu orientador[3] e possuindo caráter crítico (da mesma forma que ele fez no passado), acaba lhe rendendo uma reprovação através de subterfúgios por parte dos membros da banca, e isso acaba destruindo não somente seus grandes sonhos, mas também lhe fechando as portas e ele acaba como vendedor de cosméticos, uma ironia, já que era especialista em cosmologia, o que uma garota, uma garçonete que ele tinha ilusões de relação amorosa, havia confundido com cosmética no início do filme.

O que o filme mostra, no fundo, são algumas das características fundamentais da produção científica. Nem sempre as melhores ideias são aceitas e muito menos são reconhecidas publicamente. A produção científica é perpassada por relações de poder, aqueles que já possuem fama, posições nas universidades, etc., acabam determinando um processo de reprodução de suas ideias e/ou das concepções estabelecidas. Toda história mostra, também, a competição constante no interior da universidade e dos meios científicos. Nesta competição, há a oposição entre os velhos e os novos, os consagrados/estabelecidos[4] e os iniciantes, professores e estudantes. O conflito entre consagrados e/ou estabelecidos e iniciantes pode ocorrer pelo fato de existir, no último caso, muita pressa em reconhecimento – com ou sem mérito real, entrando em jogo questões psíquicas e outras – ou em destaque real por desenvolvimento de grande potencialidade, sendo que as duas coisas podem ocorrer simultaneamente no mesmo indivíduo, aumentando o potencial de conflito. Este é o caso de Liu Xing. Claro que nem sempre existe tal oposição, pois foi o caso do aluno excepcional que permitiu a superação da subserviência. A disputa entre os antigos professores, que viveram a situação de orientador e orientando, é uma competição de gerações que revelam disputas políticas e por reconhecimento. A nova luta é uma reprodução da antiga, com a diferença de que o cientista Jacob Reiser soube esperar o seu momento, ou seja, após muito tempo e depois de garantir seu espaço institucional é que combateu o seu antigo orientador. Este, no entanto, continua existindo e lhe combatendo. É por isso que Reiser diz que Liu Xing “não é um jogador”, ou seja, não sabe “jogar” e desconhece as regras do jogo, o modus operandi da esfera científica.

Isso revela os valores e interesses dentro da esfera artística. Obviamente que os cientistas, enquanto indivíduos que vivem numa sociedade capitalista, precisam de dinheiro para sobreviver e geralmente estão de acordo com os valores dominantes, que Liu Xing reproduz (veja afirmação de que queria ganhar o premio Nobel e se casar com uma loira americana). Contudo, a luta pelo reconhecimento é um dos elementos mais constantes da esfera científica e isso se faz através de várias formas, e no fundo se dá em torno do que cada um produz. A disputa entre Reiser e Liu Xing expressa justamente a tentativa de um garantir a manutenção do seu reconhecimento com sua descoberta que não poderia ser criticada e o outro tentando produzir algo inovador e original, o que acaba conseguindo, e que é rechaçado por ter entrando em contradição com a descoberta do orientador e, por conseguinte, por causa das relações de poder favorável ao primeiro.

O fracasso de Liu Xing mostra, também, que o compromisso com a verdade não é um valor fundamental na esfera científica, bem como que as ideias hegemônicas nesta esfera não são as melhores e mais fundamentadas. São o resultado de relações de poder num processo competitivo que não ganha o mais apto intelectualmente e sim o mais bem posicionado na esfera científica, com raras exceções. Os alunos de maior sucesso, mais “apto” (no fundo, mais adaptado), em grande parte das vezes, é o subserviente, tal como se percebe no caso do colega de Liu Xing que acabou ganhando a vaga que seria dele caso não houvesse o conflito, ou seja, se ele soubesse ou seguisse “as regras do jogo”, se fosse um jogador, humilde, subserviente.

Assim, a hierarquia acaba sendo uma determinação do processo de quais ideias científicas obterão êxito e reconhecimento e há uma luta constante entre os mais antigos, os consagrados e os estabelecidos, e entre estes e os estudantes, bem como acordos e alianças, tal como se percebe na banca instituída para avaliar o trabalho de Liu Xing. No caso de Liu Xing há uma luta por reconhecimento e ascensão social, o que o envolve numa competição com seu orientador, e com seus colegas, sendo que os demais são cooptados e conseguem se adaptar ao jogo apesar de menos competência.

O diferencial de Liu Xing é sua competência maior, o que lhe colocava em confronto com o orientador e sua persistência em dizer a verdade, não tanto pelo compromisso com a verdade, mas pelo seu interesse de reconhecimento e ascensão social. Em síntese, o filme mostra a competição na academia e na produção científica, demonstrando com a universidade como instituição e seus processos burocráticos e hierárquicos acabam sendo um obstáculo para o desenvolvimento do saber.

Esfera Científica, burocracia e interesses em Óleo de Lorenzo

O filme Óleo do Lorenzo oferece um quadro complementar ao primeiro filme analisado. Neste filme temos o caso de um casal preocupado com uma doença rara que acomete o filho e pai e mãe buscam de todas as formas encontrar uma cura para ela. Eles consultam médicos, organizam um simpósio científico, etc. até que passam, eles mesmos, a estudar medicina e buscar a cura por conta própria.

Nesse processo, baseado em uma história real, alguns elementos são mostrados a respeito da esfera científica. Um deles é o processo burocrático de formação. Apenas os diplomados (os estabelecidos) é que podem exercer medicina e isso é parte de sua formação. É necessário o diploma. Essa oposição é colocada em várias oportunidades no filme, no qual a percepção acrítica da especialização é acompanhada pela desqualificação do saber não especializado e institucionalizado. O saber real é menos importante do que o saber formal representado pelos diplomas, aliás, o que já estava teorizado por Weber (1971) ao destacar sua importância crescente na sociedade moderna e que é expressão do que Marx (1978) chamou “batismo burocrático do saber”, parte do processo de autolegitimação da esfera científica. Isso também reflete a oposição entre intelectuais profissionais, hegemônicos, e intelectuais amadores. Os consagrados e estabelecidos buscam constantemente desqualificar o saber dos amadores e aspirantes, reproduzindo a competição social e ao mesmo tempo realizando sua autolegitimação. Assim, tanto aqueles que são da esfera científica quanto aqueles que são externos e atuam sobre ela, são envolvidos nessa competição e os externos ou aspirantes internos são colocados como “inferiores”, mesmo que possuam uma real competência e contribuição intelectual.

Aqueles que possuem a hegemonia na esfera científica possuem, nessa competição, as instituições ao seu lado, pois seu saber é institucionalizado. Ele é sancionado pela instituição estatal (regularização jurídica) e pelas instituições específicas ligadas à esfera científica (universidade, institutos de pesquisa, associações profissionais). O saber institucionalizado possui não só hegemonia, mas os seus “detentores” possuem o poder de censurar, reprimir, desqualificar, o saber não institucionalizado, tal como ocorre com o casal. E para tanto existem diversos argumentos, que podem ser observados no filme, desde o argumento de autoridade, passando pela necessidade de institucionalização, necessidade de reconhecimento pela esfera científica, etc.

Outro elemento importante da esfera científica apresentada no filme é sua relação com o capital e Estado, o que está intimamente ligado ao ponto anterior. Essa ligação perpassa o processo de formação, principalmente, mas não unicamente, no caso do Estado. Contudo, a interferência estatal na esfera científica não ocorre apenas através da formação, mas também através do financiamento, da regularização jurídica, da regulamentação da profissão, etc. É nesse contexto que novamente emerge a competição e a burocracia na esfera científica. Esse processo não só deixa vagaroso qualquer avanço, como tornam os cientistas extremamente moderados, o que é mais forte em algumas áreas da produção científica. Além disso, devido aos interesses próprios dos cientistas, constituídos na esfera, não se pode ser “ousado” demais e não se deve adotar novas linhas de pensamento ou assumir descobertas e propostas inovadoras. É uma forte tendência da esfera científica, mesmo para os estabelecidos, e até para alguns consagrados, o medo da ousadia, da inovação, da transformação.

Um elemento fundamental do filme é mostrar a força dos interesses e a sua relação com a verdade. Os profissionais da esfera científica possuem interesses próprios e estes limitam suas ações e processos de descoberta, inovação, assimilação de saberes externos, etc. Os interesses próprios constituídos na esfera científica entram em contradição com o compromisso com a verdade.

A ciência submetida ao capital em O Informante

O filme O Informante se passa noutro contexto de produção científica. O filme mostra, baseado em fatos reais, a situação de Jeffrey Wigand, um cientista, doutor em bioquímica, empregado no capital tabaqueiro (ou “indústria do tabaco”), que é despedido e ameaçado por ter informações sigilosas da empresa e, ao mesmo tempo, é procurado por um jornalista, Lowell Bergman, para expor a história na rede de televisão norte-americana CBS. Ao conceder a entrevista, ele sofre as consequências, perda de benefícios advindos da rescisão contratual, ameaça de morte, perseguição, divórcio, e acaba terminando modestamente como professor de química.

O que o filme mostra é a submissão do cientista na situação de trabalhador para empresas privadas. O capital tabaqueiro contrata cientistas, financia pesquisas, e usa isso para seus interesses. O seu interesse é, obviamente, o lucro. Os cientistas, nesse caso, são pagos para produzir aquilo que remete aos seus interesses. No caso do filme, o interesse é afirmar que não sabe que a nicotina possui característica de viciar e outros segredos da produção desta empresa capitalista. Contudo, Wigand revela não apenas que a empresa sabia das características viciantes da nicotina como, ainda, adicionavam aditivos químicos para reforçar tal característica. Obviamente, isso faz parte da necessidade do capital de promover, junto com a produção cada vez maior de suas mercadorias, uma reprodução ampliada do mercado consumidor (VIANA, 2009).

Os cientistas empregados em empresas capitalistas como estas estão totalmente submetidos ao capital. A sua produção científica e suas pesquisas são voltadas para os interesses do capital, mesmo que isso signifique prejudicar, o que geralmente ocorre, a população. É uma situação pior do que a dos cientistas empregados em universidades e outras instituições, pois sua margem de liberdade é muito menor. Isso revela um elemento interessante da esfera científica: ela está submetida ao capital. Isso não só se manifesta no caso das instituições de ensino e pesquisa financiadas e controladas pelo capital, mas também por empresas capitalistas que diretamente usam e financiam pesquisas. Desta forma, a esfera científica possui graus distintos de determinação de sua produção e pesquisa pelo capital, e para aqueles empregados em grandes empresas capitalistas, sua autonomia e liberdade são mínimas. Ou é livre para servir ao capital.

Obviamente que existe a possibilidade de romper com tais empresas. O que o filme mostra, nesse caso, é que devido ao sigilo necessário, a ruptura seria traumática e poderia colocar em risco a própria vida do cientista. As ameaças, a vigilância, se dão simplesmente por sua saída da empresa. Quando resolve expor o que sabia para a imprensa, a pressão aumenta e a vida de Wigand se torna um verdadeiro inferno. Até mesmo o grande capital comunicacional, no caso a CBS, é ameaçado e colocado em questão, o que gera problemas para o jornalista Bergman e toda equipe, sendo este o único que decide comprar a briga. Isso demonstra o poder do capital e como os cientistas (e não só eles, mas também os jornalistas) estão submetidos e podem pagar muito caro por não seguir suas diretrizes.

O processo de pressão começa com os contratos e a burocracia, avança para ameaças e uso do poder financeiro, chega, no momento da denúncia e processo, a vasculhar a vida privada de Wigand, na qual pequenos deslizes e detalhes são utilizados contra ele e ganhando grandes proporções, e as ações do capital tabaqueiro são minimizadas. A ameaça de morte e perseguição à família é apenas um capítulo desse processo de ataque do capital ao cientista. Por conseguinte, há uma grande pressão sobre os cientistas, que ficam acorrentados ao capital. Se o cientista tenta se desvencilhar, sabe que perderá seus privilégios e sua vida tende a ser destruída. Nesse sentido, a esfera científica não possui autonomia absoluta, mas tão-somente relativa, mas isso é variável de acordo com a situação específica e certos setores da esfera científica possuem uma autonomia muito restrita, alguns chegando a não ter autonomia praticamente nenhuma. A proeminência do poder financeiro em certos setores da produção científica é evidente e o filme mostra o seu de tal poder não apenas para financiar, mas para controlar, censurar e reprimir a verdade.

O filme revela, ainda, a dificuldade em dizer a verdade, aspecto já tematizado por Bertolt Brecht, sendo a coragem a primeira delas:
É evidente que o escritor deve dizer a verdade, não a calar nem a abafar, e nada escrever contra ela. É sua obrigação evitar rebaixar-se diante dos poderosos, não enganar os fracos, naturalmente, assim como resistir à tentação do lucro que advém de enganar os fracos. Desagradar aos que tudo possuem equivale a renunciar seja o que for. Renunciar ao salário do seu trabalho equivale por vezes a não poder trabalhar, e recusar ser célebre entre os poderosos é muitas vezes recusar qualquer espécie de celebridade. Para isso precisa-se de coragem (BRECHT, 1982, p. 36).
Assim, O Informante complementa o processo de mostrar o funcionamento da esfera científica e revela sua ligação com o capital e sua reprodução. A saga de Jeffrey Wigand é a que foi seguida por poucos e evitada por milhares, revelando que os discursos sobre a ciência, geralmente produzido pelos próprios cientistas, nem sempre colocam aquilo que deveria colocar a imagem heroica do cientista, que existe e se manifesta em alguns casos, é mais exceção do que a regra, pois sair das regras, além de não ser desejável para quem compartilha os valores dominantes da nossa sociedade, tem consequências prejudiciais para os indivíduos.

Considerações finais

Os filmes aqui comentados são complementares, pois juntos oferecem uma percepção, ainda que longe de ser completa, mais geral da esfera científica. Eles mostram como a esfera científica está envolvida com as instituições (tal como a academia), a burocracia/governos e empresas capitalistas, especialmente manifestando a questão dos interesses constituídos a partir dela pelos cientistas.

Esses interesses, muito longe de beneficiarem o compromisso com a verdade, na maioria dos casos, são obstáculos. O objetivo que predomina na produção científica não é o bem estar da população, nem supostamente a verdade e sim a satisfação de determinados interesses que vão contra ambos. Aqui temos o mesmo caso que na ideologia, um sistema de pensamento ilusório que contribui para o reforço da dominação. Ilusão e dominação se complementam, ao contrário do que afirmam alguns[5]. Esse processo, que ocorre na vida real, na qual os intelectuais, devido suas posições na divisão social do trabalho e na esfera científica mais especificamente, assumem determinados posicionamentos, e assim acabam reproduzindo a sociedade capitalista tanto em suas produções científicas (ideologias, técnicas, tecnologias, etc.), quanto em suas práticas cotidianas.

Os interesses dos consagrados e estabelecidos geralmente é, embora não seja o caso de todos os indivíduos nessa situação, a reprodução da esfera científica e de sua posição privilegiada (quando a tem, quando não a tem, o interesse é adquiri-la)[6], o que pressupõe reproduzir as estruturas burocráticas das instituições e as regras do jogo. Da mesma forma, o interesse do reconhecimento, retorno financeiro, entre outros existem e silenciam milhares de cientistas. Ambos são elementos da sociedade capitalista reforçados por sua sociabilidade e mentalidade dominantes.

Isso é o que ocorre na vida real e é reproduzido no universo ficcional da produção fílmica. Quando se baseiam em “fatos reais” a proximidade, intencional ou não, da equipe de produção, com a realidade, é maior. Estes filmes mostram, através da ficção, a realidade concreta da esfera científica e de seus laços indissolúveis com o capital e o poder.

Nesse sentido, os três filmes aqui apresentados são interessantes para despertar a reflexão crítica sobre a ciência e a esfera científica, com focos diferentes e que, com a sua reunião, possibilitam uma análise mais global desta esfera social e sua dinâmica de funcionamento e envolvido com a sociedade capitalista.

Referências

BOURDIEU Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Difel, 1989.

BOURDIEU, Pierre. O Campo Científico. In: ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu. São Paulo: Ática, 1994.

BRECHT, Bertolt. As Cinco Dificuldades em Dizer a Verdade. In: Sobre a Verdade. Lisboa: Nova Aurora, 1982.

MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Lisboa, Presença, 1978.

ROUANET, Sérgio Paulo. Imaginário e Dominação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

VIANA, Nildo. A Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. Porto Alegre: Zouk, 2007.

VIANA, Nildo. A Esfera Científica. Florianópolis: Bookess, 2014b.

VIANA, Nildo. As Esferas Sociais. Curitiba: CRV, 2014a.

VIANA, Nildo. Cinema e Mensagem. Análise e Assimilação. Porto Alegre: Asterisco, 2012.

VIANA, Nildo. Imaginário e Ideologia: As Ilusões nas Representações Cotidianas e no Pensamento Complexo. Revista Espaço Livre, v. 08, num. 15, jan./jun. de 2013. Acessado em 10 de Junho de 2013. Disponível em: http://revistaespacolivre.net/el15.pdf

VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo, Idéias e Letras, 2009.

WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1971.




[1] Aqui deixamos claro que essa mostração não é a mesma coisa que uma mensagem intencional, mas ao reproduzir acontecimentos reais ou mesmo ficções cuja inspiração tem origem na realidade, se mostra a realidade e, ao fazê-lo, permite que aquele que assiste ao filme possa ir além do que o próprio filme coloca e possibilita sua assimilação no sentido crítico e de apoio para objetivos educacionais, psicanalíticos, políticos, etc. (VIANA, 2012).

[2] Uma definição mais detalhada de esferas sociais (VIANA, 2014a) e esfera científica (VIANA, 2014b) seria útil, mas ultrapassaria nossos objetivos e a consulta à bibliografia citada resolve essa lacuna. Claro está que tal concepção tem semelhanças com a concepção de Bourdieu a respeito do “campo científico” (1994) e sua teoria geral dos campos (BOURDIEU, 1989), ou, ainda, com a ideia de esfera especializada em Weber (1971), mas se distingue de ambas em diversos aspectos, incluindo sua não autonomização demasiada, o reconhecimento de sua relação com a luta de classes, etc.

[3] Coisa que no Brasil, em alguns casos, os orientadores querem controlar, e tem casos em que vão mais longe, inclusive até que disciplinas os orientandos devem cursar em pós-graduação, o que é ainda manifesto no regimento de alguns cursos.

[4] Os consagrados são aqueles que já possuem status e fama, enquanto que os estabelecidos são aqueles que apenas possuem posição institucional (são professores estáveis, por exemplo), inclusive há uma hierarquia entre eles, tal como se pode ver no próprio filme na banca, na qual Jacob Reiser, um consagrado, acaba se impondo aos demais, os estabelecidos, mesmo quando um, numa determinada oportunidade, tenta argumentar em favor do aluno. Claro que nem sempre isso ocorre, pois existem outras determinações que podem constituir processos diferenciados. Esse processo de competição é comum tanto na esfera científica (VIANA, 2014b; BOURDIEU, 1994) quanto na esfera artística (VIANA, 2007).

[5] Rouanet (1978) afirma que se a ideologia é ilusão, não pode servir para a dominação, o que é um equívoco grave (VIANA, 2013), pois o processo de produção de representações ilusórias serve para ocultar a realidade e realizar interesses de reprodução do capitalismo, sendo que, as representações verdadeiras, as teorias, são elementos de contradição e luta. Um elemento interessante a se destacar é que as ideologias e representações cotidianas ilusórias não são apenas falsidade, pois possuem momentos de verdade, o que, no entanto, não abole sua essência de pensamento ilusório. Um pensamento totalmente ilusório não teria eficácia, seria considerado pura “ficção”. No entanto, a ideologia é um sistema de pensamento ilusório, pois predomina nela o que é falso, e embora isso entre em contradição com a realidade, acaba mantendo unidade com determinados interesses, valores, concepções e setores da sociedade, e, ainda, é reforçada pelo fato de que vive no mundo das aparências ou do formalismo, sendo que atingir a verdade exige um esforço teórico mais profundo e assim aparentam expressar o real, quando, na verdade, o deformam.

[6] Essa é uma das diferenças entre nossa análise e a de Bourdieu, cuja concepção mostra uma incompreensão da existência de indivíduos fora ou contra o campo. O nosso foco aqui, no entanto, foi a reprodução da esfera científica e os intelectuais marginais (amadores, engajados) ficaram de fora da análise.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Esfera Científica no Cinema. Revista Alceu. vol. 15, num. 31, jul./dez. de 2015.
http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/alceu%2031%20pp%2089-98.pdf




Alceu 31

A esfera científica no cinema
Por: Nildo Viana


 ResumoA ciência e a produção científica são objetos de representações por elas mesmas e, de forma mais aprofundada, pela sociologia da ciência, filosofia da ciência e história da ciência. O cinema através de suas produções fílmicas também apresentam aspectos da ciência e de suaprodução intelectual. O presente artigo objetiva analisar três filmes (A fúria pela honra; Óleo de Lorenzo; O informante) e observar quais representações eles produzem a respeito da ciência, da esfera científica e da produção que esta realiza. A conclusão é que esses filmes revelam adinâmica dominante do campo científico e suas ligações complementares com o capital e o Estado burocrático, cada um concentrando-se sobre um aspecto destas relações.
Palavras-chave
Esfera científica. Cinema. Competição. Burocracia. Capital.

 Résumé
Des sciences et de la production scientifique sont des représentations d’objets par eux-mêmes et, plus en profondeur, la sociologie de la science, la philosophie de la science et de l’histoirede la science. Le film à travers ses productions filmiques comportent aussi des aspects de la science et de la production intellectuelle. Cet article vise à analyser trois films (Le fury parhonneur, Huile de Lorenzo, L’informateur) et observer ce qu’ils produisent des représentations sur la science, la sphère scientifique de la production et que cette porte. La conclusion est que ces films révèlent la dynamique dominante dans le domaine scientifique de ses liensavec la capitale, et la bureaucratie d’Etat, étant complémentaires, puisque chaque concentre sur un aspect de ces relations.
Mots-clé
Sphère scientifique. Cinéma. Competition. Bureaucratie. Capitale.

A esfera científica no cinema 

Qual o Sentido do Remake?



Qual o Sentido do Remake?


Nildo Viana*


O Remake é considerado geralmente uma nova versão de um filme já feito. Também se define um remake como um filme que reproduz outro, alguns anos depois do original, com novo diretor e atores. Aportuguesando a palavra, podemos dizer que remake é uma refilmagem, isto é, significa filmar de novo um filme, refazê-lo. Mas esta definição prévia não resolve todos os problemas. Entre os problemas que se colocam está a falta de clareza na definição, o que gera outros problemas, tal como entender se determinado filme é um remake, ou refilmagem, ou uma nova produção, bem como o motivo da refilmagem. Além disso, outra questão derivada é como avaliar um remake, se foi bem feito ou não, que depende da definição anterior.

A definição de remake mais adequada não é de uma “nova versão”, pois a palavra “versão” traz justamente a idéia de variação e ponto de vista, o que significa mudança, alteração, ao contrário da permanência, elemento básico de um remake. Assim, a idéia de que o remake é uma refilmagem de um filme já feito é a ideal, mas fica faltando algo, que é o que, do nosso ponto de vista, distingue um remake bem feito de um mal feito. Não se trata de apenas fazer um novo filme com base em outro filme mudando apenas o diretor e os atores, pois isto não teria muito sentido. Neste caso, seria uma cópia mais do que uma refilmagem. No entanto, se houver muitas mudanças, então não será apenas um remake, mas uma nova versão, um novo filme, no qual o primeiro serve (ou nem sequer serve) como inspiração.

A solução deste problema está em considerar o remake como uma refilmagem de um filme já feito que se caracteriza por produzir uma mudança formal e uma reprodução do conteúdo, sem grandes alterações. Assim, os filmes que tomam temáticas de outros filmes anteriores mas realizam grandes mudanças de conteúdo não são refilmagens, ou remakes. Mas qualquer refilmagem apresenta mudanças formais em relação ao filme anterior (além do diretor e dos atores), pois são provocadas seja pelo desenvolvimento tecnológico, pela interpretação dos autores, etc., isto é, com o menos de intencionalidade possível dos produtores e do diretor. Este é um caso de remake, mas mal feito, pois o bom remake é aquele que se justifica pela mudança formal intencional que justifica a refilmagem.

Assim fica mais fácil responder a uma outra questão: qual a razão para se fazer um remake de um filme? Tendo em vista que existe o original, para quê fazer uma refilmagem? Sem dúvida, esta pergunta pode comportar dois tipos de respostas: a primeira é a da análise do filme como mercadoria e a segunda do filme como obra de arte.

O filme como mercadoria é assim visto pela indústria cinematográfica, que produz filmes para adquirir lucro. Do ponto de vista da indústria cinematográfica, um filme deve ser produzido quando ele é lucrativo. Da mesma forma, a razão de se produzir um remake é a mesma, isto é, um remake deve ser feito se for lucrativo. Porém, isto significa que a ênfase não é na mudança formal intencional e sim na produção de mais um filme que dará bilheteria e renderá lucro. Esta é a fonte dos remakes de baixa qualidade e do excesso deles. Recentemente tivemos inúmeras reproduções (remakes ou novas versões), tal como Titanic, Solaris, King Kong (a primeira versão da “série” é de 1933), Guerra dos Mundos, A Profecia, Sob o Domínio do Mal e o recém-lançado Poseidon (baseado em O Destino de Poseidon). Juntando a falta de criatividade com a possibilidade de lucratividade, temos o festival de remakes e novas versões, principalmente oriundas de Holywood.

O filme como obra de arte é diferente, pois sua justificativa se encontra na inovação que o diretor e demais participantes do processo de produção realizam no filme original, enriquecendo-o e justificando sua produção. O objetivo não é apenas o lucro mas a realização de um trabalho artístico bem feito. A primeira justificativa, a da indústria cinematográfica, é meramente mercantil e se sua produção tem apenas este compromisso, temos diversas refilmagens de má qualidade e a segunda, buscando a inovação formal, os remakes de boa qualidade.

Existiram filmes que possuíram vários remakes. Um dos casos mais famosos é o de Drácula. Claro que muitos filmes antecederam a primeira produção de Drácula, de 1931, tal como o filme húngaro A Morte de Drácula, de 1921, mas que tem outra temática e apenas o nome é semelhante. O antecedente mais importante é, sem dúvida, Nosferatu, O Vampiro, filme alemão de F. Murnau, da época de ouro do expressionismo alemão com os seus filmes mudos. A versão alemã é inspirada no romance de Bram Stoker, embora não tenha reconhecido financeiramente os direitos autorais e daí os nomes diferentes, inclusive de Drácula, que é, neste filme, o Conde Orkoff. O primeiro filme, apesar das semelhanças, é o de Tod Browning, de 1931, e estrelando o ator que ficaria sendo um dos mais famosos astros dos filmes de terror, o húngaro Bela Lugosi. Este filme norte-americano não é um remake de Nosferatu, por vários motivos. As semelhanças são mais derivadas do romance que, direta ou indiretamente, inspirou ambos, mas existem diferenças de conteúdo, além das enormes diferenças formais, a começar pela diferença natural entre cinema mudo e cinema sonoro, o estilo norte-americano e o expressionista alemão, entre outras. Além disso, a versão de Tod Browning se inspira mais na peça teatral da época do que no romance, devido aos custos, pois com base no romance a complexidade da história provocaria muitos gastos adicionais.

Porém, simultaneamente foi feito um “remake”, que foi a versão espanhola deste filme, produzida simultaneamente pela produtora Universal Pictures, que alguns consideram melhor do que a versão americana, embora tenham sido filmados juntos, utilizados os mesmos sets de filmagem, e dirigido por George Melhord, para o público de língua espanhola e tendo como ator principal Carlos Villar. Mas fizeram remakes deste filme, tal como a versão de 1979, de Frank Langella. Claro que as sátiras e continuações, tal como Drácula: Morto Mas Feliz (1995) de Mel Brooks e Drácula- O Príncipe das Trevas (1965) de Terence Fisher, que aborda a ressurreição de Drácula, não são remakes. Também o Drácula 2000, de Patrick Lussier, no qual Drácula é Judas, o traidor de Jesus Cristo (...) não é um remake, já que muda totalmente o conteúdo. Já o filme de F. F. Coppola é bastante semelhante ao de Tod Browning, mas se baseia no romance e por isso é mais complexo, possui mais personagens, oferecendo uma trama bem mais complexa.

Outros temas de filmes de terror teriam futuro semelhante, tal como Frankenstein e Lobisomem. Nos limitaremos ao caso de Frankenstein (que é o nome do cientista que gera a criatura que passou a ser conhecida, depois do filme e devido ao título fornecido a ele, também como Frankenstein). A primeira versão de Frankenstein foi a de James Whale, de 1931. Na pele de Frankenstein outro ator famoso por participação em filmes de terror, Boris Karloff. Esta primeira versão, baseada no romance de Mary Shelley, iria também se inspirar em dois filmes expressionistas alemães: O Golem, de Paul Wegener, e O Gabinete do Doutor Caligari, de Murnau. No entanto, a versão de Terence Fisher para A Maldição de Frankenstein de 1957, não é uma refilmagem e sim uma versão diferente, já que o final é diferente, o doutor Victor Frankenstein possui uma personalidade muito mais maligna e a narração deste cientista feita na prisão, bem como sua ida para a  guilhotina, é um tanto quanto estranha em relação ao original. Também um filme com o mesmo nome, tal como Frankenstein, de Martin Scorsese, não é um remake, apesar do título, pois se trata, na verdade, do retorno do Doutor Victor Frankenstein e de Deucalião (o Frankenstein-Criatura) duzentos anos depois. Outro livro produziu versões cinematográficas, tal como o romance de Robert Stevenson, que gerou o filme O Médico e o Monstro, de 1932, dirigido por Rouben Mamoulin, e o seu remake em 1941, dirigido por Robert Louis. Este realmente foi um remake, mas um tanto quanto pobre, já que não houve nenhuma grande inovação formal que justificasse a sua realização.

Mas não se faz remakes e novas versões apenas de filmes de terror. Outro exemplo de remake é O Processo, baseado no livro de Franz Kafka, e dirigido pela primeira vez pelo famoso cineasta Orson Welles, em 1962, e refilmado em 1993 e dirigido por David Hugh Jones, embora tenha tornado o filme mais movimentado, não realizou grandes inovações. Já o filme de Jean Renoir, considerado por alguns como um dos 10 melhores filmes de todos os tempos, A Regra do Jogo, expressão do realismo poético francês e com forte crítica social, foi refilmado por Alan Bridges, com o título O Declínio dos Anos Dourados. Segundo alguns, o filme Assassinato em Gosford Park, de Robert Altman, de 2001, é um “remake disfarçado” deste filme, mas, no fundo, só pode ser considerada uma nova versão, já que as diferenças são consideráveis, pois a crítica social é amenizada e o assassinato, que em A Regra do Jogo ocorre no final e sem possuir desdobramentos maiores, se torna o elemento central nesta versão, transformando um filme de crítica social em um filme policial. Alfred Hitchcock, por sua vez, fez remake de seu próprio filme, O Homem que Sabia Demais, filmado em 1934 e refilmado em 1956, embora não tenha sido o único, pois Tod Browning teria feito o mesmo com seu filme Fora da Lei, filmado originalmente em 1922 e refilmado em 1930. Diversos outros remakes ou tentativas de remakes, bem como “falsos remakes” poderiam ser citados.

O que interessa, no entanto, é compreender que a maior parte dos remakes não são produtos de realização de inovação formal e, por isso, não são de boa qualidade e nem possuem uma justificativa convincente. Na verdade, a grande maioria dos remakes são produtos da indústria cinematográfica, com sua ânsia de lucro, o que traz uma série de refilmagens sem grande qualidade e interesse. Quanto se trata de bons filmes refilmados, pelo menos ela contribui com a facilidade de acesso, o que é algo também raro, já que os filmes escolhidos não são os de melhor qualidade e sim os mais lucrativos.


* Nildo Viana é Professor da UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB; autor de diversos livros, entre os quais Heróis e Super-Heróis no Mundo dos Quadrinhos (Rio de Janeiro, Achiamé, 2005); Introdução à Sociologia (Belo Horizonte, Autêntica, 2006); Estado, Democracia e Cidadania (Achiamé, 2003); A Dinâmica da Violência Juvenil (Rio de Janeiro, Ar editora, 2012) e O Que São Partidos Políticos (Goiânia, Edições Germinal, 2003); A Concepção Materialista da História do Cinema (Asterisco, 2009); Cinema e Mensagem (Asterisco, 2012)..
__________________________________________________________________________________
Artigo Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Qual o Sentido do Remake?. Jornal Opção, 19 jul. 2006.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

O QUE SÃO MINORIAS?


O QUE SÃO MINORIAS?

Nildo Viana


O termo “minoria” voltou a ser utilizado contemporaneamente após um bom tempo em desuso. O resgate do termo não é gratuito. A razão de ser desse resgate é uma resposta para uma necessidade intelectual e política, coisas que sempre andam juntas. Desde o seu surgimento, a noção de “minorias” nunca foi muito clara e as definições muito menos. Esta noção nunca foi desenvolvida a partir de uma base teórica e por isso nunca ultrapassou esse limite. Ela sempre foi uma noção e não conseguiu se elevar ao nível de um conceito ou um construto[1].

Esse termo é compreendido sob duas formas distintas entre aqueles que o utilizam. Para uns, as minorias são definidas quantitativamente, ou seja, é uma minoria da população ou do Estado-nação[2]. Essa definição de minorias é apenas descritiva e não possui relevância teórica. Não é essa noção de minoria que o discurso jurídico e algumas concepções políticas vêm retomando ultimamente. É uma outra concepção de minoria. É a que alguns chamam de “minorias sociais” ou “minorias sociológicas”, visando diferenciar essa noção do termo usado pela linguagem cotidiana e com significado descritivo e quantitativo. Alguns usam simplesmente “minorias” (CHAVES, 2016), outros tentam fugir do significado descritivo e quantitativo com o acréscimo de outro termo: “social” ou “sociológico”. No entanto, mesmo nesses casos se continua nos limites de uma noção. A ideia de minoria social se confunde com a de minoria nacional, que é descrita como sendo grupos étnicos, religiosos, que seriam minorias no interior de um determinado Estado-nação. Esse termo, além de continuar sendo quantitativo e descritivo, nada acrescenta à discussão. A noção de “minorias sociológicas”, por sua vez, não passa de produto da imaginação sociológica, sendo que o termo imaginação, aqui, é mais no sentido de uma fantasia. Nesse caso apenas se acrescenta um termo que é supostamente científico, por ser manifestação de uma ciência particular, a sociologia, e assim se considera que se desenvolveu uma concepção científica. As minorias sociológicas não passam de fantasia sociológica. A cientificidade dessa construção lexical é inexistente e se revela um cientificismo sem base científica.

O problema da maioria dos que insistem em usar tal termo é querer encaixar a realidade nele. O termo ganha, assim, um caráter classificador. O classificador, que pode ser um sociólogo adepto da criação de tipos ideais, usa o termo e classifica aqueles que se enquadram no mesmo. As minorias, segundo se pode ver através dos classificadores, são as mulheres, negros, deficientes físicos, entre inúmeros outros. As mulheres, no entanto, não são minoria no sentido quantitativo. Então seria “minoria” em qual sentido? Em discriminação ou acesso ao poder, respondem alguns. Isso vale para todas as mulheres? Margareth Thatcher foi discriminada e nunca teve acesso ao poder? Os exemplos para diversos outros grupos classificados como “minorias” poderiam ser citados. Acesso ao poder é determinado pela classe social e não por pertencimento a grupos, embora, obviamente, indivíduos de alguns grupos tenham maior dificuldade de acesso, o que geralmente ocorre, no entanto, mais por pertencimento de classe do que de grupo. Outros grupos são minoritários no sentido quantitativo e estão bem próximos do poder, como os maçons. De qualquer forma, inúmeros outros grupos, além dos já citados, poderiam – e são – considerados minorias – seja pelo critério quantitativo ou supostamente “sociológico”, como os ciganos, crianças, idosos, ateus, homossexuais, “loucos”, etc. Isso se complica ao reconhecermos que existiriam “minorias relativas”, pois alguns grupos são “minorias” em determinados países e lugares, e são “maiorias”, em outros, como judeus, nordestinos, etc.  Além disso, cada um desses grupos pode ser subdividido em diversos subgrupos. O sistema classificatório de “minorias” é não só impreciso e inútil, como traz mais problemas do que solução.

Nesse sentido, essa noção não tem utilidade na pesquisa e análise da sociedade e, por conseguinte, os termos “minorias”, “minorias sociais” e “minorias sociológicas” devem ser descartados. De certa forma, isso já foi feito, pois apesar de sua longevidade, nunca se desenvolveu ao ponto de se tornar um conceito ou um construto. Os usos desses termos são realizados mais no âmbito jurídico e em contextos de pouco desenvolvimento científico. O termo produz uma homogeneização que é inexistente na realidade (são grupos muito distintos, com problemas, especificidades, condições de vida, possibilidades de ação, diferentes, em alguns casos com grau elevado grau de diferença).

Qual termo deve ser usado em seu lugar? Nenhum termo, pois se ele não expressa nenhuma realidade, então não deve ser usado, nem substituído. Deve simplesmente ser abandonado. Para casos concretos, é possível usar termos que expressam sua concreticidade. Se quisermos abordar um grupo social que sofre opressão, então se trata de grupo oprimido e se for mais de um, devemos usar o plural. Se quisermos abordar grupos que sofrem segregação, são grupos segregados. Os diversos grupos geralmente enquadrados como “minorias” (e outros poderiam ser acrescentados e muitas vezes o são por determinados classificadores) não são todos “oprimidos”, “segregados”, “discriminados”, etc. Alguns não são como grupo, pois uma coisa é segregar um indivíduo pertencente ao grupo X por razões individuais, outra coisa é segregar todos do grupo por pertencer a ele. A situação dos judeus na Alemanha nazista é bem distinta dos judeus em Israel ou nos Estados Unidos. A situação das crianças tende a ser problemática em quase todos os lugares e épocas. Cada grupo social concreto possui uma concreticidade que o termo “minorias” não consegue abarcar e por isso sua definição sempre foi difícil e problemática.

O uso do termo “minorias” pode, em muitos casos, aparecer para substituir classes sociais. Eis aqui uma questão importante. Um termo genérico como “minorias” coloca em evidência uma divisão social, entre “maioria” e “minoria” e deixa de lado a questão das classes sociais. No plano das classes sociais, o condenável não é a maioria e sim a minoria, a classe dominante. Mesmo quando se acrescenta a esta as suas classes auxiliares (burocracia e intelectualidade), continua sendo minoria. A maioria é composta pelas classes desprivilegiadas (proletariado, lumpemproletariado, subalternos, camponeses, artesãos, etc.). O uso do termo minorias confunde essa situação e ofusca não só as diferenças de grupos sociais, mas entre os grupos, homogeneizando o que não é homogêneo. A homogeneização dos grupos é acompanhada pela homogeneização nos grupos. Assim é possível dizer que as mulheres burguesas são parte de uma minoria, mesmo que subordine e até humilhe outras mulheres, como pode fazer, por exemplo, com as trabalhadoras domésticas. Ao pertencer a essa “minoria”, ela passa a ser vista como “oprimida”, tanto quanto as demais integrantes do mesmo grupo, e o opressor é a “maioria”, no caso os homens. Da mesma forma, as crianças burguesas são tão oprimidas quanto as crianças proletárias e lumpemproletárias. As crianças norte-americanas, que individualmente consomem 50 vezes mais que as crianças da Índia, são tão oprimidas quanto estas. Afinal, elas são crianças e assim elas são pertencentes ao mesmo grupo oprimido[3].

É aqui que entendemos que o discurso sobre as “minorias” é produto de uma necessidade política e não mera necessidade intelectual ou simplesmente produto da falta de rigor e cientificidade. Sem dúvida, também existem aqueles que usam tais termos sem maior reflexão ou com boa intenção, mas sem a suficiente reflexão crítica necessária no caso da produção intelectual. A origem do uso jurídico internacional do termo data de 1947, sem definição do mesmo, e cai em desuso e aparece poucas vezes nas décadas seguintes. O seu retorno ocorre com a renovação da hegemonia burguesa que se inicia nos anos 1980 e se consolida nos anos 1990, a época do “pensamento único”[4]. A ONU (Organização das Nações Unidas), como não poderia deixar de ser[5], é a responsável pela retomada do termo em 1992: “em 18 de dezembro de 1992, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Declaração sobre os Direitos de Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas” (MORENO, 2009, p. 144). Aqui se juntam as necessidades da renovação hegemônica burguesa e interesses geopolíticos dos países imperialistas.

Em síntese, a luta em torno dos signos (BAKHTIN, 1990) se reproduz cotidianamente no mundo da produção cultural, especialmente no caso das esferas sociais (nesse caso específico, nas esferas científica e jurídica). O abandono do uso de noções reprodutoras da hegemonia burguesa é uma necessidade, bem como sua compreensão, crítica e, quando necessário e possível, elaboração de alternativas. Por fim, é preciso compreender que a noção de “minorias” é uma criação fantasmática destituída de realidade concreta e que por isso deve ser superada.




[1] Sobre “noção”, “conceito” e “construto”, cf. Viana (2007). Basta recordar, para os nossos objetivos aqui, a diferença entre linguagem cotidiana e linguagem noosférica (ou seja, a linguagem complexa manifesta na ciência, filosofia, marxismo, etc.). A noção é um esboço de um conceito ou um construto, sendo um intermediário entre linguagem cotidiana e linguagem noosférica. A linguagem noosférica é composta por conceitos, signos complexos que expressam a realidade, ou construtos, signos complexos que deformam a realidade, sendo que o primeiro é parte de uma teoria (um universo conceitual), e o segundo é parte de uma ideologia (um sistema construtal).

[2] Esse significado quantitativo e meramente descritivo também é usado para se tratar de outras “minorias”, relativas a outros processos comparativos (pois minoria sempre é comparada com “maioria”), tal como quando é o caso de minoria parlamentar, minorias revolucionárias, etc.

[3] Da mesma forma, os adultos são todos opressores (e curiosamente temos aqui as mulheres, negros, ciganos, ateus, judeus, e mais uma infinidade de grupos como oprimidos em determinadas relações e opressores em outras relações). Obviamente que nenhum adulto ainda escreveu isso, pois seria pouco provável, e nem as crianças, pois elas não geraram um movimento social por sua situação de grupo social. Por isso os ideólogos não fizeram nenhuma denúncia sobre a “opressão infantil” e a “dominação adulta” e nem geraram nenhum maniqueísmo nesse caso.

[4] “Após os dramáticos acontecimentos na ex-União Soviética e na ex-Iugoslávia, ou seja, após o colapso dos regimes comunistas, o tema minorias voltou a se destacar na agenda internacional, situação que não ocorria desde o período entreguerras (quando o debate se deu no âmbito da Liga das Nações)” (MORENO, 2009, p. 143). Assim, a crise do capitalismo estatal e a emergência do pensamento único marcam a consolidação da nova hegemonia burguesa e da retomada da noção de minorias, embora sem o impacto que outros elementos ideológicos e hegemônicos adquiriram posteriormente.

[5] Ao contrário da imagem idílica da ONU e outros organismos internacionais, como a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), elas não são defensoras dos interesses dos “oprimidos”, muito menos das classes desprivilegiadas. Esses organismos internacionais são grandes organizações burocráticas a serviço dos países imperialistas, do capital oligopolista transnacional e dos seus próprios interesses. Aliás, a denúncia de envolvimento de funcionários da ONU com o tráfico internacional de mulheres – e ela deveria ser uma das principais instituições de combate a tal tráfico – revela um pouco do seu caráter. O que a ONU e outros organismos internacionais fazem é o mesmo que o Banco Mundial e FMI, só que em outra instância e de outra forma.

Referências


BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 5ª edição, São Paulo: Hucitec, 1990.

CHAVES, L. G. Minorias e seu Estudo no Brasil. Revista Ciências Sociais. vol. 2, num. 1, 1971. http://www.rcs.ufc.br/edicoes/v2n1/rcs_v2n1a8.pdf

MORENO, Jamile. Conceito de minorias e discriminação. Revista USCS – Direito, ano 10, num. 17 – jul./dez. 2009.

VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios Sobre o Materialismo Histórico-Dialético. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *

Acompanham este blog: