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sábado, 26 de dezembro de 2015

O Papel do Indivíduo na História


O Papel do Indivíduo na História
Nildo Viana*
Resumo: O artigo discute o papel do indivíduo na história, sua autonomia, capacidade de intervenção nos acontecimentos históricos. Retomando alguns aspectos do debate da historiografia sobre o indivíduo na história, analisa da perspectiva da concepção materialista da história o real significado das ações individuais no processo histórico. Para tanto, discute a formação social do indivíduo, a sua singularidade e autonomia relativa, a sua participação na história como expressão de classes sociais e outras forças atuantes na sociedade, concluindo que, nas sociedades de classes, a autonomia relativa do indivíduo é muito pequena e ele só exerce uma influência no curso dos acontecimentos históricos quando expressa necessidades e classes sociais.
Palavras-Chave: Indivíduo, História, Significado, Papel, Autonomia Relativa, Singularidade.

Abstract: The article discusses the role of the individual in history, autonomy, ability to intervene in historical events. Resuming debate on some aspects of the historiography on the individual in history, examines the perspective of the materialist conception of history the real meaning of individual actions in the historical process. To this end, it discusses the social formation of the individual, its uniqueness and relative autonomy, their participation in history as an expression of social classes and other forces at work in society, concluding that in class societies, the relative autonomy of the individual is very small and he only has an influence on the course of historical events when expressed needs and social classes.
Keywords: Individual, History, Meaning, Role, Relative Autonomy, Singularity.

O papel do indivíduo na história[1] é uma antiga discussão que tem como objetivo explicar a influência que o indivíduo exerce no processo histórico. Para alguns, os indivíduos, especialmente os chamados “grandes homens”, os “gênios”, os “heróis”, os “rebeldes”, os “inovadores” possuem um papel determinante na história, enquanto que para outros, possui um papel relevante, importante. Outros, ao contrário, consideram que o indivíduo é mera manifestação de forças impessoais, seja a razão, a cultura, a sociedade, etc. Alguns ainda reconhecem um certo papel de influência do indivíduo no processo histórico, embora de acordo com as grandes tendências históricas, ficando numa espécie de posição intermediária.
Para analisar o papel do indivíduo na história é necessário possuir uma teoria do indivíduo e um método de análise. O que é o indivíduo? Qual é o método mais adequado para compreender este ser? O método dialético nos fornece as bases explicativas do que vem a ser o indivíduo e, portanto, começaremos por um esboço breve de nossas bases metodológicas e, posteriormente, partiremos para uma análise do indivíduo e, por fim, de seu papel na história.
O método dialético é a base de nossa análise. Sem dúvida, não poderemos aqui desenvolver uma discussão sobre tal método, mas apenas colocar alguns elementos fundamentais que serão utilizados em nossa análise. O aspecto fundamental aqui é compreender o fenômeno analisado como concreto. O concreto não é o real, mas uma forma de concebê-lo, que aponta para entendê-lo como algo histórico, sendo constituído historicamente, e envolvido num conjunto mais amplo de relações sociais, ou seja, estando inserido numa totalidade e sendo, ele mesmo, uma totalidade. Assim, é preciso descobrir o processo de constituição desse fenômeno, sua determinação fundamental, e assim descobrir sua essência. Da mesma forma, é necessário compreender sua totalidade e inserção em uma outra totalidade mais ampla, observando que o concreto, nesse processo, é “síntese de múltiplas determinações” (Marx, 1983; Viana, 2007a).
Usando o método dialético para analisar o indivíduo e seu papel na história, temos que compreendê-lo em sua totalidade, possui corpo, mente, relações com a natureza e outros seres humanos, etc., e como alguém histórico, que teve um processo social de formação, na qual seu corpo, relações com a natureza e os demais seres humanos e mente são as determinações que o constituíram. Logo, não há espaço para a ilusão de autonomia absoluta dos indivíduos e por isso é necessário analisar o que é o indivíduo para depois entender suas manifestações concretas e sua intervenção nos processos históricos. Este será o caminho que vamos percorrer no presente texto.
O indivíduo é uma unidade da espécie humana e, por conseguinte, compartilha com todos os demais indivíduos da espécie algumas características comuns. Ou seja, ele é uma manifestação da essência ou natureza humana. O primeiro elemento a ser percebido é que todo ser humano possui necessidades básicas, tal como alimentação, etc. Para satisfazer estas necessidades, ele se associa com outros seres humanos e através da cooperação realiza o trabalho, elemento essencial para a satisfação das suas necessidades. A associação e o trabalho se tornam, para o ser humano, necessidades[2]. Assim, o indivíduo da espécie humana é um ser ativo e social que se transforma com as mudanças das relações sociais, criando novas necessidades.
O indivíduo da espécie humana é um indivíduo social. Porém, em sociedades diferentes, os indivíduos são diferentes. Neste sentido, o indivíduo é determinado socialmente. Porém, enquanto indivíduo concreto, ele é síntese de múltiplas determinações. Estas determinações promovem a diferenciação dos indivíduos e de grupos de indivíduos. O indivíduo da sociedade escravista difere radicalmente do de uma sociedade feudal. Mas no interior da sociedade feudal, os indivíduos diferem entre si, dependendo da classe social a qual pertencem, a região em que habita, etc. Assim, um indivíduo da espécie humana possui também uma singularidade, devido ao fato de somente ele viver determinadas relações sociais e ser marcado por todas as consequências derivadas disso.
Porém, estas considerações, para a questão que nos ocupa, apenas lançam alguns elementos básicos que não afetam diretamente o nosso objetivo. Reconhecer que o indivíduo é um ser social já foi mais do que repetido por diversas obras sociológicas (e de outras ciências humanas) e o reconhecimento da singularidade do indivíduo apenas explica que, apesar de ser social, os indivíduos não são iguais, ou melhor, que eles possuem aspectos semelhantes, mas também aspectos diferentes. Para perceber o papel do indivíduo na história é preciso ir além destes elementos básicos. Se o indivíduo tem sua singularidade formada socialmente (e se manifesta em seu universo psíquico), então parece que muito pouco espaço sobre para sua ação na sociedade e, por conseguinte, na história.
A grande questão é que o papel do indivíduo na história é mais ou menos influente dependendo de um conjunto de determinações, entre as quais, a qual classe pertence o indivíduo e que situação social de conflitos de classes está estabelecida e qual sua inserção neste contexto, a qual fração da classe pertence, quais são as forças sociais em ação e como ele se relaciona com elas, bem como diversas outras determinações. Mas o indivíduo, uma vez formado, possui uma autonomia relativa. O grau de autonomia relativa do indivíduo, depende da época, sociedade e posição deste indivíduo no seu interior. Assim, determinada forma de singularidade individual aumenta ou tende a aumentar a autonomia relativa do indivíduo, enquanto que outra forma tende a diminuir. Em determinadas sociedades, a formação social dos indivíduos tende a fazê-los com muito pouca autonomia. Este é o caso das sociedades indígenas e as pré-classistas. É por isso que alguns vão até defender a tese de que nessas sociedades não existiam “indivíduos”:
“Sabemos, por exemplo, que o indivíduo não existe nas primeiras formas de organização comunitária (hordas, clãs, tribos, etc.). Nestas formas sociais primitivas, cada homem é apenas um elemento, um membro do conjunto, sem independência individual, não podendo existir por e para ele próprio. Mas apenas em função da comunidade que é o verdadeiro ser de todos” (Thomas, 1997, p. 14).
Ainda segundo este autor:
“A verdade é que o indivíduo tal como o conhecemos hoje não existe desde o início da história humana, visto que é apenas um resultado, uma criação de milhares de anos de atividade humana. Por exemplo, na Europa, só no fim da Idade Média aparece este homem independente, libertado de um lugar, de obrigações, de ritos, de relações estabelecidas pelos costumes e pelo nascimento, que se denomina indivíduo e é proclamado livre de ir e vir conforme lhe apetecer e de estabelecer as suas relações com os outros homens” (Thomas, 1997, p. 14).
Apesar de ser uma tentativa de análise marxista, o autor acaba caindo na ideologia que buscava combater e também apesar de reconhecer que está tomando como modelo o “indivíduo tal como o conhecemos hoje”, não retirou as devidas consequências desta percepção. A sua visão de um indivíduo é a do indivíduo burguês, com os direitos burgueses, tal como o de ir e vir. Sua análise fica limitada e não consegue ultrapassar a naturalização da época capitalista, tal como fazem as ideologias e representações ilusórias de nossa sociedade. É claro que se tende a ter uma concepção equivocada do que é o indivíduo, tomando por tal conceito o ser social da sociedade capitalista e suas características, não encontradas em outras sociedades e por isso, no reino da ideologia, seria inexistente nelas. Parte-se da autonomia individual, bastante ilusória, diga-se de passagem, na sociedade capitalista e transforma isso em “o indivíduo”.
Quanto maior o grau de autonomia relativa dos indivíduos, maior é sua influência na história. Porém, isto é no nível geral da análise, pois é necessário analisar os indivíduos concretos em sociedades concretas, que pode, inclusive, sobreviver com indivíduos com alto grau de autonomia relativa convivendo com indivíduos com baixa autonomia relativa, ou simplesmente inexistente. Na sociedade capitalista, por exemplo, o indivíduo burguês possui mais autonomia relativa que um indivíduo lumpemproletário, pois o primeiro terá liberdade de locomoção – ou seja, o direito de ir e vir para ele não é mera ficção –, terá uma consciência mais ampla das relações sociais e poderá intervir com maior eficácia nelas, terá o prosaico poder financeiro, que pode fazer ele ter condições, inclusive, de burlar a lei em seu benefício, além do status social que possui e o faz com mais condições de fazer sua vontade prevalecer; o segundo, estará numa situação de quase inexistente autonomia individual, pois mau terá onde morar e o que comer, influenciando assim muito pouco nas relações sociais e no seu próprio destino. Esta situação só se altera quando ocorrem grandes movimentos sociais, no qual se subverte as relações estabelecidas e o poder financeiro, status, etc., diminuem sua força, enquanto que a ação individual e a agressão física, disponível para os despossuídos, aumentam a sua força. Em outras palavras, quando estes indivíduos se associam essa posição pode mudar. No caso de um indivíduo proletário, ele possui menos autonomia que um burguês, mas um pouco mais do que um lumpemproletário. Enquanto indivíduo, não terá grande papel no desenvolvimento histórico, mas como integrante de uma classe, suas ações ganham maior relevância e quando ele se associa e age conjuntamente com outros da mesma classe, ele ganha maior autonomia e interfere com mais força no processo histórico.
Assim, a autonomia relativa do indivíduo assume mais importância dependendo do contexto no qual este indivíduo se encontra em cada acontecimento histórico. Porém, mesmo uma pessoa sem muita autonomia pode possuir um papel influente na história. Este é o caso de alguém que, por acaso ou por ser o vice-presidente, assume a chefia do governo executivo. O papel de Napoleão foi decisivo e, caso não fosse ele, seria diferente. O outro indivíduo em seu lugar poderia ter agido um pouco diferente, ter sido mais eficaz em algum ponto e menos em outro, etc. Porém, no geral, com maior ou menor autonomia, o indivíduo só influencia a história num grau muito restrito. A sua ação quando é bastante influente ocorre devido ao fato de esta influência manifesta interesses e valores coletivos, expressa determinadas forças sociais, classes sociais, frações de classes, grupos sociais.
Sabemos agora que os indivíduos exercem frequentemente grande influência sobre o destino da sociedade. Mas, esta influência é determinada pela estrutura interna daquela e por sua relação com outras sociedades” (Plekhanov, 1978, p. 99).
Graças às particularidades de sua inteligência e de seu caráter, as personalidades influentes podem fazer variar o aspecto individual dos acontecimentos e algumas de suas consequências parciais, mas não podem fazer variar sua orientação geral, que é determinada por outras forças (Plekhanov, 1978, p. 103).
O problema de Plekhanov é pensar tal força determinante da história é o “estado das forças produtivas”. O fetichismo das forças produtivas, que passa a ter um desenvolvimento metafísico, não determinado pelas relações de produção (na inversão de Plekhanov, elas que são determinadas pelas forças produtivas), acaba colocando um grave problema na contribuição de Plekhanov. Mas ele acrescenta um elemento importante, o que ele chama a “ilusão de ótica” sobre o papel atribuído aos grandes homens na história:
Desempenhando seu papel de ‘boa espada’ salvadora da ordem social, Napoleão impediu que desempenhassem esta função outros generais, alguns dos quais talvez a tivessem desempenhado tão bem ou quase tão bem quanto ele. Uma vez satisfeita a necessidade social de ter um ditador militar enérgico, a organização social fechou o caminho da ditadura a todos os outros talentos militares. Sua força se transformou em uma força desfavorável para a revelação de outros talentos do mesmo gênero. Daí a ilusão de ótica a que nos referimos. A força pessoal de Napoleão se nos apresenta sob uma forma extremamente exagerada, posto que lhe atribuímos toda a força social que a elevou a primeiro plano e que a apoiava. Esta força pessoal parece-nos algo completamente excepcional, porque as demais forças idênticas a ela não se transformaram de potenciais em reais. E quando nos perguntam o que teria ocorrido se Napoleão não tivesse existido, nossa imaginação confunde-se e parece-nos que todo o movimento social sobre que se baseava sua força e sua influência não teria podido produzir-se sem ele (Plekhanov, 1978, p. 103).
Plekhanov afirma que isto também ocorre, embora seja mais raro, no plano do desenvolvimento intelectual. A mesma ilusão de ótica ocorre no caso do desenvolvimento artístico e intelectual. Os representantes intelectuais das forças sociais se colocam problemas semelhantes e buscam resolvê-lo, mas isto depende das condições sociais e o aspecto individual tem um papel um tanto quanto restrito em sua direção geral.
Há tempos que se fez a observação de que os talentos aparecem, sempre e em toda a parte, onde existem condições sociais favoráveis para seu desenvolvimento. Isto significa que todo talento que se manifestou efetivamente, isto é, todo talento convertido numa força social é fruto das relações sociais. Mas, se isto é assim, compreende-se porque os homens de talento, como dissemos, só podem fazer variar o aspecto individual e não a orientação geral dos acontecimentos: eles próprios só existem graças a esta orientação; não fosse por isso nunca teriam podido cruzar o umbral que separa o potencial do real (Plekhanov, 1978, p. 105).
Desta forma, o “grande homem” não é grande devido suas particularidades individuais que determinariam as mudanças históricas e sim por que elas o tornam mais capaz de satisfazer as necessidades sociais da época. Assim, Plekhanov oferece uma contribuição para se pensar o papel do indivíduo na história, apesar de suas limitações, principalmente o fetichismo das forças produtivas. Porém, seus méritos são inquestionáveis.
O indivíduo exerce uma maior influência na história quando é manifestação de forças sociais, especialmente as classes sociais, e assim realiza uma ação que vai de encontro com necessidades sociais existentes e que reproduz e reforça sua tendência. Porém, falta em Plekhanov a percepção das classes sociais e de suas lutas no processo histórico, o que é outra limitação.
A inserção das classes sociais na análise enriquece a concreticidade da percepção do papel do indivíduo na história. Os filósofos iluministas, por exemplo, só produziram novas teses e criticaram o clericalismo, e defenderam o individualismo, devido estarem expressando o movimento ascendente da classe burguesa. O caso de Rousseau, um “estranho no ninho”, é expressão de uma singularidade e um alto grau de autonomia relativa do indivíduo, provocado por seu processo histórico de vida, que, apesar de em muitos pontos ser manifestação da mesma tendência que os demais, acabava se diferenciando deles e, justamente por isto, conseguindo uma maior profundidade intelectual e longevidade na influência na história da filosofia e do pensamento ocidental.
Assim, a singularidade e a autonomia relativa do indivíduo[3] só têm um peso histórico relevante quando estão de acordo com uma das classes sociais ou forças sociais em luta, expressando seus interesses, valores, sentimentos, manifestando determinadas necessidades sociais. A singularidade e autonomia relativa de um indivíduo como Nietzsche, em parte derivada de seu desequilíbrio psíquico, não oferecia nenhuma condição para uma verdadeira influência seja na história do pensamento ou em qualquer outra instância da vida social e ele mesmo percebia isso[4].
Sendo assim, o indivíduo exerce uma influência muito restrita no processo histórico. Por isso se torna interessante discutir por qual motivo se criou, principalmente na historiografia, toda uma ideologia que coloca o indivíduo como determinante ou fortemente influente no curso dos acontecimentos históricos, desde a tradicional história dos grandes homens até as versões individualistas mais recentes (Plekhanov, 1978; Carr, 1982). Em primeiro lugar, é necessário refutar a posição que supervalora o papel do indivíduo na história.
O culto do indivíduo é um dos mais penetrantes mitos da história moderna. De acordo com Burckhardt, na sua conhecida obra A cultura do Renascimento na Itália, cuja segunda parte tem como subtítulo ‘O Desenvolvimento do Indivíduo’, o culto do indivíduo começou com o Renascimento, quando o homem, que até então fora ‘consciente de si mesmo apenas como membro de uma raça, de um povo, destacamento, família ou nação’, afinal, ‘tornou-se um indivíduo espiritual e reconheceu-se como tal’. Mais tarde, o culto foi relacionado com a ascensão do capitalismo e do protestantismo, com as origens da revolução industrial e comas doutrinas do laissez-faire. Os direitos do homem e do cidadão proclamados pela Revolução Francesa eram os direitos do indivíduo. O individualismo foi a base da grande filosofia do século 19, o utilitarismo (Carr, 1982, p. 33).
Assim, são estabelecidas as origens sociais do individualismo, do culto ao indivíduo. Isto se reflete na historiografia. Por isso, é interessante notar que o historiador, enquanto indivíduo, é também um ser social. E como ser social, ele é constituído histórica e socialmente. O processo de formação social do indivíduo não é diferente no historiador e por isso ele é, também, produto de sua época e condições sociais particulares de existência. Assim, desde sua infância ele vai desenvolvendo sua consciência, valores, sentimentos e o seu processo de formação como historiador está ligado a qual instituição realizou seus estudos, quais fontes inspiradoras (orientadas por sua história pessoal anterior, que gerou determinados valores, sentimentos, etc.), quais outros indivíduos (com sua singularidade) teve acesso, qual a ideologia dominante da época (em geral e na historiografia em particular), quais alternativas e forças concorrentes existiam (e qual sua predisposição de adesão), entre inúmeras outras determinações.
A maioria sucumbe ao que é hegemônico e dominante, não só pela força das ideias dominantes – que é considerável, e a pressão social que emerge junto com ela – mas também pelos interesses individuais (inclusive de carreira) associados a elas e as disputas internas dentro da esfera social de atuação do historiador (a esfera científica e sua subesfera historiográfica), pois as instituições, agências de financiamento, etc., apontam para uma convergência de interesses: os do indivíduo que quer ascensão social[5] e a da instituição que busca a reprodução da sociedade existente (relações de produção capitalistas e o conjunto das relações sociais) e de seus interesses no seu interior.
O individualismo e a supervaloração dos indivíduos é produto da sociedade capitalista, como já foi colocado, e o historiador, em geral, está submetido à força persuasiva das ideias dominantes e isto está de acordo com a mentalidade de muitos deles (assim como todos os cientistas de todas as outras áreas, mas aqui o tema do papel do indivíduo na história remete ao historiador, pois para sua área de atuação essa discussão é mais relevante). Isso reforça a tendência de alguns historiadores de valorar o indivíduo e atribuir-lhe um papel histórico mais influente do que ele realmente possui. As raízes sociais disso também estão presentes nos valores e escolha de métodos, teorias, leituras, etc. incluindo os modismos acadêmicos.
Por outro lado, o determinismo e outras posições também estão ligados a este processo, mas expressam outras ideologias burguesas, tal como a do Estado, nação, raça, povo, etc. No fundo, são abstrações metafísicas que, no entanto, revelam forças sociais e seus interesses. O individualismo mantém um vínculo muito forte com o liberalismo (em sua forma clássica e em todos os seus derivados) e o holismo tem sua ligação com o estatismo (indo desde o nazismo e fascismo até chegar à socialdemocracia).
Assim, é preciso compreender a existência de forças “impessoais”, no sentido que não são indivíduos livres que agem na história, e sim, fundamentalmente, classes sociais (e, com menor peso, outros grupos sociais, frações de classes, etc.) como os grandes agentes da história. Isso, no entanto, não anula a chamada para a ação política e transformadora dos indivíduos. Tal como colocava Plekhanov, o fatalismo só leva ao quietismo se o indivíduo ou grupo não for um elo necessário na cadeia dos eventos. O indivíduo é parte do processo e se se coloca como expressão das classes em luta, terá papel mais relevante, e isso mais ainda dependendo de sua singularidade psíquica e situação concreta no interior da sociedade. O indivíduo pode ser compreendido como parte da necessidade histórica e social, pois seu processo de formação é para reproduzir a sociedade existente, mas alguns, devido pertencimento de classe (classes desprivilegiadas e principalmente o proletariado no caso do capitalismo) ou convergência perspectival com elas, rompem com isso e podem, assim, ter um papel antecipador e expressar as forças revolucionárias ao invés das forças conservadoras.
Alguns apelam para a ideia de carisma em Max Weber para sustentar um papel relevante do indivíduo na história. Contudo, além de um problema interpretativo do pensamento de Weber[6], o suposto “carisma”[7] é, ele mesmo, um produto social e histórico. O carisma como liberdade é uma ilusão e como noção utilizada para análise histórica é mais um problema do que uma solução. Assim, quando se tenta explicar o caso de Antônio Conselheiro com o construto de carisma o que se faz é apenas partir de um princípio abstrato para explicar a realidade e, no fundo, acaba invertendo-a. Antonio Conselheiro foi um produto social e histórico (como outros semelhantes na mesma época) e só conseguiu adeptos e um papel mais destacado por manifestar interesses de determinada classe social. O conflito de Canudos não foi derivado do carisma de Antônio Conselheiro e sim da luta pela terra num contexto de expropriação histórica e a forma que assumiu está ligada ao contexto cultural no qual tal luta emergiu, marcada por uma cultura rústica e religiosa. Sem isso, não teria existido o conflito de Canudos e ninguém teria ouvido falar de um tal Antonio Conselheiro. Ou, se este tivesse morrido quando criança, outro indivíduo tenderia a assumir o mesmo, sob formas diferentes, de maneira mais ou menos destacada, etc. Neste sentido, um indivíduo sozinho não pode mudar a realidade social e se estiver contra as tendências existentes não terá influência alguma no curso dos acontecimentos.
A posição de Marx é diferente e aponta para uma concepção correta do significado do indivíduo na história. Apesar das deformações do seu pensamento por adversários e epígonos, ele não é um determinista (e muito menos um "determinista econômico" ou "tecnológico”, como alguns interpretam equivocadamente). Marx parte do método dialético, tal como colocamos, e mostra que um fenômeno é algo concreto, resultado de múltiplas determinações (e não apenas uma e tais determinações, no caso de fenômenos sociais e históricos, são as ações humanas sob diversas formas, especialmente a luta de classes). A sua concepção de história é aberta, na qual ele observa as tendências e possibilidades e assim nada tem de determinista e metafísico. Segundo Marx, os seres humanos fazem sua própria história: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 1986, p. 17).
Nesse processo de fazer a história, os indivíduos atuam, agem, e quando manifestam necessidades sociais e classes sociais, ganham exercem maior influência no curso dos acontecimentos. Assim, é totalmente equivocada e despropositada a interpretação de um Marx mecanicista (o que significa não só desconhecer o pensamento de Marx e seus escritos, mas também a tradição hegeliana). É isso que alguns ideólogos buscam refutar Marx (e aí não sabemos se é mera má fé ou incompetência e incapacidade de compreensão do que lê):
“Marx [...] afirma ser capaz de predizer a forma específica da fase seguinte de todo o processo graças a uma integração semelhantemente organicista de todos os dados significativos da história social. Mas pretende justificar essa operação profética graças à redução mecanicista desses dados ao status de funções de leis gerais de causa e efeito, que são universalmente operantes do começo ao fim da história” (White, 1994, p. 84).
Este autor apenas demonstra que não conhece minimamente o pensamento de Marx. Obviamente que o autor não cita a passagem na qual Marx teria afirmado ser capaz de predizer a forma específica da fase seguinte do processo, pois ele nunca fez tal afirmação. Da mesma forma, ele nunca defendeu tal postulado, mesmo sem afirmá-lo explicitamente, como deu a entender White. Também é sem nenhum sentido em colocar que Marx realizaria uma integração organicista dos dados da história e que ele realiza uma redução mecanicista dos dados a leis gerais de causa e efeito, que seriam também universais (“do começo ao fim da história”).
White não fundamentou nenhuma destas afirmações e, portanto, não é necessário refutá-lo, porquanto são meras afirmações infundadas. Ele poderia ter feito isso mostrando as afirmações de Marx ou o procedimento dele para fundamentar, mas não fez nada disso, simplesmente por ser impossível. Marx criticava os socialistas utópicos por seus planos para o futuro (Marx e Engels, 1988), usa o método dialético, que é antagônico ao mecanicista, além de vir da tradição hegeliana, e nunca defendeu a existência de “leis gerais da história”. Aliás, basta ver sua crítica a Malthus com sua lei da população, considerada por Marx como abstrata e metafísica (Marx, 1985; Viana, 2006), e suas considerações sobre isso, ou então quando, em O Capital, coloca que para ele leis são tendências (Marx, 1988; Viana, 2007a), que isso é o oposto do seu pensamento. Atribuir a Marx a ideia de causa e efeito é risível, pois este pensador trabalhava com a categoria de determinação (incluindo as múltiplas determinações) e não com a ideia de causalidade (Viana, 2001). No fundo, White não compreende o pensamento de Marx e lhe atribui características que são muito mais do funcionalismo.
Mas, voltando à concepção materialista da história, a ação individual, assim como as ideias, possui o caráter de ser uma das múltiplas determinações de qualquer acontecimento histórico ou fenômeno social. Segundo Engels:
“A história se faz ela mesma de tal maneira que o resultado final é sempre oriundo de conflitos de muitas vontades individuais, cada uma das quais, por sua vez, é moldada por um conjunto de condições particulares de existência. Existem inumeráveis forças que se entrecruzam, uma série infinita de paralelogramas de forças que dão origem a uma resultante: o fato histórico” (Engels, 1987, p. 40).
Sem dúvida, deixando de lado os equívocos e linguagem problemática de Engels no restante da carta, isso mostra a posição do materialismo histórico diante do processo histórico. O modo de produção (que expressa luta de classes)[8] é a determinação fundamental dos processos históricos, mas
“... os diversos elementos da superestrutura – as formas políticas das lutas de classes e seus resultados, a saber, as constituições estabelecidas uma vez ganha a batalha pela classe vitoriosa; as formas jurídicas e mesmo os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as concepções religiosas e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmáticos – exercem igualmente sua ação sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam de maneira preponderante sua forma” (Engels, 1987, p. 39).
Assim, tanto as ideias quanto os indivíduos são agente do processo histórico. No caso das ideias, Korsch (1977) e outros já haviam destacado que fazem parte da realidade e atuam sobre ela, e, portanto, não são mero epifenômeno. As vontades individuais atuam, mas o indivíduo sozinho sem estar inserido no movimento de uma classe social ou de outras forças sociais acaba tendo um papel bastante restrito (claro que isso varia, pois depende de qual indivíduo é esse, pois se for o presidente de um país, por exemplo, suas atitudes podem gerar uma crise e ter consequências inesperadas ou um pensador que pode, mesmo estando na contracorrente das tendências, pode fortalecer determinadas posições que, no futuro, poderão ser reforçadas, entre outros casos).
Em síntese, o significado do indivíduo na concepção materialista da história pode ser sintetizado da seguinte forma: a) o indivíduo é formado socialmente, é um ser social e determinado socialmente; b) este indivíduo possui uma autonomia relativa e esta varia dependendo da época, sociedade, pertencimento de classe, idiossincrasias derivadas de seu processo histórico de vida particular, e a consciência mais desenvolvida aumenta sua autonomia, porquanto amplia seu saber sobre suas determinações e pode inclusive ir contra algumas delas a partir disso; c) o significado do indivíduo na história aponta para uma posição de agente da história, mas que só tem um peso considerável quando expressa classes sociais e, em menor grau, outros grupos ou frações de classes, pois não expresssando nenhuma das tendências existentes, sua ação e  eficácia é praticamente nula, a não ser que as tendências mudem, o que significa, nesse caso, que ele apenas antecipava uma possibilidade menos evidente e forte que em certo momento se fortalece e assim ele ganha uma posição mais influente no curso dos acontecimentos; d) a ação individual no processo histórico também varia de acordo com a singularidade psíquica do indivíduo, suas habilidades, posição na sociedade, etc., sendo que determinados indivíduos podem exercer uma maior influência no curso dos acontecimentos do que outros, mas não fugindo da necessidade de sua ligação com as tendências, pois caso contrário, pode apenas criar situação de crise localizada da qual ele é mais um sintoma ou mesmo que, em casos raros, não o seja, não poderá definir qual tendência se realizará, isso será decidido por outros, expressando classes e forças sociais existentes e que podem reorganizar as relações no sentido de superar a crise, seja voltando à estabilidade seja realizando a transformação radical.
Assim, o papel do indivíduo na história segundo a concepção materialista da história aponta para romper com as ideologias historiográficas dos “grandes homens”[9], dos “líderes”, na qual os indivíduos aparecem como principais agentes da história. Da mesma forma, rompe com as ideologias metafísicas que pensam que a história é produto de abstrações como “desenvolvimento das forças produtivas”, “sistema”, etc., pois são os indivíduos, unidos pelo pertencimento de classe, que fazem a história, sob condições herdadas do passado que eles podem e, muitas vezes, transformam. Assim, o significado do indivíduo na história é compreendido pela teoria da luta de classes.

Referências

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Marx, Karl & Engels, Friedrich. O Manifesto Comunista. 3ª edição, São Paulo, Global, 1988.
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Viana, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo, Escuta, 2008.
White, Hayden. Trópicos do Discurso. Ensaios sobre a Crítica da Cultura. São Paulo, Edusp, 1994.





* Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília.
[1] Sem dúvida, a expressão “papel” pode dar margem a equívocos, tal como na ideologia dos “papéis sociais”. Aqui trata-se mais do termo como expressando o seu significado no processo histórico, visando discutir sua capacidade de intervenção e alteração dos acontecimentos sociais e históricos.
[2] As bases dessas considerações são a teoria da natureza humana de Karl Marx (Marx, 1983; Marx e Engels, 1991; Marx, 1988).
[3] A singularidade psíquica do indivíduo não é algo inato e sim constituído socialmente devido às experiências e relações sociais que somente uma pessoa pode viver no decorrer de seu processo histórico de vida e que dá forma à sua mente de uma forma particular (Viana, 2011).
[4] “Monarcas e rebeldes da mesma forma são o produto de condições específicas de sua época e de seu país. (...). Ora, vejamos um rebelde proeminente e individualista num nível mais sofisticado. Poucas pessoas reagiram mais violentamente e mais radicalmente contra a sociedade de seu tempo e país do que Nietzsche. No entanto, Nietzsche foi um produto direto da sociedade europeia, mais especificamente da sociedade alemã – um fenômeno que não poderia ter ocorrido na China ou no Peru. Uma geração após a morte de Nietzsche, tornou-se mais claro do que havia sido para seus contemporâneos o quanto as forças sociais europeias eram fortes, sobretudo as alemãs, de que ele fora a expressão: Nietzsche tornou-se uma figura mais importante para a posteridade do que para sua própria geração” (Carr, 1985, p. 47-48). O próprio Nietzsche percebia isso e manifestou em algumas ocasiões, dizendo que seu pensamento era incompreensível para seus contemporâneos, era para o futuro. Claro que essa percepção não era devido ao caráter social da aceitação e reprodução de ideias e sim de sua singularidade psíquica marcada por uma ideia de genialidade, que, no entanto, tinha que se defrontar com a crua realidade social que não lhe permitia um grande reconhecimento social, tal como ele esperava. Contudo, esse reconhecimento foi realizado posteriormente, tanto pelo nazismo quanto pelo pós-estruturalismo. Isso, no entanto, não confirmou sua ideia de genialidade pessoal e sim que em outros momentos históricos suas concepções se tornaram adequadas para novas necessidades sociais de determinadas classes e grupos sociais.
[5] A busca de status, riqueza, poder, ascensão social, são elementos fundamentais e característicos da sociabilidade capitalista derivados da competição social, mercantilização e burocratização da vida, e que produz uma mentalidade burguesa, igualmente competitiva, mercantil e burocrática (Viana, 2008).
[6] Segundo Weber, o carisma é predominante em sociedades pré-capitalistas e o processo de racionalização aponta para uma burocratização crescente da sociedade, o que reforça a impessoalidade.
[7]  Esse termo é problemático e pouco acrescenta a uma compreensão da sociedade, sendo um construto, ou seja, parte de um discurso ideológico, tal como colocamos em outra oportunidade (Viana, 2007b).
[8] O modo de produção é constituído por relações de produção, que são relações no processo de produção entre seres humanos, marcados por uma relação de exploração, relação de classes, luta de classes, aspectos inseparáveis (Viana, 2007b). É por isso que Marx afirmou que a “história é a história das lutas de classes” (Marx e Engels, 1988) a partir da emergência das sociedades de classes e em outras oportunidades colocou o papel proeminente do modo de produção. Korsch (1983) explica isso como uma questão de ênfase no momento subjetivo (luta de classes) e em outro caso no momento objetivo (contradição entre forças produtivas e relações de produção), o que é problemático (Viana, 2012). Claro que entendendo o conceito de relações de produção e modo de produção, tais colocações são desnecessárias – e mais ainda a solução oferecida por Stavenhagen (1978), segundo a qual as forças produtivas seriam representadas pela classe revolucionária e as relações de produção pela classe dominante, entre outras, bem como a tese da ambiguidade de Marx apresentada por Perry Anderson (1984) e Agnes Heller (1982).
[9] Isso não significa recusar a autonomia relativa e capacidade relativa de intervenção dos indivíduos e daqueles que possuem melhor situação na hierarquia burocrática estatal, por exemplo, mas que isso não é uma determinação de grande importância, a não ser em casos que expresse necessidades sociais, classes sociais e, tal como já colocamos, devido sua singularidade psíquica. É por isso que alguns políticos profissionais um tanto quanto imprevisível ou com determinada personalidade (singularidade psíquica) não são aceitos para determinados cargos de direção.

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Publicado Originalmente em:
VIANA, Nildo . O Papel do Indivíduo na História. Cadernos de História, v. 14, p. 20-31, 2013.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Reflexões Sobre Ética




Reflexões Sobre Ética

Nildo Viana


Para nós, o homem se caracteriza antes de todo pela superação de uma situação, pelo que ele chega a fazer daquilo que se fez dele (...); a conduta mais rudimentar dever ser determinada ao mesmo tempo em relação aos fatores reais e presentes que o condicionam em relação a certo objeto a vir que ele tenta fazer nascer. É o que denominamos projeto.
Jean-Paul Sartre


A palavra ética recebe os mais variados sentidos. Por isso, seu significado varia dependendo de quem a pronuncia. Ética, no sentido comum da palavra, são as “boas” normas de conduta ou o “bom” comportamento moral. Para alguns filósofos, a ética ganha um sentido mais relativo e é entendida como “norma de conduta” (ou seja, uma forma sem conteúdo definido). Para outros, se tais normas são boas ou más, isto não vem ao caso e nasce, assim, o relativismo ético. Para outros filósofos, a ética é também compreendida como uma norma de conduta e que não é nem única nem absoluta, mas há uma ética “boa” e uma (ou “várias”) que é (são) má (s). Há também aqueles que sustentam a existência de apenas uma ética, ou seja, apenas uma norma de conduta de acordo com o bem, com o dever ou com a natureza humana. Por fim, há aqueles que distinguem ética e moral e definem a primeira como uma “ciência” ou como um “ramo da filosofia” que se dedica ao estudo dos problemas morais. Existem outras definições de ética, mas no presente texto trataremos de apenas algumas concepções de ética, que são aquelas que consideramos mais influentes ou que servem de “modelo exemplar” para definições semelhantes. Após refutarmos algumas concepções de ética, iremos apresentar um conceito de ética (formal) e depois iremos discutir o conteúdo da ética.

A Ética Como Ciência

O filósofo mexicano Adolfo Sanchez Vázquez distingue “problemas éticos” e “problemas prático-morais cotidianos”[1]. Devo ou não mentir para X? Os soldados do exército nazista devem ser condenados por terem cumprido as ordens de seus superiores? Devo denunciar um crime cometido por um amigo meu? Estes são exemplos de problemas prático-morais cotidianos. Eles se referem não apenas ao indivíduo da ação mas também àqueles que serão atingidos por ela (outros indivíduos, um grupo social, uma comunidade, uma nação). Segundo Vázquez,

“À diferença dos problemas prático-morais, os éticos são caracterizados pela sua generalidade. Se na vida real um indivíduo concreto enfrenta uma determinada situação, deverá resolver por si mesmo, com a ajuda de uma norma que reconhece e aceita intimamente, o problema de como agir de maneira a que sua ação possa ser boa, isto é, moralmente valiosa. Será inútil recorrer à ética com a esperança de encontrar nela uma norma de ação para cada situação concreta. A ética poderá dizer-lhe, em geral, o que é um comportamento pautado por normas, ou em que consiste o fim – o bom – visado pelo comportamento moral, do qual faz parte o procedimento do indivíduo concreto ou de todos. O problema do que fazer em cada situação concreta é um problema prático-moral e não teórico-ético. Ao contrário, definir o que é bom não é um problema moral cuja solução caiba ao indivíduo em cada situação particular, mas um problema geral de caráter teórico, de competência do investigador da moral, ou seja, do ético” [2].

Desta forma, os problemas éticos possuem um caráter de generalidade em contraposição aos problemas morais que se manifestam em situações concretas. Mas a ética pode, mesmo assim, contribuir para justificar e/ou justificar um comportamento moral, desde que não seja absolutista, apriorística, ou puramente especulativa. A ética ao revelar a relação entre comportamento moral e certas necessidades e interesses sociais de determinado grupo social poderá situar seu caráter e, em determinados casos, defini-lo como um comportamento não-moral, pois atenderia, nesse caso, apenas aos interesses egoístas de grupos que buscam, para justificar seu comportamento, apresentar sua moral como uma “norma universal”.
Algumas éticas tradicionais consideram que é missão do teórico dizer o que os homens devem fazer, tornando-se, assim, num “legislador do comportamento moral”. Para Vázquez, não é este o papel da moral. A Ética é a teoria e possui a mesma função de toda teoria, ou seja, tem como função explicar, esclarecer ou investigar certo aspecto da realidade, que no caso, é o comportamento moral em reação às éticas tradicionais, de caráter normativo, buscou-se reduzir o domínio da ética à questões teóricas a respeito da moral e dos problemas morais.
O que é a ética? Vázquez define: “a ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específica de comportamento humano” [3]. Neste sentido, a ética é uma ciência e isto traz diversas implicações, entre as quais a ideia de que, tal como é toda a ciência, a ética não é normativa, ela não diz o que devemos fazer e nem julga o comportamento alheio. Como toda ciência, a ética possui um objeto de estudo: a moral. Por conseguinte, ética e moral são coisas distintas. O objetivo da ética é explicar a moral efetiva e por isso pode influir sobre ela.
Se a ética é uma ciência, então ela ao pode ser considerada um “ramo da filosofia”, pois ciência e filosofia são coisas distintas. Vázquez busca justificar a sua definição de ética como ciência da moral e refutar a concepção da ética como ramo da filosofia da seguinte forma:

“Na negação de qualquer relação entre a ética e a ciência se quer basear a atribuição exclusiva da primeira à filosofia. A ética é então apresentada como uma parte da filosofia especulativa, isto é, construída sem levar em conta a ciência e a vida real. Esta ética filosófica preocupa-se mais em buscar a concordância como princípios filosóficos universais do que com a realidade moral no seu desenvolvimento histórico e real, donde resulta também o caráter absoluto e apriorístico de suas afirmações sobre o bom, o dever, os valores morais, etc. certamente, embora a história do pensamento filosófico esteja repleta deste tipo de éticas, numa época em que a história, a antropologia, a psicologia e as ciências sociais nos proporciona materiais valiosíssimos para o estudo do fato moral, não se justifica mais a existência de uma ética puramente filosófica, especulativa ou dedutiva, divorciada da ciência e da própria realidade humana moral”[4].

Esta concepção de ética é aceitável ou não? Sem dúvida, esta concepção entra em contradição com todas as outras definições de ética. A idéia de considerar a ética como uma ciência é um tanto quanto exótica. Mas, além do exotismo, esta definição possui outras deficiências mais graves. Em primeiro lugar, ela é cientificista e reducionista. Ela é assim por reduzir a ética à uma ciência e como todos sabemos uma das principais características da ciência (principalmente no campo das ciências humanas, onde se incluiria ética) é a separação entre julgamentos de fato e julgamentos de valor, sendo que só os julgamentos de fato é que podem estar presentes na ciência, e assim a ética se torna subordinada à ciência. Sem dúvida, Vázquez tenta resolver este problema afirmando que a ética pode, após explicar a moral, contribuir para a formação de julgamentos de valor mas de qualquer forma está presente a concepção de que a razão detém a primazia sobre os valores e, além disso, que a razão detém a primazia sobre os valores e, além disso, que a razão deve preceder os valores e que razão e valores são separáveis e separados. Esta concepção é, portanto, positivista [5].
A ideia de separação entre razão e valores já foi amplamente criticada por filósofos, cientistas e críticos da ciência e/ou da filosofia. Aliás, a própria ideia de que a razão deve servir de guia para a formação de valores é, em si, uma concepção valorativa. Na verdade, razão e valores são inseparáveis. A razão não pode ser autonomizada, pois ela não pode ser um objeto em si mesma. A razão deve estar ligada e deve ser justificada por valores, pois, caso contrário, esta separação – mesmo que parcial, á que é impossível uma separação total – poderá criar inúmeras monstruosidades. O problema da relação entre ética e razão, e também a relação entre ética e ciência, já foi amplamente discutido, desde a colocação de problemas como a questão da bomba atômica até a questão da exploração e da destruição ambiental, e isto deixa entrever que não pode haver tal autonomização. A ideia de que a ética, enquanto ciência, após cumprir sua função de explicar pode contribuir com a formação de julgamentos de valor, também é positivista e está presente nas teses de vários positivistas.
Em segundo lugar, se a ética é uma ciência, ela deve possuir, como toda ciência, um objeto de estudo próprio e também um método próprio. O objeto de estudo da ética é a moral as qual é o seu método? Quando Durkheim queria fundar a sociologia como ciência escreveu As Regras do Método Sociológico, onde não definia apenas o objeto desta ciência (os fatos sociais) como também o seu método. Malinowski quando buscou desenvolver a antropologia como ciência da cultura não apenas lhe atribuiu a cultura como objeto de estudo como também, em Argonautas do Pacífico Ocidental, lançou as bases do método funcionalista. A ética, esta “nova ciência”, corre o risco de ser uma meia-ciência, tal como ciência política e a pedagogia, pois ambas possuem um objeto de estudo que também são analisados por outras ciências (em especial a sociologia) e retiram destas o seu “método”.
Em terceiro lugar, tal concepção não deixa de ter uma certa característica elitista, pois cabe ao ético definir o que é bom ou não e assim Vázquez repete os erros que ele diz encontrar nas éticas tradicionais. A elite composta pelos intelectuais especialistas em ética, é que podem definir o que é bom ou não. Por fim, podemos dizer que estas são as principais limitações desta concepção. Se dúvida, a ética ou a moral podem ser analisados (ser, segundo linguagem positivista, “objeto de estudo”) mas isto não deve servir de pretexto para uma consciência coisificada tomar conta dos assuntos. A ética é um problema anterior ao problema da ciência e por isso não pode ser resolvido por esta.
Sendo assim, esta definição de ética é mais um problema do que uma solução. Mas podemos encontrar diversas outras definições de ética. Existem aqueles que definem a ética como um ramo da filosofia. É desta concepção que iremos tratar aqui.

A Ética Como Ramo da Filosofia

Para alguns filósofos, “a ética é o ramo mais prático da filosofia” [6] Os problemas éticos são geralmente trabalhados pela tradição filosófica sem a problematização do próprio conceito de ética. Desde Aristóteles, se tornou costume entre os filósofos apresentar uma visão da qual deve ser o objetivo do ser humano e como ele dever agir, bem como discutir o que se deve fazer, os valores, o certo e o errado, o bem e o mal, sem ates de tudo definir e discutir o conceito de ética, salvo raras exceções.
Na história da filosofia só recentemente a ética passou a ser definida como um “ramo” dela mesma. Quando e como isto ocorreu? Ocorreu com a formação da moderna sociedade capitalista e com a transformação que esta sociedade produziu nas ideologias e na filosofia em especial. Na sociedade capitalista, todo saber precisa de uma aplicação prática e por isso o saber especulativo é abandonado. A ciência assume o posto de forma dominante de ideologia dominante outrora pertencente à teologia (feudalismo) e à filosofia (escravismo). Na idade média, sob o modo de produção feudal, a filosofia subsistiu, mas de forma subordinada à teologia e hoje ela sobrevive de forma subordinada à ciência.
A ciência reproduz internamente a divisão social do trabalho existente na sociedade capitalista. A primeira grande divisão ocorreu entre as ciências naturais e as ciências humanas e posteriormente no interior de cada uma delas. É justamente isto que possibilitou hoje a tentativa de transformar a ética numa ciência (Vázquez). A filosofia antiga era não-institucional ou era veiculada nas instituições criadas pelos próprios filósofos (academia, liceu). Na sociedade moderna, principalmente a partir de sua consolidação cultural ocorrida no século 20, a filosofia tornou-se institucional. Hoje, para ser filósofo, é preciso ter o diploma de graduação ou pós-graduação em alguma universidade reconhecida legalmente. Antes, bastava pensar o mundo e elaborar um conjunto de ideias para ser considerado um filósofo. Hoje, se estuda a história da filosofia e se reproduz o que os grandes filósofos do passado disseram. A autonomia da razão pregada pela filosofia iluminista se extinguiu devido sua institucionalização e ao predomínio do culto à autoridade, à razão instrumental, ao discurso técnico, segundo o qual somente os especialistas com seu conhecimento técnico podem tratar de um assunto que é de sua especialidade.
Além disso, o desenvolvimento da filosofia passou a ser subordinado ao da ciência e é por isso que ela reproduziu internamente a divisão do trabalho intelectual existente naquela. Isto, inclusive, via contra a pretensão de globalidade da filosofia que muitos filósofos ainda atribuem à ela. Surge, assim, a filosofia da história, a filosofia da arte, a filosofia da educação, a filosofia da ciência, a filosofia da linguagem, a ética, etc. desta foram, a ética como conceito filosofia passa a ter dois significados: um ramo da filosofia, ou seja, uma parte da filosofia geral, uma “filosofia particular” que se preocupa com um determinado conteúdo (a ética) e ao mesmo tempo este conteúdo, também chamado ética.
A ética como ramo da filosofia discute a questão do dever, da determinação e da liberdade, etc., ou seja, questões genéricas e não questões concretas. Alguns filósofos, influenciados pela concepção marxista, chegam a afirmar que ela “ocupa-se imediatamente das ações dos homens, e como estas estão em grande parte dirigidas para a obtenção dos meios de vida e para assegurar a continuação da vida humana, a ética está intimamente associada à base econômica da sociedade” [7]. Mas aí se encontra uma exceção. Na maioria das vezes, contemporaneamente, se coloca a ética como algo que deve ser explicado e não se problematiza a questão de como deve ser vivida.
A filosofia contemporânea, que é uma filosofia acadêmica, geralmente não problematiza o conceito de ética e se limita a sintetizar ou reproduzir a história da filosofia e suas especulações sobre ética. Sem dúvida, a história da filosofia apresentou diversas contribuições para a compreensão da questão da ética. Ocorre, porém, que a ética não é apenas um problema filosófico ou do filósofo, pois a própria filosofia deve prestar contas à ética. Neste sentido, a ética está além da ciência e da filosofia e é desta forma que iremos tratar da questão ética. Isso, de certa forma, está de acordo com o procedimento de diversos filósofos clássicos que conceberam a ética não como uma forma de analisar os problemas morais (seja como ciência seja como ramo da filosofia) e sim como uma questão mais profunda, como a posição do ser humano diante do mundo.

A Ética Como Norma de Conduta

Na tradição filosófica clássica a questão do conceito de ética não foi problematizada tal como deveria necessariamente ocorrer. Mas a ética sempre foi vista como aquilo que deve dirigir a conduta humana. Não haveria, neste sentido, grandes distinções entre ética e moral. A grande questão era, então, definir o critério que deve dirigir a ação humana. Qual é o objetivo fundamental do ser humano e que, portanto, lhe deve dirigir a ação? Para Aristóteles é a felicidade, para Kant é a boa vontade, para os hedonistas é o prazer e assim por diante. O que se percebe é que a ética possui uma fundamentação antropológica, ou seja, na natureza humana ou pelo menos numa determinada concepção do que ela seja. Entretanto, entre estes filósofos não existe apenas uma concepção de natureza humana e sim várias, e, por conseguinte, se criou várias concepções também de ética. Daí a discussão sobre o relativismo ético, tal como colocaremos ais adiante.
Como resolver esta questão? A solução para este problema só pode ocorrer reconhecendo-se que, se existem várias concepções de natureza humana, isto não contradiz a verdade de que só existe uma natureza humana. Isto não justificaria a existência de uma ética absoluta? Portanto, a discussão passa a girar entre o relativismo ético e a ética absoluta. O filósofo Wilhelm Dilthey já adiantava algumas conclusões das ciências humanas: “não se pode responder a priori à seguinte pergunta: o que é ética? A resposta, tampouco, pode ser deduzida de um par de processos éticos. Devemos interrogar a própria evolução da moral, e em diferentes épocas, sendo que esta dará respostas substancialmente distintas” [8].
Este tipo de concepção pode justificar o relativismo ético. Mas resta saber o que é pior: o relativismo ético ou uma ética absoluta? A resolução deste problema, a nosso ver, só pode ocorrer através da distinção entre ética e moral (mas não só como apresentada nas definições cientificistas ou “racionalistas” da ética como “ciência da moral” ou como “ramo da filosofia”) e do reconhecimento da existência de uma ética universal e de diversas éticas particulares.

Ética e Moral

O que distingue ética e moral? Podemos dizer que a moral é uma conduta prática que ocorre em situações concretas. Mas não se trata de uma conduta qualquer e sim de uma conduta que é dirigida por considerações sobre o dever, as obrigações, o certo e o errado, o bem e o mal, os valores. Neste sentido, tanto Vázquez quando Ash estão corretos. A distinção entre ética e moral encontra um sólido apoio no fato de que a ética nos remete aos princípios gerais que devem moer as ações humanas e a moral nos remete a uma preocupação com a questão do certo e do errado, da obrigação, etc., em uma situação concreta, ou seja, levanta este tipo de questão: é certo ou errado mentir para um amigo para evitar o seu sofrimento?[9].
Disto deriva a questão de como cada indivíduo elabora sua ética. Qual é o critério para se elaborar uma ética? Além disso, posso dizer que a ética é um problema exclusivamente individual? Aqui podemos dizer que a ética deve ter uma fundamentação na natureza humana[10], (antropológica, segundo linguagem filosófica) e, ao mesmo tempo, deve estar intimamente ligada ao projeto de vida do indivíduo. E, sem dúvida, todas éticas existentes são frutos de uma concepção de natureza humana. O que isso significa? Significa que a ética elaborada por um indivíduo deve ter como base uma concepção de natureza humana e um projeto de vida. Estes são os fundamentos para se elaborar os princípios e valores fundamentais que irão determinar a ação humana. Entretanto, em certas situações concretas pode ser impossível executar uma tal ação e, neste caso, então se deve elaborar uma ética visando remover este obstáculo para assim garantir sua concretização futura.
A ética é um problema apenas individual? A nosso ver, não, pois um indivíduo elabora sua ética não apenas em relação a si mesmo. O indivíduo, como é um ser social e só pode existir no interior de uma associação com os outros seres humanos, isto é, no interior de uma sociedade, elabora sua ética para conduzir suas relações sociais. O indivíduo só existe no interior de um conjunto de relações sociais e por isso ele deve elaborar sua ética para atuar neste contexto. Acrescente-se a isso as necessidades afetivas e existenciais do indivíduo que são concretizadas apenas nas relações sociais e veremos que a ética é um problema de cada indivíduo, mas não é um problema individual.
Além disso, o indivíduo não elabora arbitrariamente sua ética, pois ele é um ser social e sua mentalidade (e, por conseguinte, sua concepção de natureza humana), seus interesses e seu projeto são produzidos nas suas relações sociais e são determinados por tais relações. Para uns, o indivíduo é totalmente determinado e para outros é completamente livre. Do nosso ponto de vista, estas concepções são equivocadas. O indivíduo é determinado pela sociedade, mas possui uma autonomia relativa (que varia, de acordo com a sociedade e com o momento histórico) e por isso ele é responsável pelos seus atos, embora parcialmente. A sua ética, portanto, não é elaborada arbitrariamente, mas ele possui a possibilidade de repensá-la e alterá-la, embora em certas situações isto seja pouco provável. Portanto, é preciso distinguir entre possibilidades e probabilidade, sendo que a primeira apenas coloca que é possível, mas é a segunda eu pondera as tendências e contratendências e quais delas são mais fortes ou fracas. Somente assim podemos compreender a margem de liberdade do indivíduo e, consequentemente, seu grau de responsabilidade em suas ações.
Portanto, a ética deve ser compreendida como um verdadeiro ethos, tal como colocou Max Weber[11]. Entretanto, este “ethos” ou “modo de ser” deve ser diferenciado de outras formas de unidade entre discurso e ação. A ética – ou modo de ser – de um indivíduo é um tipo de comportamento que corresponde a valores fundamentais, ou seja, onde há uma unidade entre discurso e ação, sendo que o discurso, nesse caso, significa a verbalização dos valores fundamentais de um indivíduo. É o caso da ética protestante analisada por Weber, no qual se encontra um conjunto de valores e práticas que não se contradizem.
A moral, por sua vez, não pensada e desenvolvida por um indivíduo. Ela é imposta pela sociedade ao indivíduo, tal como colocou Freud[12] e posteriormente Reich, no que diz respeito à moral sexual cristã[13]. É por isso que a moral pode ser aceita e reproduzida pelo indivíduo no discurso mas não ao nível da prática. Um exemplo fornecido por Sartre pode facilitar a compreensão disto:

“Em uma pesquisa feita em um liceu para moças, à primeira pergunta ‘você mente’, 50% responderam: muitas vezes; 20%: frequentemente e 20%: algumas vezes; 10%: nunca. À segunda pergunta ‘deve-se condenar a mentira?, 95% responderam: sim; 5%: não”[14].

O contrário também pode acontecer, ou seja, um indivíduo pode reproduzir na prática a moral imposta pela sociedade e ao mesmo tempo refutá-la ao nível do discurso. Isto pode ser ilustrado pelo exemplo oferecido por diversos militantes de partidos comunistas que criticam a moral dominante, denominada “moral burguesa” e a reproduz na sua vida cotidiana. É justamente devido a esta dicotomia entre discurso e ação que se pôde cunhar o termo de “falso moralista”. Além disso, outro problema da moral se encontra no caso de indivíduos que mantém um comportamento moral em certas situações (na família, por exemplo) e um comportamento amoral em outras situações (nas relações de trabalho, por exemplo).
Existe a possibilidade de encontro entre moral e ética? Sim, e casos de indivíduos que não só aceitam mas concordam com a moral socialmente instituída, devido em parte à sua própria situação social. No entanto, a moral instituída socialmente dificilmente é praticada em sua totalidade ou recebe concordância global por parte do indivíduo. Outra situação é a de uma sociedade na qual não haja divisão social e por isso a contradição entre os indivíduos e suas concepções éticas foram abolidas e a “moral” neste caso é a ética coletiva, que, no entanto, não é mais coercitiva. No primeiro caso, temos um indivíduo adaptado à sociedade e ao discurso dominante e, no segundo, um conjunto de indivíduos livres e associados que compartilham a mesma concepção ética.
Um exemplo poderá esclarecer melhor esta questão. Machado de Assis, em um de seus contos, intitulado Conto de Escola, narra a história de um menino que não gostava de ir à escola. Este menino ficou em dúvida:

“Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. A guiei para a escola. Aqui vai a razão. (...). Na semana anterior tinha feito duos suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara e marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande exposição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado no balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes. Começou a lição escrita. Custa-me dizer que eu era um dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção”.

Após isto, ele revela que recebeu do filho do mestre e colega, chamado Raimundo, a proposta de ensinar-lhe a lição em troca de uma moeda e sua reação:

“Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma ideia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar o mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca da lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação”.

Um outro colega chamado Curvelo observava tudo, e tinha um olhar ameaçador. O negócio foi feito com todo o cuidado para que o mestre e o colega curioso não descobrissem. Mas Curvelo descobriu e revelou ao mestre. Este chamou o menino e depois de lhe tomar a moeda e jogá-la fora lhe, “uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados”. Depois da palmatória, “pregou-nos outro sermão” e os qualificou de sem-vergonhas, desaforados, sem brios. À noite, o menino sonhou com a moeda: “sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo e sem escrúpulos...”. Na manhã seguinte, a idéia de ir procurar a moeda “fez-me vestir depressa” e acabou não indo à escola, pois encontrou no meio da rua uma companhia de batalhão de fuzileiros. Por fim, “voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso e ressentimento da alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...”.
O que este conto de Machado de Assis nos revela? Revela que o menino que é personagem central da história possui uma visão do que é certo e errado, que não é certo deixar de ir à aula, que não é certo se dizer o mais inteligente, que cometeu uma ação feia e assim por diante. Entretanto, continuava a fazer tudo que era considerado “errado”. Isto significa que ele reconhece o que é considerado  moralmente correto e incorreto, que concorda com isso – pois ele mesmo se diz sem virtudes, o que significa reconhecer como válida tal concepção moral – mas não executa uma prática correspondente ao ideal moral que ele conhece e concorda. Isto se deve ao motivo eu esta moral lhe foi imposta, que lhe é externa isto pode ser representado simbolicamente pelo personagem Curvelo, que é o vigia moral da história, juntamente com o mestre, que é aquele que pune. Em termos freudianos, Curvelo representa a moral repressiva da sociedade, vigilante, e que é introjetada pelo indivíduo em sua mente. O menino reconhece determinada concepção de virtude como válida mas não a pratica.
Portanto, a moral, devido ao seu caráter externo e coercitivo, é contraditória, pois até os indivíduos que concordam com ela não a praticam, com raras exceções. A ética, por sua vez, está intimamente ligada aos valores do indivíduo e portanto é coerente. Entretanto, existem situações nas quais os indivíduos contradizem seus próprios valores ou então quando os seus valores não estabelecem uma ordem de prioridade que o fizesse escolher entre duas opções semelhantes – geralmente em situações concretas – ou inseridas dentro de um mesmo universo ético.
Alguns exemplos poderão facilitar a compreensão disto. Um indivíduo que possui uma ética cristã pode ter como um de seus valores fundamentais o amor à vida e fazer do mandamento “não matarás” a sua máxima predileta, bem como em toda a sua existência não ter retirado a vida de ninguém. Mas, em uma determinada situação, por exemplo, num assalto, no qual um assaltante lhe aponta o revólver e torna uma ameaça concreta de retirar a sua vida ou de alguém próximo que esteja sendo assaltado, este indivíduo pode atingir o assaltante com uma barra de ferro e retirar-lhe a vida. Segundo a doutrina do direito, isto chama-se “legítima defesa”. Outro exemplo é o do caso deste mesmo indivíduo que prega o amor à vida e se vê no dilema de ter que escolher entre ir para a guerra e retirar muitas vidas ou ficar em casa e ser passivo diante do extermínio de milhões de vidas inocentes pelo exército nazista.
Sem dúvida, o indivíduo será obrigado a tomar uma decisão e em qualquer decisão que seja tomada se pode dizer que ele traiu, pelo menos no segundo caso, os seus valores fundamentais, o que quer dizer que ele não foi ético, ou seja, não manteve a coerência necessária entre discurso e ação que caracteriza a ética. Mas se este valor fundamental for refutado pelas próprias condições da realidade isto pode ser atribuído a uma falha do indivíduo? Aí entra a questão dos obstáculos à concretização da ética. Trataremos disto mais adiante.
Por fim, cabe encerrar a discussão sobre a relação entre moral e ética. Elas não se relacionam de forma nenhuma? Sem dúvida, a ética se caracteriza, segundo nossa definição, por apresentar os valores fundamentais do indivíduo e não por apresentar receitas de comportamento pra situações concretas. Entretanto, ela também se caracteriza pela unidade entre discurso e ação, o que significa que tais valores devem ser praticados em todas as situações concretas e, portanto, serve de guia para se decidir o certo e o errado, o dever, etc. qual a diferença entre ambas, então? Como foi dito anteriormente: a) a ética mantém necessariamente uma unidade entre discurso (e/ou projeto) e ação enquanto que a moral não possui, necessariamente, esta unidade; b) a ética nasce dos valores fundamentais do indivíduo (aceitos ou desenvolvidos por ele mesmo) enquanto que a moral é imposta ao indivíduo pela sociedade. Por conseguinte, para se estudar a ética é necessário observar a coerência entre discurso (que revelam valores fundamentais) e ação enquanto que para estudar a moral pode-se observar a prática concreta ou o discurso ou ambos em suas contradições.

A Ética Como Práxis

A ética deve ser, portanto, compreendida como práxis. O que é práxis? É uma atividade na qual o indivíduo coloca uma finalidade antes de executá-la, ou seja, é uma ação teleológica consciente. Marx afirma que o trabalho humano se distingue do trabalho manual justamente por isto, tal como se vê no exemplo que ele fornece da diferença do trabalho de uma abelha e de um arquiteto:

“Uma aranha executa operações semelhantes a do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos valos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu no favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente”[15].

Portanto, na práxis há uma unidade entre projeto e ação, entre querer e fazer. Este querer, este projeto, entretanto, não é produzido arbitrariamente pelo indivíduo – tal como na filosofia existencialista de Sartre em seu primeiro período – e sim de acordo com suas necessidades vitais e sociais. Onde está a especificidade da ética enquanto práxis? Esta especificidade reside no fato da ética ser dirigida por valores fundamentais para um indivíduo que os elabora conscientemente. Em que o indivíduo se baseia para elaborar estes valores fundamentais? Sem dúvida, ele os elabora conscientemente mas não arbitrariamente. O contexto histórico, a classe social, as ideologias existentes, a moral dominante, as contradições sociais, a família, etc., condicionam a elaboração destes princípios e valores por parte do indivíduo. É por isso que surgem diversas éticas, pois existem uma divisão social e esta se reflete na concepção de mundo dos indivíduos.
Mas tal reconhecimento não levaria ao relativismo ético? Não, pois o reconhecimento da existência de diversas éticas não significa dizer que todas sejam válidas, aceitáveis ou “boas”. Existe, sem dúvida, um conflito de éticas e o critério para se julgar este conflito só pode encontrar-se em uma dessas éticas. Isto não resolve totalmente o problema do relativismo ético, pois para resolvê-lo é preciso eleger uma dessas éticas como superior ou elaborar uma nova concepção de ética. Isto será abordado mais à frente.
Esta ética deveria estar acima das determinações sociais anteriormente colocadas? Isto é possível? Devemos reconhecer que nem todas as determinações sociais são prejudiciais e que isto, na verdade, é impossível. Então de onde vem a exigência de estar acima das determinações? Pelo simples motivo de que, para estar acima das éticas particulares, é preciso superar o particularismo (de uma determinada concepção de mundo ligada a uma classe social, partido, político, igreja etc.) e possuir um caráter universal, condizente com a natureza humana. Mas para superar este particularismo não é preciso ultrapassar todas as determinações sociais, pois algumas delas estão ou podem estar em concordância com a natureza humana e, neste sentido, o que é necessário superar são certas determinações sociais que produzem certas éticas. Desta forma, reconhecemos a possibilidade de existência de uma ética universal, pois esta corresponderia à natureza humana.
Qual é esta ética universal? O critério para definir qual ética pode ser considerada universal reside na compreensão da sociedade e de nosso posicionamento no seu interior, bem como o interesse em humanizar a sociedade ao invés do interesse egoísta que não se preocupa com o processo social marcado pela degradação humana. No entanto, a decisão do indivíduo vai depender não apenas de sua compreensão da sociedade mas também de sua posição social e valores preestabelecidos, ou seja, depende do processo histórico de vida do indivíduo e de como, devido a este processo, ele articula estas três instancias, sendo que em cada caso particular um aspecto pode se tornar mais importante do que os outros  - tal como no caso de um indivíduo que possui uma posição social que lhe dificulta adotar o critério mais adequado mas que devido a sua compreensão aprofundada da sociedade pode, junto com valores que lhe permitem tal compreensão, superar esta dificuldade.
A definição de ética aqui apresentada é a que julgamos mais adequada. Mas uma vez definido o conceito de ética, resta abordar a questão do conteúdo da ética, ou seja, é a ética universal e quais são as éticas particulares.

O Conteúdo da Ética:
Éticas Particularistas e Ética Humanista

Partindo do reconhecimento de que, de acordo com a definição de ética como práxis (ação teleológica consciente) fundamentada nos valores fundamentais de um indivíduo, existem diversas éticas, como resolver o dilema do relativismo ético. Tendo em vista que há uma diversidade de valores fundamentais que os indivíduos concretamente possuem, então se pode dizer, por conseguinte, que há uma diversidade de éticas. Isto não significa cair no relativismo ético? Não necessariamente, pois reconhecer que a existência de diversas éticas não significa considerar que todas possuem o mesmo valor, ou que todas sejam válidas. Daí distinguirmos entre éticas particularistas e ética universal.
A ética universal é aquela que corresponde à natureza humana. Se a ética deve ter uma fundamentação antropológica, então ela é universal. As éticas particularistas são aquelas que são constituídas em desacordo com a natureza humana, que representam determinados interesses sociais (de classe, grupos, etc., em determinados momentos históricos).
As éticas particularistas representam interesses particulares enquanto que a ética humanista representam interesses gerais. Pode parecer, então, que a ética humanista realiza um encontro com as representações cotidianas de ética, como norma de conduta que tem como diretriz o bem. Mas há algumas diferenças entre as representações cotidianas de ética e a ética humanista. Na primeira concepção, há “normas de conduta”, enquanto que na ética humanista ela é práxis, ou seja, não é um princípio imposto externamente e sim algo desenvolvido internamente pelo indivíduo. Além disso, a ética humanista diverge das representações cotidianas de ética no que se refere ao seu conteúdo, que no caso desta última, na maioria das vezes, é apenas uma expressão da moral dominante, apropriada em seus aspectos mais interessante por quem faz tal apropriação. A ética humanista, ao contrário, tem uma fundamentação não na moral e sim na natureza humana.
Mas o que é a natureza humana? Ela é o conjunto das necessidades e potencialidades humanas, destacando-se a criatividade e a sociabilidade que, ao lado das necessidades primárias, constituem sua essência[16]. Por isso, a ética humanista é aquela que se fundamenta neste reconhecimento:

“Na ética humanista o bem é a afirmação da vida, o desenvolvimento das capacidades do homem. A virtude consiste em assumir-se a responsabilidade por sua própria existência. O mal constitui a mutilação das capacidades do homem; o vício reside na irresponsabilidade perante si mesmo”[17].

Assim, resolvemos o dilema do relativismo ético. Sem dúvida, existem muitas éticas, mas somente uma é verdadeira, válida, e esta é a ética humanista, que é uma ética universal. As éticas particularistas são produtos históricos e sociais transitórios que não correspondem à natureza humana. O reconhecimento da existência das éticas particularistas não significa que elas sejam válidas, mas tão-somente que, do ponto de vista formal, são éticas. Também se fundamentam numa concepção de natureza humana mas expressam interesses particulares, de determinadas classes ou grupos sociais. A ética humanista, ao contrário, expressa não o particular e sim o universal. É a única ética válida, porque universal.
O relativismo ético é, no fundo, uma impostura. Considerar que todas as éticas sejam válidas significa aceitar todas as práticas e não colocar nenhum valor como superior a outros. O valor de lucrar acima de tudo é tão válido quanto o amor ao próximo? O valor de vencer a qualquer custo é tão válido quanto o valor da cooperação? Obviamente, isto é inaceitável. Mas, além disto, afirmar que todos os valores são válidos é, em si, uma afirmação de valor e, por conseguinte, o relativismo ético é mais um discurso que nunca se realiza na prática e serve tão-somente para esconder uma opção ética que é anti-humanista e que está a serviço da dominação.

Da Ética Humanista à Ética revolucionária

Mas a ética humanista consegue ser concretizada? Aqui entramos numa problemática que já havíamos colocado anteriormente. Trata-se dos obstáculos para a concretização da ética humanista. Numa sociedade fundamentada na exploração, na alienação, na opressão, é possível se concretizar uma ética humanista? Uma solução para isto foi apresentada por Dussel, que é a ética da libertação. Discutiremos ela mais à frente.
Antes vamos problematizar a possibilidade da ética humanista em uma sociedade fundamentada na degradação humana. A vida é um valor fundamental para todos os seres humanos e para a ética humanista. No entanto, em uma situação concreta, é possível se ver diante da situação de ter que se desrespeitar o próprio valor que nos é de suma importância. Um indivíduo na França vê seu país ser invadido pelas tropas nazistas e assassinar milhares de pessoas e ele, se for fiel ao valor em relação à vida, não irá agir contra tais tropas. Ora, então ele enfrenta um dilema ético, pois não agir significa deixar milhares de vidas serem exterminadas e agir implica em, ele próprio, retirar vidas. Tomemos outro exemplo: um indivíduo no Brasil também tem a vida como valor fundamental e está de acordo com a ética humanista, mas se observarmos que ele vive numa sociedade capitalista que é responsável pela fome e miséria de milhões de pessoas, que morrem diariamente, bem como é uma sociedade que produz formas extremas de violência que levam também à morte milhares de pessoas e, também que ele “vive normalmente” e, portanto, não busca interferir nesta sociedade para transformá-la, então ele não está de acordo com a ética humanista. Um terceiro indivíduo vive e não consegue realizar suas potencialidades. Por exemplo, “amizades” e outros elementos exigidos pela sociedade (e pouco éticos... do ponto de vista da ética humanista) para concretizar tal desejo autêntico de realização pessoal. Ele possui os valores fundamentais da ética humanista mas não os realiza na prática devido às condições sociais extremas.
Para resolver esta questão temos que reconhecer que a ética humanista só se concretiza efetivamente numa sociedade humanizada, e não pode se concretizar numa sociedade desumana, fundamentada na alienação. Mas retomemos os exemplos e tentemos uma solução. O indivíduo que se encontra no dilema ético de ser omisso e não intervir no processo de extermínio de milhares de vidas pelo exército nazista, sendo que a vida é um valor fundamental, ou agir e ele mesmo retirar vidas, que também é contra seus valores, como deve agir? Tendo em vista que é impossível a realização, em qualquer um dos casos, da ética humanista, como se deve proceder? Deve elaborar uma ética que se fundamenta num saber[18] sobre a situação concreta e que aponte para uma forma de superação deste obstáculo para a concretização da ética humanista. Esta só pode ser uma ética revolucionária. A partir da compreensão da sociedade contemporânea, ela mesma o maior obstáculo para a concretização da ética humanista, então o valor prioritário deve ser a constituição de uma nova sociedade, na qual seja superado os obstáculos para a efetivação da ética humanista. O valor fundamental é a emancipação humana, a libertação humana em geral, via condições concretas, via revolução proletária. Eis a concepção marxista confirmada pela ética humanista.
O segundo exemplo, o do indivíduo omisso, também é resolvido com a ética revolucionária. Já que o valor fundamental que é a vida é impedido de se realizar, então é preciso remover o obstáculo para que se torne possível. E por isso, a ética revolucionária aponta para a necessidade de transformação social e o indivíduo deve atuar neste sentido. É claro que esta decisão depende do nível de consciência do indivíduo. Tal como colocou Ash:

“A exploração do homem pelo homem existiu, de uma forma ou de outra, desde que a sociedade humana se dividiu, pela primeira vez, em classes; e, em proporções maiores ou menores, a troca de mercadorias tem sido uma parte da atividade econômica, num ou noutro lugar, há muitos séculos. Restava ao capitalismo desenvolver a produção mercantil ao ponto em que ela se transformou num disfarce para a mais grosseira forma de exploração, ao mesmo tempo que aqueles que conheciam o disfarce sugeriam a possibilidade de uma que nada tivesse a disfarçar, por ter suprimido a exploração de uma classe por outra. É a impessoalidade mesa da opressão econômica sob o capitalismo que não só permite os abusos excessivos como parece colocá-los acima da crítica moral poucas pessoas, educadas pela sociedade, são completamente destituídas de sentimentos humanos; mas se o sofrimento de milhões de pessoas puder ser mostrado como resultado do movimento de forças imprevistas, então ninguém, nem mesmo o mais rico, precisa sentir-se responsável. Metade da população do mundo capitalista passa fome? Bem, em termos de comércio, agimos contra os produtores primários, eis tudo. São os países subdesenvolvidos constantemente obstados em seus esforços para elevar o padrão de vida? Bem, isso simplesmente prova que as condições econômicas para o ‘arranco’, quando a industrialização adquire impulso suficiente para ser automantenedora, são mais complicados do que pensamos, e talvez se deve escrever outro livro[19] sobre o assunto”[20].

A falta de consciência das relações sociais reais, do processo de alienação e exploração, pode obstaculizar a passagem do dilema ético de alguns indivíduos[21] para a ética revolucionária. O mesmo ocorre no primeiro exemplo, pois se o indivíduo não conhece as raízes do nazismo e o terceiro as fontes do seu fracasso pessoal, então não se realiza o encontro com a ética revolucionária. Mas o terceiro exemplo serve para discutirmos tanto a afirmação acima de Ash quanto a chamada ética da libertação de Dussel. O problema dessas duas concepções de ética está no fato de serem “éticas da piedade”, ou, para usar expressão de Schopenhauer, da “compaixão”.
Em primeiro lugar, demonstra uma compreensão não muito clara da sociedade capitalista contemporânea, pois o “pobre” é visto como aquele que tem sua humanidade destruída, mas isto ocorre não são só com eles, embora neles isto se manifeste da forma mais cruel e crua. A sociedade capitalista generaliza a alienação e a infelicidade e, por conseguinte, não se trata de um problema somente dos outros, do “pobre”, mas nosso, de todos os indivíduos que vivem na sociedade capitalista. Além disso, não se trata de pensar numa expressão tão imprecisa quanto os “pobres” e sim a de classes exploradas e oprimidas em geral. Em segundo lugar, a piedade pelos outros não significa somente incompreensão da realidade social moderna, mas também da idéia de que o outro precisa de piedade e que nós, os não-pobres, somos “superiores”. Daí a necessidade de piedade. Ora, isto lembra o socialismo utópico, que Marx observou justamente, que só vê na miséria a miséria. Segundo ele, os socialistas utópicos,

“Na elaboração de seus planos, têm a convicção de defender antes de tudo os interesses da classe operária, porque é a classe mais sofredora. A classe operária só existe para eles sob esse aspecto de classe mais sofredora”[22].

Assim, nada mais natural do que ter piedade dos outros. O outro é um ser digno de pena... Penso no outro, sim, porque tenho pena dele... Ora, em primeiro lugar, o sujeito do processo de transformação social é justamente o proletariado e demais grupos oprimidos e, em segundo lugar, o conjunto de indivíduos explorados e oprimidos são seres humanos que vivem sob condições sociais desfavoráveis mas trazem em si o que existe de mais autêntico na natureza humana, inclusive a capacidade de luta e por isso não precisam da piedade de ninguém. Precisam, isto sim, de companheiros de luta. Vemos em Dussel resquícios da moral cristã, mas consideramos que a libertação segue outros rumos. Por isso, parafraseando Nietzsche, precisamos de companheiros de luta (que é uma luta de todos, minha, sua, deles...) e vivos, “não de companheiros mortos ou cadáveres”.
A ética revolucionária vai além da ética da libertação por considerar interesse de todos os indivíduos da sociedade a luta pela libertação humana, pois todos estão submetidos à alienação (em graus diferentes) e, portanto, é um interesse nosso e dos explorados e oprimidos em geral. Além disso, via o proletariado, se realiza a emancipação humana em geral, o que significa, novamente, nosso interesse comum e pessoal em tal processo. Isto, no entanto, não retira o valor da contribuição de Dussel[23], pois ele rompeu com diversas ideologias e avançou no sentido da compreensão que não basta uma ética humanista descontextualizada, abstrata. É preciso uma ética humanista concreta, histórica e ao mesmo tempo universal. Ele abre caminho para se pensar a ética revolucionária, embora esta já existisse de forma não sistemática antes dele.
Desta forma, para a ética revolucionária, o valor fundamental, que dever valer como um imperativo categórico, é a transformação social. Mas não se trata aqui de qualquer transformação, mas sim da abolição efetiva da sociedade de classes e instauração de uma sociedade verdadeiramente humana. Isto significa que a ética revolucionária descarta as concepções que apontam para falsas transformações ou mudanças que levam à implantação de novas formas de dominação (veja o caso do capitalismo de estado da Rússia, Leste Europeu, China, Cuba, etc., que ao invés de implantar o socialismo e abolir as classes sociais, realizou a reprodução do capitalismo sob outra forma). Uma ética revolucionária não pode compartilhar com ideologias autoritárias e vanguardistas e por isso o que está em questão é uma busca radical de libertação humana e no qual os fins determinam os meios e, portanto, dever ser correspondentes. Os partidos políticos ditos revolucionários não fizeram nada mais do que reproduzir a moral, os valores burgueses e relações sociais baseadas na hierarquia, no culto à autoridade, na alienação. Os partidos reformistas, por sua vez, nunca concretizaram a transformação social mas apenas legitimam e reproduzem a sociedade capitalista, realizando o mesmo processo de reprodução da moral dominante. A ética revolucionária deve tomar essa luta pela transformação radical da sociedade como um imperativo categórico (Kant), como um projeto (Sartre). Portanto, o imperativo categórico (ou projeto) da ética revolucionária é a transformação do capitalismo em sociedade igualitária e libertária, em autogestão social.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Filosofia e sua Sombra. Goiânia: Edições Germinal, 2000.



[1] VÁZQUEZ, Adolfo S. Ética. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989.
[2] VÁZQUEZ, A. S. Ob. cit., p. 7-8.
[3] VÁZQUEZ, A. S. ob. cit., p. 12.
[4] VÁZQUEZ, A. S. ob. cit.; p. 15-16.
[5] Existem várias definições de positivismo. Aqui consideramos o positivismo como toda a concepção que defende o postulado da neutralidade.
[6] ASH, William. Marxismo e Moral. Rio de Janeiro, Zahar, 1965.
[7] ASH, W. ob. cit., p. 17.
[8] DILTHEY, Wilhelm. Sistema da Ética. São Paulo, Ícone, 1994, p. 128.
[9] Veja também a posição da filósofa Agnes Heller: “o código moral e a ética podem ser inversamente proporcionais um ao outro. Se as escolhas e as ações são guiadas por um código fixo, a opção é relativamente segura e o seu conteúdo moral nunca é problemático. Além disso, a opção nunca apresenta o caráter de opção individual, só se apoia minimamente num risco pessoal, nunca é dinâmica (no sentido de poder levar em conta o ‘elemento novo’). Quando, numa situação concreta, uma escolha se impõe, a ética não? Para trazer uma certeza maior, ela pode até, ao contrário, diminuir o grau de certeza. Ela não facilita a escolha: leva ao reconhecimento de diversos aspectos da situação e do caráter relativo da opção, leva à tomada de consciência de seus riscos e possíveis consequências. Quando o indivíduo se coloca a pergunta referente ao conteúdo moral e aos possíveis abertos à sua ação, a ética pode proporcionar uma resposta a esta pergunta, mas nunca lhe oferecerá conselhos certos” (HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. 2ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, p. 112).
[10] Esta é a posição de muitos filósofos. Entre eles se destaca Spinoza, segundo qual o esforço em conservar-se em seu ser – sua natureza – é a primeira e única origem da virtude. Agir pelas leis de sua própria natureza é agir por virtude, ou seja, é ser ético” (SPINOZA, Baruch. Ética. Rio de Janeiro, Tecnoprint.).
[11] WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 5ª edição, São Paulo, Pioneira, 1987.
[12] FREUD, Sigmud. O Futuro de Uma Ilusão. Col. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1978.
[13] REICH, Wilhelm. A Revolução Sexual. 8ª edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1988.
[14] SARTRE, Jean-Paul. Determinação e Liberdade. In: DELLA VOLPE, Galvano & outros. Moral e Sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 34.
[15] MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. 3ª edição, São Paulo, Nova Cultura, 1988, p. 142-143.
[16] Claro que qualquer um pode dizer que esta é uma concepção de natureza humana e que, portanto, não serve de critério universal. Porém, isto seria cair no relativismo (cognitivo e, por conseguinte, ético). Sem dúvida, existem várias concepções de natureza humana mas elas são produtos sociais que representam interesses sociais históricos e socialmente determinados, mas isso não quer dizer que sejam equivalentes ou relativas. Por conseguinte, aqui se apresenta uma concepção que, do nosso ponto de vista, é a verdadeira e, portanto, é a base da ética humanista, universal.
[17] FROMM, Erich. Análise do Homem. 2ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1961, p. 28.
[18] Este saber, sem dúvida, pode ser mais ou menos complexo. Mas cabe aqui destacar a relação entre ética e saber: a ética revolucionária é condição de possibilidade de uma consciência correta da realidade e, portanto, é seu pressuposto. No entanto, um indivíduo pode desenvolver uma ética não libertária mesmo possuindo valores humanistas, mas que devido sua consciência limitada derivada de suas “relações sociais limitadas” não consegue ultrapassar uma ética humanista abstrata. Desta foram, a ética revolucionária é desenvolvida quando o indivíduo possui um certo grau de desenvolvimento de sua consciência e também “valores humanistas” e assim observamos que os limites da consciência individual são obstáculos para a ética revolucionária, assim como o inverso é verdadeiro. Porém, no primeiro caso, a superação é possível, mas no segundo, quando os valores são o obstáculo, isto se torna impossível.
[19] Alusão irônica ao livro de ROSTOW, W. W. Etapas do Desenvolvimento Econômico. Um Manifesto Não-Comunista. 5ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1974.
[20] ASH, William. Ob. Cit., p. 152-153.
[21] É claro que isto só é válido para indivíduos com valores humanistas, pois os que possuem valores egoístas, particularistas, etc., utilizam, quando possuem consciência da real determinação da miséria generalizada da sociedade capitalista, o processo que Freud denominou racionalização para evitar o seu conflito psíquico interno.
[22] MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 7ª edição, São Paulo, Global, 1988, p., 105.
[23] DUSSEL, Enrique. Ética Comunitária. Petrópolis, Vozes, 1986.


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