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segunda-feira, 13 de julho de 2015

A ESSÊNCIA DO MARXISMO

A Essência do Marxismo
Nildo Viana


O marxismo foi adequadamente definido por Karl Korsch como “expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado”. Aparentemente é algo bem simples e que em si já define o que é o marxismo em sua essência. No entanto, dificilmente a essência se manifesta através da aparência ou das definições. No fundo, a definição é apenas uma síntese mais geral de uma essência que é o significado de um conceito. O aprofundamento é fundamental para transformar a mera definição em uma concepção, em uma explicação totalizante do fenômeno.

Para concretizar isso, é necessário compreender o que é teoria, proletariado, entre outros conceitos. Por isso é uma tarefa mais difícil do que se pensa à primeira vista. Afirmar, como o faz Karl Korsch (1977), que o marxismo é expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado traz a necessidade de entender a classe proletária. O proletariado pode ser compreendido como uma classe social que emerge no capitalismo e que se caracteriza por ser a classe produtora de mais-valor (MARX, 1988; VIANA, 2008). O proletariado só existe através da relação-capital, ou seja, sua relação com a classe capitalista. A relação-capital é produção (proletariado) e apropriação (burguesia) do mais-valor produzido. Essas são as relações de produção capitalistas e que formam as duas classes sociais fundamentais da sociedade burguesa.

No entanto, se a análise se limitasse e essa constatação, seria incompleta. Obviamente que existem outras classes sociais, embora isso não afete diretamente nossa exposição. Contudo, em pelo menos um caso é necessário haver esclarecimento, pois muitos confundem proletariado com assalariado, bem como produção de mais-valor com geração de lucro. Segundo Marx, “todo o trabalhador produtivo é um assalariado mas nem todo assalariado é um trabalhador produtivo” (MARX, 1975, p. 111). O proletário é aquele assalariado que é trabalhador produtivo, pois produz mais-valor. A produção de mais-valor é a produção de bens materiais nos quais os trabalhadores produtivos (proletários) transformam a natureza e geram mais valor ao produzir uma nova mercadoria. Nesse contexto, é fundamental entender que apenas os trabalhadores assalariados produtivos, como os operários fabris, agrícolas, da construção civil e das minas é que são proletários.

Esse adendo, no entanto, ainda não resolve o problema do caráter incompleto da definição. É preciso compreender que o marxismo não expressa teoricamente determinados indivíduos proletários ou setores do proletariado. Ele expressa a totalidade da classe proletária. Os comunistas “não têm interesses distintos dos interesses do conjunto do proletariado” (MARX e ENGELS, 1988, p. 79). A frase de Marx segundo a qual não interessa o que é o proletariado momentaneamente, nem os indivíduos proletários, mas o que ele deve ser de acordo com o seu ser de classe (MARX, 1979) é fundamental para entender isso. Aqui Marx coloca a questão do “ser” e do “dever-ser”. O ser de classe do proletariado já foi exposto anteriormente: é a classe produtora de mais-valor. Resta saber o que é o seu “vir-a-ser”. Obviamente que, no primeiro caso, temos o proletariado definido a partir de sua posição nas relações de produção capitalistas enquanto classe de trabalhadores assalariados produtivos, envolvidos na relação com a classe capitalista, enquanto classe apropriadora. Isso significa trabalho alienado, exploração, dominação, etc. O ser-de-classe do proletariado é o de uma classe determinada pelo capital, ou, como Marx colocou em uma de suas obras, “classe em si” (MARX, 1985). A terminologia hegeliana sempre foi interpretada de forma idealista, mesmo quando usada por Marx. Muitos entenderam, equivocadamente, que classe em si quer dizer classe com consciência não-revolucionária, transformando a problemática estabelecida por Marx num nível muito mais profundo em apenas um problema que ocorre no nível das ideias, das representações.

O que Marx denominou “classe para-si”, por sua vez, resolve esta questão. A classe para-si é o que se pode chamar “classe autodeterminada”. Se a classe em-si é aquela que está submetida ao capital, a classe para-si é aquela que luta e rompe com o capital, buscando sua destruição, o que significa, no fundo, sua autodestruição, pois o proletariado só vive em relação com a burguesia, a abolição de um termo existente numa relação gera destruição do outro. É por isso que quando Marx trata do comunismo não usa mais a expressão “operários” e sim “produtores”, pois o proletariado deixa de existir.

A confusão idealista em torno do pensamento de Marx, transformando a passagem de classe em-si a classe para-si como mera “tomada de consciência”, tem como fonte intelectual a leitura da obra A Fenomenologia do Espírito, de Hegel (1993). No entanto, para entender isso é necessário ler A Ciência da Lógica (2001). Os interesses, ou seja, a raiz social dessa confusão idealista, está em reduzir tudo a uma questão da consciência no sentido de supervalorar as ideias “socialistas”, “socialismo científico”, a “ciência”, que é produzida pelos intelectuais burgueses e pequeno-burgueses do “Partido”, segundo a tese socialdemocratra de Kautsky (1980) retomada sob forma bolchevista por Lênin (1985). O interesse é o da classe burocrática, em sua fração partidária e mais radical, ávida pelo poder estatal e para isso se arvorando em “vanguarda do proletariado”. A redução do proletariado como classe para-si a uma classe com consciência revolucionária é apenas a forma como, já que não é ela que desenvolve sua própria consciência, deve ser dirigida por sua suposta “vanguarda”. Eis uma primeira deformação do pensamento de Marx e os primeiros que deixam de expressar teoricamente o proletariado para expressar ideologicamente a burocracia.

Em A Ciência da Lógica, Hegel coloca a questão do ser determinado e do ser autodeterminado. O ser determinado é o imanente e o ser autodeterminado é transcendente, aquele que supera a si mesmo ao superar o outro que faz dele o que ele é. Esse elemento é fundamental para entender o significa de classe em-si, classe determinada (pelas relações de produção capitalistas e tudo que é derivado disso) e classe para-si, classe autodeterminada. A classe em-si é o proletariado em suas lutas cotidianas, seu trabalho alienado, sua resistência individual e coletiva, suas reivindicações salariais, sua aceitação das organizações supostamente defensoras dos seus interesses (sindicatos, partidos). É uma classe que não ultrapassa os limites da sociedade capitalista.

O proletariado como classe para-si, autodeterminada, rompe com o capital e passa a autogerir suas lutas no sentido da abolição do capitalismo. Nesse processo, ele cria sua associação, sua auto-organização de classe, para defender seus interesses de classe revolucionária. Marx demonstrou, em A Ideologia Alemã (1991), que toda classe social que se torna autodeterminada forma sua associação e autoeducação. Nesse sentido, não se trata apenas de questão de consciência e sim de totalidade, que envolve auto-organização (associação) e autoeducação (autoformação), forma de organização da classe operária em sua totalidade (o “conjunto do proletariado”) e não apenas grupos ou partes do mesmo, embora possa emergir e surgir inicialmente em determinados lugares e setores, mas para ser classe autodeterminada é preciso atingir o conjunto da classe.

Assim, Marx coloca que a dominação do capital e a resistência proletária geram a precondição para a revolução proletária: a luta de classes. Segundo ele, a dominação capitalista constitui o proletariado como classe, criando um modo de vida comum, interesses comuns. Ele, “é já, face ao capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta, de que assinalamos algumas fases, esta massa se reúne, se constitui em classe para si mesma” (Marx, 1985, p. 159). Por isso o proletariado substituirá a sociedade civil burguesa “por uma associação que excluirá as classes e seus antagonismos e não haverá mais poder político propriamente dito” (Marx, 1985, p. 160). É assim que se entende a frase de Marx segundo a qual ou o proletariado é revolucionário ou não é nada[1].

Assim, a tese fundamental de Marx é a de que o motor da história é a luta de classes e a constituição do comunismo é produto da luta proletária. Nesse sentido, o marxismo só pode ser expressão teórica do proletariado como classe autodeterminada, ou seja, como classe revolucionária. Não se trata, portanto, de expressar o proletariado como classe determinada pelo capital, que fica nos limites das reivindicações e reformas, lutas cotidianas e espontâneas. Sem dúvida, esse é um momento da luta e deve ser apoiado, mas não no sentido de reproduzir as práticas e concepções da classe nesse contexto, pois é preciso colaborar e lutar para que elas avancem no sentido de superar a condição de classe determinada para se tornar autodeterminada. O conceito fundamental é o de luta de classes, o que significa que o desenvolvimento espontâneo do proletariado apontaria para a autoemancipação, mas a luta da burguesia e suas classes auxiliares interrompem esse processo e por isso é necessário reforçar a luta proletária, tanto indivíduos, grupos e classes aliadas[2]. Assim, toda forma de obreirismo e reboquismo são não-marxistas e colaboram com sua manutenção como classe determinada pelo capital, ou seja, são concepções e práticas conservadoras que nada acrescentam à luta proletária que ela já não faça por si mesma e que precisa superar para se tornar classe autodeterminada.

Assim, torna-se compreensível que o marxismo é expressão teórica do proletariado revolucionário, ou seja, como classe autodeterminada, mesmo que, ainda não tenha realizado tal passagem. Isto quer dizer que o marxismo expressa o proletariado do futuro e não o do presente e ambos só se unificam quando ele se torna autodeterminado. Desta forma, os marxistas “constituem a parte mais resoluta” das tendências proletárias, “de todos os países”, sendo “a parte que impulsiona sempre mais avante”, tendo sobre o restante do proletariado, no plano da teoria, “a vantagem de uma compreensão das condições, do andamento e dos resultados gerais do movimento proletário” (MARX e ENGELS, 1988, p. 79). O marxismo é um pensamento extemporâneo, uma consciência antecipadora, e, por conseguinte, não reproduz o existente e nem cai no presentismo, pois expressa teoricamente a classe que traz em si o futuro.[3]

Nesse sentido, o marxismo é uma teoria revolucionária e uma teoria da revolução proletária[4]. É uma teoria revolucionária já que seu objetivo é a revolução e consiste numa ruptura radical com todas as ideologias e formas de ilusões da sociedade capitalista, é a antecipação da consciência do futuro no presente. E é uma teoria da revolução proletária por analisar e compreender o processo no qual o proletariado realiza a transformação radical do conjunto das relações sociais. O marxismo, assim, é uma teoria do proletariado revolucionário, sua expressão sob a forma teórica. Resta, pois, compreender o que significa ser uma expressão teórica, porquanto já se sabe quem ele expressa.

Toda classe social produz seus representantes teóricos e políticos (MARX, 1986). No entanto, quando Marx usa o termos “representantes”, nada tem a ver com a ideologia da representação política, ou ideologia da vanguarda. O que ele coloca é que os indivíduos proletários nem sempre conseguem produzir reflexões teóricas e ações políticas revolucionárias, sendo que alguns, superando os obstáculos existentes, efetivam esse processo, bem como indivíduos de outras classes, que, unindo o acesso ao mundo da cultura com o vínculo com a perspectiva do proletariado, também realizam esse processo. Esses são aqueles que expressam teórica e politicamente o proletariado.

No entanto, o proletariado pode se expressar sob outras formas, tanto sob a forma utópica, doutrinária, entre outras. O marxismo é, portanto, uma forma de expressão do proletariado, a sua forma teórico-política. Por isso é fundamental entender o significado do termo teoria. A teoria é uma forma de consciência que emerge num determinando momento histórico. Ela teve antecedentes embrionários em outras formas de consciência, mas é com a obra de Marx que ela se constitui de forma mais completa e desenvolvida. A formação do movimento operário abriu caminho para o desenvolvimento de uma consciência crítica e utópica e suas lutas possibilitaram a emergência da teoria. Num primeiro momento, o movimento operário gera o socialismo chamado de “utópico”, bem como outras manifestações culturais, mas com as lutas proletárias mais radicalizadas é que o proletariado acaba emergindo como força política e passa a ser percebido como a classe revolucionária de nossa época. O marxismo é produto da luta operária[5].

A emergência de diversas concepções num determinado momento histórico, alguns como expressão do proletariado, como o socialismo utópico e o anarquismo, convivem com o desenvolvimento das ideologias burguesas. As ideologias burguesas são as formas modernas de ideologia. A ideologia é um sistema de pensamento ilusório (MARX e ENGELS, 1991) que emerge com a divisão entre trabalho manual e intelectual, fazendo surgir os seus produtores, os ideólogos, especialistas na produção cultural. A ideologia é um pensamento sistemático, sendo produzida por especialistas no trabalho intelectual, que dispõem de tempo e recursos para desenvolver concepções sistemáticas a respeito do mundo, tal como no caso da filosofia grega, teologia medieval e ciência moderna. As classes exploradas, na história, não tinham condições de produzir algo semelhante e com raras tentativas produziu algumas expressões culturais, mas somente no capitalismo esse quadro se altera. Com o desenvolvimento tecnológico, invenção da imprensa, bem como pelas necessidades do capitalismo de alfabetização e outras, acabam permitindo o desenvolvimento de uma cultura proletária. No entanto, essa geralmente fica no nível das representações cotidianas ou, no máximo, de representações congruentes[6]. Essas formas de representações, quando produzidas pelo proletariado, são contraditórias, unindo elementos de aceitação e negação da sociedade burguesa, sendo que algumas acabam sendo conservadoras e outras assumem uma posição revolucionária. No entanto, mesmo quando avançam para uma posição revolucionária, acabam sofrendo influências de ideologias e concepções burguesas ou de outras classes sociais. Por isso a teoria é a expressão cultural mais desenvolvida não só por sua complexidade, mas também por sua coerência e ser expressão da realidade. Nesse sentido, a teoria é uma consciência correta da realidade que possui um alto grau de complexidade e desenvolvimento, gerando um universo conceitual que expressa e explica a realidade, e cujo objetivo é a transformação social[7], o que significa que só é possível de se manifestar através da perspectiva do proletariado.

Essa produção intelectual revolucionária e complexa, para emergir, necessitava de uma ampla pesquisa e reflexão, que, partindo das contribuições existentes e da constituição de um novo pensamento, pudesse cumprir essa tarefa de expressar teoricamente a perspectiva do proletariado. Alguns indivíduos esboçaram esse processo e um acabou conseguindo realizar a síntese e desenvolver tal teoria em alto grau de desenvolvimento e complexidade. Esse mérito coube a Karl Marx. A formação intelectual de Marx, seus estudos sobre filosofia alemã, especialmente Hegel e Feuerbach, bem como o seu posterior estudo da economia política inglesa, socialismo utópico, historiadores, antropólogos, entre outros, forneceram um conjunto de elementos que ele assimilou e sintetizou no que depois foi chamado de “marxismo”. A dialética hegeliana, expressão de uma concepção inspirada na revolução burguesa e o humanismo feuerbachiano foram fundamentais para o desenvolvimento do método dialético e do humanismo marxista. O socialismo utópico, expressão inicial do proletariado, serviu para observar o papel revolucionário dessa classe e a luta de classes, bem como a economia política inglesa serviu de ponto de partida para uma compreensão mais concreta do modo de produção capitalista. Estes aspectos, e outros, inclusive envolvendo outras fontes inspiradoras, abriram caminho para que Marx, a partir de seu projeto (derivado de seus valores, projetos, etc.) pudesse elaborar uma verdadeira teoria da sociedade e seu processo de transformação e sua tendência para a autoemancipação humana.

Os primeiros textos escritos por Marx manifestavam um humanismo abstrato que, posteriormente, se transforma num humanismo concreto, revolucionário, proletário. É preciso deixar claro que o marxismo é um humanismo – fundamentado numa concepção de natureza humana[8] – e a emancipação humana era a preocupação fundamental de Marx e esse momento abriu caminho para o momento posterior, que foi entender que tal emancipação ocorre através da revolução proletária. A partir do breve texto Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, ele começa a constituir o marxismo e seus elementos fundamentais. A partir daí desenvolve a teoria da alienação e da história, e, posteriormente, do capitalismo e do comunismo, entre diversas outras[9]. Alguns elementos foram mais desenvolvidos, outros menos, alguns apenas foram esboçados ou citados. A brevidade da vida não deixou ele apresentar nem mesmo sob forma mais completa uma teoria do modo de produção capitalista. Contudo, lançou as bases para a compreensão do modo de produção capitalista, da história da humanidade, etc. Nesse sentido, o marxismo se tornou ponto de partida para todos que buscam uma consciência correta da realidade e não querem “reinventar” a roda[10].

No entanto, é fundamental aprofundar o significado do conceito de teoria. A teoria é uma consciência correta da realidade, que pode emergir de forma mais simples e direta, dando-lhe coerência, fundamentação (o que pressupõe ser uma totalidade e não um saber parcial) e produzindo um universo conceitual[11] articulado e complexo. A realidade existente é complexa e por isso sua expressão teórica também deve ser complexa, sob pena de deformá-la ao invés de expressá-la. Essa complexidade se manifesta através de um conjunto de teorias que forma a teoria no nível mais totalizante, que é o marxismo. Esse conjunto de teorias se organiza através de conceitos. A teoria articula, ou seja, reúne, relaciona, numa totalidade coerente e complexa, um conjunto de conceitos. O conceito é expressão da realidade (MARX, 1985)[12], ou seja, manifesta idealmente o que existe realmente, efetivamente.

A teoria é uma totalidade composta por um universo conceitual no qual sempre se pode acrescentar novos conceitos. Ela é sempre incompleta e quanto mais se desenvolve, mais ampla fica, ou seja, torna-se menos incompleta. Quanto mais se analisa a realidade social, mais elementos e aspectos aparecem para ser analisado, bem como uma reformulação num aspecto já analisado leva a necessidade de reformulação em outro aspecto. É um processo infinito de desenvolvimento da consciência teórica. Os conceitos apresentam a definição sintética de um fenômeno social, mas ao fazê-lo remete a outros conceitos e assim sucessivamente. O conceito de proletariado pressupõe os conceitos de mais-valor, burguesia, capital, entre inúmeros outros e estes, por sua vez, rementem a outros, já existentes ou que precisam ser desenvolvidos.
A teoria, como colocamos anteriormente, é um saber interessado e nada tem a ver com a ideologia da neutralidade, pois ela expressa interesses, necessidades, valores, sentimentos, que são expressão do proletariado revolucionário, manifestação contemporânea e concreta da luta pela emancipação humana. Isso pressupõe que a produção teórica e a compreensão da teoria não são coisas neutras e desinteressadas ou apenas “exercício intelectual” por si mesmo ou então apenas forma de conseguir ganhar a vida como intelectual e sim compromisso radical com a transformação total e radical das relações sociais, o que pressupõe outros compromissos, tal como com a verdade, a liberdade, a autogestão, etc.

A teoria é também práxis, ou seja, atividade (mental) teleológica e consciente. Isso significa que ela possui uma finalidade consciente. Essa finalidade consciente é a transformação radical do conjunto das relações sociais, a abolição do capitalismo e instituição da autogestão social, ou seja, a emancipação humana. Logo, é sua intenção expressar a perspectiva do proletariado, pois essa é condição de possibilidade para uma consciência correta da realidade.

Isso se manifesta concretamente não só pelas questões e respostas que a teoria coloca, mas também por manifestar necessidades radicais do proletariado e por isso precisa realizar a sua fusão com o mesmo. A assimilação da teoria em sua totalidade pelo conjunto do proletariado é algo quase impossível, mas elementos dela, seus aspectos essenciais e ligados às necessidades práticas do movimento revolucionário, Esse processo só se concretiza em sua totalidade na futura sociedade autogerida. A revolução social é um processo no qual uma força material derruba outra força material, mas a teoria, segundo Marx (1968) também se torna força material quando se funde com o proletariado. Essa fusão ocorre sob várias formas, desde as mais simples até as mais complexas, variando de acordo com o contexto (sociais e históricos), os indivíduos, os grupos, etc. O proletariado caminha espontaneamente para a teoria nos momentos de radicalização das lutas de classes, mas encontra pela frente os obstáculos burgueses e burocráticos, e por isso a produção e divulgação da teoria é necessária e parte fundamental da luta revolucionária, no sentido de buscar se aproximar do proletariado e realizar a fusão explosiva entre práxis dos revolucionários e práxis do proletariado, unindo ação e reflexão numa totalidade revolucionária. Por isso, afirmar que o marxismo é expressão teórica do proletariado revolucionário significa dizer que é, simultaneamente, sua expressão política, que se manifesta na práxis revolucionária, que é atividade (mental e prática) teleológica (com uma finalidade/projeto: a revolução proletária e a autogestão social) consciente (que reflete sobre si mesmo e seus objetivos). Essa é a essência do marxismo.

Referências

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. 2 vols. 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 1993.

HEGEL, G. W. F. Lógica. Navarra: Folio, 2001.

KAUTSKY, K. As Três Fontes do Marxismo. São Paulo: Global, 1980.

KORSCH, K. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.

LÊNIN, W. As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo. 5ª Edição, São Paulo: Global, 1985.

MARX, Karl e Engels, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Hucitec, 1991.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família. Lisboa: Presença, 1979.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª Edição, São Paulo: Global, 1985.

MARX, Karl. Crítica de la Filosofia del Derecho de HegelBuenos Aires, Ediciones Nuevas, 1968.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. 3ª Edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988a.

MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas A Kugelman. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

MARX, Karl. Teorias da Mais-Valia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

VIANA, Nildo. O que é Marxismo? Rio de Janeiro: Elo, 2008.






[1] Para uma análise mais pormenorizada dessa questão, além dos textos citados de Marx (e outros não citados), pode-se consultar meus livros”Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente” ou”A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx”, entre outros, bem como outros autores, tais como Pannekoek, Korsch, Guillerm e Bourdet, etc.

[2] Toda concepção que reduz a sociedade capitalista a apenas duas classes acaba reforçando ilusões, além de mostrar incompreensão da teoria das classes de Marx e não leitura de suas obras.

[3] O autor que mais aprofundou a questão da consciência antecipadora e utopia concreta, fundamentais para o marxismo, foi Ernst Bloch, o teórico da utopia.

[4] Vários destes elementos foram retomados e desenvolvidos por alguns marxistas, como Pannekoek, Rühle, Korsch, Mattick, entre outros. Nos limitamos a Marx e não citamos estes outros autores marxistas por dois motivos básicos: seria repetitivo e longo, por um lado, e o foco no nome”marxismo” remete ao fundador dessa teoria e isso ganha importância em nossa síntese final sobre a sua essência.

[5] Isso é bem distinto da ideologia leninista, segundo a qual o marxismo teria se originado do pensamento anterior, da síntese da filosofia alemã, economia política inglesa e socialismo utópico francês (LÊNIN, 1985), concepção nitidamente idealista e contestada por diversos autores (KORSCH, 1977; VIANA, 2008).

[6] As representações cotidianas são aquelas produzidas na vida cotidiana e que expressam suas características, sendo que a simplicidade é um elemento que a distingue com mais força das demais formas de pensamento. As representações congruentes são aquelas que ainda não atingiram um grau de complexidade elevado (como a ciência e a filosofia), mas já possuem uma coerência e percepção de conjunto, tal como as utopias, doutrinas, religiões, etc.

[7] A frase de Marx ajuda a entender isso:”os filósofos se limitaram a interpretar a realidade, o que importa é transformá-la” (MARX e ENGELS, 1991). O marxismo, enquanto teoria revolucionária, une explicação/expressão, ou seja, consciência, da realidade com a busca de sua transformação, sendo esta a razão de ser dela, sua determinação fundamental, e uma vez constituída, ela é uma forma de luta por sua concretização. A necessidade e desejo de transformação radical do conjunto das relações sociais, cujo agente é o proletariado, gera a teoria que expressa idealmente essa necessidade/desejo, ou os interesses do proletariado revolucionário, através de uma produção intelectual profunda, complexa, verdadeira, que ao existir torna-se forma de luta, ao exercer a crítica das ideologias e da sociedade capitalista, bem como apontar as tendências de mutação e transformação e seus obstáculos, além de desenvolver ferramentas intelectuais (como o método dialético) e políticas (a estratégia revolucionária) que são fundamentais para luta proletária e a constituição da sociedade autogerida.

[8] O pseudomarxismo, especialmente o stalinista e estruturalista, ou seja, os seguidores de Stálin e Althusser, são”anti-humanistas”, o que significa, no fundo, que são antimarxistas. A recusa da teoria marxista da natureza humana é uma recusa do marxismo. A concepção marxista de natureza humana é aquela que reconhece que para satisfazer suas necessidades básicas, os seres humanos criaram novas necessidades, que se tornaram sua essência, e estas novas necessidades são o trabalho e a associação, ou seja, a atividade teleológica consciente, práxis, e a sociabilidade, o que faz do ser humano um ser práxico e social. Somente na ideologia, ou seja, na consciência falsa sistematizada, é que não existe natureza humana.

[9] O marxismo é uma teoria geral que desenvolve diversas teorias específicas. Ao elaborar uma teoria do modo de produção capitalista, surge a necessidade de desenvolvimento teórico de questões mais específicas, tal como uma teoria dos valores de uso no capitalismo, por exemplo. Da mesma forma, é necessária uma teoria do Estado capitalista, etc., ou seja, assim como a realidade é infinita, a teoria também se amplia da mesma forma, sem falar em retomada e aprofundamento do que já foi desenvolvido, inclusive com revisão de pontos problemáticos. Isso significa que o marxismo não abarca tudo, mas cada vez amplia mais a sua extensão. O pseudomarxismo petrificado e estático se contentou em repetir o que já tinha sido dito (sob forma deformada, simplificada, coisificada) e nem sequer percebeu que nem mesmo a parte mais desenvolvida do marxismo, a teoria do modo de produção capitalista, estava completa e que seria necessário ampliar e resolver inúmeras questões não abordadas por Marx. Desta forma, é preciso compreender que o marxismo é uma forma de consciência e, a partir do momento que um indivíduo o compreende, deve desenvolvê-lo. Esse é caso da consciência individual, pois quanto mais um indivíduo ganha experiência e realiza reflexões, mais desenvolve sua consciência e amplia sua percepção da realidade.

[10] Curiosamente, alguns”marxistas” ou ex-”marxistas” tentam criticar Marx para substituí-lo, não percebendo que essa ambição individual oriunda da sociabilidade capitalista é nada mais do que uma forma de deformação da realidade através de motivações individuais fundadas nos valores e mentalidade dominantes.

[11] A expressão”universo conceitual” visa deixar claro que é algo infinito, pois sendo a realidade infinita, o desenvolvimento da teoria significa ampliar cada vez mais elementos dela que são expressos sob a forma de conceitos, o que significa que os conceitos do marxismo sempre se ampliam.

[12] Marx usa”categorias” como sinônimos de”conceitos”. Nós distinguimos categorias e conceitos (VIANA, 2007), sendo que no primeiro caso temos ferramentas intelectuais para analisar a realidade e no segundo expressões da mesma. Assim, o termo”relação” é uma categoria, uma ferramenta intelectual para pensarmos a realidade, enquanto que”relações de produção capitalistas” é conceito, expressando relações sociais concretas e existentes na realidade.

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