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sexta-feira, 25 de julho de 2014

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domingo, 20 de julho de 2014

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Tempo Individual e Tempo Histórico



TEMPO INDIVIDUAL E TEMPO HISTÓRICO


Nildo Viana



Algumas pessoas confundem o tempo individual com o tempo histórico. O tempo individual é aquele do indivíduo, do cotidiano, dos processos sociais que o atinge momentaneamente ou mesmo mais prolongadamente. O tempo histórico é o das sociedades, de suas mutações, suas épocas, seus ciclos, que são expressos em periodizações no nível da consciência.

A dinâmica do tempo individual é distinta da do tempo histórico. O indivíduo, dependendo de sua situação e condições de vida, pertencimento de classe e outros aspectos, pode se sentir impotente, pessimista, envolvido em processos e acontecimentos que não controla. Isso tem a ver com a capacidade individual de intervir no tempo histórico, que é pouca, e está submetido a ele, mas faz parte dele e pode exercer uma influência, maior ou menor, dependendo de diversas determinações, sobre o seu curso. Na política, o avanço ou recuo do proletariado e demais classes desprivilegiadas tendem a atingir os indivíduos que pensam no momento cotidiano, no tempo individual, e não nos processos sociais mais amplos que são muito mais determinantes do tempo histórico e o recuo de uma semana ou mês pode ser contrabalançado ou superado pelo avanço dois meses depois. Uma derrota na vida pessoal ou na posição política aparece como algo catastrófico e assim passa a reinar o pessimismo. Alguns indivíduos concretos podem ter maior dificuldade de dar a volta por cima, de recuperar das derrotas, dos acidentes, dos recuos próprios, alheios ou coletivos, enquanto que outros já superam e continuam firmes na luta, sendo que o derrotismo e pessimismo fortalece justamente a tendência que o gera e o "otimismo militante" (Ernst Bloch) aponta, ao contrário, para a renovação das forças e reforçar a tendência que se defende. No plano do tempo histórico e das lutas sociais, o processo é diferente, são constantes avanços e recuos. Marx explicitou isso em relação às revoluções proletárias:

As revoluções burguesas, como as do século XVIII, avançam rapidamente de sucesso em sucesso; seus efeitos dramáticos excedem uns aos outros; os homens e as coisas se destacam como gemas fulgurantes; o êxtase é o estado permanente da sociedade; mas estas revoluções têm vida curta; logo atingem o auge, e uma longa modorra se apodera da sociedade antes que esta tenha aprendido a assimilar serenamente os resultados de seu período de lutas e embates. Por outro lado, as revoluções proletárias, como as do século XIX, se criticam constantemente a si próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que toma impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam:
Hic Rhodus, hic salta!
Aqui está Rodes, salta aqui!

O tempo individual revela a consciência individual do tempo presente nesse limite. Os indivíduos devem entender que este é englobado por um tempo muito mais amplo, o social e histórico, com outra dinâmica e por isso que pode surpreender e muitas vezes surpreende. Assim como ninguém esperava certas tentativas de revoluções e lutas radicalizadas, como no caso do Maio de 1968 em Paris ou as manifestações do ano passado no Brasil, entre milhões de outros exemplos, os momentos de recuo e fortalecimento dos adversários e tendências contrárias não devem gerar pessimismo e derrotismo. As contradições e lutas não foram exterminadas, no máximo foram reprimidas e tudo que é reprimido tende a reemergir, e muitas vezes com mais força e radicalidade do que anteriormente, e o que justificou sua repressão. Além disso, a experiência anterior deve servir para o aprendizado e ações mais refletidas e desenvolvidas numa nova investida, de preferência com "impiedosa consciência" das "deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços". Então, ao invés de choramingar, é melhor organizar, refletir, avançar e reiniciar a luta num nível mais elevado.

Leia Mais:
O Papel do Indivíduo na História.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

SETE RAZÕES PARA A DERROTA DESASTROSA DA SELEÇÃO BRASILEIRA


SETE RAZÕES PARA A DERROTA DESASTROSA DA SELEÇÃO BRASILEIRA

Nildo Viana

Um jogo de futebol é algo que todos que assistem podem ter uma ideia geral do que ocorre. Uma grande parte dos torcedores busca compreender o que ocorre e suas razões, e para isso usam, além do que viram efetivamente nos noventa e poucos minutos, aquilo que sabem sobre esse esporte, usando as informações existentes e que chegaram ao seu conhecimento, e os comentários daqueles que supostamente entendem do assunto. Apesar de muitos perceberem que aqueles que supostamente entendem do assunto mudarem de opinião com uma grande facilidade (se o time está ganhando no primeiro tempo, os comentários apontam para estar bem, tecnicamente, jogando bem, etc., e se o jogo vira, alguns dizem que já não estava bem desde o começo...) não entendem tanto assim e misturarem argumento “técnicos” com impressões e pouco mais que isso, ainda dão crédito aos comentaristas. Esses, no entanto, geralmente ficam no nível das representações cotidianas (“senso comum”), e alguns ainda avançam num discurso técnico sem maiores elaborações.

No entanto, um jogo de futebol não é só o que ocorre no campo durante noventa e poucos minutos. Há muito mais em “jogo”, para usar um trocadilho. Há o contexto social geral, os interesses existentes, as forças e tendências extracampo. Bem como, no campo não existe apenas o jogador X, sempre o mesmo e igual, pois ele é um indivíduo como qualquer outro e pode estar bem ou mal, seja física ou psiquicamente, pode estar influenciado ou não por pressões, problemas, entre diversos outros elementos que faz a realidade existente ser praticamente infinita. No entanto, para muitos, a realidade é reduzida a noventa e poucos minutos e ações de seres reduzidos à categoria “jogador de futebol” (e não um ser humano concreto e real, com tudo que é derivado dessa condição) no contexto bastante limitado.

Esse é o mundo das aparências, que é o mundo visível e que a maioria aceita e se move nele. Mas para uma compreensão mais profunda de um jogo de futebol específico, como o de ontem, no qual a seleção brasileira de futebol, a mais tradicional do mundo, perdeu vergonhosamente para a seleção alemã por 7 a 1, esse mundo é insuficiente. Os envolvidos e outros dirão: “é inexplicável”, tal como se viu em entrevistas. Eis a “explicação”: não há explicação. Contudo, uma análise mais profunda e que tente superar as aparências, que tenha um método de análise (que, por exemplo, gera o pressuposto de que um jogo de futebol é uma totalidade envolvida em uma outra totalidade muito mais ampla), permite pelo menos ensaiar uma explicação do “inexplicável”. Eis o nosso objetivo neste texto.

O método dialético tem um pressuposto: “o concreto é o resultado de suas múltiplas determinações”, ou seja, um acontecimento real tem diversas determinações que o constituem da forma como ele ocorreu. Por isso, apontaremos sete determinações (ou “motivos”, “razões”, “causas”) para a derrota ocorrida ontem da seleção brasileira para a seleção alemã por um placar tão elevado e surpreendente. Claro está que além dessas sete existiram outras, mas essas são, a nosso ver, as mais importantes.

1º) A Seleção Brasileira Atual é Fraca

Para quem conhece minimamente a história do futebol brasileiro, que já teve grandes seleções e craques, sabe que a atual seleção brasileira não se compara com outras do passado. No fundo, a atual seleção brasileira é relativamente fraca. Os seus resultados modestos nos jogos anteriores mostraram isso. Com exceção relativa de Neymar, o nível geral dos jogadores não é nada excepcional. E a estrela dele brilha mais inclusive porque as outras brilham menos. Em outras épocas, a dele é que seria mais apagada diante de outras mais reluzentes. A seleção brasileira não tem mais num mesmo time Vavá, Pelé e Garrincha, nem mesmo Oscar, Júnior, Falcão e Zico, entre outros destaques no mesmo time. Foi na Copa de 1982 que esses últimos jogaram com habilidade, até com chapéu nos adversários. Agora é o arroz com feijão e se aparece um tomate é destaque. Neymar é o tomate da seleção brasileira. Assim, não era de se esperar que tal seleção, mediana, fosse campeã de qualquer jeito: ela teria obstáculos e adversários fortes que poderiam derrotá-la (Bélgica, Argentina, Holanda, Alemanha, etc.) e seriam nos noventa e poucos minutos (ou nos pênaltis, a partir de certo momento) é que seria decidido o resultado de cada jogo sem grande favoritismo, dependendo de várias outras determinações. No entanto, se fosse uma grande seleção como as do passado, o placar vergonhoso não teria ocorrido, e, como essas grandes seleções sofreram derrotas apesar de jogar melhor, a derrota é normal, mas dessa forma é devido a não só um conjunto de outras determinações, mas a própria fragilidade da seleção.

2º) A Seleção Brasileira estava desestabilizada emocionalmente

Um elemento que contribuiu com a derrota vergonhosa de 7x1 foi a falta de estabilidade psíquica (emocional) dos jogadores. Aqui está o ponto chave do “inexplicável” e que poucos se atentaram. Os jogadores estavam perdidos em campo. E por qual motivo? Sem dúvida, são jogadores que sabiam de seus limites e que estavam enfrentando um jogo decisivo contra o adversário mais forte que enfrentou até então. É uma copa do mundo em casa, ou seja, no próprio território brasileiro, diante de sua torcida massivamente presente nos estádios e fora deles. E isso se agravou mais ainda, pois a ausência de dois titulares promovia mais insegurança e temor diante do adversário, principalmente quando um destes é o grande destaque do time, Neymar. Um time fraco e abatido diante de uma partida decisiva e sob pressão da torcida e dos interesses em jogo (fama, sucesso, dinheiro, futuro profissional, o nome na história do futebol brasileiro, apesar de que para alguns esses ou alguns desses aspectos pesavam menos) se desestruturou psiquicamente.

Além disso, havia a situação da sociedade brasileira. Se a Copa do Mundo no Brasil fosse há 10 anos, haveria uma quase unanimidade nacional a favor da seleção e da sua realização. Além de alguns poucos alheios ao futebol, contestadores sociais mais radicais, e mais alguns, a população brasileira em peso apoiaria o evento e a seleção. Porém, não é essa a realidade brasileira atual. O Brasil está dividido. Dois elementos entram nesse processo e eles certamente influenciaram a desestabilização da seleção brasileira em campo. O primeiro remete ao processo das manifestações estudantis de maio e manifestações populares de junho do ano passado. Durante essas, não só se fortaleceu um campo dentro da população brasileira de muito maior capacidade crítica e contestadora, reforçando o que já existia antes, ampliando numericamente e qualitativamente, provocando uma politização da sociedade brasileira, em contraste com um governo que anunciou mudanças e não as realizou, ao lado de uma política repressiva que fazia aumentar o número de descontentes radicalizados. Assim, a Copa do Mundo refletiu essa divisão da sociedade brasileira, entre parte da população politizada e radicalizada e a parte conformista, bem como a governista e de apoio ao governo Dilma. Um setor dessa parte da população inclusive denunciou a corrupção e irracionalidade na construção de estádios de futebol em locais sem grandes torcidas, grande tradição no futebol e grandes times, que depois seriam abandonados, como ocorreu no caso da África do Sul, bem como a expulsão de moradores em localidades próximas, repressão, etc. Ela gerou alguns protestos e divulgou uma versão diferente dos fatos. A política de repressão preventiva contra as manifestações e prisões ilegítimas de militantes reforçou isso poucos dias antes da copa. O contexto comunicacional da sociedade brasileira, bem como mundial, mudou com a emergência e ampliação do uso da internet e redes sociais, o que beneficiou esse processo de politização da população. Agora não é apenas a versão de uma ou cinco grandes redes de televisão e as informações selecionadas por elas, agora existem diversas versões e informações circulando e diminuindo o monolitismo informacional anteriormente existente. O indivíduo descontente pode não ter outros em sua família, escola, trabalho, mas se acessar a internet, encontrará milhares como ele e poderá se comunicar, reforçar suas concepções e agir, inclusive na própria internet, provocando uma reprodução ampliada da crítica e da contestação.

Assim, havia, por detrás da Copa e do seu resultado, uma divisão na sociedade brasileira. Alguns jornalistas e jornais, tal como se viu na Folha de São Paulo poucos dias antes de iniciar a copa, tentariam minimizar isso, dizendo que quando a seleção canarinho entrasse em campo, todos os dissidentes passariam a torcer por ela e retornar a unidade perdida da “nação brasileira”. Ledo engano, embora não total. Um grande contingente da parte dissidente da população acabou aderindo ao patriotismo ou, no caso da maioria, retornando à condição de torcedor de sua seleção nacional. Outro contingente manteve-se crítico e distante. A Copa do Mundo foi politizada e por isso o que estava em jogo, além dele mesmo e de tudo que envolve o futebol enquanto esporte mercantilizado e burocratizado, era a questão política: identidade e unidade nacional, fundamental para o Governo Dilma, ou divisão e luta, importante para a população politizada mais radicalizada. No meio do campo, para usar outro trocadilho, há aqueles que ficaram “entre a cruz e a espada”.

Mas isso não ficou apenas aí, ainda havia outro elemento. Esse ano é eleitoral e será decidido nas urnas quem será o novo presidente do país, entre outros cargos importantes do ponto de vista governamental. Sendo ano eleitoral, o principal partido de “oposição”, o PSDB, resolveu aproveitar o contexto anteriormente citado (parte da população descontente e mais politizada e uma copa do mundo criticada e que poderia entrar no jogo eleitoral prejudicando o partido governista) para usar o evento visando retorno eleitoral. As vaias sofridas por Dilma Rousseff na abertura da Copa do Mundo foi realizada principalmente por adeptos de tal posição política partidária e semelhantes (talvez com apoio de alguns descontentes ambíguos presentes), bem como campanhas pela internet e outros lugares. Nesse contexto, a Copa do Mundo ganhou também um significado eleitoral. O sucesso da seleção brasileira passou a beneficiar Dilma Rousseff e o fracasso beneficiaria o principal adversário, Aécio Neves, candidato a presidência e o voto nulo, para os setores mais radicais da população. Assim, a Copa do Mundo no Brasil envolveu uma oposição entre anticapitalistas e outros descontentes mais moderados, por um lado, e representantes do capitalismo e do governo, e, por outro, entre os adeptos do Partido da “Socialdemocracia” Brasileira e os adeptos do Partido dos “Trabalhadores”.

Neste contexto, há um aumento da pressão sobre os jogadores. Alguns podem dizer que não, mas, levando em conta que, por mais despolitizados, desinteressados de questões políticas e alheios ao mundo e à política brasileira, os jogadores tinham noção dos conflitos sociais (primeiro elemento) e dos conflitos eleitorais (segundo elemento) e viram isso nas ruas, nos protestos, nas críticas e até nas vaias na abertura da copa. Além disso, sem dúvida, o Governo Dilma se fez presente no cotidiano da seleção, e provavelmente repassando suas preocupações, valendo-se de governo preocupado e que investe em futebol e que teria que, no campo, receber a recompensa (essa seria, do ponto de vista do governo, a desforra contra dissidentes e adversários eleitorais). A pressão sobre os jogadores, neste contexto, foi maior, graças ao adicional e inesperado (há alguns anos atrás) processo de politização da sociedade brasileira e da época da Copa ser acompanhada pelo oportunismo eleitoral dos partidos de “oposição”.

3º) O Técnico falhou

É nesse contexto que aconteceu o jogo. Sem dúvida, o técnico Luiz Felipe Scolari mais do que ninguém devia saber da situação psíquica (emocional) dos jogadores e qualquer bom técnico tentaria atuar sobre isso (não sabemos se o fez e caso isso tenha ocorrida não surtiu muito efeito) e adequar o esquema tático a esta situação. Contudo, o referido técnico é famoso por sua “teimosia” e rigidez no aspecto técnico. A desestabilização dos jogadores por todo o contexto acima aludido (nacional e político, necessidade de ganhar para classificar mais intensa nesse contexto, desfalque da equipe, adversário forte, etc.), deveria ser trabalhada tanto no aspecto emocional quanto tático. E no plano tático – quando se leva em consideração o outro aspecto – seria armar o time para se defender e organizar em campo de forma a manter um empate por um tempo até os ânimos se acalmarem no decorrer jogo, explorando contra-ataques. Isso não é difícil para um técnico “retranqueiro” como Felipão e que seria algo temporário até haver uma estabilização emocional e um ritmo normal de jogo (claro que isso depende do time adversário, que se fizesse um jogo excepcional, mesmo assim poderia ocorrer o desastre, mas o time alemão, em que pese ter sido melhor e superior, só ganhou da forma como fez devido às fraquezas da seleção brasileira, mais do que sua excepcionalidade). Apesar de em certo sentido ter sido mais cauteloso e defensivo, não o fez no grau necessário para este jogo em tal contexto. Nesse sentido, o técnico foi bastante acertado ao declarar que ele era o principal responsável pela derrota vergonhosa da seleção brasileira. Claro que não foi o único, pois os elementos acima elencados estavam acima de suas possibilidades de alterar (inclusive a ausência de dois titulares, as questões políticas nacionais, etc.), embora pudesse ter agido sobre alguns aspectos e talvez influenciado no resultado que poderia ser uma derrota, mas não por um placar tão elevado. Os elementos anteriores são mais importantes do que isso e outros responsáveis (dos jogadores ao Governo Dilma que não soube agir adequadamente no aspecto político).

4º) A ausência de Neymar pesou

Sem dúvida, alguns vão pensar que foi a ausência de Neymar que possibilitou tal acontecimento. Isso é um exagero. Mas sem dúvida foi uma das determinações do resultado final e do placar diante da seleção da Alemanha. A presença de Neymar no campo teria o efeito de maior eficiência ofensiva (e maior cuidado da defesa alemã, o que interfere, por sua vez, no seu potencial ofensivo), mas mais do que isso, aumentaria a confiança, diminuiria a instabilidade emocional da seleção brasileira. Ou seja, além de sua presença no campo e no que isso alteraria efetivamente no jogo, o aspecto psíquico seria um pouco diferente.

5º) O primeiro gol aumentou a instabilidade da seleção brasileira

Além dessas determinações, também existiram outras mais imediatas, que ocorreram exclusivamente no campo de futebol durante os noventa e poucos minutos do jogo (em que pese isso não possa ser isolado do que foi colocado anteriormente e, inclusive, para ser melhor entendido, é preciso considerar as determinações anteriores). No contexto aludido da seleção brasileira (não ser uma seleção das mais fortes, instabilidade emocional, limites do técnico em atuar sobre os pontos problemáticos, ausência de dois titulares, especialmente Neymar), o gol da seleção da Alemanha aos 10/11 minutos do primeiro tempo (Thomas Müller) acabou intensificando a instabilidade dos jogadores da seleção brasileira. As falhas e fragilidades da defesa mostram isso. O segundo gol, aos 23 minutos (Miroslav Klose), acabou por concretizar o desmantelamento total da seleção brasileira e logo veio o terceiro (Toni Kross), quarto (Toni Kross), quinto (Sami Khedira), sexto (André Schürrle), sétimo (André Schürrle) e parecia que não ia acabar mais. O chamado “gol de honra” (Oscar) foi apenas a demonstração de que o time adversário já estava satisfeito e não estava interessado em se desgastar, já que teria uma decisão pela frente com um time certamente superior ao que enfrentava no momento.

6º) A seleção alemã é um adversário forte

Não se pode analisar um jogo desconsiderando um dos times, apesar dos comentaristas fazerem isso com frequência, por ficarem no nível das representações cotidianas com algumas pitadas de saber técnico. A seleção alemã, no contexto dessa copa, era um time forte e não foi sem motivo que bateu Portugal, que vinha para o torneio com boas expectativas em sua participação, por 4x0. Mas isto todos já sabiam, inclusive que era bem provável que a Alemanha ganharia o jogo. O que não era previsível era o placar elástico. Além de ser a equipe mais forte com o qual a seleção brasileira se defrontou, sua situação emocional e geral era bem diferente, disputava a copa em outro país (a obrigação de ganhar o título era muito mais do Brasil, pela sua tradição e estar em sua sede), tinha possibilidades grandes de conseguir, estava com o time completo, etc. A Alemanha fez o que tinha que fazer e foi competente em aproveitar as fragilidades do adversário e não recuar após os primeiros gols, garantindo, assim, a vitória no primeiro tempo. Claro é que, se fosse outro adversário, bem mais fraco, ou se a seleção alemã tivesse problemas semelhantes ao Brasil, o jogo teria sido muito mais equilibrado e enfadonho, como se fosse um jogo de times compostos por zumbis, lentos e desordenados. A Alemanha salvou o jogo, por mais que isso tenha sido doloroso para os brasileiros vinculados mais afetivamente e valorativamente com o futebol. “Que vença o melhor”! Foi isso que aconteceu.

7º) O imobilismo do técnico              

Outra determinação imediata foi o imobilismo do técnico brasileiro. Certamente ele já sabia do clima entre os jogadores brasileiros antes do jogo, afinal, ele mais do que ninguém devia saber e mesmo após não ter preparado antes do jogo a equipe adequadamente, ainda ficou imóvel diante da catástrofe futebolística que vai ficar na história do futebol brasileiro e sua carreira profissional. Após o primeiro gol, já era para se fazer algo, desde instruções no sentido de buscar acalmar os jogadores até reformulação tática, pois se trata de futebol e são noventa e poucos minutos, e assim como um jogador quando pega a bola deve ser rápido na decisão do que fazer (chutar para o algo, repassar para outro em melhor posição, etc.), assim deve ser o técnico. Após o segundo gol, a intervenção era mais que necessária e evidente e, embora, nessa altura do campeonato, para usar mais um trocadilho, já estava difícil conseguir algo devido à rapidez dos gols. Uma mudança após o primeiro gol, com seus possíveis efeitos, seria o ideal para evitar tantos gols, bem como depois do segundo, que talvez evitasse ficar mais de quatro ainda no primeiro tempo. Contudo, é necessário entender que talvez o técnico, apesar de não estar no jogo, também estivesse instabilizado emocionalmente e, com certeza, também sofreu impacto com um gol atrás do outro. Por mais frio e experiente que seja um técnico, nem sempre fica alheio ao processo como um todo, se bem que sua entrevista posterior revelou uma tranquilidade que milhares de outros não teriam, o que significa que não foi atingido na mesma intensidade que os jogadores, inclusive por estar “fora” do campo.

Uma síntese geral

Para encerrar esse breve artigo sobre algo que afetou milhões de pessoas no Brasil, provocou lágrimas, tristeza, revolta, é preciso compreender que o resultado vergonhoso, que foi uma derrota e desclassificação acompanhada por uma goleada histórica, é preciso entender que além das sete determinações (existiram outras, mas essas foram as principais e coincide com o número de gols, outro motivo para sua delimitação, uma metáfora metodológica) existem outras muito mais amplas e com uma história muito mais longa. Os conflitos sociais e eleitorais que atuaram no processo são muito mais profundos e revelam muito mais coisas do que o que foi colocado aqui. Uma realidade nacional marcada por falsa prosperidade propagandeada por governos e ideólogos de plantão e situação de pobreza, exploração, repressão, entre diversos outras questões e problemas sociais é que foram os responsáveis por essa situação (e isso não é responsabilidade exclusiva do Governo Dilma, pois remete a todos os governos anteriores) e da própria realidade de uma sociedade capitalista subordinada. Mas além desses elementos extrafutebolísticos, a relação entre capitalismo e futebol é outra determinação mais ampla que explica esse processo.

O processo de mercantilização do futebol gera o seu empobrecimento crescente. O que alguns chamam de “futebol-arte” foi uma das primeiras vítimas desse processo de mercantilização, no qual a habilidade é algo muito abaixo na escala das prioridades para dirigentes, jogadores, técnicos, etc., pois o retorno financeiro, o sucesso, o dinheiro, são o fundamental e o resultado final é o que garante isso. Não existe mais Garrincha e nem vai existir outro como ele. Também não existe mais Pelé. Nem mesmo Zico. O máximo que pode aparecer é um Neymar e semelhantes. A mercantilização promove o predomínio do cálculo racional, a burocratização, profissionalização e o jogo como livre processo de atividade de desenvolver habilidades é substituído pelo “futebol de resultados”. A organização do futebol brasileiro extinguiu a possibilidade de novos talentos criativos e habilidosos em grande quantidade como no passado. A burocratização e separação em séries no campeonato brasileiro, estabilizando e cristalizando os grandes clubes que recebem as maiores rendas e dinheiro do capital comunicacional (as redes de televisão que pagam direitos pela transmissão dos jogos) cria uma consolidação financeira e hierarquia no futebol que tornam difícil o aparecimento de surpresas e novas revelações num país que sempre teve isso por ser continental, ter grande população aliado a uma grande paixão por esse esporte, que gera milhares de aspirantes a jogador e craque. Isso, somado com o futebol de resultados produzidos pelo dinheiro e interesses envolvidos, gera uma deterioração no seu desenvolvimento, menos revelações, menos craques, menos habilidade, menos garra, menos futebol em si e mais performance e aparência (desde Kaká e seu penteado até Neymar, o garoto-propaganda, bem diferentes dos grandes nomes do passado que não recebiam milhões, mas jogavam com um compromisso muito mais profundo que apenas o “vil metal”). Afinal de contas, é essa determinação mais ampla que explica a primeira que foi aqui discutida, ou seja, o fato da seleção brasileira atual ser fraca.

Nesse contexto, o que restou para a população brasileira, especialmente a que ficou decepcionada e triste com os sete gols dos alemães? Restou superar a ilusão futebolística e voltar à vida cotidiana de trabalho, precariedade, conflitos, transporte deficiente, educação sucateada, serviços de saúde deteriorados, problemas os mais variados. O presente texto tentou tomar um acontecimento da vida cotidiana, o resultado de um jogo de futebol (e poderia ser feito com qualquer outro jogo, desde que tendo informações suficientes para tal) e explicá-lo dialeticamente. Contudo, não é só este jogo de futebol específico que manifesta múltiplas determinações e relações com o capitalismo subordinado brasileiro e tudo o mais que ocorre na totalidade de nossa sociedade, pois todo o resto está perpassado por isso e merece reflexão para o seu entendimento, tal como até mesmo a tristeza por tal derrota (o que gera este sentimento em tantas pessoas? Quais são suas determinações?), o que gera um trabalho que as pessoas não gostam, mas se submetem (e quando podem fugir, o fazem, inclusive se refugiando no futebol), um estudo numa escola que é considerado desagradável, entre milhões de outros exemplos da vida cotidiana e que não estão isolados? Essa reflexão é fundamental e remete ao conjunto da sociedade capitalista.

O que é necessário é dar continuidade ao processo de politização da população brasileira que se aprofundou ano passado e que as classes exploradas, o proletariado, o lumpemproletariado, o campesinato, os subalternos em geral, bem como aqueles que também sabem que por melhor que seja sua situação social (salarial, status, etc.), também não estão no melhor dos mundos possíveis e que o barco está furado e, portanto é fundamental avançar, agir, constituir novas relações sociais, através de luta contra uma sociedade concentracionária e formação de uma nova sociedade, na qual quando houver futebol, será o prazer da habilidade e esforço físico de um jogador e não de um mero espectador e isso como algo generalizado, no trabalho, estudo, arte, etc., num processo de instauração da autogestão social, “uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” (Marx).

Mais sobre Futebol:

http://informecritica.blogspot.com.br/2011/02/notas-sobre-o-significado-politico-do.html
http://informecritica.blogspot.com.br/2011/02/futebol-politica-e-religiao.html
http://informecritica.blogspot.com.br/2011/01/torcidas-organizadas-e-violencia-no.html
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http://cinemamanifestacaosocial.blogspot.com.br/2011/03/futebol-competicao-e-corrupcao-em-rudo.html

terça-feira, 8 de julho de 2014

DEMOCRACIA BURGUESA: ESSÊNCIA E METAMORFOSE




Democracia Burguesa: Essência e Metamorfose

 Nildo Viana

[Esse texto é um capítulo do livro: "Estado, Democracia e Cidadania" (Rio de Janeiro, Achiamé, 2003), que pode ser acessado completo clicando aqui].


O estado capitalista irá, historicamente, utilizar duas formas de regime político: a ditadura burguesa aberta e a ditadura burguesa oculta, a democracia. A dinâmica do desenvolvimento capitalista irá promover mudanças na democracia burguesa e isto está intimamente ligado ao processo de transformação do estado capitalista, resultado da luta de classes. Para compreender este processo, o ponto de partida é analisar a democracia representativa e suas mutações.
O primeiro passo é saber o significado da palavra democracia. Eis uma tarefa difícil, tendo-se em vista as diversas definições deste termo. A polêmica em torno deste termo se deve ao fato de que vivemos em uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas que buscam interpretar o mundo de acordo com os seus interesses e sua mentalidade.
A perspectiva da qual partimos é a do proletariado, ou seja, daqueles que estão submetidos à dominação e buscam superá-la. A partir deste pressuposto, é preciso compreender a diferença existente entre a idéia de democracia e a democracia realmente existente. Já observamos que existem diversas concepções de democracia que correspondem a interesses diversos, portanto, a primeira questão a ser resolvida é qual é a relação entre idéia e realidade. Isso só pode ser resolvido tendo por base uma teoria do conceito. Partindo da concepção marxista, podemos dizer que o conceito é uma expressão da realidade (conceito expressivo) ou um projeto para o futuro (conceito antecipador) (Viana, 1997).
Pois bem, a partir disto temos que definir se trataremos da democracia como realidade existente ou como projeto político. Se tomarmos a democracia como conceito antecipador, como um projeto político, temos que admitir que a democracia não existe, e talvez nunca existiu, em nenhum lugar do mundo, dependendo da forma que a definirmos. Se tomarmos a democracia como conceito expressivo, como realidade existente, então teremos que analisar suas manifestações concretas no interior de determinadas relações sociais e daí retirarmos sua definição.
Preferimos a segunda opção, pois é somente através dela que poderemos manter uma certa coerência. Se considerássemos a democracia um conceito antecipador, teríamos que lhe conceder um estatuto de algo ainda não existente. Isto, por sua vez, nos faria ter que procurar uma definição de algo que ainda não existe concretamente. Tal dilema poderia se resolvido com a retomada da raiz etimológica da palavra: democracia = governo do povo, o que é equivalente a autogoverno ou autogestão.
Nesse caso, não se pode falar em “democracia grega” ou “democracia representativa” e o uso comum da palavra democracia, incluindo aí os usos científicos (sociologia, historiografia, ciência política, etc), seriam, doravante, considerados errados. Entretanto, se nós não vivemos em um regime democrático, então em que forma de governo vivemos? Neste caso teríamos que encontrar uma palavra que substitua a democracia no sentido usual.
Por conseguinte, tomar a democracia como um conceito antecipador traz muito mais problemas do que soluções. Além disso, isto seria desnecessário pois já possuímos um conceito antecipador que materializa este projeto político: a autogestão[1].
Sendo assim, tomamos por democracia um conceito expressivo. O que é a democracia? Para Décio Saes, a democracia é, simultaneamente, uma forma de estado e um regime político. Para ele, forma de estado é o “padrão de organização interna do corpo de funcionários” e regime político é “a relação entre o corpo de funcionários e os membros da classe exploradora no âmbito específico do processo de definição/execução da política de estado” (Saes, 1987).
Sem dúvida, Décio Saes fornece elementos para o desenvolvimento da teoria marxista democracia, mas consideramos esta definição como problemática, principalmente quando ele acrescenta que “recorremos à multimilenar e controversa expressão democracia, para designar, ao mesmo tempo, uma forma de estado e um regime político” (Saes, 1987, p. 22).
Discordamos desta definição pelos seguintes motivos: a) Se forma de estado e regime político são idênticos[2], então porque utilizar duas expressões ao invés de uma? b) A definição de regime político nos parece muito restrita se considerarmos que se exclui as demais classes sociais do processo de definição/execução das políticas estatais. No entanto, preferimos distinguir regime político e forma de estado. A forma de estado, do nosso ponto de vista, não é o padrão de organização interno do corpo de funcionários e sim uma determinada configuração da ação estatal em determinado momento histórico (é por isso que podemos falar em estado liberal, estado liberal-democrático, estado integracionista, estado neoliberal). Sendo assim, a democracia não é uma forma de estado.
Preferimos considerar que a democracia é um regime político. O que é um regime político? Existem várias definições de regimes políticos, que no entanto, discordamos[3]. Para nós, um regime político é uma forma de relação do estado com as classes sociais existentes. Portanto, o regime político é a forma como o estado se relaciona com as classes sociais e não apenas com a classe exploradora.
Desta forma, podemos compreender como um regime político pode ser democrático ou ditatorial. O regime político democrático é aquele no qual o estado se relaciona de uma determinada forma com as classes sociais. Mas dizer que a democracia é um regime político (uma de suas formas possíveis) e dizer o que é um regime político não esclarece o que significa a palavra democracia.
A democracia é um regime político onde se permite uma participação restrita das classes sociais e frações de classes na constituição das políticas estatais, sob formas que variam historicamente. O que fica subentendido nesta definição é que a democracia sendo um regime político e, portanto, uma forma de relação do estado (que é o poder coletivo da classe dominante) com as classes sociais, é uma forma de dominação de classe[4].
Uma posição próxima a nossa é a apresentada por Costa, pois, para ela, “(...) O que se entende por democracia – uma reunião onde grupos e classes sociais se contrapõem com diferentes objetivos, para viabilizar seus projetos antagônicos de ação política, contraposição da qual sairá vencedor o grupo ou classe que puder transformar seus trunfos e suas posições em regras do jogo, abrindo caminho para a legitimação dos seus objetivos”, não revela o significado da democracia, pois, “ocorre que, quando diferentes participantes do jogo dizem estar pondo em prática os ideais democráticos, não afirmam explicitamente que o que legitimam, sob o nome de democracia, é apenas uma das possíveis formas de regulamentação do jogo e que essa forma é a que melhor lhes permite defender seus interesses e legitimar seus objetivos. Ao afirmarem que a reunião ou partida é democrática, estão dando um caráter geral, universal, ao que é particular, especifico de sua posição e interesses” (Costa, 1986, p. 13-14).
Esta autora aqui se aproxima da concepção marxista segundo a qual a classe dominante (ou uma classe que aspira tomar-se dominante) apresenta seus interesses particulares em interesse universal. E por isso que certos ideólogos afirmam que a democracia, tal como está instituída concretamente em nossa sociedade, é um “valor universal” (Coutinho, 1980; para uma critica desta concepção: Viana, 1991) Porém, existe uma diferença fundamental: a referida autora assume uma posição relativista ao deixar de lado o problema da dominação (e do estado) e assim assume uma postura ideológica, pois confunde a democracia real com a idéia de democracia, sendo que a primeira é marcada pela dominação de classe e pelo poder estatal, enquanto que a segunda é uma idéia que pode se contrapor ao que existe de fato, seja através do ocultamento da realidade, seja através da busca de uma nova realidade.
A forma como o estado se relaciona com as classes sociais pode ser através da repressão pura e simples (a ditadura) ou da participação restrita delas (a democracia). A partir desta concepção de democracia devemos colocar novas questões: o que é uma “participação restrita”? Quais são suas formas históricas?
A participação ocorre quando um indivíduo ou grupo entra em determinadas atividades pré-estabelecidas por outros (Guilllerm & Bourdet, 1976). A participação restrita é uma participação limitada, ou seja, que encontra em seu caminho diversos limites que não pode ultrapassar. No caso concreto aqui colocado, a democracia é um regime político no qual existe uma participação das classes sociais na constituição das políticas estatais (e na elaboração das leis) que possui diversos limites que elas não podem/conseguem ultrapassar.
As formas históricas de democracia são variadas, mas as duas mais famosas são a democracia escravista e a democracia burguesa, sendo que elas também possuem formas ao se desenvolverem historicamente. Muitos estudos foram dedicados à comparação destas duas formas de democracia. Para alguns, a democracia escravista (ou “democracia grega” ou “antiga”, tal como a maioria as denomina para ofuscar seu caráter de classe) é “mais democrática” e, para outros, a democracia burguesa é que possui tal privilégio.
A distinção entre estas duas formas de democracia varia de autor para autor (Finley, 1988; Moore, 1972). Para Stanley Moore, “quando se diz que o povo governa nas democracias das sociedades escravista e capitalista, tanto ‘povo’ como ‘governa’ estão utilizados em forma ambígua. Nas democracias das sociedades escravistas, ‘governa’ significa todo o governo, porém ‘povo’ só uma parte do povo. Nas democracias das sociedades capitalistas, ‘povo’ significa todo o povo, porém ‘governa’ só uma parte do governo” (Moore, 1972, p. 91).
O que este autor quis dizer é que na democracia escravista somente uma parcela da população (do “povo”) pode exercer uma participação restrita na constituição da política estatal enquanto que na democracia burguesa a população inteira participa em tal constituição, só que de forma mais restrita. Em outras palavras, a democracia escravista permitia uma participação menos restrita, mas tal participação atingia apenas parte da população[5] enquanto que a democracia burguesa existe uma participação mais restrita, que, no entanto, atinge toda a população.
É por isso que alguns podem considerar a democracia escravista como mais democrática, pois ela é menos restrita (alguns dizem que se tratava de uma “democracia direta” entre os que podiam participar dela, embora outros contestem tal afirmação, outros podem considerar que a democracia burguesa é mais democrática, pois permite a participação de toda a população, ou melhor, quase toda).
Após a nossa definição proposta do conceito de democracia, podemos tratar agora da democracia burguesa em particular. A democracia burguesa é uma das formas como o estado capitalista se relaciona com as classes sociais isto é, é um regime político burguês – caracterizado por uma participação restrita das classes sociais.
Como ocorre concretamente esta participação restrita? Ela se altera com o desenvolvimento histórico e com as lutas de classes, mas possui algumas características fundamentais que persistem sempre que o regime político é democrático, ou seja, enquanto ele não é substituído pelo regime político ditatorial. Esta participação restrita proporcionada pela democracia burguesa se caracteriza pela mediação burocrática entre as classes sociais e o estado que se dissimula como “representação”. Daí ela também ser chamada, devido a esta ideologia da representação, de “democracia representativa”.
A forma como esta participação restrita ou mediação burocrática se realiza varia historicamente. Podemos dizer, em grandes linhas e deixando de lado as diferenças nacionais, que a democracia burguesa se metamorfoseou em três formas principais, a saber: a) A forma democrática censitária (também chamada de “democracia parlamentar” e “estado constitucional”) e “liberal” que vai até meados do século 19; b) A democracia partidária liberal que predominou do final do século 19 até a Segunda Guerra Mundial; c) A democracia partidária burocrática, que se instaurou após a Segunda Guerra Mundial.
Sem dúvida, juntamente com estas formas concretas de democracia burguesa surgiram ideologias visando justificá-las. A democracia burguesa em seu primeiro período pode ser chamada de democracia burguesa censitária. Segundo Duverger, “(...) os juristas, após os filósofos do Século 18, desenvolveram uma teoria da representação, o eleitor dando ao eleito mandato para lidar e agir em seu nome; dessa maneira, o parlamento mandatário da nação exprime a soberania nacional” (Duverger, 1980, p. 387).
Portanto, nasce, junto com a democracia burguesa, a ideologia da representação. Ela não é uma democracia direta onde as pessoas ou grupos se representam mas uma democracia representativa, onde existem os representantes e os representados. Mas nesta época de democracia burguesa censitária os representantes não representam os indivíduos ou grupos que os elegem, mas sim a nação. O parlamento (o conjunto dos eleitos) representa a nação. É por isso que alguns denominam tal forma de democracia como democracia parlamentar. Entretanto, esta idéia de que o parlamento representa a nação é ideológica, pois ele representa, na verdade, os interesses da classe dominante. Isto é comprovado pela própria forma como se desenvolvia o processo eleitoral. Tal como colocou Poggi, “no século 19 e começos do atual, o principal meio usado para excluir da arena política grupos cujos interesses poderiam ser incompatíveis com a manutenção e prosperidade do sistema capitalista era a restrição do sufrágio, sem o direito a voto, tais grupos estavam limitados no exercício de direitos civis que não possuíam significação política direta, ou as formas não constitucionais de dissensão política suscetíveis de serem contidas através da polícia e de outras ações repressivas uma vez escoimados do processo político, por esses métodos, os interesses incompatíveis, as instituições públicas dos interesses contrastantes que eram gerados dentro do quadro das instituições e dos valores burguês-capitalistas, os direitos de votar e de ocupar cargos restringiam-se, pois, a homens que possuíssem bens de (ou) qualificações educacionais” (Poggi, 1981, p. 131).
A transição da democracia burguesa censitária para a democracia burguesa partidária foi lenta e foi produto das lutas sociais: “Por muito tempo, a democracia era tão somente parcial: os governantes eram eleitos por apenas uma parte dos governados, geralmente os mais ricos (sufrágio censitário). Progressivamente, o corpo eleitoral ampliou-se, sob a pressão dos próprios princípios democráticos. Já em 1948, a França suprimia toda condição de fortuna ou de capacidade para a atribuição do direito de voto, muito embora tenha permanecido válida a condição de sexo. Foi no século 19 que o estabelecimento do voto feminino na maioria dos países tornou o sufrágio realmente universal” (Duverger, 1966, p. 18). Alguns destes dados entram em contradição com os de Bottomore: “poderíamos assinalar, em primeiro lugar, a lentidão do avanço da democracia e os numerosos obstáculos e reveses o que encontrou. Nos países que em geral foram considerados como democracias estabelecidas o voto masculino só foi obtido na maioria dos casos entre o final do século 19 e a primeira guerra mundial, enquanto o sufrágio universal (1919, na Alemanha, 1920, na Suécia, 1945, na França e 1948 na Grã-Bretanha), e igual veio ainda mais tarde e na maior parte do resto do mundo o sufrágio universal (onde fui introduzido), só vigorou após o final da segunda guerra mundial” (Bottomore, 1981, p. 21).
A democracia censitária foi gradualmente substituída pela democracia partidária a partir do século 19. O mesmo ocorreu com a ideologia que a justificava: Segundo Macpherson, Jeremy Bentham foi paulatinamente alterando sua concepção de quem deveria participar do processo eleitoral: “numa obra escrita entre 1791 e 1802 ele era a favor de uma franquia limitada, excluindo os trabalhadores, os não instruídos, os dependentes e as mulheres. Em 1809 que defendia uma franquia para chefes de família que tivessem casa própria, limitada aos que pagassem imposto direto sobre propriedade. Em 1817 ele falava de uma franquia ‘virtualmente universal’ excluindo apenas os de menor idade e os analfabetos e possivelmente as mulheres (para dar uma decisiva opinião sobre o que ‘seria inteiramente prematuro neste lugar’); Mas naquela mesma obra ele declarava que embora se tivesse convencido ‘das razões e consistência com as quais, para o bem da união e da concórdia, muitas exclusões deviam ser feitas, pelo menos por certo tempo e para fins de uma experiência tranqüila e paulatina’. Em 1820 ele era a favor da franquia para adultos do sexo masculino; mas mesmo nessa ocasião declarava que com prazer apoiaria a franquia limitada para o chefe da família exceto que não podia ver como isso satisfaria os excluídos, que ‘talvez constituam uma maioria de adultos do sexo masculino’. Assim é que Bentham não se mostrava entusiasmado quanto a uma franquia democrática: foi levado a ela, em parte por sua avaliação do que o povo na época exigiria, e em parte pelas agudas exigências da lógica tão logo dedicou seu espírito às questões constitucionais” (Macpherson, 1978, p. 40).
A democracia partidária foi surgindo gradualmente com a extensão do direito de voto. A luta pela extensão do direito de voto e a ampliação gradual deste direto ocorreu simultaneamente com a formação dos partidos políticos. Na verdade, a classe dominante não permitiria uma extensão do direito de voto sem uma garantia de que esse direito adquirido não pudesse subverter a ordem. Desta forma, o sistema eleitoral expandiu o direito de voto mas, ao mesmo tempo, criou novas instituições “representativas” para realizar uma mediação burocrática entre eleitores e estado. Este papel de mediação burocrática foi atribuído ao sistema partidário. Segundo Duverger, “o fato da eleição, como a doutrina da representação, foram profundamente transformados pelo desenvolvimento dos partidos. Não se trata doravante de um diálogo entre eleitor e eleito, nação e parlamento: um terceiro se introduziu entre eles, que modifica, radicalmente, a natureza de sua relações. Antes de ser escolhido pelos eleitores, o deputado é escolhido pelo partido: os eleitores só fazem participar dessa escolha” (Duverger, 1980, p. 387).
Segundo C. B. Macpherson, o ideólogo liberal John Stuart Mill temia que o sufrágio para todos os adultos masculinos produzisse a predominância da classe trabalhadora nos países mais industrializados, mas Macpherson afirma que isto foi impedido através da atuação do sistema partidário em todas as democracias ocidentais, embora isto tenha ocorrido de forma diferente em diferentes países. Mas em todo lugar o sistema partidário desempenha a mesma função básica: “acho que não é exagero dizer que a principal função do sistema partidário concretamente desempenhada nas democracias ocidentais desde o advento da franquia democrática tem sido a de amenizar o conflito de classes ou, se preferirmos, moderar e conciliar um conflito de interesses de classes de modo a salvar as instituições da propriedade existentes e o sistema de mercado de um ataque eficaz” (Macpherson, 1978, p. 69).
A democracia partidária de meados do século 19 e início do século 20 é, porém, qualitativamente diferente da democracia partidária pós-segunda guerra mundial. A democracia partidária, em sua primeira fase, pode ser chamada de democracia partidária liberal. Sem dúvida, o sistema partidário já existia e era o principal elemento de mediação entre estado e classes sociais (outras instituições, tais como igrejas, associações, sindicatos, etc., também mantém relações com o estado, mas não da mesma natureza que os partidos políticos, cuja ação se volta diretamente para o exercício do poder).
Ocorre que a democracia partidária em sua primeira fase inicia-se quando os partidos políticos foram efetivamente integrados na disputa eleitoral. Eles já cumpriam o papel de amortecer as lutas de classes, inclusive os partidos de “esquerda”, mas eles tinham uma maior margem de liberdade do que atualmente.
Os partidos políticos cumprem o papel de amortecer os conflitos de classes devido ao seu desenvolvimento interno e/ou ao desenvolvimento externo. É claro que um tipo de desenvolvimento está relacionado com o outro e exercem uma influência recíproca. O desenvolvimento interno de um partido político é como evolui sua organização, as ideologias, etc. O desenvolvimento externo é a mudança social no que se refere às lutas sociais, à legislação eleitoral, ao processo de expansão ou crise da acumulação de capital, às alterações da opinião pública, etc.
Os partidos políticos de “esquerda” serviam para amortecer as lutas de classes devido ao caráter crescentemente burocrático de sua organização, do crescimento da burocracia partidária e sindical, e, por conseguinte, do crescimento quantitativo de frações de classe da burocracia, o que provoca uma metamorfose ideológica no partido[6]. Os partidos de direita faziam isto porque era de interesse da classe capitalista, tanto os partidos de direita quanto os partidos de esquerda reproduziam a ideologia da representação, onde uns diziam representar “o povo”, “a nação”, ou seja, um “falso universal” que ofusca a luta de classes; e outros “os trabalhadores”, isto é, a maioria da população e sua “base eleitoral”, invertendo a realidade, pois representa na verdade os seus interesses próprios de burocracia partidária.
Este era o principal fator que provocava a corrupção e, por conseguinte, a ineficácia (do ponto de vista revolucionário) política dos partidos social-democratas e comunistas. Mas o desenvolvimento externo também reforçava esta situação com a burocratização dos sindicatos, o predomínio da ideologia burguesa, a estabilidade da acumulação de capital até o início do século 20, etc.
Apesar disso, a democracia partidária liberal apresentava determinadas brechas que em momentos de acirramento das lutas de classes possibilitavam o desencadeamento da luta operária contra o estado capitalista. Na Alemanha, por exemplo, ao lado dos partidos reformistas (e surgindo como dissidências deles) surgiam grupos (que também se denominavam partidos) revolucionários, tal como a Liga Espartaquista de Rosa Luxemburgo (Almeida, 1982) e o KAPD — Partido Comunista Operário da Alemanha, dos comunistas conselhistas (Rühle, Korsch, Pannekoek, etc.) (Authier, 1975), que condenava os partidos reformistas e se declarava um não-partido ou que não era um “partido propriamente dito”. A tentativa de revolução alemã surgiu com a intensa colaboração destes grupos. A partir deste momento, tais coletivos revolucionários compreenderam o caráter contra-revolucionário dos partidos políticos em geral (incluindo o social-democracia e o “comunista”, isto é, bolchevique) e passaram a combatê-los.
O caso espanhol é outro exemplo da fragilidade relativa da democracia partidária liberal. A derrota da Frente Nacional (união de partidos de direita) para a Frente Popular (que contava com a União Republicana, a Esquerda Republicana, o Partido Socialista Operário Espanhol, o Partido Comunista Espanhol, o Partido Operário de Unificação Marxista e um pequeno Partido Sindicalista de origem anarquista), provocou uma verdadeira ação de massas que acabou gerando a guerra civil espanhola[7].
Por conseguinte, era necessário, para a classe dominante, não permitir que a democracia burguesa possibilitasse o desenvolvimento de ações anti-capitalistas. Após a segunda guerra mundial a burguesia estava fortalecida o suficiente para transformar a democracia partidária liberal em democracia partidária burocrática.
Esta nova fase da democracia burguesa fez dela uma muralha intransponível para qualquer tentativa revolucionária. Isso foi possível graças a três motivos principais, a saber: a) A expansão da acumulação de capital após a Segunda Guerra Mundial e a constituição de um novo regime de acumulação; b) O intervencionismo estatal e a reorganização legal da democracia burguesa; e) O processo de crescente burocratização e mercantilização das relações sociais.
A relação entre expansão da acumulação de capital (ou, segundo a ideologia dominante, o “desenvolvimento econômico”) e estabilidade da democracia burguesa é amplamente reconhecida[8]. Segundo A. Wolfe, “na longa onda posterior à segunda guerra mundial ocorreu um número de transformações estruturais no modo de produção capitalista que teriam conseqüências nocivas para a democracia. No entanto, durante um período considerável de tempo, estas características se mantiveram ocultas atrás da prosperidade substancial gerada pela onda” (Wolfe, 1980, p. 19).
Após a segunda guerra mundial ocorreram mudanças no modo de produção capitalista que, sem dúvida, tornaram a democracia burguesa ainda mais conservadora do que antes, diminuindo ainda a participação já extremamente restrita das classes exploradas. Ocorre, porém, que consideramos, ao contrário de Wolfe, que estas mudanças tem como elemento fundamental a própria expansão da acumulação capitalista com suas características e conseqüências, produzidas pela mudança no regime de acumulação.
Esta expansão da acumulação capitalista ocorreu graças à destruição em massa das forças produtivas durante a segunda guerra mundial e pela transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os países capitalistas superdesenvolvidos. Tal expansão também permitiu uma rápida invasão da produção capitalista em setores dominados pela produção não-capitalista e provocou outros efeitos que afetaram indiretamente a democracia burguesa, tal como colocaremos mais adiante.
Desta forma, torna-se possível a melhoria do nível de renda da população, a diminuição do desemprego, etc., e, conseqüentemente, a legitimação do estado capitalista. A expansão da acumulação capitalista nos países superdesenvolvidos provoca, então, o chamado “estado de bem estar social” e os problemas políticos tomam-se, de acordo com a ideologia dominante, problemas técnicos (Habermas, 1988).
O intervencionismo estatal (também chamado de keynesianismo) e a reorganização legal da democracia burguesa também serviram para impedir o surgimento de qualquer brecha revolucionária no seu interior. Mas o intervencionismo estatal a que nos referimos não se limita apenas à intervenção na esfera da produção mas também nas instituições sociais, na esfera jurídica, etc. O estado capitalista, após a segunda guerra mundial, passou a intervir de forma muito mais ampla não só através da expansão das instituições estatais (escolas, hospitais, meios de comunicação, universidades, etc.) como também através de sua interferência nas instituições privadas (através de relações jurídicas, convênios, dotação de recursos, etc.) e com isto exerceria um maior controle sobre a sociedade e incentivaria o seu processo de burocratização. Este estado onipresente reforça a hegemonia burguesa e dificulta o aparecimento de qualquer movimento revolucionário em grandes proporções, o que contribui com a estabilidade da democracia burguesa.
A reorganização legal da democracia burguesa é outro elemento que restringe mais ainda a participação das classes exploradas nos processos políticos institucionais. Esta reorganização constitui na elaboração de um conjunto de leis, que varia de país para país, que buscam regularizar o processo eleitoral e o sistema partidário de tal forma que fica cada vez mais difícil a participação das classes exploradas e de grupos revolucionários na democracia burguesa.
Segundo Geoffrey Barraclough, “com efeito, só na última geração — na maioria dos casos, depois de terminar a segunda guerra mundial — é que os partidos políticos escaparam do limbo de órgão extra-constitucionais ou convencionais, sem lugar legalmente definido no sistema de governo, e foram explicitamente admitidos no mecanismo constitucional, na Inglaterra, a mudança foi registrada pelos ministers of the crown act de 1937, os quais, ao estabelecer a posição oficial do líder da oposição, implicitamente reconheceram e sancionaram o sistema de partidos. Na Alemanha, a carta fundamental da República Federal — ao invés da constituição de Weimar, que adotava ainda uma atitude ambivalente em relação ao sistema de partidos — tratou estes como elementos integrais da estrutura constitucional (art. 21), ao passo que a constituição de Berlim menciona, especificamente, as tarefas que competem aos partidos, segundo a lei constitucional (art. 27). Cláusulas semelhantes foram incorporadas nas constituições de certos alemães — por exemplo, Baden (Art. 120) — na constituição italiana do pós-guerra (Art. 49) e na constituição brasileira de 1946 (Art. 141)” (Barraclough, 1983, p. 125-126).
Assim, novas leis passaram a regularizar a participação na democracia burguesa, dificultando até mesmo a participação das classes auxiliares da burguesia, o que gerou o protesto dos partidos reformistas (“socialistas” e “comunistas”)[9]. No caso do Brasil, um país continental e dividido em diversos e distantes Estados, a legislação eleitoral exige que os partidos estejam organizados em um número mínimo de Estados, que tenham um número mínimo de filiados, que só os partidos que possuem um certo número de deputados eleitos que pode ter acesso à propaganda eleitoral gratuita e o número de deputados delimita o tempo de cada partido, que os candidatos precisam ter uma idade mínima para concorrer aos cargos mais importantes, tal como os candidatos a prefeito, governador e presidente. Sendo que no caso deste último é preciso ter no mínimo 36 anos (o que é totalmente contrário ao princípio de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de credo religioso, ideologia política, sexo, raça e idade...”).
Um outro aspecto contribui para a formação da democracia partidária burocrática: o processo crescente de burocratização e mercantilização das relações sociais. Este processo nasce com o surgimento do próprio modo de produção capitalista, mas ele assume uma nova fase de desenvolvimento extensivo e intensivo após a segunda guerra mundial. Este processo de burocratização foi acompanhado por um amplo processo de mercantilização das relações sociais, com a invasão capitalista do cotidiano, transformando tudo em forma-mercadoria, tal como os serviços, o lazer, etc. e ampliando a produção de bens de consumo, sendo que estes dois processos (burocratização e mercantilização) são simultâneos e complementares (Viana, 2002a). Como colocamos anteriormente, a expansão da acumulação capitalista e o intervencionismo estatal contribuíram com este processo. Tal processo provoca o fortalecimento da burocracia enquanto classe social e enfraquece o movimento operário nas instituições da sociedade civil. Tal processo também reforça a hegemonia burguesa ao fortalecer a sociabilidade capitalista e criar uma verdadeira mentalidade burguesa que atinge até mesmo as classes exploradas.
Portanto, temos a partir do pós-guerra a transformação da democracia burguesa de democracia partidária liberal para democracia partidária burocrática. A democracia censitária já era “liberal”, mas a democracia partidária em sua primeira fase deixa de ser censitária e produz os partidos políticos como mediadores da participação restrita das classes sociais, mas mantendo alguns elementos da época em que predominava na prática a ideologia liberal. A nova transformação significa a superação do liberalismo político e o surgimento de novas formas de participação, marcadas por um amplo processo de burocratização. Ou seja, aqui temos a permanência da democracia partidária, mas sob nova forma, agora burocrática. Esta transformação da realidade ocorreu juntamente com uma transformação na esfera ideológica. Segundo Macpherson o grande ideólogo desta forma de democracia foi o economista Joseph Schumpeter, que subsumiu a democracia numa visão mercantil e elitista (diríamos que esta ideologia também é um produto do processo de burocratização e mercantilização das relações sociais). Segundo Macpherson: “A democracia é tão-somente um mecanismo de mercado; os votantes são os consumidores: os políticos são os empresários. Não surpreende que o homem que primeiramente propôs esse modelo fosse um economista que passou toda a sua vida profissional elaborando modelos de mercado. Não surpreende que os teóricos (e depois os publicistas e o público) tomassem esse modelo como realista, porque também eles viveram e trabalharam numa sociedade impregnada de conduta mercantil. Não apenas o modelo do mercado parece corresponder, e portanto explicar, ao verdadeiro comportamento político das principais partes componentes do sistema político — os votantes e os partidos; ele parece também justificar aquela conduta, e daí todo o sistema” (Macpherson, 1978, p. 82-83).
Isto gera, segundo Macpherson, o oligopólio dos partidos, onde as elites apresentarão programas políticos que cabe ao eleitor-consumidor escolher dentre eles e cada partido político irá utilizar os recursos da propaganda política, inspirada na propaganda comercial, para apresentar seu programa, ou seja “mercadoria”, ao eleitor-consumidor. Outras características da democracia burguesa nesta sua terceira fase são colocadas pela ideologia schumpeteriana e são discutidas por Macpherson, mas deixaremos de lado a ideologia da democracia partidária burocrática para tratar da sua realidade concreta.
Lembrando que a democracia burguesa é uma forma pela qual o estado capitalista se relaciona com as classes sociais, devemos então entender o que significa a expressão ditadura. A ditadura também é uma forma de relação do estado capitalista com as classes sociais. O que diferencia ditadura e democracia é a forma como o estado capitalista se relaciona com as classes sociais. A democracia se caracteriza pela participação restrita das classes sociais na constituição do poder estatal enquanto que a ditadura se caracteriza pela participação restrita apenas do bloco dominante.
Na democracia burguesa, a participação restrita se dá principalmente das regras jurídicas que regularizam tal participação (legislação eleitoral, civil, etc.). O estado capitalista busca garantir sua legitimidade através principalmente da ideologia. E permite certas concessões visando impedir um descontentamento popular de grande envergadura.
Na ditadura burguesa, a participação restrita do bloco dominante é feita de acordos que buscam satisfazer, na medida do possível, os interesses da classe e frações de classes para evitar um conflito interno. Ao restringir a participação apenas ao bloco dominante, o estado capitalista acaba tendo que manter um novo tipo de relação com as classes e frações de classes excluídas dela. A principal forma encontrada para se efetivar isto é a repressão. Esta repressão atinge os meios de comunicação de massa (censura), o controle policial da sociedade impedindo a organização e/ou ação de grupos e partidos contrários ao poder instituído, etc.
Daí se deriva diversas diferenças, mas destacaremos apenas duas: para haver participação restrita das classes sociais e sustentar a ideologia que busca legitimar o estado capitalista, o regime democrático-burguês deve permitir uma ampla “liberdade civil” e também uma autonomia relativa dos “três poderes” (executivo, legislativo e judiciário). Entretanto, o regime democrático-burguês não se sustenta apenas com base na participação restrita, na legalidade burguesa e na ideologia dominante, mas também através de outros recursos secundários, tais como a cooptação dos dissidentes, a corrupção dos movimentos sociais, a repressão, nesse caso, é usada principalmente (mas não unicamente) contra aqueles que rompem com a legalidade burguesa.
A ditadura burguesa, por sua vez, para manter sua dominação arbitrária e a exclusão de grande parte da população de participação na política institucional, deve garantir o seu domínio sobre a elaboração da legislação e chamar para si parte (ou totalidade) do direito de julgar, entrando assim nos domínios do poder legislativo e judiciário, abolindo a autonomia relativa dos três poderes[10]. Também a ditadura burguesa utiliza recursos secundários, pois o uso exclusivo da força tende a aumentar o descontentamento e diminuir a legitimidade do estado capitalista. Tais recursos são, entre outros, a ideologia (seja a da segurança nacional ou qualquer outra) e a cooptação.
A forma como a democracia burguesa realiza a cooptação é diferente da forma que a ditadura burguesa faz. A cooptação realizada pela ditadura burguesa é feita através da troca entre benefícios (um cargo público, por exemplo) e lealdade ao regime ditatorial, enquanto que a cooptação feita pela democracia burguesa é efetuada através da integração nas instituições estatais ou nas instituições privadas ligadas ao regime democrático (partidos, por exemplo), o que provoca a lealdade para com o regime.
Para a classe dominante, a alternativa entre democracia e ditadura envolve uma diversidade de questões. Em primeiro lugar, existem frações da classe dominante e das classes auxiliares que são permanentemente a favor da democracia ou da ditadura. Podemos citar, no primeiro caso, os setores ligados à indústria eleitoral, à burocracia partidária dos partidos social-democratas, comunistas, etc. No segundo caso, podemos citar o caso de latifundiários, a burocracia militar, etc.
Em segundo lugar, existem forças políticas que são permanentemente favoráveis à ditadura (fascismo, por exemplo) e outras à democracia (social-democracia, por exemplo). Em terceiro lugar, tal alternativa varia em cada país, de acordo com sua posição na hierarquia do capitalismo mundial e se suas características próprias (cultural, desenvolvimento das lutas de classes, etc.).
Geralmente, a classe dominante não tem nenhuma preferência pela democracia ou pela ditadura, embora a predominância histórica tem sido da primeira, pelo menos em alguns países (EUA, Europa Ocidental). Para alguns, a democracia burguesa é a forma política mais apropriada ao capitalismo[11]. No entanto, o que interessa para a classe dominante (e, por extensão, “ao capitalismo”) é a manutenção de sua dominação sob qualquer forma.
O que faz a burguesia alterar o regime político (de democrático para ditatorial, ou vice-versa), é a dinâmica das lutas de classes. A crise da hegemonia burguesa no regime democrático sempre leva a classe capitalista a se refugiar na ditadura. Quando a luta das classes exploradas contra o regime ditatorial ameaça ultrapassar o próprio estado capitalista, ela não hesita em realizar a redemocratização burguesa.
A crise da hegemonia burguesa ocorre em períodos marcados por uma série de acontecimentos, onde se destaca a instabilidade da acumulação capitalista, que gera a busca de aumento de exploração, desemprego, etc., a crise de legitimidade do estado capitalista, devido a corrupção, arbitrariedade, etc., a ascensão do movimento operário e dos demais movimentos sociais, etc. É de se notar que nos países capitalistas imperialistas a democracia burguesa é mais estável justamente pelo motivo de que estes países, devido a exploração imperialista e tudo que decorre dela, conseguem manter uma maior estabilidade social, o que não ocorre nos países capitalistas subordinados, que revezam constantemente democracia e ditadura.
A democracia e a ditadura burguesas emergiram historicamente com o desenvolvimento das lutas de classes. O surgimento do regime democrático-burguês ocorreu através de avanços e recuos, onde a burguesia buscava instaurar sua dominação de classe. A burguesia buscava implantar sua dominação e para isso precisava do apoio de outras classes e frações de classes, especialmente as classes exploradas, objetivando combater a nobreza. Ao conquistar o poder político, a burguesia passa a temer cada vez mais as classes exploradas e começa a restringir a participação das classes sociais na política institucional recém criada. A aliança com a nobreza torna-se uma tentativa de fortalecimento contra as classes exploradas. Tal foi o que aconteceu na revolução francesa, o melhor exemplo de revolução burguesa.
A partir da revolução francesa instaura-se democracia burguesa sob a forma de democracia censitária[12]. A luta de classes na França demonstra claramente que a burguesia queria instaurar uma dominação irrestrita sobre as demais classes sociais e foi somente a emergência de outras classes sociais que fez com que ela fizesse concessões para manter sua dominação. A democracia burguesa nasceu e se desenvolveu como resultado da luta de classes mas tal desenvolvimento marcou a continuação da dominação burguesa, independentemente das formas que assumiu historicamente.
Desta forma, não tem o menor sentido dizer que a democracia burguesa foi uma conquista da classe operária. Dizer que “o sufrágio universal, uma medida essencial para tornar viável a efetivação daquele princípio igualitário no plano formal, só foi conquistado na maioria dos países desenvolvidos — e graças às lutas da classe operária — em final do século 19 ou início do 20” (Coutinho, 1980, p. 26), significa dizer nada, pois a sociedade burguesa como um todo é produto da luta de classes (e, por conseguinte, da luta operária), só que com o predomínio da burguesia. A ditadura burguesa também surgiu graças à luta operária (se ela ficasse passiva não haveria motivo para a burguesia substituir a democracia pela ditadura) e, sendo assim, ela também seria um “valor universal”?
Na verdade, a democracia burguesa é um “valor universal” apenas para os setores da sociedade ligados intimamente a ela (a burocracia partidária dos partidos social-democratas, por exemplo), pois a burguesia não pensa duas vezes para ultrapassá-la e substituí-la pela ditadura e o proletariado, sempre que realizou uma ofensiva de classe, a desprezou por ela ser incompatível com o seu modo de produção e por este se caracterizar pela abolição do estado e das classes sociais (e, por conseguinte, na forma de relação entre ambos) e da dicotomia entre “economia” e “política”, instaurando a autogestão social.
Os ideólogos da democracia burguesa como valor universal se “esquecem” que existe uma diferença radical entre os modos de produção e, por conseguinte, em suas formas de regularização. O modo de produção feudal é radicalmente distinto do modo de produção capitalista, e, por conseguinte, também é radicalmente distinto sua forma de estado, sua mentalidade, sua sociabilidade. E estas diferenças radicais se encontram entre dois modos de produção classistas, e isto significa que existem aspectos comuns (existe a luta de classes, a dominação de classe, o estado, a ideologia, etc., só que sob formas radicalmente diferentes). Tais diferenças se tornam ainda maiores quando se compara um modo de produção classista com um modo de produção não classista (onde não existe classes e lutas de classes, estado, ideologia, democracia, etc.). Por conseguinte, a democracia burguesa é um regime político do estado capitalista e derivada do modo de produção capitalista e não pode ser vista de forma isolada do conjunto das relações sociais que lhe dão origem e consistência, pois isto seria uma abstração metafísica.
É preciso reconhecer a historicidade da democracia burguesa (e o seu caráter dependente da historicidade da sociedade em geral) e, portanto, ela não é um valor universal e sim um valor burguês defendido por setores da sociedade que tem interesse em sua permanência.
A idéia de que a democracia burguesa é um valor estratégico e permanente para a realização do socialismo é outra ideologia reformista e burguesa. A luta operária pela autogestão social ocorre tanto num regime político ditatorial quanto num regime político democrático. Sem dúvida, isto ocorre sob formas diferentes. No regime democrático-burguês existe uma maior liberdade para divulgação de idéias, de reunião, etc. Mas sempre com inúmeras limitações (para as classes exploradas, tais liberdades são restringidas por suas condições financeiras e para os grupos revolucionários isto também vale, em menor grau, mas para eles existem outras limitações: as legais, que não permitem determinados excessos). Esta maior “liberdade” no regime democrático-burguês é acompanhada pela corrupção de grupos políticos e indivíduos das classes exploradas, através tanto da participação na própria democracia burguesa quando na sua integração em instituições burguesas.
No regime ditatorial-burguês não se pode contar com as liberdades civis e políticas e nem com garantias jurídico-legais. Porém, a cooptação e corrupção dos grupos políticos e dos movimentos sociais é menor. Isto, por sua vez, permite uma maior autonomia das classes exploradas.
Desta forma, observamos que tanto o regime democrático quanto o regime ditatorial oferecem vantagens e desvantagens para o movimento revolucionário. Qual dos dois regimes é mais estratégico para a luta operária? Do ponto de vista histórico, as principais tentativas de revolução proletária ocorreram sob ambos os regimes. Tomando a tentativa de revolução proletária na Rússia, na Polônia na década de 80, entre outras, veremos que elas se desencadearam sob o regime ditatorial. Se observarmos o caso da guerra civil espanhola em 36, a tentativa de revolução alemã no inicio do século, veremos que elas se concretizam sob regime democrático. Isto significa que a revolução proletária pode ocorrer sob qualquer um destes dois regimes. Em ambos há também a possibilidade de contra-revolução.
Isto quer dizer que do ponto de vista do movimento revolucionário é indiferente qual dos dois regimes políticos burgueses é predominante? A resposta é negativa, pois é preferível o regime democrático-burguês. A revolução proletária sob regimes ditatoriais possui uma grande desvantagem que é a reprodução do autoritarismo do regime em setores do movimento oposicionista (e não somente o revolucionário), tal como se vê no partido Bolchevique na Rússia, que era uma cópia da autocracia czarista. Além disso, sob o regime democrático-burguês é possível iniciar um processo de revolução cultural em alguns espaços no interior da sociedade burguesa (graças à ausência “relativa” de censura, à círculos e grupos que se formam visando uma ação anti-capitalista, à espaços nos movimentos sociais e entidades de base, etc.). Além disso, o regime ditatorial é marcado por uma forte repressão marcada por arbitrariedade e excesso de perseguição.
Estes motivos deixam entrever que é mais vantajoso para o movimento revolucionário lutar sob o regime democrático-burguês. Entretanto, isto não deve nos iludir e fazer com que pensemos que a democracia burguesa é “um valor estratégico e permanente”. A democracia burguesa é apenas um pouco mais favorável e por isso mais desejável para a efetivação da luta revolucionária.
Isto significa que a outra idéia que acompanha a ideologia da democracia burguesa como valor universal – a de que a democracia burguesa (“representativa”) deve continuar existindo no socialismo juntamente com a “democracia direta” dos conselhos operários — também é falsa. Este é o caso de Coutinho, que, retomando Max Adler e outros reformistas, sustenta a tese de que é possível uma “dualidade de poderes” num regime socialista, onde haveria, de um lado, a democracia representativa, de outro, a democracia direta. Ele, utilizando a estratégia gramsciana de “conquistar os intelectuais tradicionais”, busca apoio em diversos autores (Adler, Kaustky, Togliatti, Poulantzas, Gramsci, etc.) e às vezes até colocando na boca deles afirmações categóricas que, na verdade, não passam de dúvidas. Veja o exemplo de Agnes Heller: “igualmente no quadro de uma concepção processual” da revolução, Agnes Heller defende explicitamente a atualidade do ‘duplo poder’: “segundo penso, o ‘duplo poder’ é um ótimo ponto de partida para a transformação socialista. Pensemos, por exemplo, como seria positivo, na Europa de hoje, um sistema de duplo poder, no qual – ao lado da direção parlamentar – atuasse concretamente um sistema de conselhos populares” (Coutinho, 1985, p. 73). Lendo tal trecho podemos supor que Heller concebia o “duplo poder” como a forma de governo em um regime socialista. Mas vejamos o que ela diz: “segundo penso, o ‘duplo poder’ é um ótimo ponto de partida para a transformação socialista, pensemos, por exemplo, como seria positivo, na Europa de hoje o sistema de duplo poder, no qual — ao lado da direção parlamentar — atuasse concretamente um sistema de conselhos populares. Não sei que conseqüências essa revolução teria se não fosse a irrupção de outubro, não é possível saber” (Heller, 1982, p. 72). Assim observamos que Heller diz que o “duplo poder” é um ótimo “ponto de partida”, para a “transformação socialista”, tal como a revolução de fevereiro na Rússia, cujas conseqüências, caso não houvesse a contra-revolução bolchevique, seriam imprevisíveis. Por conseguinte, não há nenhuma defesa do duplo poder como algo que fizesse parte de uma sociedade socialista.
A sociedade socialista é uma sociedade autogerida e, por conseguinte, não há nenhum sentido em falar em democracia, seja direta, representativa ou ambas, pois nesta sociedade há a abolição do estado e das classes sociais, e, por conseguinte, dos regimes políticos, incluindo o democrático em suas diversas formas. Autogestão não é sinônimo de “democracia direta” e ela é antagônica a toda forma de democracia – tal como foi definida aqui – e é uma relação social que se generaliza em toda sociedade, abolindo toda e qualquer necessidade de processo eleitoral tal como praticado na democracia burguesa.
A democracia burguesa contemporânea se fundamenta em alguns elementos básicos que são: A) o domínio do direito; B) a separação dos “três poderes”; C) o sistema eleitoral; D) o sistema partidário. Todos estes elementos tendem a reforçar o caráter burguês e/ou burocrático da democracia moderna.
O domínio do direito, como já foi colocado, significa o predomínio da lei e, portanto, da igualdade formal dos cidadãos frente ao estado. A ideologia dominante chama isso de “estado de direito”. Porém, não devemos nos iludir com este “predomínio de lei”, pois existem muitas formas de burlá-la e os poderosos sempre o fizeram. De qualquer forma, o direito é uma das formas de regularização das relações sociais sob o capitalismo, tanto pela legislação que cria e que é indiscutivelmente burguesa quanto pela legitimação que ela fornece ao estado e ao conjunto das relações sociais (incluindo as relações de produção), já que a lei é uma regra geral que se aplica a todos os indivíduos.
Este direito, ou melhor, o conjunto das leis existentes, é produzido pelo estado, sendo que no regime democrático-burguês isto é feito via, principalmente, o parlamento (poder legislativo). Além disso, uma parte destas leis visa regularizar a própria democracia burguesa (legislação eleitoral, partidária, etc). As leis produzidas pelo parlamento refletem os interesses da classe dominante e, em alguns casos, das suas classes auxiliares. As leis que regularizam a democracia burguesa não fogem a esta regra, tal como veremos mais adiante quando formos tratar do sistema eleitoral e do sistema partidário.
A separação dos três poderes, por sua vez, cumpre o papel de dificultar qualquer colaboração com a transformação social através do processo eleitoral. Através do processo eleitoral se elege aqueles que vão assumir o poder executivo e o poder legislativo. Isto quer dizer que o poder judiciário, que cumpre o papel de fiscalizar e julgar as infrações à lei, não é acessível a qualquer cidadão que tenha o direito (e as condições, como veremos a seguir) de se candidatar a qualquer “cargo público”. A forma de recrutamento dos integrantes do poder judiciário, na maioria dos casos, é através de concurso público (o sistema de exame, qualificado por Marx como “batismo burocrático do saber”), o que impede que aqueles que discordam da ideologia do poder judiciário sejam aprovados. Além disso, o concorrente precisa ter um currículo que lhe permita participar do concurso, tal como possuir o diploma do curso de direito, o que lhe garante quatro ou cinco anos de doutrinação, além de todo o processo requerido para o acesso, permanência, conclusão, etc.
O poder legislativo, por sua vez, possui uma autonomia bastante restrita. Esta restrição vem, em primeiro lugar, do próprio regimento interno do parlamento. Além disso, a existência de uma Constituição Federal que só pode ser alterada através de uma maioria esmagadora (isto varia de acordo com o país e a época, mas geralmente gira em tomo de dois terços, ou seja, 66% dos votos), cria inúmeras limitações a qualquer tentativa de alterar radicalmente o sistema de leis. O poder executivo também interfere no poder legislativo, seja enviando projetos de lei, seja recusando aprovar certas leis (pois, geralmente, todas as leis aprovadas no parlamento devem receber a anuência do presidente). Por fim, os indivíduos que compõem o parlamento são escolhidos através da via eleitoral e por isso (como colocaremos a seguir) são provenientes maciçamente da classe dominante e de suas classes auxiliares, o que reforça o seu caráter conservador.
O poder executivo que é eleito pelo voto da população não é todo o estado capitalista, mas apenas parte dele. Na verdade o governo é uma pequena parte do estado capitalista, que é composto ainda pelas forças armadas, pela burocracia do aparato do estado e pelas instituições estatais, etc. Por conseguinte, o governo também sofre diversas limitações para desenvolver suas atividades (a legislação em vigor, a burocracia permanente no estado, etc). Além disso, não é de seu interesse criar confrontos, pois o governo eleito geralmente representa a classe dominante, ou, em alguns casos, as suas classes auxiliares, e para se manter no poder precisa não só do apoio das classes privilegiadas como também necessita da estabilidade financeira e social.
O sistema eleitoral, tal como instituído pela lei, cria inúmeros obstáculos para a participação das classes exploradas e subalternas. Em primeiro lugar, ele impõe aos indivíduos que pretendem se candidatar determinadas exigências (isto também varia de acordo com o país e a época, tais como referentes à nível de renda escolarização, idade, filiação partidária, etc) que beneficiam os membros da classe dominante e de suas classes auxiliares. Em segundo lugar, determinadas formas de voto e de contagem deles beneficiam uns partidos e prejudicam outros. Além destes, poderíamos acrescentar diversos outros obstáculos que o sistema eleitoral cria para a participação das classes exploradas e das classes subalternas na democracia burguesa.
Mas o sistema eleitoral consolida este papel conservador quando institui o sistema partidário. Tal sistema impõe limites legais à formação de partidos, exigindo uma certa forma de organização, número mínimo de filiados e candidatos às eleições, etc. Todas essas exigências servem para reforçar o processo de burocratização dos partidos e, conseqüentemente, o processo de corrupção dos partidos que possuem no seu interior uma quantidade grande de membros provenientes das classes exploradas e das classes subalternas.
Por fim, observamos os limites legais que a democracia burguesa cria para a participação das classes sociais (que atinge principalmente as classes exploradas e subalternas). Mas além destes limites legais existem outros obstáculos que são produzidos pela própria essência da sociedade capitalista. O conjunto das chamadas “liberdades democráticas” são menos acessíveis às classes exploradas e subalternas. A sociabilidade capitalista e a mentalidade burguesa, juntamente com o sistema partidário, corrompem indivíduos e até mesmo grupos inteiros[13].
Desta forma, observamos que a democracia moderna é uma forma de dominação burguesa e, assim como o estado capitalista, deve ser destruída e substituída pela autogestão.





[1] Alguns autores buscam definir a democracia tratando-a, simultaneamente, como realidade existente e como projeto político (cf. Saes, 1987). Tal abordagem utiliza o recurso de acrescentar um adjetivo a palavra democracia e com isso temos ao lado da indesejável democracia burguesa, a desejada democracia proletária ou socialista. Entretanto, isto entra em visível contradição com a definição de democracia anteriormente fornecida e, além disso, falar em uma “democracia burguesa” tem sentido por ela se diferenciar da ditadura burguesa (que é uma oposição entre ditadura burguesa oculta — democracia — e ditadura burguesa aberta) e da democracia escravista, mas no caso de uma “democracia operária” isto não tem o menor sentido.
[2] “Ali onde varia a forma de Estado, varia simultaneamente o regime político. Assim, a cada forma de Estado corresponde um regime político. Isto nos permite designar uma certa forma de Estado e o regime político que lhe é correlato por uma única expressão” (Saes, 1987, p. 22). Claro que o autor diz que estes termos não são sinônimos mas complementares. Entretanto, se há correspondência entre eles, então é desnecessário usar duas expressões e, a título de exemplo, poderíamos dizer que existe uma forma de Estado democrático quando o padrão de organização interna e a relação entre o corpo de funcionários e os membros das classes exploradoras na definição/execução das políticas estatais são (ambos) democráticos.
[3] Além da definição de Saes podemos citar esta: “no sentido amplo, chama-se regime político a forma que, num dado grupo social assume a distinção geral entre governantes e governados. Numa concepção mais restrita, o termo ‘regime político’ aplica-se tão somente à estrutura governamental de tipo particular de sociedade humana: a nação” (Duverger, 1966, p. 09).
[4] A partir desta concepção parece se tomar vazios os termos derivados de democracia, tais como democratas, democratização, democratizar, etc. Porém, estes termos continuam se aplicando a determinada realidade. Assim, por exemplo, democrata é um partidário da democracia e democratizar significa ampliar a participação restrita (que continua restrita, ou seja, não ultrapassa os limites intransponíveis do regime democrático-burguês) das classes sociais, principalmente das classes sociais subalternas e exploradas.
[5] “Do povo estavam excluídos pelo crivo da cidadania, as mulheres, os escravos, os servos, os pastores e os estrangeiros. Os cidadãos, após a reforma legislativa, constituíam 100% da população. Estavam longe de propor uma forma de poder que reunisse toda população, mesmo aquela restrita população reunida entre os muros da polis” (Costa, 1986, p. 20).
[6] Tais aspectos foram descritos, no caso do Partido Social-Democrata Alemão, por Michels (1981).
[7] “O ato eleitoral e seus resultados desencadearam uma imediata reação nas massas. Sem esperar o decreto de anistia, elas se jogaram às prisões para libertar os insurretos de 1934. Isto aconteceu em Valencia, em Oviedo (nas Astúrias) e um pouco por toda a Espanha. A essa libertação seguiram-se greves políticas generalizadas pedindo a reintegração imediata dos operários demitidos e o pagamento dos salários atrasados. A elas se juntaram greves de caráter mais reivindicativo, algumas longas. Os patrões respondiam fechando as fábricas. No campo a situação tornou-se ainda mais explosiva. Os camponeses ocupavam imediatamente as terras dos grandes proprietários e começaram a cultivá-las. Isso aconteceu em Badajoz, Cáceres, na Extremadura, na Andaluzia, em Las Tellas e em Navarra. Incidente sangrentos verificaram-se entre trabalhadores rurais e guardas-civis. Os patrões responderam não contratando homens para as colheitas, mesmo ao preço de substanciais perdas econômicas — ao mesmo tempo a igreja tomou-se o alvo da ira popular: a qualquer boato sobre uma ‘conspiração de padres’, conventos e igrejas eram incendiados” (Almeida, 1981, p. 27-28).
[8] Esta verdade é admitida tanto por conservadores assumidos como por pessoas influenciadas pelo marxismo. Peguemos o exemplo de Lipset: “talvez a generalização mais comum, associando os sistemas políticos a outros aspectos da sociedade, seja a de que a democracia está relacionada com a situação de desenvolvimento econômico. Quanto mais próspera for uma nação, tanto maiores são as probabilidades de que ela sustenha a democracia” (Lipset, 1967, p. 49). Esta posição é análoga à de Alan Wolfe: “a expansão da democracia tem sido uma característica em cada Ascenso da onda de Kondratiev, da mesma maneira que a desesperança e o pessimismo sobre a democracia caracterizaram as classes dominantes a cada descenso da curva” (Wolfe, 1980, p. 19).
[9] Podemos citar este protesto em 1951 de Palmiro Togliatti, do Partido Comunista Italiano, sobre o regime eleitoral inglês: “disserto, tem lugar na Inglaterra eleições regulares, com a conseqüente rotatividade de partidos no poder; mas, nas recentes eleições, por exemplo, o partido trabalhista obteve 300 mil votos a mais que o partido conservador e, apesar disso ficou em minoria no parlamento. Atuou em detrimento dos trabalhistas uma organização eleitoral criada e mantida com a finalidade de fazer com que, na balança eleitoral, pesem mais as forças conservadoras e reacionárias, e, portanto, de tomar particularmente difícil a afirmação dos operários como força de governo. E se trata, vejam bem, de um partido operário como o trabalhista, que não é nem revolucionário nem proletário, mas burguês e timidamente reformista” (Togliatti, 1980, p. 98); “Na França, a consulta eleitoral foi sempre organizada de modo a atribuir ao voto do operário de Paris ou de St. Etienne um valor duas ou três vezes inferior ao voto de um proprietário de terras ou de um pastor da zona montanhosa” (Togliatti, 1980, p. 99)
[10] “A ditadura é o poder não submetido à lei. Funciona, sem embargo, não só para suspender e abolir leis mas também para defendê-las e criá-las. Não está submetido aos ditames da lei porque é ela mesma a fonte destes ditames” (Moore, 1972, p. 34).
[11]A onipotência da ‘riqueza’ também é mais segura nas repúblicas democráticas porque não depende de uns ou outros defeitos do mecanismo político nem da má forma política do capitalismo; e, portanto, o capital, ao dominar (...) Esta forma, que é a melhor de todas, alicerça seu poder de um modo tão seguro, tão firme, que não perturba nenhuma troca de pessoa, nem de instituições, nem de partidos dentro da república democrática burguesa” (Lênin, 1987, p. 6l). S. Moore, baseando-se em Engels e Lênin, defende a mesma posição (cf. Moore, 1972).
[12] Segundo Albert Soboul, a declaração dos direitos de 1789 reconhece o direito de liberdade econômica, cultural, etc, ou mais do que isso, incluindo também “as liberdades públicas e políticas”. “Ela é um direito natural impresctível, de acordo com o Art. 02 da declaração dos direitos, somente limitada pela liberdade de outrem (Art. 04). Ela é, primeiramente, a da pessoa, liberdade individual garantida contra as acusações e as prisões arbitrarias (Art. 07) e pela presunção de inocência (Art. 09). Senhores de si mesmos, os homens podem falar e escrever, imprimir e publicar livremente, à condição de que a manifestação das opiniões não perturbe a ordem estabelecida pela lei e salvo para responder pelo abuso desta liberdade (Arts. 10 e 11). (...) No plano político, o liberalismo burguês encamou-se na constituição dita de 1791 mas cujas principais disposições foram votadas desde o fim de 1789: com base na soberania nacional e na separação dos poderes (Arts. 03 e 06 da declaração), ela organizou um sistema representativo caracterizado de fato pela predominância da Assembléia Legislativa. A descentralização administrativa, a reforma judiciária, a nova organização fiscal e até a reorganização da igreja pela constituição civil do Clero (12 do Julho de 1790), respondiam à mesma preocupação de liberalismo: no quadro de urna organização corrente nacional, todos os administradores eram eleitos, e mesmo os bispos, por sufrágio censitário” (Soboul, 1985, p. 49-50). A ditadura Jacobina aproximou se em alguns aspectos da liberdade burguesa, embora não tenha colocado todos eles em prática, sob a justificativa de que era um governo de guerra. Tal como colocou A. Z. Manfred., a partir do 9 do termidor de 1794 (quando jacobinos foram derrotados), “as maiores realizações sociais e democráticas da ditadura jacobina foram anuladas. Em 1795 foi elaborada uma constituição que abolia o sufrágio universal e restaurava as classificações eleitorais baseadas na propriedade” (Manfred, 1982, p. 43-44).
[13] Sobre isso, cf. Viana, 1991. Esta tese também é defendida pelo sociólogo T. Bottomore, que expressa algumas das dificuldades dos indivíduos das classes exploradas em participar da democracia burguesa: “grandes desigualdades de riquezas e rendimentos influenciam nitidamente o grau de participação dos indivíduos na direção da comunidade. Um rico pode ter dificuldades em penetrar no reino dos céus, mas encontrará relativa facilidade para penetrar nos altos conselhos dum partido político ou em algum ramo do governo. Pode também exercer influência sobre a vida política de outras formas: controlando os meios de comunicação, travando relações nos círculos políticos mais altos, assumindo um papel proeminente nas atividades de grupos de pressão e órgãos consultivos de diversos tipos. Um pobre não tem nenhuma destas vantagens: não possui relações influentes, pouco tempo ou energia lhe restam para dedicar à atividade política e tem pouca oportunidade de adquirir um conhecimento profundo de idéias ou fatos políticos. As diferenças que têm sua origem em desigualdades econômicas são acrescidas de diferenças educacionais. Na maioria das democracias ocidentais o tipo de educação ministrado às classes que fornecem, fundamentalmente, os dirigentes da comunidade diferencia-se nitidamente do ministrado às classes mais numerosas dos dirigidos” (Bottomore, l974, p. 111- 112).

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