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quinta-feira, 2 de outubro de 2014

DEMOCRACIA BURGUESA, ELEIÇÕES E VOTO NULO


DEMOCRACIA BURGUESA, ELEIÇÕES E VOTO NULO

Nildo Viana

A sociedade burguesa é marcada pela luta de classes e por isto faz emergir uma instituição que busca reproduzir as relações de produção dominantes - capitalistas - e isto significa reproduzir a própria luta de classes entre burguesia e proletariado. Isto parece contraditório, mas não é, pois reproduzir as lutas de classes significa reproduzir as classes sociais existentes e suas relações e é de interesse da classe dominante realizar esta reprodução. Em outras palavras, reproduzir a sociedade capitalista significa reproduzir a luta de classes e vice-versa e realizar a reprodução da sociedade existente é do interesse da classe dominante. A classe capitalista busca reproduzir as relações de produção capitalistas e para isso utiliza as instituições burguesas, onde se destaca o estado capitalista e a democracia burguesa. O proletariado deve, pois, se posicionar diante destas instituições e assim deve se colocar diante da questão das eleições a partir de sua perspectiva, que é a do voto nulo. Por conseguinte, para discutir a questão da estratégia do movimento operário diante da questão da democracia burguesa é preciso discutir o voto nulo e sua razão de ser. E para isto é preciso discutir a questão das lutas de classes diante das instituições burguesas, principalmente do estado capitalista e da democracia burguesa. 
Retomando a discussão sobre a luta de classes, podemos dizer que a burguesia tem interesse em reproduzir a luta de classes. O proletariado também tem interesse em reproduzi-la, pois é através dela que ocorre a passagem da consciência contraditória de classe para a consciência revolucionária de classe e é onde se produz a autogestão das lutas operárias, ou seja, o “embrião” da sociedade comunista.  
Ora, se a reprodução da luta de classes é de interesse tanto da burguesia quanto do proletariado, então como se pode falar de “antagonismo de classes” e de luta ou oposição entre elas? Na verdade, o que diferencia estas duas classes nesta questão, e aí reside um antagonismo, está na forma como buscam reproduzir a luta de classes. O interesse da burguesia é realizar um amortecimento das lutas de classes, ou seja, uma reprodução amortecida da luta de classes cujo objetivo é impossibilitar qualquer ruptura ou brecha revolucionária. O interesse do proletariado é realizar uma radicalização e generalização das lutas de classes, ou seja, uma reprodução radicalizada e generalizada das lutas de classes visando possibilitar a superação do capitalismo e instauração da autogestão. 
Entretanto, é preciso deixar claro o que se entende aqui por “luta de classes”. Para os ideólogos da burguesia e suas classes auxiliares (incluindo a pseudo-esquerda) só existe luta de classes quando há violência física, disputa eleitoral, brigas partidárias, guerrilhas, tentativas de conquista do poder estatal, etc. Sem dúvida, as lutas de classes estão presentes nestes acontecimentos, mas não se limitam a isto e, o que é mais importante, não são nestes acontecimentos que se revela o caráter mais radical e fundamental da luta de classes. 
O núcleo fundamental da luta de classes ocorre na produção. Trata-se da luta em torno do mais-valor. Posteriormente, esta luta ocorre na esfera do mercado, onde se dá a realização do mais-valor. Daí a luta de classes se espalha para as demais relações sociais, atingindo as instituições burguesas (escolas, igrejas, etc.), a cultura, o cotidiano, etc. Por isso, a burguesia precisa amortecê-la para continuar existindo. 
Como a burguesia faz isto? A resposta é, tal como colocamos no início, criando uma instituição que busca amortecer a luta de classes. Esta instituição é o Estado Capitalista. Ele busca realizar este amortecimento sob diversas formas, onde se destaca a repressão (polícia, exército), a intervenção na ordem produtiva (controle fiscal e monetário, impostos, empresas estatais, investimentos, subsídios, etc.), a produção de ideologias (escolas, universidades, meios de comunicação, etc.), entre outros.  
Nas primeiras etapas do capitalismo ficou demonstrado que a ação estatal era muito frágil para sustentar a ordem capitalista. Isto provocou a necessidade de reforçar sua ação e criar outros mecanismos (mais ou menos “não-estatais”) para realizar o amortecimento das lutas de classes. O acirramento das lutas de classes no início do século 20 provocou estas mudanças. Quais foram elas? Em primeiro lugar, o crescimento da intervenção estatal não só na ordem produtiva (o chamado keynesianismo), mas no conjunto das relações sociais, onde se destaca a organização estatal da democracia representativa; em segundo lugar, na expansão da “sociedade civil organizada”, caracterizada por ser constituída por um conjunto de instituições privadas que realizam uma mediação burocrática entre estado e sociedade. 
Até a segunda guerra mundial, a democracia representativa não possuía os mecanismos de defesa que passou a possuir no pós-guerra e que se caracterizam por um conjunto de regras jurídicas e de limites que buscam impedir o surgimento de brechas revolucionárias no seu interior. As regras jurídicas são expressas na legislação eleitoral e partidária que buscam reforçar o processo de burocratização e corrupção dos partidos políticos e impossibilitar a ascensão dos pequenos partidos. 
Os limites sociais se encontram no predomínio da riqueza, da propaganda de massas, na ideologia e mentalidade burguesas, na sociabilidade capitalista, etc. A disputa eleitoral, principalmente nos grandes centros urbanos, passou a ser amplamente decidida pelo grau de riqueza dos candidatos ou partidos. Isto, sem dúvida, reforça a supremacia burguesa na esfera eleitoral. A propaganda de massas, que é dependente dos recursos financeiros do candidato e/ou do partido, é um veículo indispensável no processo eleitoral. Além disso, o processo eleitoral não ocorre numa “sociedade de iguais” e sim de pessoas com desiguais recursos financeiros, acesso às informações, etc., e que é marcada por uma dominação de classe, onde a classe dominante impõe às demais classes (não sem luta e sem oposição das classes exploradas, mesmo que marginalizada) a sua ideologia, a sua mentalidade, a sua sociabilidade. 
Desta forma, há uma reprodução da dominação burguesa no processo eleitoral e até mesmo nos partidos políticos de “esquerda”. Aliás, estes, juntamente com outras instituições privadas, fazem parte da sociedade civil organizada que funcionam sob a lógica da burocratização e mercantilização das relações sociais. 
Contudo, o processo eleitoral não serve como amortecedor das lutas de classes apenas através do incentivo que ele executa a burocratização, mercantilização e corrupção de partidos, instituições, associações, movimentos sociais e indivíduos. Ele tem uma outra finalidade que é a legitimação do estado capitalista. 
Sem dúvida, esta é uma finalidade ideológica. A partir destas observações podemos concluir que a democracia burguesa provoca efeitos diversos, tais como a corrupção de grupos, organizações e indivíduos e a legitimação do estado. 
Ocorre, porém, que a luta de classes perpassa todas as etapas deste processo. Mas as classes exploradas ocupa um papel marginal em todas elas.  Em apenas uma esfera as classes exploradas conseguem manter uma posição de classe independente e influente sob grande parte da população. Que esfera é esta? É a do papel legitimador das eleições. 
Isto ocorre sob duas formas: em primeiro lugar, sob a forma espontânea executada por indivíduos pertencentes às classes exploradas, através do abstencionismo e do voto nulo; em segundo lugar, sob a forma voluntária executada por grupos políticos anarquistas, autonomistas e marxistas autogestionários. A primeira forma é individual e espontânea, enquanto que a segunda se revela coletiva (de um grupo) e voluntária.  Acontece que o seu caráter coletivo ultrapassa o simples fato de ser levado a cabo por um grupo, este não se contenta em decidir pelo abstencionismo ou pelo voto nulo, pois busca alargar essa decisão consciente a uma parcela cada vez mais vasta da população. 
Portanto, aqui temos dois pontos para discutir. Um ponto se encontra no fato de que cabe esclarecer como a democracia representativa e o processo eleitoral legitimam o estado capitalista e, por conseguinte, a sociedade capitalista como um todo. O segundo ponto refere-se à ação da esquerda revolucionária no sentido de corroer essa legitimação e fortalecer o processo de autonomização das classes exploradas. 
As idéias de estado representativo e de democracia representativa são legitimadoras por si mesmas. Por detrás delas se encontra a ideologia da representação. O “poder do estado emana do povo” é uma frase ideológica que convence os incautos. A ideologia da representação afirma que o estado, a democracia, os partidos políticos, os políticos profissionais, representam o povo. 
Mas o estado, a democracia, os partidos, etc., não são “coisas” e sim instituições. Toda instituição é composta por relações sociais entre indivíduos.  Estes indivíduos que se relacionam nestas instituições podem ser divididos em dirigentes e dirigidos. Tanto uns quanto os outros possuem seus interesses próprios e suas ações sociais são determinadas por estes interesses. 
Os interesses da burocracia estatal são, entre outros, reproduzir as relações de produção capitalistas, expandir as atividades estatais, etc. A burocracia estatal luta pela manutenção do modo de produção capitalista pelo simples motivo que é o de sua existência depender desta manutenção, sem capitalismo não há burocracia estatal tal como a conhecemos. Os rendimentos da burocracia estatal são parte do mais-valor global extraído do proletariado e os recursos financeiros do estado, bem como tais rendimentos, entram sob, principalmente, a forma de impostos. Outro interesse seu é expandir as atividades estatais, pois isto significa a expansão da própria burocracia estatal e também um crescimento da sua influência e poder. Isto revela algo comum a todas as frações da burocracia (estatal, partidária, privada, sindical, etc.): o seu caráter conservador. 
A burocracia partidária segue a mesma lógica e por isso ela busca reproduzir os seus meios de existência: o estado capitalista, a democracia burguesa, o sistema partidário, além de expandir suas atividades através de cargos públicos adquiridos vai processo eleitoral ou coligação partidária. Isto é válido também para os partidos políticos “ditos” de esquerda. 
Portanto, vê-se que não há nenhuma representação. Para que os partidos e candidatos representassem as classes exploradas seria necessário que o poder de decisão ficasse nas mãos destas e não daqueles. 
O processo eleitoral também legitima o estado capitalista e a democracia burguesa através da disputa partidária e do direito ao voto. A disputa partidária e do direito ao voto. A disputa partidária permite a participação (controlada) de todos os partidos (todos os conseguem atender a legislação partidária e as exigências sociais e eleitorais), até os “comunistas” (que, obviamente, ao atender todas as exigências legais, eleitorais e sociais, foram “domesticados”). O direito ao voto permite que todo cidadão possa escolher livremente o seu representante. Este é um cidadão abstrato, pois a idéia de cidadão mascara as inúmeras diferenças sociais, culturais, individuais e de classe e o fato inquestionável de que a “escolha” não é nem um pouco “livre”.
Abandonemos a ideologia da legitimação do estado capitalista e retomemos o processo de luta de classes. A esquerda revolucionária propõe o abstencionismo e/ou o voto nulo. A razão é simples: quanto maior for o número de abstenções e/ou de voto nulo, maior será a perda de legitimidade do estado capitalista e da democracia burguesa. O efeito disso é o enfraquecimento da hegemonia burguesa e da influência do reformismo (pseudo-esquerda) sobre as classes exploradas. Isto aumenta a possibilidade de autonomização das classes exploradas, e para uma ligação mais “orgânica” entre elas e a esquerda revolucionária. 
O abstencionismo e o voto nulo, entretanto, são questionados pela pseudo-esquerda que argumenta que o parlamentarismo pode ser usado “de forma revolucionária” (bolchevistas) ou de “conquistar melhorias para a população” (reformistas). Além disso, existe um outro argumento contra o abstencionismo: o perigo fascista.
Vejamos cada uma destas colocações. Em primeiro lugar, a utilização do parlamentarismo “de forma revolucionária” nunca foi realizada concretamente. Mesmo os partidos altamente centralizados que conseguem controlar os seus parlamentares nunca conseguiram tal feito. Usar o parlamento como “tribuna” de discurso “revolucionário” não possui eficácia política, pelo menos num sentido revolucionário, pois quem houve tal discurso não são as classes exploradas, que, felizmente, não estão no parlamento. Tal prática política serve apenas para legitimar ainda mais a democracia representativa, esta forma de dominação burguesa. 
A “propaganda revolucionária” que os partidos “ditos” revolucionários fazem se refere sempre à questões secundárias e “abstratas”, tais como o “imperialismo”, o “grande capital”, a “corrupção”, contra o presidente (do tipo: fora Collor, fora FHC...), etc., e nunca questões fundamentais para o desenvolvimento da consciência revolucionária do proletariado, tais como a produção de mais-valor, os métodos secundários de exploração capitalista, a necessidade de auto-organização dos trabalhadores, a fonte capitalista da exploração e opressão das mulheres, negros, crianças, idosos, etc. Em outras palavras, eles repetem as mesmas estratégias burguesas eleitoralistas, pedindo votos, fazendo propaganda de massas despolitizada e sem nenhum vínculo educativo, reproduzindo o culto à autoridade, etc.
Quanto ao discurso socialdemocrata de melhorias sociais concretas, o que ele revela é sua posição política reformista, que quer “reformar para permanecer”, ou seja, quer manter a exploração capitalista e suas consequências e para amortecer a luta de classes faz “propostas concretas” para melhorar a educação, as condições urbanas, etc. Busca-se, assim, por exemplo, reformar a educação sem questionar o seu caráter burguês, o que significa, no final das contas, um direitismo esclarecido. Sem dúvida, quando uma prefeitura socialdemocrata asfalta as ruas da periferia, isto é uma “atividade concreta”, mas cabe a quem quer transformar as relações sociais distinguir o caráter de cada “atividade concreta”, ou seja, se ela contribui para o processo de libertação dos trabalhadores ou não.  
Esta visão limitada revela tão-somente que a socialdemocracia se transformou em um direitismo esclarecido, que tem um nível de consciência muito restrito, não ultrapassando o que Marx denominou “limites intransponíveis da consciência burguesa”, ou seja, eles não conseguem ultrapassar os marcos da sociedade capitalista. O seu discurso da irresponsabilidade dos esquerdistas em propor voto nulo ou abstenção é apenas uma amostra de sua “irresponsabilidade” muito mais profunda, pois se impedimos vitórias socialdemocratas e, consequentemente, “atividades concretas” (do tipo “bolsa escola”, asfalto, “educação pública e gratuita”, etc.) que beneficiam os “mais pobres”, também impedimos a corrupção de muitos indivíduos e a nossa própria e, além disso, a socialdemocracia reforça e legitima esta sociedade que é responsável pela fome, miséria, problemas psíquicos, solidão, infelicidade, etc., de milhões de pessoas, ou seja, uma “irresponsabilidade” muito mais profunda... A indignação socialdemocrata contra o abstencionismo e/ou o voto nulo revela tão-somente sua adaptação ao mundo capitalista e sua corrupção, enquanto que nossa indignação contra a socialdemocracia é a legítima indignação com aqueles que em troca de migalhas salariais, políticas estatais reformistas e outras “atividades concretas” que não provocam nenhuma mudança substancial preferem abrir mão de uma luta cultural que sirva ao desenvolvimento da consciência das classes exploradas e de ações que visam criar condições para uma efetiva transformação social, e por detrás disto se encontra não apenas uma consciência burguesa limitada, mas também, nos subterrâneos de suas mentes, interesses mesquinhos de caráter individual.
Isto não quer dizer que, para a esquerda revolucionária, tanto faz se o que existe é uma democracia ou uma ditadura burguesa? Claro que não, pois é preferível o regime democrático burguês, apesar dele trazer, partindo da perspectiva revolucionária, vantagens e desvantagens (sendo a principal desvantagem a corrupção que ele realiza em diversos setores da sociedade).
 Os autonomistas italianos deram uma resposta satisfatória a este respeito:
Libertar as vanguardas da ilusão eleitoralista é ainda uma de nossas tarefas. Evidentemente que é preciso afirmar com particular nitidez que a manutenção do compromisso democrático não lhes pode ser indiferente. Concretamente, não é indiferente impedir hoje uma inclinação do parlamento à direita, para que, precisamente, exista a possibilidade de uma reconstrução do movimento e da expressão política. Mas isto implica que participemos diretamente da competição eleitoral? Pode-se dizer que os sindicatos não têm um papel decisivo nos equilíbrios democráticos, mesmo ao nível institucional agindo no ‘exterior’? O campo decisivo não se situa noutro lado, mesmo do ponto de vista da democracia? E não é esse ‘outro’ terreno que é especificamente o nosso, pelo menos até que a nossa força seja de tal ordem que nos constranja a preocupar-nos com a gestão das instituições, hipótese que, presumo, nos emprenharíamos em transformá-las visivelmente? (ROSSANDA, 1993, p. 24-25).
Claro que não podemos concordar com a totalidade das afirmações contidas aí e nem com seus desdobramentos, mas aí se coloca, deixando de lado sua ilusão com as “vanguardas” (o bolchevismo) e com o “compromisso democrático”, um aspecto importante: a esquerda revolucionária não precisa se preocupar com o regime democrático burguês, pois existem muitas forças políticas que o defendem, bem como instituições e movimentos. Os sindicatos, os partidos democrático-burgueses e socialdemocratas (que infelizmente continuarão a existir, por mais que conquistemos adeptos e ela enfraqueça), entre outros. Isto significa que não precisamos perder tempo defendendo a democracia burguesa, mas, ao contrário, combatê-la, a não ser em casos raros, que é o que trataremos a seguir. 
E o perigo fascista? Não seria melhor apoiar as forças reformistas para garantir a manutenção da democracia burguesa. Este é o argumento de muitos para sustentar a tese da participação ou apoio eleitoral. Na verdade, tal questão só se coloca quando há concretamente uma ameaça fascista, o que só ocorre em períodos de crise do capitalismo. Quando tal ameaça existe concretamente, a decisão sobre o apoio ou participação eleitoral depende de uma análise da conjuntura. Somente observando a correlação de forças é que se pode decidir qual estratégia será adotada.
Esta análise da correlação de forças ocorre em dois níveis: o primeiro nível é o das ações das classes sociais e o segundo nível o das forças políticas que expressam os interesses de uma ou outra classe social. O primeiro nível é o fundamental e decisivo. Se as classes exploradas estiverem passivas e as forças revolucionárias sem grande penetração no movimento de massas, a estratégia pode ser apoiar, de forma independente, as forças reformistas.  Ocorre, porém, que este apoio é temporário e é utilizado para aumentar o seu espaço político visando fortalecer as ações autônomas das classes exploradas e caso se consiga, neste processo, mudar a correlação de forças, deve haver uma passagem para uma estratégia ofensiva, rompendo-se com as forças reformistas e incentivando a revolução autogestionária. 
Caso a correlação de forças seja favorável ao bloco revolucionário, então não há necessidade de aliança com o bloco reformista e de defesa da democracia burguesa. Cabe à esquerda revolucionária, nesta conjuntura, buscar acirrar as lutas de classes visando a autonomização das classes exploradas no sentido do desencadeamento do processo revolucionário. 
Quando não existe ameaça fascista, então a estratégia é combater a democracia burguesa e o bloco dominante, juntamente com o bloco reformista. O abstencionismo e/ou voto nulo são as armas de atuação no processo eleitoral. 
Mas não se pode utilizar a democracia burguesa para criar uma “brecha revolucionária”? Como colocamos anteriormente, após a segunda guerra mundial isto se tornou quase impossível. O último exemplo histórico disso ocorreu durante a guerra civil espanhola, quando a Frente Popular (formada por republicanos, socialdemocratas, etc.) ganhou as eleições. Tal Frente Popular se aglutinou em torno de um programa reformista burguês que propunha reforma agrária, reforma do ensino, etc., embora não mencionasse propostas socialistas, havia uma cláusula que aglutinava todas as forças populares: a anistia e reintegração ao trabalho para os presos políticos (aproximadamente 30.000) e foi esta a condição que o POUM - Partido Operário de Unificação Marxista, e outras facções fizeram para aderir a esta frente. Mas a vitória da Frente Popular só foi possível devido ao fato dos anarquistas espanhóis (CNT - Confederação Nacional do Trabalho e FAI - Federação Anárquica Ibérica) terem evitado desencadear sua costumeira campanha pelo voto nulo que giravam em torno de um milhão e meio de “votos perdidos”. A posição dos anarquistas foi provocada pela cláusula da anistia e reintegração ao trabalho dos presos políticos.
A vitória eleitoral, entretanto, tirou o controle da sociedade tanto do bloco dominante, a direita, quanto da Frente Popular, o bloco reformista:
“O ato eleitoral e seus resultados desencadearam uma imediata reação nas massas. Sem esperar o decreto de anistia, elas se jogaram às prisões para libertar os insurretos de 1934. Isto aconteceu em Valência, em Oviedo (nas Astúrias) e um pouco por toda a Espanha. A essa libertação se seguiram greves políticas generalizadas pedindo a reintegração imediata dos operários demitidos e o pagamento de salários atrasados. A elas se juntaram greves de caráter mais reivindicativo, algumas longas. Os patrões respondiam fechando as fábricas. No campo a situação tornou-se ainda mais explosiva. Os camponeses ocupavam imediatamente as terras dos grandes proprietários e começaram a cultivá-las. Isso aconteceu em Badajoz, Cáceres, na Extremadura, na Andaluzia, em Castella e em Navarra. Incidentes sangrentos verificaram-se entre trabalhadores rurais e a Guarda Civil. Os patrões responderam não contratando homens para as colheitas, mesmo ao preço de substanciais perdas econômicas. Ao mesmo tempo a Igreja tornou-se o alvo da ira popular: a qualquer boato sobre uma ‘conspiração dos padres’, conventos e igrejas eram incendiados” (ALMEIDA, 1981, p. 27-28).
Esse processo de autonomização das classes exploradas ocorrido na Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola e a experiência de autogestão na Região da Catalunha durante quatro anos, até que a união entre republicanos, fascistas e stalinistas realizaram a contra-revolução, já era uma tendência e a vitória da Frente Popular apenas serviu como “detonador” do processo de passagem da guerra civil oculta para guerra civil aberta.
Tudo isto, no entanto, ocorreu dentro de um contexto histórico determinado e numa época em que as forças revolucionárias tinham grande penetração junto às massas e a democracia burguesa ainda não tinha se estruturado de forma tão organizada como nos dias atuais. Hoje, a participação eleitoral dificilmente permitirá brechas revolucionárias e somente fatos extraordinários poderiam possibilitar tal acontecimento.
Hoje a democracia burguesa funciona como um dispositivo da “contra-revolução preventiva” denunciada por Marcuse. Para ele:
Na sociedade repressiva, destarte, até mesmo os movimentos progressistas ameaçam transformar-se em seus opostos na medida em que aceitam as regras do jogo. Ou, para citar um caso mais controvertido: o exercício dos direitos políticos (tais como votar, escrever cartas aos jornais, aos senadores, etc., as demonstrações de protesto como renúncia a priori da contra-violência) na sociedade de administração serve para fortalecê-la, pois reconhece a existência de liberdades democráticas que, na realidade, mudaram o conteúdo e perderam a eficácia. Em tais casos, a liberdade (de opinião, de assembléia, de expressão) transforma-se em instrumento de servidão absolvedora (MARCUSE, 1970, p. 89).
Neste contexto, devemos lutar contra a democracia burguesa fazendo campanha pelo abstencionismo e/ou voto nulo, visando corroer a legitimação da democracia representativa e a força do bloco reformista, além de contribuir com a autonomização das classes exploradas. Por conseguinte, podemos dizer que o abstencionismo e/ou o voto nulo são as estratégias da esquerda revolucionária no que diz respeito à democracia burguesa. Busca-se, assim, corroer a influência do bloco dominante e do bloco reformista e colaborar com o processo de radicalização das lutas de classes, principalmente, com a autonomização das classes exploradas.

Referências

ALMEIDA, Ângela. Revolução e Guerra Civil na Espanha. São Paulo, Brasiliense, 1981.

MARCUSE, Herbert. Tolerância Repressiva. In: WOLF, Robert; MOORE JR., Barrington; MARCUSE, Herbert. Crítica da Tolerância Pura. Rio de Janeiro, Zahar, 1970, p. 89.

ROSSANDA, Rossana. Il Manifesto e as Eleições. Revista Ruptura, ano 1, no 1, maio de 1993.


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