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segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Debord, Fetichismo, Espetáculo e Abstratificação



Debord, Fetichismo, Espetáculo e Abstratificação



Nildo Viana*


Resumo: O presente artigo discute a obra de Guy Debord, analisando seus elementos fundamentais, seus limites e, ainda, seu valor e atualidade. Para realizar esse objetivo, realiza uma análise da obra A Sociedade do Espetáculo e, após isto, discute alguns limites, principalmente a abstratificação presente nela, elemento sem o qual uma justa avaliação seria impossibilitada, inclusive perceber seu alcance atual e valor para entender a sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Espetáculo, Debord, Abstratificação, Mercadoria, Fetichismo.

Guy Debord nasceu em 1931 e suicidou-se em 1994. Apesar de ter escrito sobre sua própria vida em seu livro Panegírico, não nos deixou muitas informações sobre sua história além de alguns fatos fragmentários, tal como o seu gosto por bebidas alcóolicas, as suas relações com criminosos comuns e políticos, sua recusa da sociedade moderna. Sabemos, porém, de sua ação política através da Internacional Situacionista e de seu pensamento através de suas obras, em especial, A Sociedade do Espetáculo. Aqui nos interessa sua análise da sociedade capitalista, ou, como dizem outros, da sociedade moderna, da modernidade. Além de alguns textos menos importantes, a sua visão da sociedade capitalista está expressa de forma mais acabada em A Sociedade do Espetáculo. Está é também uma das principais obras que expressam as concepções da Internacional Situacionista, organização contestária da qual Debord foi um dos mais destacados representantes e que existiu de 1957 a 1972. Debord busca na vida cotidiana a base da contestação social de nossa época. O espetáculo produzido pela sociedade capitalista fundamentada na mercantilização de tudo e no fetichismo generalizado abre caminho para sua teoria crítica da sociedade capitalista, da qual trataremos no presente artigo. Após isto, analisaremos a abordagem de Debord no sentido de discutir suas teses e observar se é suficiente para explicar a realidade social contemporânea.
A Sociedade Espetacular
Marx afirmou que, à primeira vista, a sociedade capitalista aparece como uma “imensa coleção de mercadorias” (Marx, 1988). Parafraseando Marx, Debord afirma que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” (Debord, 1997, p. 13).
O que é o espetáculo? Debord nos apresenta inúmeras características do espetáculo. Ele “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediadas por imagens”; é também uma cosmovisão; resultado e projeto do capitalismo; o “modelo atual da vida dominante na sociedade”; a “afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre desta escolha”; “a justificativa total das condições e dos fins do sistema existente”; “a presença permanente dessa justificativa, como ocupação da maior parte do tempo vivido fora da produção moderna”; o sentido da prática total; “a principal produção da sociedade atual”; herdeiro da filosofia baseada nas categorias do ver; “sonho mau”; etc., etc. Richard Gombim esclarece com mais precisão o significado do espetáculo:
“A degradação e a decomposição da vida cotidiana correspondem à transformação do capitalismo moderno. Nas sociedades de produção do século XIX (cuja racionalidade era a acumulação de capital), a mercadoria tinha-se tornado um fetiche na medida em que era considerada como figurando um produto (objeto), e não uma relação social. Nas sociedades modernas, em que o consumo é a ultima ratio, todas as relações humanas têm sido impregnadas da racionalidade do intercâmbio mercantil. É o motivo por que o vivido se afastou ainda mais numa representação: tudo aí é representação. É a este fenômeno que os situacionistas chamam espetáculo (a concepção de Lefebvre é mais neutra: o espetáculo moderno, para ele, deve-se simplesmente à atitude contemplativa dos seus participantes). O espetáculo instaura-se quando a mercadoria vem ocupar totalmente a vida social. É assim que, numa economia mercantil-espetacular, à produção alienada vem juntar-se o consumo alienado. O pária moderno, o proletário de Marx, não é já tanto o produtor separado do seu produto como o consumidor. O valor de troca das mercadorias acabou por dirigir o seu uso. O consumidor tornou-se consumidor de ilusões” (Gombim, 1972, p. 82).
A sociedade capitalista passa a ser compreendida, então, como o reino do espetáculo, da representação fetichizada do mundo dos objetos e das mercadorias. O espetáculo, assim, consagra toda a glória ao reino da aparência. Ele domina os homens a partir do momento em que a economia desenvolveu-se por si mesma, sendo o reflexo fiel da produção das coisas e a objetivação infiel dos produtores.
Esta temática de Debord vai de encontro com as teorias da sociedade de consumo. Baudrillard (1991), por exemplo, irá tratar do mundo dos objetos e da esfera do consumo. Lefebvre (1990) também não deixou de lado o problema da sociedade de consumo, qualificada por ele de “sociedade burocrática de consumo dirigido”. Arendt (1997) fez considerações sobre a sociedade de consumidores e assim por diante. Erich Fromm (1988) irá analisar a passagem da valorização do ser para o ter. Mas a sociedade de consumo para Debord é a sociedade do espetáculo, da reificação, para utilizar expressão lukacsiana (Lukács, 1989). Porém, isto difere sua abordagem das demais, pois aqui a passagem do ser para o ter é complementada pela passagem para o parecer.
Nesta sociedade, há a produção circular do isolamento (através do automóvel, da televisão, etc.). Desta forma, a temática da separação e do isolamento assumem um papel central na concepção de Debord. O consumo e a imagem (representação reificada) ocupam o lugar da ação direta, do diálogo. Provocam o isolamento e a separação. Assim, a crítica da especialização aparece e retoma Marx (1988), Lukács (1989) e Korsch (1977).
Debord retoma a discussão em torno do fetichismo da mercadoria. A mercadoria surge como força que ocupa a vida social e constitui a economia política, “ciência dominante e ciência da dominação”. “O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social (...). A produção econômica moderna espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura” (Debord, 1997, p. 31).
A abundância da produção de mercadorias produz a preocupação da classe dominante com o proletário enquanto consumidor, criando o “humanismo da mercadoria”, encarregado do “lazer” do trabalhador.  “Assim, ‘a negação total do homem’ assumiu a totalidade da existência humana” (Debord, p. 32).
Neste contexto, o consumo deve aumentar sempre, mas este aumento só é possível pelo motivo de que contem em si uma privação, “a privação tornada mais rica”. O consumismo derivado daí leva a uma “sobrevivência ampliada”, produzindo também a produção de pseudonecessidades para garantir esse processo de expansão da produção e do consumo.
Na sociedade em que domina o espetáculo, a oposição a ela também é envolvida por ele. As lutas “espetaculares” são ao mesmo tempo falsas e reais. São falsas por não colocarem em questão a sociedade do espetáculo e por serem, elas mesmas, espetaculares. São reais pelo motivo de que expressam lutas reais entre classes ou frações de classes.
Segundo Debord, a resistência das regiões subdesenvolvidas não difere muito disto. Tal como ele colocou:
“A sociedade portadora do espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas apenas pela hegemonia econômica. Domina-as como sociedade do espetáculo. Nos lugares onde a base material ainda está ausente, em cada continente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície social. Ela define o programa de uma classe dirigente e preside sua formação. Assim como ela apresenta os pseudobens a desejar, também oferece aos revolucionários locais os falsos modelos de revolução” (p. 39).
A sociedade do espetáculo também transforma a revolta em rebelião puramente espetacular, através da transformação da insatisfação em mercadoria.  O mesmo ocorre, com algumas diferenças de pormenor, no capitalismo de estado[1]. Segundo Debord,
“A satisfação denuncia-se como impostura no momento em que se desloca, em que segue a mudança dos produtos e a das condições gerais de produção. Aquilo que, com o mais perfeito descaramento, afirmou sua própria excelência definitiva transforma-se no espetáculo difuso e também no espetáculo concentrado. É apenas o sistema que tem que continuar: Stálin tanto quanto a mercadoria fora de moda são denunciados por aqueles mesmos que os impuseram. Cada nova mentira da publicidade é também a confissão da mentira anterior” (Debord, 1997, p. 47).
Neste contexto, Debord analisa o marxismo a partir da obra de Marx. Coloca em evidência a perspectiva revolucionária da teoria de Marx e sua transformação em ideologia, tanto pela socialdemocracia quanto pelo bolchevismo. Debord faz uma severa crítica a diversas correntes políticas, tais como o anarquismo, a socialdemocracia, o kautskismo, o leninismo, o stalinismo, o trotskismo. Para ele, a socialdemocracia e o bolchevismo inauguram a ordem de coisas que expressa o espetáculo moderno: “a representação operária opôs-se radicalmente à classe” (Debord, 1997, p. 68).
Qual é a alternativa para a sociedade do espetáculo? Como se pode trilhar um caminho alternativo que não passe pela socialdemocracia, pelo bolchevismo ou pelo anarquismo? Debord retoma a resposta dada já na década de vinte pelos chamados “comunistas conselhistas” (Korsch, Pannekoek, Mattick, Rühle, etc.)[2]:  os conselhos operários são a forma de emancipação proletária. Tais conselhos rompem com a idéia de representação, tanto parlamentar (socialdemocracia) quanto a vanguardista-partidária (bolchevismo). Segundo Debord,
“A organização revolucionária só pode ser a crítica unitária da sociedade, isto é, uma crítica que não pactua com nenhuma forma de poder separado, em nenhum ponto do mundo, e uma crítica formulada globalmente contra todos os aspectos da vida social alienada” (Debord, 1997, p. 85).
Assim, ele propõe os conselhos operários como alternativa global para a alienação global:
“Quando a realização sempre mais avançada da alienação capitalista em todos os níveis, ao tornar sempre mais difícil aos trabalhadores reconhecerem e nomearem sua própria miséria, os coloca na alternativa de recusar a totalidade de sua miséria, ou nada, a organização revolucionária deve ter aprendido que não pode combater a alienação sob formas alienadas” (Debord, 1997, p. 85).
Aqui notamos um aspecto do situacionismo e do pensamento de Debord que continua fiel ao pensamento de Marx:
“Vemos o que esta concepção tem de radical; o corte que ela opera com todo o movimento de esquerda deste meio século confere-lhe um tom milenarista, herético. Sobre um ponto, entretanto, ela parece dar ainda prova de ortodoxia: o sujeito revolucionário, o portador da revolução, o emancipador, permanece, para a Internacional Situacionista, o proletariado” (Gombin, 1972, p. 86).
Enfim, estas são as principais colocações de Debord sobre a sociedade do espetáculo e de suas características. A partir desta reflexão inicial, podemos, agora, realizar uma análise crítica da tese da sociedade espetacular e refletir sobre seu valor e atualidade.
Valor e Atualidade da análise da sociedade espetacular
A obra de Debord representa uma determinada concepção de sociedade capitalista. Trata-se de uma concepção que parte de uma perspectiva crítica e de oposição a esta sociedade. Debord se filia ao chamado esquerdismo, sendo um representante da Internacional Situacionista. Porém, ele faz sua crítica da sociedade capitalista sob forma bem diferente da esquerda tradicional. Os conceitos mais importantes para a esquerda tradicional são os de exploração, burguesia, imperialismo, etc., e o locus privilegiado de debate é a instância da “economia” e da “política”.
Isto será criticado de forma intensa pelos representantes da Internacional Situacionista e por Debord em particular. A separação entre economia e política e entre estas “esferas” da realidade e as demais. A própria separação é questionada como um produto da ideologia espetacular. A realidade foi separada, mas não existe tal separação na realidade.
Debord focaliza sua crítica à sociedade capitalista concebendo-a como sociedade do espetáculo e esta se caracteriza pela generalização do fetichismo da mercadoria que invade a vida cotidiana. A crítica da vida cotidiana torna-se o fundamento da crítica à sociedade capitalista. O espaço (e juntamente com ele o urbanismo, a arquitetura, etc.), o tempo, o lazer, a cultura, a arte, a comunicação e tudo o mais é perpassado por esta alienação generalizada da sociedade moderna[3].
Tendo em vista que a alienação é total, então Debord propõe a contestação total do capitalismo moderno (Debord, 1961). Segundo Gombin,
“Esta consiste numa multidão de atos espontâneos tendentes a modificar radicalmente o espaço-tempo atribuído pela classe dominante. A nova revolução não poderia, pois, aspirar à simples tomada de poder, a uma renovação da equipe ou da classe dirigente: é o próprio poder que é necessário suprimir para realizar a arte, que é o objetivo último. A realização da poesia, que será também a sua ultrapassagem, exige, evidentemente, um reconhecimento dos seus próprios desejos (asfixiados pela sociedade do espetáculo e rebaixados a pseudonecessidades): a palavra livre, a comunicação verdadeira (e não mais unilateral e manipulada), a recusa do trabalho produtivo como trabalho produtivo, a recusa igualmente da hierarquia, de toda a autoridade e de toda especialização. O homem libertado não será mais o homo faber, mas o artista, quer dizer, o criador das suas próprias obras. A revolução, será, portanto, um ato de afirmação da subjetividade de cada um no terreno da cultura, que é o terreno mais vulnerável da civilização moderna. Porque é a arte que revela em primeiro lugar o estado de decomposição dos valores: o que Marx e Engels não viram ou não quiseram ver; ora, a cultura, ao mesmo tempo que reflete as forças dominantes da sua época, é também e já o projeto de sua ultrapassagem. Os grandes artistas foram também grandes profetas revolucionários: Latréamont, Rimbaud, que ultrapassaram a sua época na e pela sua obra. Trata-se de retomar esse fio que, depois, se perdeu (pois que a obra de arte moderna se tornou uma mercadoria como qualquer outra). Trata-se de recriar uma linguagem de comunicação na comunidade do diálogo: a contestação será também a procura dessa linguagem, é o motivo por que será antes de mais uma revolução cultural. O dadaísmo e o surrealismo começaram a destruir a linguagem (alienada) antiga: mas não souberam encontrar um novo estilo de vida. O seu fracasso explica-se pela imobilização do assalto revolucionário desse primeiro quarto de século. (...). Parafraseando os esquerdistas, poderíamos dizer que os homens serão felizes no dia em que forem todos artistas” (Gombin, 1972, p. 92-94).
Desta forma, a modernidade é a sociedade do espetáculo. O reino do fetichismo e do consumo. Um mundo fragmentado, separado. A modernidade, tal como Lefebvre já havia colocado, é a última estratégia da dominação burguesa (1969). Neste sentido, para Debord, a sociedade capitalista é a negação da humanidade e somente a recuperação desta poderá promover a negação da sociedade capitalista. Enfim, trata-se de uma crítica da sociedade capitalista. Uma acusação do seu caráter alienante, fetichista, espetacular.
A crítica da sociedade do espetáculo, no entanto, compartilha com ela alguns problemas básicos. Alguns destes problemas foram denunciados pelo próprio Debord. O primeiro ponto problemático da abordagem debordiana é o seu abstracionismo. A capacidade humana da abstração existe desde a aurora dos tempos, quando emerge a razão humana (Fromm, 1976). Porém, segundo Fromm, a sociedade capitalista promove um processo crescente de abstratificação, na qual a abstração como capacidade humana é substituída por uma forma deformada da mesma[4]. Segundo Fromm:
“Há duas maneiras da pessoa relacionar-se com um objeto: podemos relacionar-nos com ele em sua plena constituição material; então o objeto aparece com todas as suas qualidades específicas, e não há nenhum outro objeto idêntico a ele. E podemos relacionar-nos com um objeto de um modo abstrato, isto é, levando em conta somente as qualidades que ele tem em comum com todos os demais objetos do mesmo gênero, com o que se acentuam certas qualidades e se ignoram outras. A relação plena e produtiva com um objeto compreende esta polaridade de percebê-lo em sua singularidade e, ao mesmo tempo, em sua generalidade, em sua plena constituição material e, ao mesmo tempo, em sua abstração” (Fromm, 1976, p. 118).
A tese de Debord aponta para um reconhecimento correto da generalização do fetichismo da mercadoria, que passa a se manifestar como fetichismo da arte, da ciência, etc. e nesse mundo fetichista, tudo vira fetiche. Porém, a consciência fetichista representa a realidade de forma reificada. Esta representação, como diz Debord, é representação reificada. O acúmulo de imagens domina a sociedade capitalista. A ideia, em si, não é problemática e sim a forma como é apresentada e o que fica oculto. Uma das características do fetichismo é justamente ocultar o processo de constituição do fenômeno (sua historicidade) e suas relações (a totalidade). Esse ocultamento se reproduz na obra de Debord, pois ele mostra a emergência e dominância da sociedade espetacular, da imensa acumulação de espetáculos, mas não sua produção, seu processo de constituição.
Ao parafrasear Marx, que aponta o capitalismo como imensa acumulação de mercadorias, apenas reproduz o que este afirma substituindo a mercadoria pela ideia de imagens, de espetáculo. Em que pese essas duas coisas não sejam contraditórias, o problema reside que Marx afirma que isso é “à primeira vista”, ou seja, numa percepção superficial da realidade e por isso ele passa a explicar o que é mercadoria, qual seu processo real de produção e relação com a totalidade da sociedade capitalista. Marx vai além do fetichismo, pois caso contrário o reproduziria.
Debord, ao contrário, se contenta em descrever o espetáculo, mostrar suas formas e não mostra, em seu livro, o processo real de constituição do espetáculo, que remeteria para a produção de mais-valor e, portanto, para a questão das classes sociais – algo relativamente ausente em sua análise. As classes aparecem e desaparecem ao mesmo tempo. O proletariado aparece como sujeito revolucionário, mas não se explicita como e por qual motivo ele o é ou como continua sendo. A representação reificada atinge a todos, inclusive o proletariado. Resta saber como e por qual motivo ele pode superar isso. Os conselhos operários rompem com a representação e separação, mas como e por qual motivo eles surgem? O oculto aqui é a produção de mais-valor e, junto com ela, as classes fundamentais do capitalismo. Ao mesmo tempo, tudo que é derivado disso (não apenas o fetichismo, mas a reprodução ampliada do capital, concentração, centralização, etc.).
Assim, ao ultrapassar o economicismo e atingir a vida cotidiana e sua essência mercantil-consumista há um avanço, mas ao não analisar o processo de produção e constituição dessa situação, separa o espetáculo, o mundo mercantil e consumista, da produção, da história. Essa separação, criticada mas reproduzida por Debord, cria uma autonomização. O modo de produção capitalista e sua dinâmica de reprodução ampliada que produz a necessidade de reprodução ampliada do mercado consumidor é fundamental e não pode ser deixado de lado em qualquer análise do capitalismo. Assim, caímos na possibilidade de interpretações equivocadas de Debord, sob várias formas, algumas aproveitando da abstração e falta de precisão conceitual para conquistá-lo para suas teses, deformando sua análise (Jappe, 2008) e outros ficando no reino da abstratificação denunciada por Fromm (1976). Isso tanto é verdade que alguns chegam ao ponto de pensar que as ideias criam valor (de troca):
“Tal crítica supõe em Debord, como já antes supusera em Marx, a assunção da natureza contraditória das relações fetichistas como determinação central do mundo moderno, contradição nucleada na relação entre valor de uso e valor de troca inscrita na forma-mercadoria. Deste modo, e segundo as reflexões por ele mesmo apresentadas, um livro e este livro, nas atuais condições sociais de produção, é necessariamente uma mercadoria. Se este livro se origina do financiamento estatal e da aprovação das instituições universitárias, ele aumenta seu valor de troca, tanto pelo acréscimo simples das horas de trabalho dedicadas à formação especializada, como pela introdução do valor simbólico que, sob as relações espetaculares, a hierarquia do trabalho intelectual sempre supõe. Um livro, este livro, é, do ponto de vista do valor de troca, uma expressão da ‘separação consumada’ da qual nos fala Emiliano Aquino, expondo Debord” (Amaral, 2006, p. 19).
Na verdade, aqui falta o concreto em favor da abstratificação da realidade. O valor de troca de um livro não aumenta devido financiamento estatal. Somente uma análise concreta pode resolver isso, mas a tendência é justamente o contrário. Quando há financiamento estatal, o livro – e em muitos casos é isso que ocorre – pode ser distribuído até gratuitamente. Vários livros são distribuídos gratuitamente e a razão disso, ausente na análise acima, é que quando o Estado financia uma publicação ocorre uma transferência de mais-valor (produzida na produção material de mercadorias e drenada pelo Estado sob a forma de imposto, etc.) dele para quem produz o livro (uma gráfica ou editora) que, por sua vez, retira daí os seus gastos com capital fixo e variável (meios de produção e matérias-primas, por um lado, e salários, por outro), e entrega a mercadoria para o Estado ou qualquer outra instituição estatal, que não terá que recuperar (parcial ou total) o que foi gasto. Da mesma forma, a formação especializada e o “valor simbólico” da hierarquia do trabalho intelectual não fazem aumentar o valor de troca de um livro. Na verdade, o livro é uma mercadoria, algo material, e seu valor é medido não pelas ideias ou tempo para produzir as ideias presentes nele, e sim pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzir o objeto material que é o livro e quem produz tal objeto é o proletário que é explorado nesse processo, já que seu trabalho excedente não é remunerado.
Assim, é o trabalho incorporado que determina o valor da mercadoria e é por isso que, quando uma gráfica faz orçamento de um livro, não pergunta a titulação do autor e nem quanto tempo demorou para escrever um livro e sim quantas páginas (matéria-prima, que entra no custo de produção, significando trabalho morto, materializado em meios de produção), quantos exemplares, etc. serão impressos. Esse exemplo acima é para mostrar como a abstratificação pode significar um abandono da realidade concreta em favor do mundo das ideias, do fetichismo, que aparenta ser gerador de valor.
A ideia de que a representação reificada é o grande problema a ser combatido e que ocorre uma autonomização do valor de troca é uma ideologia, no sentido marxista do termo (falsa consciência sistemática), pois deixa de lado um elemento fundamental da mercadoria: ela é produto do trabalho humano e o “trabalho abstrato” é apenas uma parte de sua realidade e a parte fundamental, ocultada por ele, é que em toda mercadoria há trabalho incorporado nela, o que determina seu valor. Obviamente que Debord dá margem para estas interpretações, mas ele não afirmou exatamente isto. Porém, a possibilidade de apropriação, de forma relativamente convincente, do seu pensamento por estas interpretações, mostra um problema real em sua análise, a abstratificacao.
A separação é criticada por Debord e a vida cotidiana, a totalidade reaparece, o que é um mérito. Porém, a totalidade que ele apresenta é abstrata e sua linguagem é igualmente abstrata e por isso a dificuldade de leitura de sua obra e ampla possibilidade das mais variadas interpretações. E, apesar da recusa total e da retomada da totalidade, ele focaliza o consumo, o valor de troca, a imagem, o espetáculo, ao invés de trabalhar a produção do “espetáculo” e tudo o mais que aborda. É o que Kosik denominou “totalidade abstrata” (Kosik, 1986). Assim, o que é relativo em Debord se torna absoluto em alguns de seus intérpretes, que trocam a análise da realidade concreta por um mundo aparente e fenomênico, o “mundo da pseudoconcreticidade” (Kosik, 1986).
Em Debord o modo de produção fica subentendido (e, de qualquer forma, secundarizado), e nos seus intérpretes é abandonado ou reduzido ao momento do mercado, onde Marx é substituído por Adam Smith e a “mão invisível do mercado”. A superação do economicismo não se dá pela desconsideração ou secundarização do modo de produção e sim pelo reconhecimento do real significado deste termo e de seu significado na totalidade da sociedade em questão (Viana, 2007b).
A questão da abstratificação está presente em Debord e é exagerada em seus intérpretes a tal ponto que o concreto desaparece e o fetichismo se torna a realidade. Nesse último caso, temos um fetichismo do fetichismo. A consciência fetichista deixa de ser consciência para ser realidade e logo, deixa de ser representação ilusória para ser verdadeira e assim representação e realidade se fundem. O fetichismo não é mais – nessa ideologia – uma inversão da realidade e sim sua expressão e, sendo assim, o dinheiro, a mercadoria, o valor de troca é o essencial e é isso que tem que ser combatido. O modo de produção que gera tudo isso não tem mais importância, as classes sociais e suas lutas deixam de ser o motor da história, e Marx é substituído por Adam Smith.
Esse retrocesso intelectual, porém, não é gratuito, tem seu próprio processo de produção, que não poderemos nos ocupar dele no presente artigo. A consciência fetichista se funde com a realidade tornada fetichista e assim, se ainda permanece o desejo de transformação social, o combate é ao fetichismo e a produção do fetichismo foi esquecida. Este é o procedimento típico da consciência fetichista e, portanto, transforma-se, mais uma vez, o marxismo em ideologia. A concepção teórica do fetichismo é substituída pela concepção ideológica e os críticos do fetichismo fetichizado são apenas outros fetichistas a mais, se dizendo “esquerdistas” e “revolucionários”. A crítica do fetichismo se tornou fetichista e abandonou seu caráter crítico, tornando-se um superficialismo abstratificante.
Porém, independentemente disso, a obra de Debord assume uma radicalidade e potencial crítico que é uma das melhores análises do capitalismo que emergiu após a Segunda Guerra Mundial. Assim, a obra A Sociedade do Espetáculo mantém seu valor e atualidade. O seu valor reside em focalizar em sua análise um derivado do modo de produção capitalista que é a expansão do consumo e das formas como ele assume e das imagens criadas por ele, o que denominou espetáculo (sem analisar o processo histórico que engendra essa situação, mas por questão de foco analítico). Isso, por sua vez, tem ressonância na análise do processo comunicacional, pois no próprio cerne de sua análise do espetáculo se encontra o problema da comunicação, da separação e do isolamento. A comunicação cotidiana é atingida pela separação e fim do diálogo, a comunicação via meios tecnológicos é cada vez mais espetacular.
A sua atualidade reside em que tal análise se mantém válida, pois o desenvolvimento do capitalismo reproduz essa situação, embora trazendo novos elementos a partir da década de 1980 e esboçada nos anos 1970, quando emerge o regime de acumulação integral (Viana, 2009). A crítica abre espaço para a ação, e, na época em que o espetáculo e o fetichismo invadem tudo, inclusive a obra de Debord, este reconhecimento é fundamental. Daí a importância de Debord na atualidade e seu valor.

Referências

Amaral, Ilana. Para Além do Espetáculo (Ou: dos possíveis valores dessa obra). In: Aquino, João Emiliano. Reificação e Linguagem em Guy Debord. Fortaleza, EdUECE/Unifor, 2006.
Aquino, João Emiliano. Reificação e Linguagem em Guy Debord. Fortaleza, EdUECE/Unifor, 2006.
Arendt, Hanna. A Condição Humana. 8a Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997.
Baudrillard, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa, Edições 70, 1991.
Debord, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
Debord, Guy. Considerações sobre a Sociedade do Espetáculo. In: A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
Debord, Guy. Panegírico. Lisboa, Antígona, 1995.
Debord, Guy. Perspectives de Modification Consciente de la vie Quotidiene. In: Internacionale Situationniste, nº 6, Agosto de 1961.
Fromm, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. 8ª Ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
Fromm, Erich. Ter ou Ser? 10a Ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1988.
Gombin, Richard. As Origens do Esquerdismo. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1972.
Jappe, Anselm. Guy Debord. Lisboa, Antígona, 2008.
Korsch, K. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.
Kosik, Karel. Dialética do Concreto. 4ª Ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra 1986.
Lefebvre, Henri. A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. São Paulo, Ática, 1990.
Lefebvre, Henri. Introdução à Modernidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.
Lênin, W. O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo. 6ª Ed., São Paulo, Global, 1986.
Marx, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª Ed. São Paulo, Martins Fontes, 1983.
Marx, Karl. O Capital. 3a edição, vol. 1, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
Pannekoek, Anton. Los Consejos Obreros. Madrid, Zero, 1977.
Viana, Nildo. A Consciência da História. Ensaios Sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª Ed., Rio de Janeiro, Achiamé, 2007b.
Viana, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. Goiânia, Alternativa, 2007a.
Viana, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo, Idéias e Letras, 2009.




* Professor da Faculdade de Ciências Sociais/UFG; Graduado em Ciências Sociais/UFG; Especialista em Filosofia/UCB; Mestre em Filosofia/UFG; Mestre em Sociologia/UnB; Doutor em Sociologia/UnB; Autor de diversos livros, entre os quais Introdução à Sociologia (2ª edição, Belo Horizonte, Autêntica, 2011); A Esfera Artística – Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte (2ª edição, Porto Alegre, Zouk, 2011); A Consciência da História (2ª edição, Rio de Janeiro, Achiamé, 2007), entre outros.
[1] Debord é um dos teóricos que defendem que o regime da antiga União Soviética, Leste Europeu, China, Albânia, etc., era um capitalismo de estado, não tendo nada a ver com uma sociedade autenticamente socialista. Os primeiros defensores desta tese foram os esquerdistas russos de oposição ao bolchevismo e os esquerdistas alemães, holandeses e italianos, duramente criticados por Lênin, em O Esquerdismo, A Doença Infantil do Comunismo (1986).
[2] Os comunistas conselhistas também foram chamados de “comunistas de esquerda”, de “comunistas de princípios”, de “esquerdistas” e de “comunistas internacionalistas”. Fizeram feroz oposição ao regime soviético e ao leninismo, tanto do nível metodológico como político (sobre tal corrente e sua influência sobre a Internacional Situacionista, cf. o livro citado de Gombin). A grande síntese da teoria dos conselhos operários foi realizada por Anton Pannekoek (1977).
[3] A obra de Debord foi interpretada de forma equivocada por diversos autores. Anselm Jappe chama a atenção para isso ao colocar o exemplo daqueles que colocaram a obra de Debord como sendo uma crítica aos meios de comunicação – a mídia, sendo que se trata de algo bem mais amplo (Jappe, 2008). Assim, Debord seria um dos poucos que teria sua obra “aproveitada de modo tão deformado” (Jappe, 2008, p. 12). Tragicamente, a interpretação de Jappe é também uma deformação, pois ao invés de compreender o autor através da análise do processo genético e totalidade de sua exposição, mistura o que o autor diz com o que ele – o intérprete – acredita e assim mescla a ideologia de Robert Kurz e do grupo Krisis com as teses de Debord, transformando-o no que não é. Uma crítica moderada e com alguns equívocos à interpretação de Jappe pode ser vista em Aquino (2006)
[4] Marx não desenvolveu nenhuma análise aprofundada sobre isso, mas sempre distinguiu a abstração dialética, a que ele propunha em seu método dialético (Marx, 1983) e a abstração metafísica, que ele criticava. No seu texto sobre método dialético, ele coloca a necessidade da abstração (dialética) e, ao mesmo tempo, coloca o problema da abstração (metafísica), tal como no seu exemplo sobre a “população”, analisada sem divisão social do trabalho, classes sociais, etc. (Viana, 2007a; Viana, 2007b).

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